1991

Álbum de família

por Muniz SodréSérgio Mamberti

Resumo

Se por um lado se impõe progressivamente a visão dos produtos culturais televisivos como simulacros (logo, imagens autônomas diante do real), como entender a pressão sobre a narrativa das telenovelas de aspectos tão pertencentes à vida real, como o cotidiano, a família, a casa e, eventualmente, fantasias incestuosas?

A resposta aponta necessariamente para os elementos “extratextuais”, chamados de condições de reprodução, que compreendem as regras de produção, circulação e recepção ou reconhecimento dos textos (escritos, sonoros ou visuais) da indústria cultural.

Colada aos acontecimentos e ações do cotidiano, a teledifusão aparece como um fluxo de eventos posto em continuidade tanto com o cotidiano quanto com o sistema que sustenta financeiramente o broadcast, isto é, a publicidade. As ações do cotidiano exibidas na televisão são atravessadas de ponta a ponta pelo discurso publicitário.

O fluxo da realidade cotidiana e publicitária ajuda a distinguir, por exemplo, o drama televisivo do cinematográfico e a entender a facilidade de integração entre conteúdos comerciais e conteúdos especificamente teledramáticos. Em muitos casos, o enredo teledramático é mero apoio para a simulação de relações interpessoais mediadas pela visão publicitária do mundo.

Mas, se esse cotidiano é investido pelo discurso publicitário, ele também se legitima por uma outra constante transnacional que funciona como uma espécie de “matriz simbólica” para a encenação dramática: a família. Como o discurso televisivo é recebido em caráter privado, normalmente num espaço doméstico ou de intimidade, a família se impõe como uma modelagem semiótica para as situações do relativas ao cotidiano ou para a interação das personagens. Por isso, o imaginário da casa penetra no fluxo de simulação televisiva da realidade.

Embora o imaginário televisivo incorpore transnacionalmente a família e a casa como matrizes semióticas, a telenovela brasileira reflete particularidades nacionais. Na telenovela, entrevê-se um tanto do drama ininterrupto da real modernização brasileira, da passagem de formas sociais de tradição à modernidade. Assim, uma enunciação tradicional pode ajustar-se à moderna, na medida em que isto facilita a aceitação do produto pelo olhar mais conservador do público e, portanto, aumenta a eficácia de penetração da forma urbano-industrial. Por outro lado, modernizaram-se os conflitos e foram progressivamente incorporados pelos roteiros dramáticos temas como liberdade sexual, juvenilização dos velhos, descasamento e muitos outros afins à crítica dos costumes.

É curioso notar que no roteiro das telenovelas encenadas até hoje pela televisão brasileira há, na grande maioria dos enredos, a tematização do incesto. Mas, por que incesto? Em face de uma família em mutação acelerada no real-histórico, o incesto, um escândalo na estrutura, oferece-se como recurso paradoxal para a sua preservação imaginária.


Vamos nos deter casualmente sobre uma ou duas telenovelas em cartaz. Por exemplo, Rainha da sucata (TV Globo) ou Pantanal (TV Manchete). O que estamos procurando? O incesto. E não é preciso nenhum esforço analítico na busca. A temática se explicita com clareza, tanto numa (madrasta com enteado e irmão com irmã em Rainha da sucata) como noutra (irmão com irmã em Pantanal). Quem se der ao trabalho de examinar o roteiro das telenovelas encenadas até hoje pela televisão brasileira, certamente encontrará um resultado semelhante, ou seja, que a grande maioria dos enredos abriga a tematização do incesto.

O mesmo exame pode ainda dar conta de que essa temática desenvolve-se dentro de um enredo que basicamente dramatiza o cotidiano, fazendo dele o meio de realçar a intensidade da ação ou a problemática existencial das personagens. Esse cotidiano, suporte da ação dramática, apresenta-se principalmente como “familiar”, isto é, como uma sequência de eventos atinente ao espaço das relações primárias (casa, habitação). Daí, a importância da casa e, mesmo, de sua topografia no desenvolvimento temático e nas transformações da telenovela.

Mas, se por um lado se impõe progressivamente a visão dos produtos culturais televisivos como simulacros (logo, imagens autônomas diante do real), como entender a pressão sobre a narrativa folhetinesca-eletrônica de aspectos tão pregnantes da vida real, como o cotidiano, a família, a casa e, eventualmente, fantasias incestuosas?

O caminho da resposta aponta necessariamente para os elementos “extratextuais”, chamados de condições de reprodução, que compreendem as regras de produção, circulação e recepção ou reconhecimento dos textos (escritos, sonoros ou visuais) da indústria cultural. Os resultados da prática analítica têm indicado certas invariâncias produtivas, que permitem falar em “formas transnacionais” correntes na produção do discurso televisivo.

Uma dessas constantes transnacionais pode ser designada pela noção de fluxo, tal como a maneja Raymond Williams a propósito da televisão[1] ou a empregam, com intenções mais amplas, outros sociólogos. Este último caso é o de teóricos que concebem o processo social como fluxo contínuo de atividades diversas, orientando-se todas no sentido da troca de bens entre sujeitos interativos.

O fluxo televisivo pretende representar (na verdade, simula) fluxos sociais portadores de decisões centrais (políticas, econômicas), de injunções de coordenação ou de mobilização social. Ele constitui o movimento objetivo aparente da realidade (distinto, por exemplo, do movimento objetivo real, buscado pela arte ou pela interpretação filosófico-científica da realidade) e produz efeitos de organização ou gestão da sociedade. Trata-se de uma forma tecnocultural (um dispositivo de controle social imbricado na cultura como produto), acionada principalmente pela publicidade.

Colada aos acontecimentos e ações do cotidiano, espécie de janela aberta para o mundo de uma ficção definida como “cidadão médio”, a teledifusão aparece, assim, como um fluxo de eventos, posto em continuidade tanto com o cotidiano quanto com o sistema que sustenta financeiramente o broadcast, isto é, a publicidade. A cotidianidade exibida na televisão é atravessada de ponta a ponta pelo discurso publicitário, que implica por sua vez mecanismos semióticos de repetição de temas comerciais e orquestração de arquétipos de um suposto imaginário público.

O fluxo da realidade cotidiana e publicitária ajuda a distinguir, por exemplo, o drama televisivo do cinematográfico, assim como a entender a facilidade de integração entre conteúdos comerciais e conteúdos especificamente teledramáticos. Do mesmo modo como o anúncio comercial dramatiza os aspectos mais “funcionais” e banais do cotidiano, a televisão incorpora ao drama a ideia de um cotidiano já definido pela atmosfera do consumo moderno. Em muitos casos, o enredo teledramático é mero apoio para a simulação de relações interpessoais mediadas pela visão publicitária do mundo.

Mas, se esse cotidiano é investido pelo discurso publicitário, ele também se legitima por uma outra constante transnacional, que funciona como uma espécie de “matriz simbólica” para a encenação dramática: a família. Não é uma matriz aleatória. Sabemos que todo texto é afetado por seus protocolos de produção e recepção ou “condições de reprodução”, a que já aludimos. Como o discurso televisivo é recebido em caráter privado, normalmente num espaço doméstico ou de intimidade, a família se impõe como uma modelagem semiótica para as situações de cotidianidade ou para a interação das personagens.

O simulacro de um sujeito doméstico ou íntimo representa sempre o público interpelado pela emissão de TV. Registra-se, com efeito, nesse discurso uma interpelação sistemática do espectador, como resultado da centrifugação operada pelo espaço televisivo. Se o espaço cinematográfico é “centrípeto” (por absorver topologicamente a sala de exibição e homogeneizar-se em seu próprio universo diegético), o televisivo avança centrifugamente até o contexto heterogêneo da audiência, interpelando-o, tornando-se “familiar” a ele e assim interferindo topologicamente na intimidade real da casa. Do noticiário jornalístico à atuação dramática, o discurso televisivo caracteriza-se por marcas de enunciação do cotidiano e da família. Por isso, o imaginário da casa penetra no fluxo de simulação televisiva da realidade.

Como a televisão, a casa também é feita de imagens. Bachelard não tem dúvidas: “A casa é um corpo de imagens que dão ao homem razões ou ilusões de estabilidade”[2]. De fato, a identidade entre o sujeito e a casa se estabelece pela repetição dos hábitos e costumes implicados no cotidiano. A casa e a vida familiar integram-se no movimento de organização da temporalidade cotidiana: os atos de repousar, acordar, comer, lavar-se etc. são cíclicos e orientados segundo o modelo da vida familiar. A repetição cíclica engendra um sentimento de permanência ou continuidade comunicado ao espaço pertinente, ou seja, à casa.

Durand aponta um certo “semantismo feminóide” na ideia de casa e antropomorfismo resultante dessa ideia[3]. Ela constitui, “entre microcosmo do corpo humano e o cosmos, um microcosmo secundário, um meio-termo cuja configuração iconográfica é por isso mesmo muito importante no diagnóstico psicológico e psicossocial”[4]. Reproduzindo o corpo tanto material como mental, a casa sugere um corpo vivo, com suas demandas de intimidade e tranquilidade, e integra a representação de si mesmo feita pelo sujeito.

Embora o imaginário televisivo incorpore transnacionalmente a família e a casa como matrizes semióticas, a telenovela brasileira reflete particularidades nacionais, afins ao modo especial como se organiza e se transmite o poder no Brasil. O fato é que têm mudado pouco ao longo dos séculos os traços básicos de uma organização medievalista de poder, transplantada de Portugal para o Brasil no século XVI.

Nessa organização de poder, o cume da pirâmide social compunha-se de clero e nobreza. Abaixo destes, vinha o terceiro estado, cujo estrato superior era ocupado pela burguesia mercantil, que procurava ascender por meio de títulos ou de alianças patrimoniais (casamentos, adoções etc.). Em seguida, aparecia a grande massa sem acesso à corte, constituída de oficiais mecânicos, pequenos comerciantes, empregados da agricultura, do comércio e artesãos. Na base, ficavam os escravos.

A esse modelo inspirado na dinastia de Avis, que introduz no Brasil a lavoura de monocultura e a escravidão, acrescentam-se depois, com o crescimento econômico e populacional, outras categorias sociais. Funcionários, pequenos comerciantes, profissionais liberais crescem em número e em influência com a expansão das cidades. Permanece, porém, a estrutura básica originária, que coloca o poder nas mãos de clãs fundados em relações consanguíneas, mas sempre aberto às cooptações por alianças patrimoniais e políticas, uma vez que jamais houve hierarquia rígida dos agrupamentos sociais.

Essa elite, com seus desdobramentos, tem usado diferentes estratégias para não perder as rédeas de um poder que já se definiu como “cordial”. Tal “cordialidade” é explicada por Buarque de Holanda[5], a partir do sentido radical da palavra, como algo atinente ao coração e à afetividade, mas no espaço do poder. É uma boa palavra para designar relações de poder baseadas em laços clânico-familiais.

Um claro exemplo desse familialismo é o sistema de comunicação brasileiro, possivelmente o setor mais centralizado e monopolista da vida nacional. Sete famílias controlam mais de 90% de toda a comunicação social do país, ou seja, a quase-totalidade das revistas, rádios, canais de TV e, por conseguinte, a audiência. Um oligopólio familiar, que vive do monopólio estatal das telecomunicações, institui-se como linha de montagem do imaginário social.

A atmosfera familiar que perpassa algumas das instituições básicas da nação é, assim, responsável pela moldagem de ideologias correntes. Por exemplo, a ideologia da racial-democracia, que concebe o Brasil como uma grande família patriarcal, centralizada pelo homem branco, em que todos são parentes ou afins, inclusive o negro — uma espécie de parente pobre.

Por meio de ideologias conciliatórias dessa ordem, uma modelagem familiar — que percorre desde as instâncias produtivas até o público — termina impondo-se, e com marcas próprias. Nela subjaz a ideia clássica da família patriarcal, com o paterfamilias no centro da esfera de decisões, comandando filhos, mulher, agregados, servos. Se no real-histórico já desapareceu a multifuncionalidade da família patriarcal (quando esta avocava a si as múltiplas funções sociais), ela permanece no nível do imaginário, como matriz simbólica da narrativa popular de maior consumo no Brasil de hoje, a telenovela.

São parâmetros familiais que regulam o fluxo do cotidiano nas relações entre as personagens. Na verdade, o trânsito internacional do gênero rádio ou telenovela deve-se muito provavelmente ao fato de que, embora a família ali encenada tenha características latino-americanas, há associações simbólicas em escala transnacional no que diz respeito à ideia de família patriarcal. Já num folhetim inglês do início do século XIX (Sinclair das Ilhas, de Elizabeth Helme), as ações heroicas ou extravagantes (vazadas na atmosfera “gótica” setecentista) terminavam transformadas em virtudes domésticas, adaptadas ao recato do lar.

Donde a importância “topográfica” da casa-habitação na evolução temática. Os dramas de alcova predominaram nas primeiras telenovelas brasileiras, que adotavam o modelo radiofônico-televisivo de origem cubano-mexicana. No recesso desse pequeno espaço íntimo, as personagens viviam as regras de um universo público severo e moralista.

Pode-se dizer que os enredos dessa primeira fase concentravam-se no “quarto de dormir”, com problemas de origem, adultério, perigos de incesto etc., que estimulavam o voyeurismo do público, a sensação de se olhar pelo buraco da fechadura. O direito de nascer — enredo a que não faltavam paixões, duelos, suicídios, adultérios, bastardias — tipifica a fórmula básica desse melodrama.

Em tal fórmula, combinação de conteúdos cubano-mexicano-argentinos com elementos da soap opera norte-americana, as ações giravam em torno de um triângulo amoroso, um herói, um vilão (eventualmente, um crime) e o espaço diegético, e afastavam-se da realidade brasileira. Rosa rebelde, por exemplo, escrita por Janete Clair, tinha a sua ação desenvolvida no interior da Espanha, porque constava nas diretrizes cubanas a presunção de que “o brasileiro não era romântico”.

Com Janete Clair, aliás, o estilo de vida do Sudeste brasileiro penetrou na trama folhetinesca. A novelista evidenciava a sua capacidade de adaptação aos novos tempos, instaurando uma linha definida por uma visão atenta da classe média do sujeito urbano que enfrenta a voragem do progresso. Tanto que a publicidade de Véu de noiva (1969) anunciava uma novela “onde tudo acontece como na vida real”. Entenda-se: o real produzido pela televisão, a partir da simulação do fluxo cotidiano, com matriz familiar, atravessada pelo discurso publicitário. De fato, assim como a Colgate e a Sidney Ross Co. tinham no passado inventado a radionovela, o grupo U. S. Unilever, por meio da agência de publicidade Lintas — que, no início, selecionava roteiros, autores e diretores —, praticamente criou a telenovela no Brasil.

O ultrapasse da fase “alcova” implicou o deslocamento da ação para outros cômodos da “casa”. Exemplo do modelo “copa-cozinha” foi a novela Antonio Maria, que tinha como herói um mordomo português. Do modelo “sala de visitas”, pode-se apontar como característica Beto Rockefeller, a história de um “boa-vida” carioca, que satirizava aspectos da vida urbana nacional. Depois dessa produção (1968), diminuiu a adaptação de material estrangeiro, aumentando-se em consequência a nacionalização dos termos e das personagens.

A ação telenovelesca terminou chegando à rua — a fase das tomadas externas, das locações à luz do sol em espaços cada vez mais amplos — mas sempre vista da “janela”, isto é, do ângulo das relações de família. Estas garantem a continuidade folhetinesca, oferecendo o pano de fundo próprio para que as personagens se entrelacem sob o signo do melodramático ou, mais recentemente, da farsa.

A “fase da rua” coincidiu com a hegemonia da Rede Globo de Televisão, notável pela grandeza de recursos e pela capacidade de produção, que a situa em quarto lugar no mundo como rede de televisão. A Globo promoveu a integração da telenovela com outras formas da indústria cultural, como disco, cinema, show business. E, evidentemente, em larga escala, com o anúncio publicitário, na forma de merchandising, ou seja, o reclame comercial embutido no contexto dramático.

Com essa última fase, apurou-se também a estética “naturalista”, que caracteriza a telenovela brasileira. Sempre lhe foi própria a intenção de reproduzir a aparência vivida das relações humanas (especialmente na óptica de sentimentos básicos como amor e ódio), mas esse naturalismo rudimentar passou a buscar uma documentação minuciosa — seja nos ambientes e costumes de épocas, seja no jornalismo contemporâneo — à maneira tanto da literatura de grande consumo da segunda metade do século XIX quanto da representação teatral naturalista deste século, que enfatizava sentimentos e conflitos interpessoais.

Por outro lado, modernizaram-se também os conflitos, na medida em que a telenovela passou a acompanhar jornalisticamente as transformações afetivas na família liberal-burguesa. Foram progressivamente incorporados pelos roteiros dramáticos temas como liberdade sexual, juvenilização dos velhos, descasamento e muitos outros afins à crítica dos costumes.

Na telenovela, entrevê-se de fato um tanto do drama ininterrupto da real modernização brasileira, da passagem de formas sociais de tradição à modernidade que hoje se apregoa como “neoliberal”, sempre por meio de uma sobreposição autoritária do Estado à sociedade civil. Nas formas videofolhetinescas, registra-se um trabalho sígnico de hibridação de enunciações coletivas pertencentes a modelizações sociais diferentes.

Assim, uma enunciação tradicional pode ajustar-se à moderna, na medida em que isto facilita a aceitação do produto pelo olhar mais conservador do público e, portanto, aumenta a eficácia de penetração da forma urbano-industrial. Do mesmo modo que na vida pública brasileira as formações clânicas (familiais) estão acima dos partidos políticos ou das instituições civis e terminam apropriando-se dos modernos meios de comunicação, o velho imaginário da família patriarcal superpõe-se aos conteúdos modernizantes da telenovela.

Mas atenção: essa hibridação do tradicional com o moderno é tornada possível não por uma presumida força exclusiva do imaginário social ou de qualquer “inconsciente coletivo” (à maneira de Jung) e sim pela contemporaneidade do poder tecnoburocrático (presente tanto no Estado quanto na grande empresa privada), que busca a privatização da cena pública, remanejando a inserção social da família e esvaziando as mediações institucionais entre cidadão e poder público.

No lugar do público, a publicidade e o marketing, exacerbando os simulacros de relações interpessoais; no lugar do estadista (que caracteriza a democracia representativa), o yuppie cosmetizado, oriundo seja da nova “família” mass-mediática seja da tradicional “casa-grande”, com todo o seu imaginário autoritário de figuras empreendedoras, fortes e fundadoras de dinastias.

Por isso, mesmo debruçando-se sobre a crise da família liberal-burguesa ou sobre os conflitos advindos do ultrapasse de ritos reguladores do comportamento familiar, a telenovela não rompe diegeticamente com o éthos da família patriarcal-extensiva, presente no imaginário da produção e do público. Maggie verifica que tanto o texto tele dramático quanto os espectadores em suas casas estão sempre discutindo “um paradoxo ou uma ambiguidade nas relações entre regras de casamento e regras de consanguinidade”[6]. Um ponto dessa discussão seria: “A quem devemos servir? A nossos consanguíneos ou afins?”. As personagens apresentam-se como felizes quando “correspondem ao modelo de organização da família de origem”.

No entrechoque da linha reta de parentesco (avós, pais, filhos, netos) com a linha colateral (tios, sobrinhos, primos, agregados) e com os parceiros de aliança (namorados, amantes, maridos, esposas), reedita-se uma visão da sociedade brasileira como “casa-grande”, com suas mazelas e situações incestuosas. A “casa-grande”, lugar de guarda dum álbum de família mítico, aparece como o verdadeiro sujeito da enunciação ficcional na telenovela. Se o funcionamento da forma cultural televisiva já se arma como uma imaginariedade do real-histórico (a forma cinematográfica é, ao contrário, uma realização do imaginário), a fabulação telenovelesca, com suas impregnações incestuosas, é um sonho em segundo grau, o devaneio desse sujeito hipostasiado no cotidiano da “casa-grande”.

Mas por que incesto? Trata-se na verdade de sugestões incestuosas (tradicionalmente presentes na narrativa folhetinesca, a título de risco na eventualidade de uma filiação desconhecida), embora já se tenha registrado uma vez como necessária a intervenção da Censura Federal, para impedir a consumação do ato incestuoso (Mandala, TV Globo). É possível que a tentação desse interdito seja uma figura forte do imaginário televisivo, exatamente porque este, assim como o poder tecno-burocrático, tanto precisa da matriz familiar, da casa, do gineceu. Em face de uma forma institucional (a família) em mutação acelerada no real-histórico, o incesto, um escândalo na estrutura, oferece-se como recurso paradoxal para a sua preservação imaginária.

COMENTÁRIO

Sérgio Mamberti

Faço parte de uma geração, talvez a última, em que a televisão ainda não existia. Fui formado pelo rádio e pelo cinema, e, o que é mais importante, como ainda não havia o hábito de assistir à televisão, pela leitura, o que na minha opinião muda substancialmente a relação com esse veículo. Até hoje acho a televisão uma coisa meio marciana. Meu pai resistiu valentemente durante anos à entrada de um aparelho de TV em nossa casa, talvez até por perceber intuitivamente esse poder massificador da televisão. Eu mesmo relutei em ter uma, pensando principalmente nos meus filhos. Como todos estudavam numa escola antroposófica e a pedagogia Steiner recomenda basicamente que não se veja televisão, só quando eles estavam bem mais crescidos acabei comprando uma.

Evidentemente jamais proibi que eles ocasionalmente assistissem à televisão na casa do vizinho ou dos avós, porque seria optar por uma solução tão autoritária quanto a que estava tentando evitar. Mas, pelo menos assim, a passividade a que a televisão submete os espectadores ficava em parte neutralizada. Meus filhos ocupavam seu tempo com jogos, inventando brinquedos, ouvindo histórias, desenvolvendo uma criatividade tão fundamental na formação da personalidade. Era nítida a diferença de comportamento entre crianças como eles e outras que viam televisão de forma indiscriminada, sem nenhum critério.

Mas o que me parece incontestável é que a televisão veio para ficar e alterou substancialmente as relações de convivência do mundo contemporâneo, estabelecendo sem dúvida nenhuma uma verdadeira revolução dos meios de comunicação. Ao mesmo tempo, transformou-se no mais poderoso instrumento de dominação e de manipulação da opinião pública, isso sem falar na ação devastadora que exerceu no imaginário nacional nos últimos vinte anos. É evidente que sempre houve, por parte do poder estabelecido, inúmeras modalidades de controle e de intervenção no nível do imaginário por meio da própria estrutura patriarcal, da casa-grande, como acabou de citar com tanta propriedade o Muniz Sodré, que permanece praticamente inalterada até hoje na sociedade brasileira e que a televisão, principalmente através da telenovela, contribui para perpetuar.

Agora, especificamente com relação a minha atividade profissional, minha opção foi desde sempre o teatro. Quando iniciei minha carreira, a televisão que se fazia era ao vivo; então quem fazia teatro só podia fazer televisão esporadicamente, atuando, por exemplo, nos famosos teleteatros da época. Você tinha de optar entre fazer teatro ou televisão, porque ser contratado de uma emissora implicava uma série de compromissos que inviabilizavam, para quem estivesse, como eu, empenhado em participar das profundas transformações que estavam ocorrendo na cena brasileira naquele momento, uma atividade efetiva nos elencos teatrais.

Só bem mais tarde, em 1967, pressionado pela necessidade de ampliar minha renda, pois já estava casado e com dois filhos, e o salário que ganhava no teatro era insuficiente, passei a fazer televisão, e, graças ao advento do videoteipe, pude fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Por outro lado, na TV Excelsior, onde comecei a atuar em telenovelas, havia nomes como Walter Avancini e Dionísio Azevedo, preocupados com uma teledramaturgia que refletisse, em nível de massa, as mesmas tendências do teatro e do cinema, de espelhar e discutir a realidade nacional. Chegou-se mesmo a adaptar clássicos da literatura como O tempo e o vento, de Érico Veríssimo, uma verdadeira ousadia, o que de certa forma facilitou o meu convívio durante alguns anos com essa máquina infernal. Mas, a partir de 68, com a decretação do ato institucional nº 5, cassando de forma radical liberdades democráticas, a TV Globo assume a liderança absoluta do mercado com uma programação totalmente voltada para a pasteurização da realidade brasileira, escamoteando-a com melodramas açucarados, nos quais os pobres sempre conseguem ascender socialmente através do casamento, e colaborando decisivamente na implantação do “milagre brasileiro”, num momento em que as pessoas estavam sendo perseguidas, presas e torturadas até a morte, pelo simples fato de pensar diferente.

Afastei-me por oito anos da televisão, trabalhando eventualmente na programação da TV Cultura, canal 2, por não poder concordar em ser cúmplice dessa farsa. Aliás, esse conceito que a Ester Goes acabou de anunciar de que a televisão é um veículo do século XXI com uma ideologia do século XIX é extremamente esclarecedor da importância política desse veículo, ainda mais quando se sabe que uma eleição presidencial foi decidida com um programa de telejornalismo, editado de acordo com as conveniências do candidato da situação.

Na realidade, como tão bem colocou Eugênio Bucci no artigo publicado na Folha de S. Paulo, “Destruição cultural”, o grande projeto cultural da ditadura foi sem dúvida alguma o fortalecimento e a ampliação das redes nacionais de televisão, aliás, muito bem-sucedido.

E nesse novo governo, com a extinção de todos os mecanismos de apoio à produção cultural, me parece mais evidente o intuito, já que não existe mais a censura, pelo menos constitucionalmente, de inviabilizar a pluralidade da criação artística independente como o teatro, o cinema e outras manifestações, propiciando o monólogo das comunicações audiovisuais de massa.

NOTAS

  1. Raymond Williams, Television: technology and cultural form (Shoken Books, 1981)
  2. Gaston Bachelard, A poética do espaço, parte V (Ed. Eldorado).
  3. Gilbert Durand, Les structures anthropologiques de l’imaginaire (Dunod), p. 277-81.
  4. Idem, ibidem, p. 277.
  5. Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil (José Olympio).
  6. Yvone Maggie, “A quem devemos servir: Impressões sobre a ‘novela das oito’ “, in Textos para discussão do mestrado de ciências sociais, nº 11-87 (IFCS-UFRJ).

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