A neutralização do prazer
por Gérard Lebrun
Resumo
Será o prazer um mal?
Os gregos não acreditavam nem um pouco nisso, e Aristóteles desfaz com facilidade esse paradoxo. Será, então, que o prazer é um bem supremo para todos os seres vivos, inclusive o homem? Nós teríamos então que chamar sábio o devasso que seria bastante comedido nos seus desejos para afastar dele qualquer dor durante sua vida. Por que não, visto que esse homem seria na realidade muito austero? Por amor do prazer, dizem os epicuristas, ele renunciaria à volúpia! Todavia, perguntam os estóicos, dá para imaginar uma cidade de epicuristas? Não. Por conseguinte, o prazer não deve ser candidato à solução do bem supremo, nem deve ser considerado um bem. O prazer, sem dúvida, é bom, mas não é um bem; a dor, sem dúvida, é ruim, mas não é um mal. Os gregos ficaram assustados com esse paradoxo. Mas os estoicos, descartando assim a ameaça do prazer-rei, acabaram por inventar, genialmente, a moralidade ocidental.
A Natalia Kholodovitsh
Será que as palavras hedoné e voluptas evocavam ao espírito dos antigos apenas as ideias de gula, bebedeira, luxúria? Seria fácil afirmá-lo selecionando alguns textos com habilidade. Assim, quando Cícero justifica sua tradução de hedoné por voluptas, que é seu equivalente exato, acrescenta que este nome mesmo — “invidiosum nomen, infame, suspectum” — indica bem como é impossível procurar por esses lados o fim último do homem.[1] Sêneca realça com ainda mais força essa associação de prazer com maus costumes:
[…] O prazer habitualmente se esconde e procura as trevas, fica nas vizinhanças das casas de banho, das saunas e dos lugares que temem a polícia; é mole, não tem força, é úmido de vinhos e perfumes, pálido ou pintado, embalsamado com unguentos como um cadáver.[2]
No limite, a expressão “prazeres vergonhosos” seria, então, um pleonasmo. Contudo, será que textos como esses permitem, por si sós, calcular o valor do prazer no mundo greco-latino? Vários estudos eruditos, e por último o Uso dos prazeres, de Foucault, mostram exemplarmente o quanto devemos desconfiar de leituras anacrônicas cujo perigo, nesse domínio, é mais ou menos constante.
Se ficarmos apenas nos grandes pensadores do século IV a.C., em Platão e Aristóteles, podemos afirmar em primeiro lugar que eles consideram o adestramento em relação aos prazeres uma tarefa essencial da educação. O objeto primeiro do educador é acostumar as crianças, desde a idade mais tenra, a “experimentar os prazeres e as dores como convém”,[3] e o legislador “deve consagrar-se quase inteiramente ao problema dos prazeres e das dores tanto no indivíduo como na cidade”.[4] Será que o objetivo é, então, reprimir a tendência do homem ao prazer? Aqui, uma nova precaução se impõe. Não dá no mesmo condenar a vida de gozo, inteiramente consagrada à busca do prazer, e fazer do prazer um mal. Uma coisa é lançar o opróbrio sobre os “prazeres vergonhosos”, outra coisa é suspeitar a priori do fenômeno fisiológico chamado prazer e, por isso, preconizar o ascetismo. Ora, essa suspeita, nós quase não a encontramos no pensamento grego do século IV a.C. Não a encontramos em Aristóteles, que, certamente, assimila a vida de gozo (apolaustikôs bíos) à do “gado’,[5] mas atribui a hedoné ao próprio Deus. Não a encontramos tampouco em Platão, cuja reputação de austeridade só foi tão solidamente firmada devido a alguns mal-entendidos. Quando Platão, no Filebo, começa a enumerar as componentes do que é para o homem o bem supremo, inclui entre elas o prazer (mesmo que em um nível modesto). E, nas Leis, aconselha mostrar aos homens que, se a vida de temperança (sóphron bíos) é preferível, não o é apenas pela eudoxía que traz, mas porque
[nela] os prazeres prevalecem sobre os sofrimentos, ao passo que, na vida desregrada [akólastos bíos], os sofrimentos prevalecem sobre os prazeres, em grandeza, número, freqüência.[6]
Será que essa página das Leis, em que se estabelece um programa de cálculo minucioso dos prazeres, significa que Platão se converteu, tardiamente, ao hedonismo? Desconfiemos (nova precaução a tomar) desta palavra hedonismo, que muitas vezes nos dispensa de perguntar de qual hedoné exatamente se trata. O emprego irrefletido dessa palavra acabaria, talvez, com qualquer chance de recuperarmos o que faz a especificidade da sabedoria do século IV a.C. em relação à questão do prazer. Deixemos, portanto, de lado o “hedonismo” e o “anti-hedonismo” e concentremo-nos nesta tese do século IV a.C., que Victor Brochard enuncia com precisão em seu belo artigo “A teoria do prazer segundo Epicuro”.
É por causa da dor que a ele se mistura que um prazer pode ser declarado ruim. Quanto a esse ponto, Platão, Epicuro e Aristóteles estão perfeitamente de acordo. O prazer é bom por si mesmo, o prazer é um bem e, se deixa de sê-lo, é somente quando a dor a ele se junta.[7]
Essa proposição, chamemo-la axioma do prazer no século IV a.C.
Para nós (para os modernos), esse “axioma” já não vale mais. Como observa Kant, ele repousa sobre uma confusão de linguagem. De uma sensação de prazer que experimento, digo que ela é agradável, não que ela é boa: é a razão que julga o bem e o mal, ao passo que uma sensação (estritamente subjetiva) só pode decidir entre o agradável e o penoso. Chamar de bom em si mesmo um prazer que não seja acompanhado de dor ou não engendre dor, é arriscar-se a confundir juízo de gosto e juízo ético. Por que, então, não chamar de bom o prazer que tem um sádico por seu crime se este não é seguido de castigo? — Longe de mim insinuar que Platão, Aristóteles e Epicuro tenham imaginado autorizar essa opinião. Mas teriam dito — cada um à sua maneira — que, se o prazer do sádico não é bom, é porque não é um prazer verdadeiro. Mas essa noção de “prazer verdadeiro” é ininteligível para nós. Quem pode decidir sobre a “verdade” de um estado subjetivo senão aquele que o sente? E como essa pessoa poderia jamais enganar-se quando sente prazer?… Assim, uma coisa ao menos é certa: não estamos mais, neste ponto, no mesmo comprimento de onda que os clássicos gregos. Nossos juízos em relação à qualificação das condutas permaneceram, grosso modo, os mesmos, mas não o código de apreciação do prazer. É o espírito desse código desaparecido que queremos tentar reencontrar antes de nos perguntarmos por que e desde quando ele caiu em desuso. O que poderia ter acontecido entre os clássicos gregos e nós, para que o axioma do prazer tenha deixado de valer?
Mesmo que Platão tenha sido — como muitos outros — um crítico da volúpia, o importante, do ponto de vista que é o nosso, é que ele se recusou a admitir que o prazer em si mesmo seja ruim. Essa opinião era sustentada em seu tempo pelo menos por Antístenes, um socrático “dissidente”, e por Espeusipo, seu sobrinho, que deveria sucedê-lo na Academia. Qual dos dois é visado no Filebo? Os comentadores ainda discutem. Em todo caso, o fato é que uma parte do diálogo é consagrada à crítica dos “sábios” que não aceitam que o prazer seja um bem ou algo que participe do bem. Platão deixa claro seu desacordo com esses “espíritos rabugentos”. Entretanto, expõe longamente um de seus argumentos, que emprega para determinar quais os tipos de prazer que são realmente bens.
Quais são, perguntam esses pensadores “carrancudos”, os prazeres mais vivos? Os do corpo, a resposta é unânime. Mas não é nos estados patológicos que eles têm sua maior intensidade? Uma pessoa com febre experimenta bem mais prazer ao beber do que um homem saudável… Quanto mais fortemente são sentidas a falta e a dissolução, tanto mais forte é a satisfação que acompanha a repleção e a restauração do organismo.[8] Se assim for, é impossível isolar o estado fisiológico chamado “prazer”: processo de restabelecimento do equilíbrio orgânico, é inseparável do estado de indisposição ao qual põe um fim. Os homens certamente distinguem o “prazer” e o “sofrimento”, mas essa distinção é na verdade convencional. Quando o homem sedento está bebendo algo, é a sensação de repleção que prevalece sobre a de carência — e é por isso que se diz que matar a sede é agradável. No caso do sarnento que se coça, a sensação de sofrimento permanece mais forte que a de alívio — e é por isso que chamamos esse ato de desagradável. Mas aí só há sempre estados mistos, mosaicos de satisfação e insatisfação aos quais a linguagem dá um valor positivo ou negativo de acordo com a componente que domina.
Tal é a análise praticada pelos sábios “carrancudos”. Não há estado “agradável” senão por contraste com um estado oposto, que lhe é indissoluvelmente ligado. Compreende-se assim que os doentes experimentem com maior força estes prazeres que Aristóteles chamará de curativos,[9] cuja intensidade é proporcional à impureza (no sentido químico da palavra). O que resta, portanto, de seu valor? Se pensarmos que não há prazeres senão nesses estados mistos, concluiremos, com certeza, que o prazer jamais é um bem. Pelo simples fato de que esses estados são processos de cura, de volta ao normal, é impossível dizer que eles são bons em si mesmos: todos vão concordar que é melhor estar com saúde do que convalescente.[10] Se todos os prazeres fossem dessa natureza, Antístenes e Espeusipo teriam, então, razão. Mas será que as coisas são realmente assim? A essa questão, Platão e Aristóteles respondem, ambos, pela negativa.
Mas suas respostas são muito diferentes e vale a pena parar neste ponto. Aqui e lá, pretendemos mostrar que os prazeres propriamente ditos são bons, mas o modo de seleção dos candidatos não é o mesmo nem o número de admitidos…
Tentemos compreender qual é a atitude exata de Platão em relação aos adversários incondicionais do prazer. Reconhece neles pelo menos um mérito: graças à sua análise, percebemos que há falsos prazeres, “intimamente misturados seja à dor, seja a pausas entre dores extremas em um estado de sofrimento do corpo ou da alma”.[11] São esses prazeres que a maioria dos homens procura. Contudo, será que é preciso dizer que esses insensatos se enganam porque procuram o prazer? Não. Os gozos que os interessam não são falsos bens na medida em que são prazeres, mas sim na medida em que não são realmente prazeres. É por isso que os anti-hedonistas radicais erram: não vêem que sua análise deveria servir para fazer-nos distinguir o agradável aparente do agradável autêntico e, por isso, chegam à conclusão de que a vida de felicidade (eû zên, eudaimonía) não poderia incluir prazeres. Ora, Platão, no Filebo , só opera a triagem dos prazeres para determinar quais entre eles teriam direito de figurar na eudaimonía. Pois é preciso que haja prazeres assim. Sabe-se que a possessão de todos os prazeres na falta da sabedoria (phrónesis) não constituiria o bem supremo, mas sabe-se também que apenas a possessão de phrónesis , sem nenhum prazer, não poderia ser o fim do homem. Esse segundo ponto, a tradição “platônica” o mantém em geral obscuro. Deixa-se a impressão de que, para Platão, todos os prazeres seriam suspeitos. Ora, não é bem assim. Os verdadeiros prazeres são bens, e Platão, como lembra Foucault[12] chega a classificar a aphrodisía entre “os prazeres mais naturais e necessários”.[13] O Filebo, é verdade, é menos explícito; se admite prazeres necessários no bem supremo, não menciona a afrodisia.[14] Isso não surpreende, pois a posição de Platão, como veremos, o leva muito rapidamente ao embaraço.
Por ora, temos como certo que Platão não aceita a tese dos anti-hedonistas radicais. Contra eles, é preciso afirmar que há prazeres puros, “de maneira nenhuma comparáveis aos das coceiras”.[15] E é preciso prestar atenção para, como aqueles, não ficar no contrapé da opinião do vulgar, que só reconhece os prazeres corporais e grosseiros. Pois ficar no contrapé dessa opinião é fazer um juízo de valor oposto, mantendo o mesmo erro de análise… É um fato, observará Aristóteles, que, “na linguagem corrente, os prazeres corporais monopolizaram o direito de levar o nome de prazeres, porque é a eles que os homens em geral se entregam e porque eles são a parte que cabe a cada um; como são os únicos que conhecemos bem, pensamos também que apenas eles existem”.[16] Eis por que pôde ocorrer que filósofos recusassem globalmente qualquer valor positivo ao que deram o nome de, em sua vez de ser imprudentes, “o prazer”. Platão não caiu nesse erro. Não quis impedir os homens de experimentar uma sensação que “jorra do âmago da natureza!”.[17] No entanto, sabemos com quanta mesquinharia Platão calcula o número e a natureza dos prazeres corporais dignos de figurar na eudaimonía. “Há muitos; mas sobretudo, se quiseres prestar atenção, os prazeres do odor.”[18] A estes, o Filebo acrescenta, no que concerne aos prazeres corporais, a satisfação que temos quando vemos formas geométricas e quando ouvimos sons “que tornam uma nota única e pura”.[19] Em seguida Sócrates, sem perder mais tempo, passa aos prazeres causados pelo saber. Do sabor da comida ou da volúpia, mesmo que comedida, não se trata mais… Será que esse silêncio vem de uma inclinação incoercível ao “ascetismo”? Mas, nesse caso, não compreendemos mais por que Platão tanto tentou se desmarcar de Espeusipo. É preciso, portanto, se perguntar se essa quase exclusão dos prazeres físicos do número dos bens não provém de uma análise de essência original e não de uma opção sentimental. E, para isso, é preciso levar em consideração um outro momento da refutação dos adversários do prazer, que é feita principalmente no livro IX da República.
Platão pensa que a maior parte dos prazeres físicos consiste de fato numa cessão ou atenuação da dor. Mas pensa também que não se pode autorizar essa constatação para declarar que o prazer não é de maneira nenhuma um bem. Pois, se assim fosse, como poderíamos determinar o estado ótimo? Para o corpo como para a alma, há um estado em que um ser vive em conformidade com sua natureza — um estado de saúde, desejável por si mesmo. Ora, como determiná-lo, se o prazer está excluído do bem a priori? Assim, a única saída que se oferece aos pensadores “carrancudos” é dizer que a vida desejável consiste apenas em não sofrer ou não sofrer mais. Alguns, sem dúvida, sustentam essa tese. Mas acreditas, pergunta Sócrates a Protarco, que eles estejam verdadeiramente contentes quando apenas não sentem dor?[20] Se eles sinceramente acham, acrescenta, “é que eles têm uma falsa ideia do prazer, já que a natureza separou com clareza a ausência de dor e o prazer”. E, mais uma vez, Platão recorre a uma imagem da medicina. O doente tomado pelo sofrimento pode achar que uma melhora é um estado altamente satisfatório — que nada lhe faz mais bem do que tomar um analgésico ou um ansiolítico. Mas será que temos o direito — nós que estamos saudáveis, nós os normais — de chamar de boa essa melhora que o doente, ele, sente certamente como boa? De maneira nenhuma. Essa opinião do doente só exprime algo relativo. É em relação à dor que acaba de experimentar que ele se sente bem, assim como esta jovem nos parece bela em relação àquela mulher feia, mas pareceria feia se comparada a uma deusa. Assim, da mesma forma que Hípias parecia ridículo ao dizer que uma mulher provocante representa a beleza em si, também o doente pareceria ridículo ao acreditar que o bem-estar é o estado que um analgésico lhe dá.
[…] Quando passam à dor, têm razão em acreditar que sofrem, pois sofrem realmente; mas quando passam da dor ao estado intermediário, estão fortemente convencidos de que estão na plenitude do prazer; como as pessoas que, por não conhecerem o branco, oporiam o cinza ao negro, eles opõem a ausência de dor à dor, por não conhecerem o prazer, e aí se enganam. [21]
Esse texto indica a razão do desacordo entre Platão e os anti-hedonistas radicais. Já que a dor é, incontestavelmente, algo de positivo, é necessário que ela tenha um oposto, igualmente positivo: o prazer. Sem o que, o estado de bem-estar seria, por princípio, indeterminável. Tudo o que poderíamos dizer é que nos sentimos bem quando evitamos uma dor ou quando ela se dissipa, e a palavra bem não teria mais sentido objetivamente determinável. Sobre seu bem-estar, cada um decidiria por sua conta em função de sua própria sensibilidade ao sofrimento — e o educador ou o psicoterapeuta não teriam mais nenhuma norma para estabelecer ou restabelecer nos espíritos. Eis por que o agradável não deve ser uma simples cessação da dor. Eis por que, também, o prazer não deve pertencer ao gênero do repouso, mas ao gênero do movimento. “Prazer e dor, quando se produzem na alma, são ambos um certo movimento.[22] Admitido isso, torna-se absurdo restringir a priori o prazer a apenas uma ausência ou cessação de sofrimento, torna-se em princípio possível medir o que é o bem-estar de maneira não-subjetiva e estipular em que o agradável deve contribuir ao bem supremo. Em suma, é preciso que o prazer seja reconhecido como um estado positivo para que a vida de prazeres possa ser normalizada. Então, é preciso que ele não seja um repouso. Eis por que Platão empresta de Aristipo e dos cirenaicos a tese do prazer-movimento e pode também, a exemplo destes, recusar a definição do prazer como simples desaparecimento do penoso.
O prazer não é [para os cirenaicos], dirá Diógenes Laércio, o desaparecimento do penoso, como quer Epicuro, mais do que a dor é a ausência do prazer, pois dor e prazer consistem ambos em um movimento e a ausência de dor e de prazer não são movimentos. A ausência de dor assemelha-se mais ao estado daquele que dorme.[23]
Tal é, me parece, a razão pela qual Platão, lançando mão de todos os meios, retoma precisamente neste ponto a doutrina do hedonista Aristipo, que, aliás, se opunha a tudo. Ora, a aceitação dessa tese implica duas conseqüências. Em primeiro lugar, se o prazer consiste numa gênese contínua, não poderia ser télos, não poderia ser fim último do homem, já que é por princípio desprovido de estabilidade, de ousía. Nesse sentido, o hedonismo de Aristipo se autodestruiria, e Platão não deixa de assinalá-lo nesta passagem. Devemos agradecer, diz ele, a esses “sábios” que consideram o prazer uma génesis incessante e lhe negam assim a ousía, sem a qual não se pode falar em fim (télos). Se determinarmos o prazer à maneira de Aristipo, é absurdo transformá-lo no bem supremo (e isso é tudo que deseja Platão). Mas há uma segunda conseqüência, esta mais incômoda para o platonismo. Em segundo lugar, com efeito, se todo prazer é génesis, não haveria prazer que completasse uma deficiência, uma falta. E, por isso, a diferença entre prazeres puros e prazeres mistos, prazeres verdadeiros e falsos, se encontra consideravelmente atenuada. Um traço, é verdade, permite distingui-los — mas apenas um: é que os prazeres puros se seguem a uma falta que não é dolorosa.
Verdadeiros são os prazeres que nascem das cores que chamamos belas, da maior parte dos perfumes e dos sons, de todos os prazeres cuja falta não é penosa nem sensível, ao passo que sua presença nos provoca sensações de plenitude, agradáveis, livres de toda dor.[24]
Nesse caso, “a repleção se produz sem que a vacuidade seja sentida”.[25] Resta, porém, que a vacuidade existe… E um único exemplo basta para mostrar quanto a posição de Platão é, desde logo, incômoda. Se o prazer que o saber nos dá é um prazer puro, é somente sob a condição de que ele não seja precedido de um desejo muito vivo, de uma “fome de aprender” que, esta sim, seria dolorosa.[26] Mas é difícil distinguir a ausência de dor ou o mal-estar: o próprio Platão,[27] compara a ignorância (agnoia), como vazio da alma, com a fome e a sede que são “espécies de vazios no estado do corpo (…) “. A que se deve então a pureza do prazer de saber? A muito pouca coisa. Suponhamos que eu me ponha a “devorar” um livro que um amigo me tenha revelado e que me tenha dado vontade de ler: será que eu ainda experimentarei um prazer puro? Meu prazer será antes a supressão de um estado negativo percebido, assim como o prazer do faminto que satisfaz a fome ou até como o do libertino que realiza seu fantasma… Ontologicamente, onde estaria a diferença? Nada é mais frágil do que o prazer puro tal qual o define Platão. E Georges Rodier tem razão ao observar que mesmo os prazeres intelectuais e estéticos “não são a rigor completamente verdadeiros”, mas apenas “mais verdadeiros que os prazeres do vulgar”. Pelo fato de que não são concebíveis senão num processo, são sempre corroídos pelo negativo; provêm sempre de uma deficiência que, a todo instante, pode tornar-se sofrimento, pode fazê-los então cair na impureza. Muitas vezes ironizamos o caráter austero dos prazeres platônicos. Melhor seria admirar o fato de que Platão tenha podido conservar a todo preço prazeres que sejam verdadeiramente bons, quando os critérios que ele próprio dá para o “prazer verdadeiro” deveriam levá-lo a crer que trata-se aí de uma classe do vazio.
É esse ponto fraco do platonismo que aponta Aristóteles[28] quando, retomando os exemplos do “prazeres puros” mencionados por Platão, pergunta: por que tais prazeres deveriam assemelhar-se a processos de repleção ou de restauração? Qual poderia ser a vacuidade que vem preencher o prazer que sinto ao cheirar um perfume? Não seria arbitrário querer descrever todos os prazeres como se fossem a satisfação de uma necessidade ou, ao menos, o aparecimento de uma plenitude que sucederia a uma ausência? Há aí um erro de análise que vem do fato de termos tomado como modelo do sofrimento e do prazer o par carência/satisfação, como se todo sofrimento fosse comparável a uma dor de estômago, todo prazer à sensação de aplacar a fome. É porque aceita a onivalência desse modelo que Platão, quando pretende isolar um prazer que não esteja misturado com dor, toma como dever descrever um estado de satisfação que preencha uma ausência indolor, mas, ainda assim, uma ausência. Pois é preciso que se encontre sempre o mesmo esquema: substituição de um positivo por um negativo; é a regra do jogo… Ora, não faltam argumentos a Aristóteles para mostrar que não há aí senão um parti-pris. Citemos dois: 1) Esse esquema nem sequer dá conta de todos os aspectos do prazer ligados à repleção. “Não é do mesmo objeto que nos regozijamos quando o estado normal está reencontrando sua plenitude e quando ele já está restaurado.”[29] Não experimento o mesmo prazer de beber quando encontro um poço em pleno deserto e quando degusto uma caipirinha numa mesa de bar… A realização de uma necessidade não é, portanto, a medida da satisfação, e o restabelecimento de um equilíbrio orgânico não revela de maneira nenhuma a essência do prazer. Certamente é verdade que alguns prazeres corporais coincidem com um processo de repleção. Mas será que isso é uma razão para analisar todos os prazeres segundo o modelo nutritivo? Para procurar, custe o que custar, a carência à qual a satisfação, por princípio, deveria pôr um fim? Observemos que nessa passagem Aristóteles dispunha de uma arma excelente para desmistificar o Eros platônico e mostrar o quão absurda é a comparação dos prazeres do amor com os prazeres da mesa. A exigência de atribuição de um negativo para determinar todo prazer é sem dúvida uma das raízes mais profundas da fascinação que o duvidoso conceito de “desejo” pôde exercer. 2) Não apenas restringimos abusivamente todos os prazeres aos prazeres em devir, mas também confundimos dois fenômenos simultâneos que importa distinguir: a) o movimento de volta ao estado normal (katástasis) do organismo desequilibrado que, a seu termo, produzirá o bem-estar; b) a atividade (enérgeia) da faculdade que permanecera no estado normal (por exemplo, a faculdade nutritiva que assimila os elementos).[30] É apenas o primeiro processo — repletivo — que pode ser acidentalmente agradável e que será, então, misturado com dor. Mas o sentimento de bem-estar não provém da satisfação: deve-se a um exercício da faculdade que permaneceu saudável e que volta a ser capaz, depois da repleção, de funcionar sem entraves. É agora, e só agora, que o prazer aparece em sua pureza.
Aos pensadores “carrancudos” que negavam que o prazer fosse um bem, Platão acusava de haverem retomado a tese do vulgar, que só conhece prazeres corporais e cuja “sabedoria” consiste muitas vezes em evitar, antes de tudo, o sofrimento.[31] Platão, como vimos, rejeitava essa concepção pessimista: há prazeres puros, verdadeiramente bons; é preciso que os haja. Mas Platão cometeu o erro de retomar por sua conta, para satisfazer as necessidades de sua argumentação antipessimista e para melhor desvalorizar a maior parte dos prazeres físicos, a equação prazer = movimento, e é por isso que Aristóteles a chama de modelo nutritivo. É por isso que ele mede com tanta estreiteza a esfera dos prazeres físicos verdadeiros. É por isso principalmente que ele experimenta tanta dificuldade para estabelecer a plena pureza dos próprios prazeres intelectuais. Sua intenção era correta, acredita Aristóteles. É preciso, decerto, que o prazer seja pensado como um bem. Já que todos os homens aspiram ao prazer, é porque eles os tomam por bons. Sobre o conteúdo desse prazer declarado bom, a maioria dos homens, sem dúvida, se engana; mas isso não impede que essa valoração espontânea, “o prazer é bom”, possa ser ilusória. Está inscrita em nosso ser, exprime uma exigência oriunda do fato de viver. Mas nós não compreendemos isso ou compreendemos mal na medida em que nos obstinamos em colocar o vivido do prazer em perspectiva com um vivido negativo, na medida em que pensamos o prazer relativamente a uma carência — o ato de beber em relação à sede, o amor em relação ao desejo, o ato de saber em relação à ignorância. Se o prazer sempre foi sinônimo de satisfação, jamais poderia ser inteiramente purificado do negativo que ele está apagando, ou, ao menos, jamais teríamos certeza disso. Assim, é melhor deixar de lado as noções de desejo, necessidade, carência e, para isso, deixar de descrever o prazer como um devir — o que ele só é acidentalmente.
Não é exato dizer que o prazer é um devir sentido [aisthetén génesin]; é preciso antes dizer que ele é uma atividade [enérgeia] do estado habitual [héxis] conforme a natureza e, no lugar de sentido, dizer não-entravado…[32]
Para compreender essa definição de Aristóteles, é preciso referir-se a exemplos de um registro completamente diferente dos de Platão — quando este descreve, talvez não sem alguma complacência, os maus prazeres (que, no final das contas, seguem de tão perto os bons…): amantes epilépticos, suspiros de gozo, gritos agudos etc. É preciso deixar o pitoresco do negativo pela banalidade do quotidiano. Quais são, em todas as disciplinas, os melhores alunos? Aqueles que se interessam pelo seu trabalho. Quais são, em todas as profissões, os melhores especialistas? Aqueles que se apaixonam pela prática de seu trabalho, quando esta coincide com alguma atividade. Estes não duvidam de que o prazer seja um bem, o seu bem. “Quais são os seus maiores prazeres?”, perguntava a Edith Piaf um repórter que estava certo de estar fazendo uma pergunta indiscreta. “Meu único prazer é cantar; e quando não puder mais cantar, morrerei, respondeu ela sem um instante de hesitação. O prazer não é o contrário da abstinência, mas do aborrecimento, da carranca; não é o que nos arranca soluções e espasmos, mas, mais simplesmente, o que vem do feliz exercício de nossas forças ou de nosso talento — e que, ao mesmo tempo, aumenta a qualidade ou a quantidade de nossa produtividade. “Em todos os domínios”, diz Aristóteles, “agimos com mais discernimento e precisão quando exercemos nossa atividade com prazer.”[33] É aqui que experimentamos ao máximo como um bem este prazer que é a ressonância de uma atividade: é aqui que o axioma do prazer se torna evidente.
Mas ele também tira daí que o “prazer” em geral é um falso conceito. Sob esse nome, pretende-se designar um setor do comportamento que seria o mesmo em todos, quando a palavra só tem sentido se se especifica o tipo de atividade que essa sensação ou esse sentimento acompanha.
O prazer, concebido como uma atividade em si, abstração feita da operação da qual ele procede, não existe; o que existe são prazeres que formam com as atividades de que procedem pares indissolúveis, prazer de tocar, prazer de ver, prazer de pensar […][34]
Não há forma de prazer que recubra todos os estados de satisfação: há emoções, entusiasmos, todos incomparáveis entre si, e que valem tanto quanto vale o funcionamento que os suscita e que os reforça. A palavra funcionamento pode parecer estranha, mas é indispensável. Quando Proust analisa em câmara lenta a emoção de Swann ao sentir aproximar-se a “petite phrase”, ele quer apreender como funciona o espirito de Swann durante a audição da sonata de Vinteuil e também indicar o quão incomparável é o prazer que toma conta dele.
Será que devemos concluir trivialmente: tantas cabeças, tantos prazeres? Não: tantos funcionamentos, tantos prazeres. Não é a mesma coisa. Por funcionamento (por enérgeia), é preciso compreender uma performance que respeite uma norma e que se desenvolva entre os limites fora dos quais há excesso ou falta. É dentro desses limites determináveis que o funcionamento é dito bom, ou seja, sem entraves nem contratempos — e que o prazer, então, jorra espontaneamente, como sinal da realização conforme a norma. Daí a insistência de Aristó-teles sobre o anempodistos (fato de não estar entravado, de não sofrer com incômodos), que é a condição de surgimento do prazer. Para compreender o alcance dessa descrição, é útil fazer um paralelo com a de Platão.
Para Platão como para Aristóteles, o axioma tem força total: sabe-se que o prazer — verdadeiro — é um bem. Mas em que consiste este ser-bom? É neste ponto que as posições divergem, pois aqui enfrentam-se duas ontologias “medicais”. Para Platão, é impossível determinar o prazer se não o pusermos em contraste com um estado privativo: o prazer que me dá a visão de uma bela forma se segue a um estado de indiferença; ao negativo (é sempre necessário um ponto de partida) se segue o positivo. Ora, Aristóteles se recusa, precisamente, a pensar o prazer em relação a qualquer figura que seja negativa, a descrevê-la como uma completude que tomaria o lugar de uma deficiência. Nada saberemos da natureza do prazer, se decidirmos que ele deve ser o contrário de uma carência. Ele é o signo de uma operação cuja realização não pode ser bloqueada; ele é, portanto, o contrário de um mau funcionamento. Excluamos, desde logo, todas as imagens que o representariam como o episódio ou o resultado de um processo, pois todas contribuíram para dar-lhe o aspecto de um positivo em relação a um negativo. Daí estas afirmações à primeira vista estranhas — que Epicuro retomará — e que, todas, têm por objetivo fazer-nos largar o uso do código positivo/negativo: o prazer é perfeito em todos os momentos; ele não aumenta nem diminui com o tempo; sua duração não tem nenhum efeito sobre sua qualidade; em suma, “ele consiste mais em repouso (en eremía) do que em movimento”. ”Ele consiste mais em repouso.” Ou seja: seria melhor, a escolher, considerá-lo um estado de repouso.
Certamente, é evidente que as atividades fisiológicas (respiração, circulação, atividades sensoriais) não são estados de repouso: são processos. Mas, se é importante marcar a diferença entre esses processos e os movimentos propriamente ditos, é porque eles apenas reproduzem o mesmo esquema de funcionamento e porque o tempo nada traz de novo a essa repetição, enquanto o fator patológico não intervier. O prazer é o contraponto desse tipo de processos vitais — e é por isso que ele é profundamente bom.
Estranho prazer, a nossos olhos — é preciso confessá-lo — esse prazer monótono, e tão desconcertante para nós que poderíamos pensar que Aristóteles, de fato, retorna à ideia de que o prazer consiste numa simples ausência de dor… Mas não acreditemos nisso: essa interpretação trairia completamente o pensamento aristotélico, pois nada há de mais afastado da inércia do que a enérgeia de que aqui se trata. A vida de um ser é tanto mais agradável quanto mais ele exercer seus órgãos sensoriais ou seu pensamento; tanto mais agradável que ele dormirá menos e permanecerá mais tempo desperto. Assim, a mais elevada vida de prazer é a de Deus, que, sem interrupção, sem sono, goza de um “prazer uno e simples”.[35] Mas será que tudo isso é convincente o bastante para nós? Viver sem sofrimentos, mas também sem desejos, viver repetitivamente, não seria isso o cúmulo do aborrecimento? É o que replicará Schopenhauer. E é preciso convir que nós o compreendemos melhor do que a Aristóteles, e que a vida do Primeiro Motor não nos tente muito. É assim. Nós, modernos, não podemos prescindir do estimulante do negativo, e é difícil para nós conceber um prazer extremo sem uma pontada de stress: quando a pessoa amada toca nossa campainha com dez minutos de atraso, nosso prazer é bem mais vivo do que se ela tivesse chegado na hora. Sim, é bem difícil ver algo diverso de um estado simplesmente indolor e insípido, no prazer energético descrito por Aristóteles.
Aliás, a coisa não é diferente para o prazer como o compreende Epicuro: estado neutro, que parece ser caracterizado apenas pela isenção de inquietação de dor.
A carne exige estar ao abrigo da fome, da sede e do calor. Pois, se um homem possui essa segurança ou espera possuí-la, poderá rivalizar em felicidade com o próprio Zeus.[36] A abolição de tudo o que sofre é o limite da extensão dos prazeres: e lá, onde está aquele que experimenta o prazer, enquanto ele aí estiver, não estará aquele que sofre ou aquele que está triste ou os dois juntos.[37]
Já na Antiguidade, essa linguagem parecia surpreendente: falar assim, diz Cícero, é reduzir o prazer a um simples estado de analgia, e mesmo de letargia.[38] Falar assim é, portanto, opor-se à opinião de todos os homens “que, pela palavra grega hedoné ou a palavra latina voluptas, entendem o movimento que torna a sensibilidade feliz”.
Entretanto, é muito provável que Cícero se engane ao atribuir a Epicuro a tese do prazer-ausência de dor. Os fragmentos epicurianos relativos ao prazer ganham um sentido completamente diferente se admitirmos que Epicuro retomou por conta própria o conceito aristotélico de prazer. Epicuro certamente diz que todos os nossos atos “visam a afastar de nós o sofrimento e a dor”. Mas
uma vez que isso foi realizado, a tempestade da alma cessa, pois o ser vivo não tem mais necessidade de se dirigir para alguma coisa que lhe falte nem de procurar alguma outra coisa para perfazer [plerosétai] o bem da alma e do corpo.[39]
Essas são linhas que devem ser compreendidas com muita exatidão: a satisfação das necessidades naturais do corpo põe fim ao mal-estar que elas me faziam sentir, e é só então — “quando elas estão realizadas” — que começa o prazer e que ele se afirma como um estado inteiramente positivo. O comentário de Victor Brochard põe em evidência a completa identidade da visão de Aristóteles e de Epicuro quanto a esse ponto preciso, dissipando assim os contra-sensos cometidos por Cícero e muitos outros. É verdade, escreve Brochard, que o prazer segundo Epicuro aparece quando desaparece a dor, mas não se reduz de maneira nenhuma a esse desaparecimento do negativo, que é apenas a condição de sua ocorrência. No momento em que cessa o mal-estar, “em virtude do jogo natural dos órgãos, por uma lei natural, sendo o equilíbrio corporal restabelecido, o ser vivo experimenta uma satisfação”.[40] E essa satisfação não é de maneira nenhuma comparável à do convalescente cuja febre caiu, mas à do homem saudável cuja temperatura é normal.
Em suma, qual é o sinônimo do prazer bom, do prazer verdadeiro, tal qual concebiam Aristóteles e Epicuro? É a saúde (hygleia) — e, mais precisamente, a saúde como a definirá Leriche: “a vida no silêncio dos órgãos”. Esse é o sentido do que Epicuro chama hedoné katastematiké: sentimento agradável que me causa o fato de viver, quando toda ameaça ou incômodo estão descartados. Talvez estejamos agora tocando o essencial desse “prazer” que os pensadores do século IV a.C. consideravam profundamente bom — à condição de que fosse definido corretamente. Em todo caso, já temos mais condições de interpretar essa tese sem risco de anacronismos muito grosseiros. Na raiz da convicção de que o prazer é incondicionalmente bom, há sem dúvida uma apreciação positiva da vida, que se nos tornou estranha — e da qual Nietzsche tentou reencontrar o alcance e a profundidade (mas relegando talvez rapidamente demais Aristóteles e Epicuro à “decadência”).
Aristóteles e depois Epicuro não duvidavam de que o simples fato de estar vivendo fosse um bem. Se todos os homens prezam a vida não é porque um impulso absurdo os leva a isso e os cega. A vida é a enérgeia fundamental, a que torna possível (que se nos desculpe essa banalidade) o desdobramento de todas as nossas atividades — sensoriais, intelectuais, profissionais, estéticas… Não podemos, pois, contentar-nos em dizer que estamos ligados à vida, o que deixa subentendido que nos apegamos a ela medrosa, fria, covardemente: a vida, nós a amamos — assim como a amava Heitor da Ilíada, quando diz que está triste por ter de descer ao Hades, onde a existência deve ser tão desinteressante… Sim, prezamos a vida, a achamos agradável; e é esse sentimento primordial que dá ao prazer seu sentido e seu valor positivo. Vale a pena citar, aqui, o texto da Ética a Nicômaco:
Se os seres desejam o prazer, não poderíamos pensar que é porque todos aspiram a viver? Ora, a vida é uma atividade e cada ser exerce sua atividade sobre os objetos e com as faculdades que mais aprecia; assim, o músico com a audição sobre a melodia, o intelectual com o pensamento sobre os objetos de contemplação, e assim por diante. Ora, o prazer aperfeiçoa as atividades e, portanto, a vida, que todos os seres desejam. Então, é normal que todos, de uma só vez, aspirem ao prazer; pois o prazer aperfeiçoa, para cada um, a vida, que lhe é preciosa…[41]
Compreendendo essas linhas da seguinte maneira: cada vez que um homem exerce a atividade que prefere (a composição musical, o estudo…), o prazer que ele aí sente aumenta sua produtividade. Ora, a vida, bem entendido, é a atividade de base: todos os homens (e não apenas os músicos e intelectuais) a ela estão ligados; todos sabem ou pressentem que o prazer que a acompanha a torna ainda mais “performante”. Portanto, é natural que todos considerem o prazer um bem, desde que esta atividade (de viver) tenha para todos um atrativo — assim como qualquer atividade tem atrativo para quem se dá a ela com paixão.
Admitindo isso, poderíamos ainda perguntar: é por causa da vida que nós aspiramos ao prazer, ou será que é por causa do prazer que ela nos dá que atribuímos valor à vida? Aristóteles apenas assinala essa questão de passagem. Os comentadores medievais, estes, lhe respondem e — segundo citações que Gauthier e Jolif dão na sua edição da Ética…—[42] ao que parece, permanecendo fiéis ao espírito do Filósofo: é porque amamos a vida que atribuímos valor ao prazer. Sem o amor dessa atividade que é a vida, não haveria aspiração universal ao prazer. Se tivesse sustentado a tese inversa, Aristóteles se teria exposto aos contra-argumentos muito fáceis em que a sabedoria grega era pródiga: como um homem em idade madura, extenuado pelas provas que enfrentou, poderia jamais justificar seu apreço pela vida em vista do balanço de suas dores e alegrias? Além disso, e principalmente, seria contrário ao espírito de Aristóteles pretender que amamos a vida porque podemos aproveitá-la (no sentido em que às vezes se aconselha aos jovens para aproveitarem seus melhores anos) e consagrar nossa existência à busca total dos prazeres mais variados (“grosseiros” ou “refinados”, pouco importa).
Em um belo livro, recentemente publicado: Aristote et la question du monde, M. Rémi Brague cita e comenta longamente um trecho do Protréptico, a obra de juventude de Aristóteles, que deixa as coisas claras quanto a esse ponto. Há duas maneiras de beber sentindo prazer, lê-se nesse texto: 1) sentir prazer enquanto bebo, mas por uma outra razão (porque estou assistindo a um jogo na TV); 2) sentir prazer pelo fato de beber.
[…] Diremos, portanto, que a vida agradável é aquela cuja presença é agradável para aqueles que a possuem, e aqueles que vivem agradavelmente, não [diremos] que são todos aqueles a quem acontece sentir alegria enquanto vivem, mas sim aqueles a quem o próprio fato de viver é agradável e que gozam do prazer que provém da vida tên (apô zoês hedonén).[43]
É preciso aqui, como diz M. Brague em seu comentário, distinguir duas atitudes: 1) a dos “aproveitadores” da vida, a maioria dos homens que gostam de experimentar o que chamam prazeres sem sequer prestar atenção ao fato de que vivem: esta vida, eles não a experimentam, a usam; 2) a do homem refletido, que experimenta o prazer que a atividade vital dá por si mesma. Este compreendeu que a simples existência do homem desperto e saudável é agradável. Ao contrário daqueles que passam a vida estabelecendo objetivos agradáveis para si próprios, sem se preocupar em saber se a realização desses objetivos poderá perturbar seu equilíbrio, estes últimos se recolhem ao prazer que o simples fato de viver oferece e saboreiam, por assim dizer, o funcionamento de si próprios enquanto seres vivos. Não achemos, entretanto, que sua existência esteja marcada pelo signo da preguiça ou do narcisismo: o prazer de viver não é o prazer de abandonar-se à vida. Ninguém é mais ativo que o Deus de Aristóteles tendo prazer consigo mesmo; nada é mais ativo, no sublunar, que o intelecto em exercício, cujo prazer intensifica a atividade.[44] Contudo, repetimos, temos muita dificuldade, hoje, para imaginar a natureza desse prazer — talvez pela simples razão de que não concebemos mais o ser-em-vida como um fim, mas como um meio: meio de ganhar a Vida eterna para o cristão, meio de ganhar dinheiro ou de garantir um lugar na sociedade para o homem educado na Zweckrationalität , meio, também, de satisfazer “desejos”, de superar obstáculos (Dom Juan ou Julien Sorel), de infligir ao “negativo” derrota após derrota — até a grande catástrofe final. É muito provável que, do ponto de vista de Aristóteles ou de Epicuro, o homem cristão, o homem da Zweckrationalität, ou seja, o homem moderno sob todas as suas figuras, fosse colocado entre aqueles que são apenas capazes de utilizar sua vida, mas que são incapazes de ter prazer com a vida. Ora, para estes, o axioma do prazer é enunciado de chinês ou hebraico. Estes não poderiam compreender que há um prazer bom em si mesmo (e anteriormente a qualquer qualificação ética). Para que o prazer seja sentido como um bem, é preciso que o ser humano se interesse pelo simples fato de estar vivendo, um pouco como a criança que se interessa pelo brinquedo que acaba de ganhar e que se diverte ao brincar com ele — por prazer e não em vista do prazer. Para que um prazer seja sentido como um bem, ele não deve ser visado como objeto desejável, como um fim que deve ser atingido; é preciso que o deixemos vir de graça. Mas nossa relação com o ser-em-vida é tal que nos é praticamente impossível redescobrir esse sentimento. E, seja dito de passagem, nada confunde mais o sentido de conceitos como “hedonismo” ou “eudemonismo”, quando os aplicamos aos autores do século IV a.C.
Nosso objetivo, aqui, é interrogar-nos sobre o sentido desse valor positivo do prazer sobre o qual concordavam pensadores tão diferentes como Platão, Aristóteles, Epicuro, apesar de suas divergências em relação à definição da noção. Como o prazer — mesmo purificado, mesmo reduzido ao “mínimo hedônico” — podia ser tomado naqueles tempos mesmo por pensadores austeros como um elemento do bem supremo? Como Epicuro, que nada tinha de um Natanael, pôde identificá-lo com o bem supremo? Como é que se podia, com a maior naturalidade do mundo, conciliar prazer e virtudes morais sob a mesma rubrica de “Bem”? Os estoicos foram os primeiros a surpreender-se com isso. Foi sob sua influência, por exemplo, que Cícero incrimina aqueles que ousam dar ao prazer uma significação moral — o que, segundo ele, é tão incongruente quanto introduzir uma cortesã num círculo de matronas honestas (sic). E, no fundo, continuamos a surpreender-nos com esta inconseqüência dos pensadores do século IV a.C.: como puderam misturar ou mesmo confundir (no caso de Epicuro) o agradável e o honesto, a satisfação dos apetites e a obediência à Lei moral? Ou seja, se partirmos desta certeza (estoica, kantiana, mas tão profundamente enraizada em cada um de nós) de que de bom só há a boa vontade, acabaremos infalivelmente por pensar que teria sido preciso haver do “Bem” uma ideia ao menos confusa, senão aberrante, para proclamar que o prazer em si mesmo é um bem ou até — e por que não? — o bem supremo. Nossa questão, aqui, é saber como a modernidade, herdeira a esse respeito do pensamento estoico, chegou a esse grau de falta de simpatia e de incompreensão em relação ao pensamento ético do século IV a.C. Questão tão vasta que me arriscarei apenas a formular uma hipótese de investigação. E, para isso, partirei do novo elemento de análise que trouxe Epicuro, o último dos grandes pensadores a ter aceitado o axioma do prazer.
Epicuro, dissemos, bem parece ter retomado o conceito aristotélico de prazer. Fez isso, contudo, para inseri-lo num dispositivo muito diferente do de Aristóteles. Tentemos medir bastante sucintamente esta diferença. Cada ser, no universo aristotélico, era dotado de uma missão própria (érgon), programada por sua essência. Da mesma forma, diz Aristóteles, que um artesão ou uma parte do corpo tem um érgon determinado para preencher, o homem está consagrado a um érgon que apenas ele pode realizar. Ora, essa missão própria não pode ser o fato de viver, que o homem tem em comum com os animais e as plantas: é a atividade de pensar.[45] Então, é o prazer que a acompanha que será o melhor para o homem. Os outros prazeres, por naturais e necessários que sejam, só serão admitidos na medida em que não limitarem este. Quanto aos prazeres que concordamos em reconhecer como vergonhosos, “não devem ser chamados prazeres, senão por pessoas corrompidas”.[46]
Ora, essa hierarquia perde todo o sentido em Epicuro, para quem apenas a conexão entre prazer e vida, indicada por Aristóteles, conta. A manutenção do bem-estar é a única exigência reguladora do comportamento, a única a definir a excelência (areté) do homem — e é na medida em que indica que essa exigência foi satisfeita que um prazer é bom; portanto, verdadeiro. É verdade que ainda podemos distinguir entre os prazeres da alma e os do corpo, mas somente à maneira que distinguimos os prazeres da visão e da audição — sem atribuir privilégio aos primeiros. Por não possuir, doravante, uma referência ao érgon e à essência do homem, tornou-se impossível atribuir aos prazeres do espírito uma prioridade sobre os do ventre. Bem mais, torna-se impossível imaginar uma vida agradável que não seja fundada a todo instante sobre o bem-estar físico, pois é “a vida no silêncio dos órgãos” que define a eudaimonía. Enfim, não há mais normas objetivas para decidir sobre o valor positivo, ou seja, sobre a autenticidade do prazer, senão aquelas que determinam minha saúde, meu bem-estar. O homem virtuoso é o bom médico de si mesmo.
Desde logo, será que temos o direito de falar de “falsos prazeres”, “prazeres vergonhosos”? Sem dúvida nenhuma: há prazeres aparentes que na verdade são perniciosos — e entre eles figuram todos aqueles que a moralidade corrente reprova. Mas por que exatamente é preciso proscrevê-los? Porque eles podem me trazer ou me trarão inevitavelmente perturbações para a alma e sofrimentos. No lugar de “prazeres vergonhosos”, seria, então, melhor dizer “prazeres estúpidos”.
Já que o prazer é o primeiro bem e está ligado à natureza, é por essa razão que não escolhemos todos os prazeres, mas acontece às vezes de passarmos por cima de muitos prazeres, quando um número maior de inconvenientes se seguiria para nós.[47]
Tal é o prudente cálculo do sábio, e a apreciação que dele resulta é conveniente para satisfazer a moralidade corrente. Então é impossível proclamar soberano o prazer vital do indivíduo sem subverter, assim, a família e a cidade, mesmo evitando ceder ao atrativo aparente dos “alimentos terrestres”: Gide, se tivesse sido epicurista, teria economizado muitas viagens… Contudo, esse salvamento, que poderíamos dizer in extremis o, da moralidade, ainda tinha com que inquietar o senso comum. Testemunha esta máxima de Epicuro, que escandalizará Cícero:
Se as coisas que produzem os prazeres dos depravados pudessem dissipar os temores do pensamento e particularmente os dos fenômenos celestes, da morte e das dores, e se, além disso, ensinassem o limite dos desejos, nada teríamos para reprovar neles, pois seriam cobertos de prazeres por todos os lados e em parte alguma estariam submetidos à dor e à aflição — o que é todo o mal.[48]
O vulgar reprova a depravação na medida em que ela procura o prazer. Ora, aí, ele erra, pois, na estrita medida em que o depravado coloca seu prazer como fim supremo, ele não pode ser reprovado. Ou melhor: ele não poderia ser reprovado se os meios que ele utilizasse para realizar esse fim lhe ensinassem “que não há maior prazer que a ausência de dor”[49] e o incitassem, por conseguinte, a limitar sua busca pelo bem-estar. Mas na verdade — e isto está subentendido — os meios aos quais recorre o libertino estão em contradição com o fim que ele persegue: expondo-se às doenças, à ruína, à chantagem etc. ou simplesmente à ameaça desses incômodos, ele de fato escolhe viver perigosa e não agradavelmente. Eis exatamente por que sua conduta deve ser reprovada.
Mas eis também por que Cícero solta seus altos gritos.[50] E sua argumentação não carece de pertinência. Modernizemo-la um pouco, para torná-la mais contundente. Deixemos de lado, diz mais ou menos Cícero, o caso dos depravados estúpidos que vão direto às drogas pesadas e à cirrose hepática, e tomemos o caso dos libertinos sábios: estes usam drogas leves com moderação, sabem até quando podem beber sem rolar sob a mesa e mantêm relações de nível bom o bastante para ficar livres de chantagens. Vamos dizer que estes depravados astuciosos levam uma vida boa ou feliz (bene vivere aut beate)? Entretanto, é isso que o epicurista deveria admitir. E essa consequência vergonhosa basta para julgar a doutrina… Observamos que Epicuro não teria problemas para refutar Cícero: na verdade, o depravado jamais está certo de escapar às consequências médicas ou penais de seus excessos e, por conseguinte, vive angustiado; portanto, com dor. Mais uma vez, confirma-se que o axioma do prazer não põe em risco de maneira nenhuma a “moralidade”. Entretanto, no ponto em que estamos, será que isso já é completamente verdadeiro?
Platão, Aristóteles, Epicuro, dizíamos no começo, concordam com esta tese de que o prazer é bom por si mesmo. Isso posto, resta delimitar o que seja exatamente esse prazer e distinguir os prazeres autênticos dos “prazeres” aparentes. Ora, nessa matéria, já o sabemos, Epicuro toma como critérios únicos de apreciação do bom e do mau (ou do verdadeiro e do falso) a saúde (da alma e do corpo) e a permanência da saúde. Com isso, repetimos, praticamente nada mudou na valorização ética — e o epicurismo até conduz a uma disciplina de vida certamente mais rigorosa do que a preconizada por Aristóteles. Contudo, podemos sempre imaginar o caso, como faz Cícero, de um depravado bastante esperto para viver uma vida continuamente prazerosa (segundo seus critérios), portanto, boa, sempre se proporcionando com inteligência “prazeres vergonhosos”. Da mesma forma que sempre podemos imaginar um criminoso hábil o bastante para cometer os piores crimes sempre garatindo uma impunidade de 100%. Epicuro bem poderá replicar que a impunidade jamais está assegurada, que a fábula do anel de Giges é absurda… Mas será que a experiência do mundo, quanto a esse ponto, não desmente isso?
Aquele que é sensível à objeção antiepicurista de Cícero chega assim à seguinte conclusão. Se, em primeiro lugar, aceita-se que o prazer como tal é um bem, e se, em segundo lugar, define-se o prazer-bom à maneira de Epicuro, então torna-se impossível, de fato, condenar todos os “prazeres vergonhosos”. Assim, Epicuro, reconduzindo o valor positivo do prazer (que Platão e Aristóteles também admitiam) apenas ao conforto vital, revela todo o perigo potencial que o axioma do prazer escondia. Ora, será que para evitar esse perigo basta rejeitar a definição epicurista? Isso não é certo. Pois, na medida em que o axioma do prazer se mantém, ou seja, na medida em que se admite que o prazer é um elemento necessário de uma boa vida, o conteúdo desta, por menor que seja, forçosamente dependerá do bom funcionamento do organismo. Assim, no limite, com Epicuro, a vida boa pode ser assimilada de um lado a outro ao equilíbrio orgânico, e as palavras kalón e honestum podem tornar-se sinônimos de “vantajoso para a minha saúde”: é o que vem com o epicurismo. De que serve, então, gritar escandalosamente, se não se puser em questão a validade do axioma do prazer do qual Epicuro, depois de tudo, não fez mais do que explorar ao máximo os recursos? Para quem quiser desafiar o epicurismo, a tática mais eficaz será certamente a mais radical: consistirá em abandonar o axioma do prazer.
Poderíamos perguntar: de onde vinha essa vontade de desafiar a qualquer preço o epicurismo? Por que o epicurismo teve desde tão cedo uma fama tão ruim? Principalmente, parece-nos, porque Epicuro mostrava aos olhos de todos a diferença entre a linguagem dos filósofos e do senso comum, que Platão e Aristóteles conseguiam mais ou menos dissimular. Entendamo-nos bem aqui. Que o prazer seja bom, disso os gregos estavam perfeita e ingenuamente convencidos; mas que o depravado, aquele que abusa do prazer, seja um ser kakós, “imoral”, isso também lhes parecia uma evidência, tanto quanto a nós. Ora, o esforço dos filósofos, na contracorrente do senso comum, era o de mostrar que o “esperto”, aos olhos do vulgar, é na verdade um insensato, ao qual não é fácil, portanto, imputar responsabilidade moral ou penal. Em regra geral, se se admite que o prazer é um bem, é preciso considerar os amantes de “prazeres vergonhosos”, ou seja, de “falsos prazeres”, desmiolados e estúpidos mais do que ” espertos”. Ora, poucas teses, ainda hoje, ferem mais vivamente a moralidade corrente — e é duvidoso que tenha sido diferente na Grécia do século IV a.C. : o aforismo socrático “ninguém é esperto voluntariamente” devia parecer um paradoxo de intelectuais… É provável que o senso comum ateniense ficasse altamente desconcertado com o que podia compreender das análises éticas da Academia ou do Liceu e que a reflexão filosófica estivesse em contínuo desaprumo com relação a seu sistema de valorização.
Um exemplo dessa defasagem? O código de valores proposto pelos filósofos — particularmente por Aristóteles — está mais próximo do diagnóstico médico do que da apreciação ética do vulgar. Aristóteles, nas Éticas, descreve as faltas morais antes de tudo como desvios em relação à normativa constante e fala de conduta humana do mesmo modo que um médico fala da tensão arterial ou da taxa de glicemia. Eis por que beiramos (no melhor dos casos) o contra-senso cada vez que traduzimos areté por “virtude” nos textos filosóficos. A areté é antes a plenitude da qualidade que faz a excelência de um ser (homem ou cavalo…) e que assegura seu bem-viver. Quando se trata do animal racional, esse bem-viver envolve sem dúvida os bons costumes, a boa reputação (eudoxia), mas é também inseparável do prazer que vem do fato de estar vivendo. Essa inseparabilidade, todos a admitem, de Platão a Epicuro — e certas afirmações de Epicuro apenas retomam essa comum convicção dos filósofos. Esta, por exemplo:
[…] A sabedoria nos ensina que não podemos levar uma vida agradável se não levarmos uma vida razoável, bela e justa, e que uma tal vida, razoável, bela e justa, é inseparável do prazer. Pois virtudes e vida agradável enraízam-se no mesmo solo: não há vida virtuosa que não seja também agradável.[51]
É neste ponto que se torna manifesta a incompatibilidade entre a regulação filosófica da existência e o sistema de qualificação ética de que o senso comum necessita. Para este, é impensável que a areté seja inseparável do prazer bem concebido ou, a fortiori, idêntica ao prazer bem concebido. Se Epicuro dizia a verdade, seria preciso concordar que o homem luxurioso que ultrajou minha mulher ou minha filha cometeu uma falta apenas ao calcular mal seu prazer… Asserção intolerável para a “maioria silenciosa” de qualquer época! É lícito então supor que o epicurismo, levando ao limite extremo a integração do conforto vital com a boa vida, tenha suscitado uma reação de rejeição radical. Um grande bloqueio se impunha. Era preciso remontar até a origem da opinião intolerável, extirpar até a convicção que formulava — sob uma forma mínima — o Sócrates do Filebo, quando afirmava que “ninguém aceitaria possuir sabedoria sem nenhum prazer, fosse ele o mais breve”.[52] Em suma, era preciso abandonar o axioma do prazer. No mundo mediterrâneo, entre os séculos III e I a.C foi o estoicismo que, no essencial, parece ter-se encarregado dessa operação.
É bem conhecido o fato de que os estoicos combateram a influência epicurista. Muitas vezes lembramo-nos de que eles se recusavam a considerar o prazer um fim inscrito na natureza do ser vivo. Mas o estoicismo fez muito mais do que diminuir o valor do prazer na existência humana, muito mais do que acautelar os homens — mais uma vez! — contra os perigos fisiológicos, sociais etc., que trazem o uso inconsiderado dos prazeres físicos. Operou uma mutação axiológica tal que a palavra rigorismo ainda seria fraca demais para dar uma ideia aproximada. Os estoicos marcaram uma tal ruptura no curso do pensamento ético que, para eles, Platão e Epicuro tornam-se, no final das contas, comparsas, pois, apesar da imensa distância que os separa, eles falam ainda do interior de um mesmo sistema de valores. Para compreender com exatidão esse ponto, tomemos como exemplo a seguinte passagem do Filebo, em que Sócrates mostra a seu interlocutor por que seria absurdo se o prazer fosse o bem supremo. Se esse fosse o caso,
seríamos obrigados a dizer daquele que não experimenta prazeres, daquele que sofre, que ele é mau [kakón eînai] no momento em que sofre, fosse ele o melhor [aristós] de todos os homens; e a dizer daquele que experimenta prazeres que, quanto mais ele experimentá-los, durante todo o tempo que experimentar, tanto mais ele ganhará em virtude [tosoûto tò diaphereîn prós aretén].[53]
O interlocutor reconhece que essa afirmação seria “tudo o que há de mais absurdo”. Mas de onde vem e em que consiste o caráter absurdo? Vem do fato de fazermos interferir dois registros de valores — fisiológico e ético — que nada têm a ver um com o outro. “O melhor dos homens” é uma qualificação ética (“o melhor cidadão”, “o melhor pai de família”…). Seria, então, estúpido dizer desse homem bom ( = virtuoso) que ele é mau (kakós) pelo fato de que está sentindo dor. Seria estúpido, pois alguém poderia entender que esse homem é mau… no sentido de esperto. Com efeito, as palavras agathós e kakós se prestam a esse equívoco. Agathós significa tanto (1) “bom” (moralmente) quanto (2) “em bom funcionamento”. Da mesma forma, kakós pode significar “esperto”, mas também “em mau estado”, “impróprio”. Geralmente, o contexto nos faz distinguir facilmente o sentido da palavra, moral ou funcional. Mas resta que o pensamento do século IV a.C. joga com essa ambiguidade, ou com o que nos parece, a nós, uma ambiguidade. Assim, da constatação de que o prazer é bom, ou seja, agradável para quem o sente, passamos facilmente à afirmação de que o prazer é um Bem, ou seja, um fim digno de ser perseguido pelo homem virtuoso. Sócrates, nos diálogos, se serve dessa ambiguidade para embaraçar o interlocutor.[54] Ora, nem Platão nem Aristóteles acharam útil dissipar de uma vez por todas a ambiguidade. E, no caso do prazer, preferem delimitar um prazer autêntico, ou seja, um prazer que possa ser dito bom nos dois sentidos da palavra: 1) “agradável”, 2) “conforme a virtude”. Em suma, entre o que é bom/mau em relação à condição biológica e ao estado físico e o que é bom /mau em relação à ação e ao caráter, a linha de demarcação, no século IV a.C., não estava firmemente traçada. Coube a Epicuro apagá-la.
Em que consistiu, desde logo, a revolução estoica? Antes de tudo numa decisão semântica. Para prevenir qualquer confusão entre o que tem de bom a boa conduta e o que têm de “bom” todas as outras coisas que são comumente consideradas “bens” (especialmente o prazer) decidiu-se que apenas a conduta virtuosa merecia essa designação. Só a virtude (entendida como obediência à Lei) era um bem, só o vício era um mal — e todas as qualidades, todos os estados desprovidos de valor ético (vigor físico, saúde, riqueza, prazer…) não mais deveriam figurar entre os bens e os males. Assim foi construído um novo sistema de valores no qual a qualificação ética estava isenta de qualquer ambiguidade e tal que o axioma do prazer estava por princípio desprovido de sentido: se apenas a virtude é boa, como o prazer, de qualquer maneira que o determinemos, poderia jamais ser dito “bom”?
Não tínhamos mais então o direito de dizer que o prazer é bom nem que a dor é má. Não tínhamos mais o direito de dizer: “uma boa refeição me faz bem”, nem uma crise de ciática me faz mal”. E os adversários do Pórtico não cessavam de se indignar: até que ‘ponto é preciso levar o gosto pelo paradoxo para sustentar semelhantes insanidades! E sem dúvida havia um paradoxo, e paradoxo insuportável — mas, no fim das contas, apenas para aqueles que pretendiam manter o axioma do prazer. Pois, a continuação da história mostrou que os homens podiam muito bem se acomodar ao “paradoxo” estoico. A verdade é que esse “paradoxo” já não vale mais desde muito tempo, tão completa foi a vitória do Pórtico, tanto o seu sistema de valores prevaleceu historicamente, como observou Kant de modo surpreendente numa famosa página da Crítica da razão prática. Podia-se muito bem, diz ele, gozar o estoico que, presa de um violento ataque de gota, gritava: “Dor, tu não és má!” — e, entretanto, é aquele que tinha razão (traduzamos: é no seu sistema de notação que nós ainda estamos pensando). Nós, alemães, acrescenta Kant, temos a sorte de possuir duas palavras distintas para designar o bem moral e o bem físico: das Gut, das Wohl — assim como duas palavras distintas para designar o mal moral e o mal físico: das Bose, das Übel. O grego e o latim não tiveram essa sorte sistemática: não dispunham senão de um par de opostos — agathón / kakón, bonum / malum. Nessas condições, mais do que exprimir pela mesma palavra o valor de uma ação virtuosa e o valor de um estado de bem-estar, será que não seria preferível, para marcar que estamos aqui diante de uma difereça toto genere, empregar agathón e kakón apenas a respeito de uma ação virtuosa ou viciosa? Tal foi, segundo Kant, a verdade que os estóicos foram os primeiros a emitir.[55] Tal foi, diremos mais “arqueologicamente” , o dispositivo ético que os estóicos fizeram triunfar — sem dúvida para maior deleite das “maiorias silenciosas”, portanto (mas isso, repito, é apenas uma hipótese).
Será que esse sistema está vacilando? Estaria ele a ponto, hoje, de ser substituído por um outro? Nada o indica. Tudo indica, ao contrário, que as “mutações dos costumes”, com as quais as media nos alimentam complacentemente, o deixam intacto. O quê? — vocês me dirão — você está querendo dizer que vivemos, no Ocidente do século XX, em regime de austeridade estoica? Ao que eu responderei: quem está falando de austeridade? A predicação de austeridade não é o essencial da mensagem estóica. Os estoicos não proíbem o vulgar de achar agradável o que acaricia suas inclinações: proíbem de dizer que a satisfação destas seja boa, no sentindo em que é bom praticar a virtude. Os estoicos não exigem dos homens que renunciem a toda vida agradável: asseguram-lhes simplesmente que a consideração do prazer não deve intervir enquanto se fala do bem e que é, portanto, absurdo perguntar-se se tal prazer, experimentado até tal grau dentro de tais limites, é bom, em um sentido de que seria ao mesmo tempo vital e moral. Ora, essa prescrição, que eu saiba, ainda vale. Qualquer que seja a vida que se leva, separa-se por pensamento o bem, que permite a qualificação ética, e o prazer, quase sempre ligado no nosso imaginário à satisfação de uma necessidade ou um fantasma, e inseparável do que confusamente é chamado de “o desejo”.
No artigo consagrado a Epicuro que me serviu de ponto de partida, Victor Brochard afirma que é depois de Epicuro, e devido a sua tese de unidade do prazer, que
as palavras hedoné e voluptas designam unicamente os prazeres sensíveis e não mais, como em Platão e Aristóteles, tanto o prazer intelectual quanto o prazer físico [.. .] Se os estoicos tratam com tanto desprezo o prazer, é porque eles o compreendem unicamente neste sentido [de prazer sensível].[56]
Eu me permitiria, sobre esse ponto, discordar de Brochard. Acredito que ele esteja minimizando o papel dos estoicos e a importância do rompimento axiológico que eles praticaram. É muito mais, parece-me, esse rompimento, subversivo do axioma do prazer, que abole qualquer relação entre a vida agradável e a vida boa, tornando assim, de uma vez, ininteligível o que os filósofos gregos tinham até então entendido por eudaimonía. É em virtude desse rompimento que o “prazer” perde qualquer significação ética positiva para ganhar imediatamente o saber de todos os frutos proibidos, à sombra de todos os “maus lugares”. Desamarrado do éthos, está livre para vagabundear para sempre: “os banhos, as saunas e os lugares que temem a polícia (…)”. Tal é a hipótese que me parece melhor dar conta da mudança violenta na geografia ética entre os séculos III e I. Observem bem que Jesus de Nazaré aí não serviu para nada. Essas coisas aconteceram bem antes de seu nascimento. Os sinos de Belém ainda não haviam soado, e o “paganismo” já havia se apagado.
Tradução de Hélio Schwartzman
Notas
[1] De finibus ,II, 13.
[2] “De vita beata”, preâmbulo, in Stoiciens , Pléiade, p. 729.
[3] Ética a Nicômaco , II, 2, 1104b 11-13.
[4] Platão, Leis, I, 636d-ec
[5] Ética a Nicômaco I, 5,1095b 16-23.
[6] Leis, V, 734a.
[7] Victor Brochard, “Théorie du plaisir d’après Epicure” (1904), in Études de philosophie ancienne et de philosophie moderne, Vrin, p. 273.
[8] Gauthier e Jolif assinalam, em seu comentário a Éthique à Nicomaque, que esta tese, que remonta a Demócrito, está apoiada na autoridade de Hipócrates: “a fome e a sede são espécies de doenças que consistem em um vazio da natureza, kenosis , vazio que se cura comendo ou bebendo, ou seja, combatendo o vazio com seu contrário, a repleção (plesmone)[…] Ora o preenchimento da falta […] que é prazer, supõe a falta, que é dor e assim não há prazer sem dor” (Gauthier-Jolif, Éthique à Nicomaque,11, 2, p. 776).
[9] Ética a Nicômaco ,VII, 15, 1154a 30-1.
[10] Ibidem, 1154a 34.
[11] Filebo , 51a.
[12] Michel Foucault, Usage des plaisirs , p. 58.
[13] República, VIII, 559c.
[14] Filebo , 62c.
[15] Ibidem, 51d.
[16] Ética a Nicômaco ,VII, 14, 1153b 333-1154a.
[17] Leis, 732e-733a. Texto citado por A. J. Festugière em “La doctrine du plaisir des premiers sages à Epicure”, in Etudes de philosophie grecque, Vrin, p. 100.
[18] República, 584b.
[19] Filebo , 51d.
[20] Ibidem, 44c.
[21] República, 585a.
[22] Ibidem, 583c.
[23] Diógenes Laércio, II, 86. Citado em Festugière, “La doctrine du plaisir…” , p. 92.
[24] Filebo , 51b. Cf. Ética a Nicômaco , 1173b 19-20.
[25] Georges Rodier, “Remarques sur le Philebe” , in Etudes de philosophie antique, pp. 118-9.
[26] Filebo , 52a.
[27] República, 585a-b.
[28] Ética a Nicômaco , X, 2, 1173b 10-20.
[29] Ibidem, 1152a 2.
[30] Ética a Nicômaco ,VII, 13, 1152b e seguintes. Excelente nota explicativa de Gauthier e jolif in Éthique…, pp. 793-4.
[31] Sobre o aprofundamento desse tema pelos trágicos, cf. Gauthier-Jolif, Éthique… , p. 789.
[32] Ética a Nicômaco , X, 2, 1153a 13.
[33] Ibidem, 1152a 32.
[34] Gauthier-Jolif, Éthique…, p. 843.
[35] Ética a Nicômaco , X, 2, 1154b 26.
[36] Epicuro, Máxima 3, in Bollack, Pensée du plaisir, Minuit, p. 242; Bailey, Epicurus: existant remains, Olms, 1975, p. 95.
[37] Epicuro, ”Sentenças vaticanas”, 33, in Bailey, Epicurus ….,p. 111.
[38] De finibus ,II, 6-7.
[39] “Carta a Meneceu”, §128.
[40] Victor Brochard, “Théorie du plaisir…”, p. 270.
[41] Ética a Nicômaco , X, 1, 1157a 10-20.
[42] “Comentário”, II, p. 843-4.
[43] Protéptico , 89o, in Brague, Aristote et la question du monde, PUF, 1988, p. 103.
[44] Ética a Nicômaco , X, 2, 1177b 22.
[45] Ibidem, I, 6, 1097b 32.
[46] Ibidem, 1176a 22.
[47] “Carta a Meneceu”, §129.
[48] Epicuro, Máxima 10. Citamos a tradução francesa de M. Bollack, in Pensée…, p. 273. Comentário de Bailey, in Epicurus…, p. 354.
[49] Bailey, Epicurus…, p. 355.
[50] De finibus ,II, 23-4.
[51] Epicuro, “Carta a Meneceu”, §132. Tradução francesa de Festugière in “La doctrine du plaisir… “, p. 111.
[52] Filebo , 60e.
[53] Ibidem, 55b.
[54] Cf. Platão, Protágoras , 351b-d.
[55] Encontramos uma justificativa para essa interpretação kantiana do estoicismo no brilhante artigo de J. M. Rist: “Aristotle and the stoic good”, in Stoic philosophy, Cambridge University Press, especialmente nas páginas 11-3, em que muito me inspirei.
[56] “Théorie de philosophie… “, p. 277.