A poética da indiferença [Homero]
Resumo
O epíteto, característico da poesia de Homero (“veloz Aquiles”, “negras naus”), é uma qualidade dada a um nome que já contém tal qualidade. Há assim uma redundância nos epítetos homéricos, já criticada pelos poetas latinos e no pós-romantismo. Mas eles têm uma função rítmica essencial nos versos hexâmetros do grego antigo: acentos breves e longos, que não mais aparecem nas línguas modernas, criam às vezes uma defasagem entre o que está sendo narrado e o que serve de “ornamento”. É um traço da poesia épica, na qual a ação é “sem tempo”, como disse Schelling. Os mecanismos de sucessão discursiva são neutralizados para que a poesia permaneça intocada. Isso é importante para sentir a beleza “cantada” dos versos de Homero, que à leitura silenciosa pode parecer óbvia e fria. No mundo da oralidade e das frases feitas, a performance cria um estado de euforia e fruição autônomas. Abre-se um espaço de indiferença que tudo sintetiza na consciência estética. Fazendo uma analogia com a nossa experiência do cinema, é como se o mundo ficasse entre parênteses. É assim também que o poeta se aproxima da divindade, numa esfera superior à das paixões, como vemos no canto VI da Ilíada, por exemplo. Num momento de suspensão da guerra de Troia, dois adversários, Glauco e Diomedes, se reconhecem antes de combater. Ali se antecipa a força que terá o diálogo nas tragédias gregas – a palavra dos homens em litígio, sobre o lastro sonoro de sua antiga hospitalidade, sendo contemplada pela indiferença de Zeus.
CANTO VI
Glauco, o filho de Hipóloco, mais o Tidida Diomedes, cada um do lado oposto, vêm
Para se confrontarem: braço a braço quase
Estando, o bom de berro Diomedes solta
A voz: “Entre os mortais, ó tu quem és, guerreiro?
Vejo: bravura não te falta, e em luta súpera
Jamais te vi aqui: por sobre os maiorais
Estás te revelando, a desafiar-me a lança
Horrenda: pobres filhos de mofinos pais
São os que encaram minha ira, e, entretanto,
Se um imortal tu fores, nunca lutarei
Contigo, ou com divinos outros: um dos filhos
De Drias, o feroz Licurgo, não foi longe
Após ter feito isso: as amas de Dioniso
Este Licurgo insano, em Nisa montanhosa,
Andou caçando: elas o tirso deixam rápidas,
E atrás correu Licurgo irado acicatando-as,
Até que o deus Dioniso então no mar saltou
Estremecente, e ao seio Tétis abrigou-o.
Um arrepio tremendo o percorria, ação
Do vil Licurgo que, por ato assim, os divos
Bem viventes com cegueira castigaram,
Odiado foi ele depressa pelos deuses
Todos! Por isso contra os divos celestiais
Eu nunca lutaria, mas, se um varão fores,
E do que a terra doa te alimentas, pula
Aqui, pois com esguia morte eu te perfuro”.
Diz-lhe, no entanto, o lúcido filho de Hipóloco: “Ó grão Tidida, tu perguntas por meu berço?
Como o brotar das folhas é o nascer dos homens.
Expulsa o vento as amarelas para um lado,
E noutro lado vão nascendo as folhas verdes.
Qual volta a primavera, nasce assim também
E morre a raça nossa, e se, por fim, indagas
De minha ascendência, ouve: ela não foi sem brilho!
Há uma cidade, Efira, em Argos, que é riquíssima
De equinos, e lá Sísifo nasceu, um homem
De cartel sem igual, que é filho de Éolo, o pai
De Glauco, por sua vez pai de Belerofonte,
O impecável, para quem deram os divos
O brilho amável e a potência, mas rei Preto
Contra Belerofonte trama uma desgraça,
Escorraçou-o da cidade só por ser
Mais forte que os argivos, a quem governava
Preto, sob apoio de Zeus, e a mulher dele, Anteia, a diva, ofereceu-se àquele herói.
Recusada, no entanto – ele só tinha em mente
Coisas boas, foi ela a seu marido e diz-lhe
Com petas e perfídias: “Ou tu morres, Preto,
Ou matarás Belerofonte, que tentou
Levar-me à cama, e eu disse não”.
Falou, e o ódio
O enlouqueceu de ouvir coisas assim, não quis
Porém, matá-lo (admirava-o, muito embora),
E o manda à Lícia: para o sogro em tábua escreve
Dupla, que o recebesse, e então lhe desse a morte.
Mas foi o herói com seu cortejo divinal,
E quando ao Xanto caudaloso enfim chegou,
O rei da Lícia honrou-o com sinceridade,
Nove dias o hospeda, e nove bois lhe sagra,
Porém, na Aurora décima, de dedos róseos,
Especulou-o e lhe pediu mostrasse os signos
Que do genro trouxera, e que já haviam chegado.
E ao decifrar os maus sinais lá registrados,
Mandou o herói logo matar Quimera invicta,
De celestial prosápia, e não humana: à frente
Era leão, serpente atrás, cabrão no meio:
Ira de fogo ardente arfava! O herói, no entanto,
A estraçalhou, confiado em proteções divinas.
Então foi combater contra os Solimos nobres,
Numa batalha que jamais vira outra igual.
E as Amazonas anti-machas, depois disso,
Ele arrasou. Na volta, entanto, um mal teceu-lhe Preto, apoiado em valentões da ampla Lícia: Não voltaria jamais, o ardil já estava pronto.
Belerofonte, entanto, a todos massacrou.
E que era então divino entendeu Preto.
Chegou-se a ele e deu-lhe a filha em casamento.
O poder, inclusive, dividiu com ele,
E os Lícios deram-lhe da terra a melhor parte,
A fim que em messe ou no plantio cuidasse dela.
Três filhos deu a moça ao grão Belerofonte:
Um Isandro, outro Hipóloco, e por fim Laodâmia.
Zeus penseroso uniu-se a esta, e pariu ela
Então Sarpédon divinal, de elmo de bronze.
Belerofonte, enfim, odiado pelos deuses,
Em planícies do Aleio andou perambulando,
E a via humana ele evitava a condoer-se.
Guloso só de guerra, Ares matou-lhe o filho Isandro, que enfrentara os varonis Solimos.
Com ira, Ártemis de rédeas áureas, mata
Laodâmia, e digo eu ser quem me gerou Hipóloco.
A Tróia me enviou, e tudo me ensinou:
Ou como ser melhor, e me exceder a todos,
Honrar os pais, pois que excelentes tinham sido
Onde nasceram, na espaçosa Efira fértil.
De sangue e raça tal garanto eu que nasci”.
Tradução de Antonio Medina Rodrigues
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A QUESTÃO DO EPÍTETO
A poesia de Homero é percorrida por certos pleonásticos (óbvios, mas não inúteis) chamados epítetos. Um epíteto faz redundante o nome a que se refere, como em flores perfumadas, por exemplo, ou alto arranha-céu, ou fria geleira. Mas não haverá epíteto em fria civilização, uma vez que nem toda civilização pode chamar-se fria, de maneira que não se dá nessa frase um cacoete linguístico, ou enfim, um clichê.
Assim, é o epíteto uma qualidade dada a um nome que, por sua vez e de antemão, contém tal qualidade, ou porque já fomos informados dela (caso de naus negras, de Homero), ou porque a prática nos mostra o fato como óbvio (sol claro, por exemplo). Não haveria, enfim, nova informação no caso dos epítetos. Só haveria redundância. Isto, porém, não pode ser tão seco nem tão certo. Na poesia, por exemplo, a repetição calculada é um recurso essencial, coisa que não teria cabimento num discurso geográfico ou filosófico. Neste, a concisão, a brevidade são sempre requeridas. Na poesia, ao contrário, a palavra sempre realiza várias outras necessidades além da comunicação do conteúdo.
Chamamos o epíteto poético ornamental (epitheton ornans).[1]
Por haver sido o rei do epíteto, Homero nunca se livrou de algumas críticas, feitas de época para época. Estas procediam de duas esferas, a do classicismo latino, com suas premissas de brevidade e concisão, principalmente horacianas, e a do pós-romantismo, que reagindo à prolixidade dos sentimentos, propugnou por uma linguagem mais simples, mais perto da Natureza, em que os sentimentos corressem com “sinceridade”. Sincero, no caso, não seria o poeta, mas a expressão do verossímil, a persuasão estrutural — mais que a persuasão discursiva. Enfim, sincera seria a técnica do poeta. Outra coisa que pesou foi o gosto e a moda. O romântico José de Alencar por certo se lembrava disto, ao revisar seus escritos. Cochilava, porém, deixava passar seus epítetos, e, ao querer emendá-los, vacilava, porque no fundo os sentia necessários a sua expansão emocional e rítmica.
Mas o que faz, afinal, a necessidade de um epíteto? Há três razões pelo menos.
A primeira, muito antiga, radica no chamado “horror ao vácuo” (horror vacui), que é o pavor do vazio, da frouxidão, transformado hoje em mito da linguagem burguesa: assim, ao escrever ou falar, para não perdermos o fio, eliminamos nossas angustiosas pausas (ou vácuos), e no lugar inserimos o adjetivo que nos vier à cabeça, na esperança de que entendam que isso é coisa natural, etc. A segunda razão está na crença de que, no fundo, não há repetições, pois este mundo — todos sabem — é progressista e heraclítico: não existiriam repetições absolutas, pois repetir, de qualquer forma, é já alterar. A terceira razão julga que o uso de um epíteto não é decidido pelo autor, mas pelo gênero e pela estrutura da obra que ele escreve, e a obra é pois a que em alguma medida se escreve a si própria, e assim de dentro para fora ela desdobra seus modos e suas leis.
Estas três razões são encontradas em Homero, com predomínio da terceira. Ver o epíteto como função de uma estrutura que não apenas o solicite mas que o torne obrigatório é a primeira lei da poesia oral e formular. E tanto depende isto da natureza do idioma grego arcaico que as traduções não conseguem reproduzi-lo. Em nossas línguas modernas não há o dispositivo gramatical do grego arcaico de Homero. Nossas traduções podem apenas imitá-lo em parte:
Raiando a dedirrósea e matinal Aurora, O caro filho de Odisseu se levantou, Trajou-se a roupa, e, gládio agudo sobre os ombros, Belas sandálias calça em seus brilhantes pés. (Odisséia, I, 1-4).
Vê-se logo que esses epítetos são tais que ocupam quase qual quer posição na frase portuguesa. Aí não há regras sintáticas e versificatórias que preservem o lugar específico dos epítetos. Os versos aí são dodecassílabos, sem dúvida adequados para verter Homero. Mas a diferença entre o verso português e o grego é muito grande, do ponto de vista do potencial de formas. Para começar, as línguas modernas, não conhecendo a oposição entre breves e longas, não podem ter relevância objetivamente musical, como, ao contrário, vem a ser o caso do hexâmetro grego. Esse verso tem seis (hex-) pés métricos, com duas ou três sílabas cada um (o sexto tem duas sílabas, e o quinto tem sempre três). As vogais, como se viu, ou são velozes (breves) ou lentas (longas): tal dependerá da posição de cada sílaba no verso. Representemos a vogal lenta por A, e por b a vogal rápida: então teremos o esquema do hexâmetro de Homero:
Abb | Abb | Abb | Abb | Abb | AA 1 2 3 4 5 6
Esse esquema de seis pés (cada um com três ou duas sílabas) pode ser ilustrado em Português usando-se no lugar da longa grega a tônica portuguesa, e, respectivamente, no lugar da breve a nossa átona:
RAI a no | CÉU a cor | Da da a ma | NHÃ de dir | RÓ –sea e bo | NI TA
Supondo-se que um aedo compusesse em grego essa estrutura, o papel dos dois epítetos parecerá bem claro: é o de preencher duas lacunas medindo ao todo cinco tempos ou —o que dá na mesma — dois pés e meio, assim:
RAI a no | CÉU a ma | NHÃ ……..| ………. | …………|……….|
Mas como duas breves equivalem a uma longa, poderemos optar pelo ritmo seguinte (o quinto pé em geral não admite duas longas):
AA | AA | AA | AA | Abb | AA
E refundindo o mesmo verso, podemos reapresentá-lo com seis pés, um deles, que é o quinto, com três sílabas (uma longa e duas breves) e o resto em pés de duas sílabas que por comodidade simulamos como longas:
BELA | NO CÉU | RAIOU | MANHÃ | RÓSEA NOS | DEDOS
Ou menos monotonamente:
Abb | AA | Abb | AA | Abb | AA
etc.
Repare-se na inserção do epíteto kuáneon (“sombrio”) aplicado a néphos (“nuvem”): o clichê ou fórmula kuáneon néphos significa “sombria nuvem”. O clichê com seu epíteto ocuparão o segundo e o terceiro pés (noutro lugar não caberiam):
Abb | KU-a-ne | ON ne phos | Abb | Abb | AA
Repare-se que o epíteto propriamente dito preenche um pé e meio. Eis o verso em transcrição elementar:
To-de-pi |KU-a-ne |ON-ne-phos | E-ga-gue | PHOI-bos-a| POL ON A este, | sombria | nuvem | mandou | deus Febo | Apolo
ANACRONISMO E ACRONIA
Vimos que, do ponto de vista funcional e poético, o epíteto serve para preencher o verso hexâmetro, verso de extensão apreciável, a julgar pela frequência com que suas lacunas são socorridas, completadas de maneira mais ou menos sôfrega, mais ou menos adventícia, e a ponto de estabelecer-se um certo descompasso ou defasagem de “tempo” entre o que está sendo narrado e o que entra valendo como ornato. Dizemos de “tempo”, porque, enfim, as peripécias épicas parecem revestir-se de uma indumentária ornamental muito anterior à época dessas mesmas peripécias. Quer dizer, as naus já se diziam negras bem antes que dissesse Homero serem elas negras. E não ape nas não sabemos quando e como foi este “antes” como não sabemos a razão por que eram negras. O que indica que ao longo da epopeia homérica supõem-se muitos “tempos” diversos entre si, e isto nela parece inviabilizar qualquer ostentação de um tempo dominante. Daí a justa notação de Schelling, segundo a qual “uma ação em si mesma é sem tempo (zeitlos), pois é o tempo inteiramente apenas a diferença entre realidade (Wirklichkeit) e possibilidade (Möglichkeit) e toda ação aparente é apenas o fracionamento daquela identidade na qual tudo de uma vez está contido. A épica (epos) deve, portanto, ser uma imagem dessa ausência do tempo”.[2] Mas ausência aqui significa a neutralização do puramente material, ou seja, da referência às coisas, dos objetos, e sobretudo dos mecanismos de sucessão dis cursiva, de que, aliás, os poemas foram sempre feitos, por se fazerem de discurso e temporalidade. Assim, o tempo de um clichê com seu epíteto é sempre nulo: “A poesia mesma, enquanto tal, tem que estar como que fora do tempo, e pelo tempo permanecer intocada, e por isso ela deve relegar o tempo e toda sucessividade ao objeto, e se manter por meio disso sossegada, e assim pairar sobre a torrente das contradições sem se deixar tocar por ela”.[3]
A DIVISÃO DAS ÁGUAS
Mas será tal coisa afinal tão importante para entender-se o poema? Sim, por certo, e por um lado, por outro não. Desde de que a questão seja entender o texto, uma sondagem gramatical é relevante na determinação dos conteúdos, especialmente os que, por serem mais abrangentes, envolvem muitos conteúdos, e podem por isso favorecer a uma descrição abstrata da cultura (lineamentos ideológicos etc.). Mas, se a questão não é entender o texto apenas, porém sentir, viver a poesia, então tal critério não terá tanta relevância, ficará num outro plano, e a Poética é a que deve assumir o trabalho de relacionar os planos da expressão e do sentido em suas correlações de ideia, ritmo e beleza.
Já sabemos que o verso hexâmetro produz uma poética, toda ela atenta ao caráter quebrado, descontínuo das intérminas fragmentações da Ilíada e da Odisséia, pois, afinal, inventou-se um dialeto para se produzirem essas obras, todo feito de interpolações, gnomos, provérbios e epítetos para se encaixarem nas prescrições do hexâmetro, de maneira a preenchê-lo em cada parte, sendo cada preencher-se privativo de uma forma ou de um padrão. Tudo isso acelera esse hexâmetro de forma a que toda uma legião estrangeira de formas salte, saia de sua esfera racional, e se instale numa sensação de júbilo e beleza. E o que à leitura silenciosa parecia óbvio, frio — agora cai num estranhar, que em nada mais depende de qualquer razão, pois se abre ao espaço da indiferença, que tudo sintetiza em consciência estética. Neutraliza-se toda pergunta ou questão exterior à sensação da poesia viva. “A facilidade para versificar que os epítetos fornecem ao poeta parece constituir o único fator que determina o emprego destes últimos […] o epíteto fixo em Homero é invariavel mente usado sem relevância de uma ação imediata, qualquer que seja, e, por sua vez, o epíteto genérico não define traço algum que possa diferenciar de um herói outro herói”.[4] Com estas palavras, mostra-nos Milman Parry que o salto da abstração para a performance faz emergir por si mesmo um estado de euforia e fruição autônomas. Integra do no ritmo da leitura, o epíteto esquece o que poderia dizer, e estabelece um jogo de espelhos ou marchas e contramarchas com sua vizinhança, e disto afloram os sentidos do poético.
A INDIFERENÇA
Esse conceito fora tratado por Schelling, tanto na sua “filosofia da identidade” como nas páginas de arte e estética, particularmente quando fala de Homero. De acordo com Schelling os poemas de Homero são indiferentes ao tempo, não indiferentes à notação do tempo em dias, meses e anos ou verbos e advérbios, mas o tempo como participante físico e determinativo da estrutura narrativa épica. Schelling, como Hegel, vê no mundo a mediação de uma dialética, e todo fato ou coisa é para ele o produto de forças polarizadas que ten dem, ao fim e ao cabo, a produzir —sem se anular — uma espécie de zona neutra, um perfil de equilíbrio, que em princípio conteria de maneira serena e superior aqueles dois polos em litígio. Esta zona neutra é que ele chama indiferença, e este conceito está por um lado muito próximo da suprema elaboração das artes e por outro lado próximo da divindade. De acordo com isso, uma epopeia antiga faz da linguagem o palco daquela luta entre os elementos em polaridade ou em tensão dialética, Ora, essa luta, por um processo de resoluções cada vez mais depuradas da forma e da matéria, vai produzindo uma clarividência, que representa o terceiro elemento, o da indiferença, e neste não há mais luta nenhuma, o que nele existirá será a livre plenitude das formas da beleza, das quais o tempo não mais participará como participara daquela luta real entre as várias polaridades dinâmicas.
As formas essenciais da épica arcaica são no máximo figuras, associáveis umas às outras, de modo que, não havendo subordinação entre elas, cada figura terá seus próprios contornos, simultâneos e coespaciais, não havendo também entre elas nenhum tipo de ação eficiente e real, desses em que o tempo e a matéria coatuam. Se eu tenho diante de mim uma pintura dona de toda minha concentração, é sua figura, e não eu, a essência de toda a situação corpóreo-temporal em que estou complicado, e que me temporaliza para dentro do destino em que já vivo. A essência da situação corporal ou — o que dá no mesmo —aquela figura em que o corpo nosso se concentra e momentaneamente se deixa esquecer, essa, por ser uma representação, é indiferente à natureza daquilo que representa, tanto que a ideia de tempo em si mesma não é nada temporal, como a ideia de amor não é amorosa nem envelhece. O cinema ilustra isso. Todo aparato com que trabalha essa arte serve para fixar-nos na memória essas essências, e por isso não poucos de nós saímos de um filme em estado de pouca aderência ao real, tocados por aquela indistinta experiência, em que se resolve e se ultima o processo de metabolização do mundo. O cinema, que produz essa epokhé, será, portanto, filosófico. Como redução, como epokhé, põe o mundo entre parênteses. E o que atribuiríamos à magia, espécie de arte final, não é produção dela mesma, é produção do aparato, que se inventa e se constrói para chegar a ela, e aí chegando se ocultar depressa. Quem assiste a um filme, nessa hora não pensa em quanto custa produzir um filme. Ele próprio, filme, tem partes dentro de si, que são mais outros instrumentos, e não formas daquilo que é produzido no fim e como fim. Pois bem, essas coisas, andaimes ou escadas que se vão numa enxurrada, sem nos perturbar a nós, e que pertencem à efetividade da arte para produzir seus fins e sua essência, tudo isso, mal cumprida sua função e seu destino, desaparece, porém não ao todo: uma parte retorna, por fim, ao silêncio e segredo naquela paisagem final de indiferença, que a tudo contém como em perfil de equilíbrio. Enfim, isto lembra a ideia viva de Deus, que contém pulverizadas, indistintas ou constelares todas as narrativas bíblicas, que hão rumado para ele. Por isso é que fica Ele acima de qualquer destino público ou pessoal. “E tudo por fim a um todo se condensa, e como algo mais alto a poesia ou seu poeta pairam, intocados por qualquer outro elemento. Só dentro do círculo, que o poema circunscreve, é que uma coisa toca e oprime a outra coisa, paixão contra paixão, evento contra evento. Ele mesmo, o poeta, não penetra jamais neste círculo, e, abstendo-se dessa maneira, ele se torna, por fim, um deus, e uma plena imagem da divina natureza. Pois não há nada que o comprima: ele deixa acontecer de tudo, não intervém no curso dos eventos, dos quais nunca se deixa afetar. E estando a salvo, pois, a tudo ele contempla em torno, e absolutamente nada que aconteça tem acesso a ele. De qualquer coisa que seja, ele não sente nada, seja da baixeza ou altivez, ou da maior ninharia ou raridade, ou coisa de comédia ou de tragédia. Paixões, que fiquem por conta do Objeto. Que chore, pois, Aquiles, que se enlute pelo amigo morto, Pátroclo, Ele mesmo
o poeta —tocado ou intocado não se mostrará por nada.”[5]
ÉPICA E ROMANCE
Julgamos em geral a trama de um romance autônoma, porque ela não obedece àquilo que queiramos que ela seja. Este simples fato indica nossa relação com ela. Queremos que ela seja, e ela não é. E notem que há nascido ela por nós ou para nós. Ao contrário da épica, ela nos é, de alguma forma, relativa. Seus caminhos cruzam com os nossos, e vivemos com problemas semelhantes. Vemos os person agens dessa trama agir, viver, envelhecer, de modo que há uma lógica formante, determinada pelo tempo, porque, enfim, onde há discorrer ou discurso, onde há subordinação de partes há sempre uma prossequência lógico-temporal. Ao contrário de tudo isto, Schelling julga a Ilíada um poema absoluto, sem fim, sem começo, sem alusão nenhuma a seu leitor, e com um narrador cuja ausência absoluta é garantida por uma linguagem que não faz referência a nada além de si mesma. No entanto, esse absoluto da obra em si mesma só se pode entrever por meio de seu contrário, que está no fato de a linguagem da épica ser também relativa a uma situação singular, que é o nosso entroncamento na existência, onde a sensibilidade encontra as letras, a edição, as formas do mundo e das coisas, a temporalidade, enfim, o corpo material da obra, e cuja dialética leva o endereço daquela indiferença, síntese da serenidade e do equilíbrio. Há, pois, uma polaridade aqui entre o singular e o absoluto, que não parece haver nos romances. Temos alguma experiência em relação à Ilíada porque conhecemos sua tradição e sua crítica ou porque buscamos conhecer o grego, seus dialetos etc. Somos, portanto, relativos à Ilíada. Nós nos propomos para ela, e isto podemos fazer, aliás, a qualquer outra coisa, em relação à qual nos sintamos adotados, tal como, noutro contexto, já se disse que nossa burguesia do século XIX se sentiu adotada pelos grandes ideários europeus, e, não obstante o merecesse pouco ou nada, vestiu a casaca liberal. Da mesma forma, se somos relativos à Ilíada, ela não nada relativa a nós, por não ser ela relativa a qualquer coisa fora dela. Daí sua forma absoluta, com componentes também absolutos. Quanto ao relativo, é ele que nos toca e, cada coisa nossa vai buscar seu tempo e sua razão numa outra coisa, e assim por diante. Não vemos causa nenhuma no interior da Ilíada: do rapto de Helena fala-se pouco no poema e o narrador tem omissão absoluta: deixa os fatos correrem como são. Heitor e sua mulher Andrômaca são uma cena parada no universo, e não há razão particular que se conheça para um tal encontro, a não ser o próprio encontro sob a forma sentimental que tem. Tanto que a guerra, nessa hora, é superada como se fosse para sempre, embora recomece logo, e com não pouco brilhantismo, porque afinal guerra são outras cenas. A sucessão delas é um encaixar-se de formas de onde saem as possibilidades narrativas, ilusórias também, pois se interpolam noutras, e em cada mudança de uma para a outra, se insinua a ilusão temporal-narrativa. Não há nenhuma astúcia da mão homérica que interpola. A astúcia está no interpolar-se.
ECOS DO PASSADO MAIS PASSADO
Ao empregar a expressão “de belas caneleiras” para falar dos Aqueus — Akhaious euknémidas — Homero não quer informar uma vez mais o mesmo fato (ele não quer informar nada a ninguém, para não perder a eternidade): ao contrário, quer fazer seu mundo reafirmar-se, por si próprio, por meio de uma imagem viva e para sempre.
Isso é notável nos epítetos de privação de qualidade nos deuses, por exemplo, que são os imortais (athánatoi), ou como no mar, onde não cabe a semente (atrúgetos) ou no varão aptólemos, sem bravura. É preciso repetir estas coisas para que o mundo não termine. Aliás, sem essas três que mencionamos não haveria mundo homérico. Aqui, os três adjetivos, por sua abrangência ou generalidade, abrem-se pois para uma pequena geografia, pois representam as três dimensões da ideologia indoeuropéia (já esfacelada em tempos gregos) e que representam as classes religiosa, agrícola e guerreira, estudadas por Georges Dumézil durante décadas. E se estes três polos se unificam numa imagem de produção razoada da vida, a imagem final e uma é sem explicação, por ser a última. Com ela começa aquela zona obscura do passado que retorna ao menos fragmentariamente. Mas como Homero trabalhava com material já feito, ao qual impunha uma medida rítmica e uma inflexão que lhe valesse no presente, nem por isso a filologia estacará seu passo. Ao contrário, ela terá seu bom ofício na sondagem destes e de outros estratos. Pode ir assim até onde Homero não fora, como foi o caso dos arqueólogos, que vieram a saber da Grécia coisas que nem Aristóteles suspeitaria.
FÓRMULA E ORALIDADE
“Esse tipo de poesia”, diz Page, “que ocorre na épica de muitas línguas além do grego, só pode ser composto, só pode ser preserva do, se o poeta tiver a sua disposição um estoque de frases tradicionais — metade de versos, versos inteiros e estrofes, já prontos para quase todas as finalidades concebíveis. O poeta compõe enquanto recita; não pode parar para pensar como continuar; deve ter pronta toda a história, antes de começar, e deve ter na memória a totalidade – ou quase totalidade – das frases de que precisará para contá-la. Os poemas homéricos são, na verdade, compostos dessa forma – não em palavras, mas em sequências de frases feitas”.[6]
Por outro lado, as descobertas arqueológicas confirmaram que a língua de Homero cada vez mais se revela convencional, artificial, feita para os cantores de meios aristocráticos. Trata-se, pois, de uma tecnologia poética, e, no caso, feita por finos fazedores. E porque feita em frases feitas hão de combinar-se como num quebra-cabeça de regras definidas, e que se realizam por afinidade, semelhança, hábito. Tal como num quebra-cabeça, Homero justapõe as frases, de onde brota o sentido, pleno e expansivo, dando conta de tudo e sem deixar suposições. Tal como no cinema, nós percebemos, por baixo da unidade fílmica, toda uma traumatologia das composições e recomposições da matéria forçada a levar vida em comum. Lido por linearidade um epíteto é banal, mas como imagem visual surpreende, porque se desgarra, e revela-se como perturbação do linear. A própria origem da epopeia indica isso. Homero deu forma à sua língua por meio do jônico, do eólico, do arcado-cipriota. Ornou os rudimentos do que houvera antes, não para esconder alguma coisa, mas para dar a ela uma expansão sempre distinta e multiplicadora.
ZEUS EM VISITA
Mais do que na guerra, o sexto canto da Ilíada põe toda sua ten são na paz. Suposto, porém, que nas guerras de Homero não haja destino, porque efetividade real lá não existe, o fato é um destino irromperá em algumas cenas deste sexto canto. Na maioria dialogadas, estas assumem os contornos da tragédia, que é do real o gênero por excelência. E não por estas cenas sejam dolorosas, tristes, mas porque a tristeza e a dor, em vez de relatadas, são demonstradas, elas falam por si próprias. Aí, pois, encontramos — e falando por própria boca Heitor e Andrômaca, mais Belerofonte — enclausurado em pequena épica particular — e por fim Gláucon e Diomedes, à beira de um ataque mútuo. Mas, por que não ver na épica a engendradora do destino? Porque seria uma aparência tal destino. Tal como ocorre às crianças que brincam com soldadinhos ou que olhando na parede de seu quarto engendram ali figuras, e destas vão formando uma fantasiosa história. Mas só tenho um destino quando alguém comigo. Hegel, na Fenomenologia do Espírito, na parte dedicada à religião da arte, mostra que esse irrisório destino épico, feito de impressões, vanglória, só se viria a revelar no palco trágico. Com Ésquilo, Sófocles, Eurípides é que as personagens garantem sua vida ou sua morte por meio de sua própria fala, esta fala que saia outrora da boca do aedo narrador já com os destinos prontos, inclusive o dos deuses.
O diálogo, portanto, e sua insurgência na Aufklaerung ateniense, materializou o destino em sua tremenda seriedade. Mas, se agora o ser humano assume-se, e assume aos outros, se na passagem desta fala épica para a proliferação das falas individuais se representa um avanço dos humanos contra a divindade autoritária, então é esta divindade que ao entrar no duro espaço do palco e da plateia irá perdendo autoridade. Essa trágica conversão, como se disse, antecipa-se no sexto canto. Dentro da cidade troiana é que se dão esses diálogos. A narrativa se abre em precedências mítico-lendárias (como a perseguição de Licurgo a Dioniso e suas mulheres, ou como as aventuras de Belerofonte), não são de todo indiferentes ao com bate, que aí fala baixinho, minucioso, tramando contra a momentânea paz. Entre a guerra lá fora e o interior da cidade a mudança de clima é tão natural que mal pode ser narrada. Basta dizer que nos dá uma impressão mais real que todas as outras. O deslizar, o palpitar vai ao fundo daquela invisível existência, a que engravida o futuro, e com base na qual todas as coisas ganham seu destino e seu formato. A guerra contém no fundo de si mesma, e como seu pórtico ou limite o terreno indefinível por onde a morte e o sangue buscam seu atalho para respirar, e por fim expirar, e reassumir-se noutra coisa. E a este polo negativo responde o fúnebre polo positivo. Mas o que vale é o que fica entre os dois polos. Se estes polos imanentes ao homem são também forças divinais, então o lugar mais próximo da divindade é o próprio meio. Como o homem e a mulher, que ao máximo se afasta para enfim se aproximarem, e determinarem no fruto seu contínuo renascer, também a temporária suspensão da guerra e ela própria geram a melhor poesia que há na Ilíada. Traduzida em sua final essência, paira a poesia sobre tudo que lhe dera origem. Ou tal como se dá no Espírito e na Natureza, que aproximados até um grau ultrafísico e supermental acabam dando a mesma coisa, são o mesmo. E assim também Gláucon e Diomedes, um, culto aristocrata, e o outro, bárbaro matador, aristocrata embora. Um é Tróia, outro é a Hélade. Ambos vão sintetizar a luta em paz definitiva, feita para os dois apenas, porque Zeus visitador assim queria.
Diomedes, após admirar a coragem de Gláucon diz-lhe que não lutaria com ele se ele fosse acaso algum dos divinais. Licurgo — disse – ousou enfrentar a deus Dioniso, e na carne padeceu a represália dos divinos. Por isso, com um deus não lutaria.
Contudo, fosse Gláucon com certeza algum mortal, que viesse à lança ter com ele, Diomedes, e saberia, por fim, da morte:
Então, entre os mortais, ó tu quem és, guerreiro?
Audácia não te falta, eu vejo, e em luta súpera
Nunca te vi jamais: por sobre os maiorais
Estás a desafiar-me a lança de longuíssima
Sombra, estás a mostrar-te: filhos de pais trágicos
São os que enfrentam minha ira, e, apesar disso,
Se tu és um imortal, jamais eu lutarei
Contigo, ou com divinos outros: um dos filhos
De Drias, o feroz Licurgo, não foi longe
Após ter feito isso: as amas de Dioniso
Em Nisa montanhosa, insano, andou
Licurgo Perseguindo, e o tirso elas largaram rápidas,
E atrás corria Licurgo irado a acicatá-las,
Até que enfim Dioniso mergulhou no mar
Estremecente, e ao seio Tétis abrigou-o.
Um arrepio o percorria horrível, fruto
Vil de Licurgo que, por ato assim, os divos
Bem viventes com cegueira castigaram,
Pois logo irado veio a ser pelos divinos
Todos! Por isso contra os divos celestiais
Nunca jamais me atiraria, mas se és homem,
E do que a terra serve te alimentas, salta
Aqui, pois penetrar-te vou com morte esguia.
Sendo um menino, o deus das mulheres e dos líquidos, Dioniso é uma figura lábil, que pode encarnar a vida e a morte simultânea ou separadamente. Sendo infinitamente mais forte do que seu perseguidor, mesmo assim se deixa perseguir. Ou talvez para fingir que está fugindo (quando pode estar vingando-se), ele se atira no mar, e é amparado por Tétis, mãe de Aquiles, o mais forte lutador dos gregos, e que, no entanto, chorava como Dioniso. Um chorou na praia, outro chorou no mar. Tétis abrigou a ambos, humilhados. Um por Licurgo, outro por Agamenon, figuras parecidas, pois igualmente repudiadoras do sagrado. Ora, note-se, de Aquiles se passa fácil a Dioniso, e vice-versa. E de ambos se passam mais fácil ainda à ambiência feminina (talvez o “eterno feminino” antecipado), que é um dos pilares deste sexto canto. Tal como, por fim, o fino Glaucon e o furente Diomedes são a mesma pessoa dividida em dois rivais:
Glauco, que está para enfrentar Diomedes, tem de responder a este sobre sua família, sua identidade:
Ó grão Tidida, tu perguntas qual meu berço? Tal o brotar das folhas é o nascer dos homens. O vento expulsa as amarelas para um lado,
E de outro lado logo surgem folhas verdes. Tal qual a primavera em seu retorno, assim A nossa raça nasce e vai-se, e se tu indagas
De minha ascendência, ela não foi sem brilho, ouve!
Ambos trazem à luz o gosto da palavra mútua, e o prazer do mútuo reconhecimento, manifestado na alusão aos parentes de um e outro que se haviam visitado em tempos idos, e se tornado hóspedes transcendentais por isso. Eram tão sagradas essas leis hospitais que diante delas tudo devia curvar-se, inclusive a guerra. Suas armas de ouro e prata Gláucon trocou-as pelas armas brônzeas de Diomedes. Pois era tudo a mesma coisa, tudo por fim retornava àquela indiferença de onde vinham e aonde depois voltavam todas coisas, e que era Zeus visitador.
Notas
[1] Ressalvem-se casos como em “Engoliu as flores perfumadas”, onde não se ornamenta nada. Os epítetos não são predicativos, são adjuntos: “mar salgado”, “negras naus”, “veloz Aquiles” etc.
[2] Philosophie der Kunst (1802/1803). Ausgewählte Schriften in 6 Bänden.
Frankfurt, Suhrkamp, II, 476.
[3] Idem. “Die Poesie selbst als solche muss wie ausser der Zeit, von der Zeit unberuhrt sein, sie muss daher alle Zeit, alles Sukkessiv rein in den Gegenstand legen und dadurch sich selbst ruhig erhalten und unbewegt von dem Strom der Auseinan derfolge uber ihm schweben.”
[4] Em The making of homeric verse, Adam Parry (ed.), Nova York, Oxford University Press, 1987. “[…] the facility of versification which they afford the poet appeared the only factor determining their use […] the fixed epithet in Homer is invariably used without relevance to the immediate action whatever it may be, and second, that the generic epithet does not define any characteristic that distinguish es one hero from another.”
[5] Em The making of homeric verse, Adam Parry (ed.), Nova York, Oxford University Press, 1987. “[…] the facility of versification which they afford the poet appeared the only factor determining their use […] the fixed epithet in Homer is invariably used without relevance to the immediate action whatever it may be, and second, that the generic epithet does not define any characteristic that distinguish es one hero from another.”
[6] Denys Page, “O mundo homérico” em O mundo grego, trad. Waltensir Dutra, Rio de Janeiro, Zahar, 1977, pp. 13-25.