Anatomias do visível: cinema, corpo e a máquina da ficção científica
por João Luiz Vieira
Resumo
Marco oficial do nascimento do cinema, o ano de 1895 celebra a primeira projeção pública com ingresso pago do lendário cinematographe dos irmãos Lumière, em Paris. Para os historiadores da medicina, o ano também comemora a descoberta dos raios-X. Temos aí uma convergência histórica entre cinema e cultura visual médica, ponto de partida para a investigação e compreensão das técnicas de visualização da cultura médica, com a recepção cultural mais ampla dos raios-X e sua interseção com o cinema, arte e ciência. Nesse cruzamento, o corpo humano é o local privilegiado de compreensão dos diferentes modos como o cinema e cultura visual médica trabalham, muitas vezes como espetáculo. A lição de anatomia nas escolas de medicina e o cinema têm em comum o discurso da investigação e da fragmentação do corpo. Em ambos encontramos um impulso analítico, uma obsessão sobre que partes do desmembramento recai a ênfase. Esse desejo analítico também está presente na linguagem do filme, na construção semiótica do cinema – a decupagem – termo que pode ser tomado ao pé da letra como processo de dissecação da narrativa clássica em planos, cenas e sequências, estendido ao enquadramento e, em especial, ao processo de edição, que, em português ao menos, é chamado literalmente corte – procedimento que não é outra coisa senão a construção de corpos no espaço. Existem ainda muitas semelhanças entre o olhar anatômico, próprio da medicina, e o olhar cinematográfico, no sentido em que ambos dissecam o corpo, movimentando-se através dele em profundidade, mergulhando no espaço, atravessando-o. Essa forma de visualidade molda os efeitos de prazer proporcionado pelo aparato cinematográfico. Ao construir espaços de luz e sombra, escuridão e visibilidade, o texto cinematográfico transforma o corpo humano e o corpo das coisas numa geometria de formas, superfícies, volumes, texturas e linhas. A genealogia analítica do cinema descende, de certa forma, de uma fascinação anatômica distinta pelo corpo, por sua fragmentação e sua superexposição ampliada na tela, conforme explica o fascínio prático e teórico pelas possibilidades ilimitadas do rosto humano fotografado em close-up. Tal obsessão realizou-se de duas maneiras distintas: através da natureza mágica de um Georges Méliès, que desmembrava o corpo e o fazia levitar; ou da natureza científica de um Muybridge, que o dissecava e analisava em movimento. Testemunhamos também o encontro dessas duas formas, justificadas pela exacerbação do espetáculo voyeurista em exemplos genéricos que se filiam à ficção-científica (Viagem fantástica, de Richard Fleischer ou Viagem insólita, de Joe Dante), entre muitos outros.
Algumas conclusões deste trabalho fazem parte de uma investigação maior, iniciada em 1993 durante a ampliação de um convênio entre o Departamento de Cinema e Vídeo da Universidade Federal Fluminense e o Núcleo de Tecnologia Educacional em Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Nutes). O convênio previa, entre outros itens, a realização conjunta de uma série de vídeos na área de saúde, além de apoio pedagógico na criação de uma disciplina intitulada estatuto e função da imagem para o então recém-criado programa de pós-graduação (mestrado) do Nutes.[1] Naquela ocasião, motivados pela preparação de diversas manifestações em curso internacionalmente, celebradas em torno do centenário do cinema, constatamos uma coincidência mais do que produtiva para nossos propósitos. Se 1895 era um marco “oficial” do nascimento do cinema para os historiadores do cinema, para os da medicina e de suas técnicas de visualização, a data também comemorava a descoberta dos raios X.[2] Imediatamente localizamos um ponto de convergência histórico absolutamente não casual entre o cinema e a cultura visual médica, que acabou sendo pretexto para ativar o interesse cada vez maior pela investigação e compreensão das técnicas de visualização da cultura médica, com a recepção cultural mais ampla dos raios X e dos pontos de interseção entre cinema e medicina, arte e ciência. Ao definirmos esse fascinante campo de trabalho, naturalmente inscrevemos o corpo humano como o privilegiado mediador de inesgotáveis relações.
A medicina moderna nasceu de um impulso de entender o corpo, de ler o corpo como se fosse um livro. Como nos diz Michel Foucault, os séculos XVII e XVIII testemunharam uma transformação na prática médica em que o corpo, até então supostamente desconhecido, foi convertido em objeto legível por meio de uma variedade de técnicas, que previam desde a dissecação até a manutenção de registros regulares, por meio de notas, diários e relatórios.[3] Tudo o que era observável ou registrado deveria ser igualmente superposto, traduzido, permutável. A organização espacial do corpo foi convertida na organização semântica de um vocabulário e vice-versa. Para que o corpo se transformasse em algo completamente legível, ele dependia, então, dessa conversão de imagens em palavras e vice-versa, num claro processo de tradução inter-semiótica. O nascimento da clínica — na verdade a consolidação da medicina — dependia intrinsecamente da transformação do corpo numa variedade infinita de práticas discursivas.
O corpo era um enigma à espera de decifração, e a história da profissionalização da medicina, como sabemos, é a da manutenção do controle sobre esse código-livro, o corpo.[4] A autoridade do médico dependia da criação desse código, ou seja, da criação de corpos legíveis construídos a partir de várias técnicas de leitura e, consequentemente, de sua interpretação correta a fim de que essas inscrições pudessem ser intercambiadas entre membros da comunidade médica. É nesse ciclo de inscrições, troca e leitura que se localizam simultaneamente tanto a objetividade do médico como a subjetividade do paciente, frequentemente o locus do abismo entre paciente e médico.
As tensões entre palavra e imagem que marcam a prática médica encontram uma expressão bastante eloquente nesse encontro entre medicina e cinema. Durante as primeiras décadas do século XX, em especial antes mesmo da Primeira Guerra Mundial, vários médicos utilizaram o cinema numa variedade de especialidades e de aplicações, que compreendiam desde a terapia até a educação. Mas esse primeiro momento de namoro, digamos assim, entre duas áreas ou dois discursos tão aparentemente díspares foi bombardeado por outros médicos e reformistas que consideravam a própria experiência cinematográfica prejudicial à saúde pública. Tanto internacionalmente como no Brasil são comuns nos primeiros anos do cinema os alertas a respeito da “insalubridade” das primeiras salas de projeção com sua atmosfera em geral quente e abafada, favorecendo a disseminação de doenças. Alertava-se para o perigo oferecido pela alta concentração de pessoas muito próximas umas das outras, consequência da enorme popularidade trazida pela novidade do cinematógrafo. Isso sem falar, evidentemente, dos aspectos morais dessas diatribes, centradas na conjugação simultânea de proximidade e anonimato entre homens e mulheres, protegidos pelo escuro essencial à fruição de imagens em movimento.
A aceitação unânime do potencial científico do cinema encontrava-se enraizada na própria noção de objetividade, conceito evasivo que ganhou um tom moral e urgente na segunda metade do século XIX. Com a fotografia, por exemplo, já se percebe nos atlas médicos a colocação em prática de um conceito moderno de objetividade que, essencialmente, é uma ética do autocontrole, como consequência da recusa em cair na tentação de intervir entre a natureza e a representação almejada pelos cientistas e pelos pesquisadores. É com essa intenção que se destaca, na origem da relação entre ciência, fotografia e cinema, o trabalho de Étienne-Jules Marey (1830-1904), um dos precursores do registro de imagens em movimento e de sua busca de uma linguagem completamente gráfica para a fisiologia, linguagem de imagens, gráficos e pontos, que fixaria o movimento e o representaria sem nenhuma espécie de mediação baseada nos sentidos e nas sensações de um observador humano.[5] Em meados do século XIX, jovens cientistas alemães como Helmholtz e Ludwig se empenharam na criação de uma física orgânica, uma nova fisiologia calcada experimentalmente em análises quantitativas que pudessem reduzir funções orgânicas à física e à química e, assim, transformá-las em dados matemáticos e visuais. Para isso era condição essencial que aparatos mecânicos substituíssem os sentidos de um observador. Marey, que já acumulava experiência anterior em medicina e havia frequentado cursos de fisiologia experimental, terá o perfil privilegiado para desenvolver essa combinação inusitada entre medicina e engenharia, dedicando toda a sua vida ao aperfeiçoamento de aparelhos, como os quimógrafos. Marey também desenvolveria seus próprios aparatos mecânicos, tais como odômetros, miógrafos e pneumógrafos. Parece contraditório, mas se tais instrumentos foram criados com o intuito de deslocar a audição, o olfato e o tato do próprio observador para os aparelhos, a visão, por outro lado, seria entronizada, e com ela, necessariamente, o corpo do observador, quantificando os dados observáveis e transformando a fisiologia em mais uma das ciências exatas, equivalente a todas as outras ciências físicas. A concepção mais ampla de Marey permitiu que seus experimentos fossem adaptados a outras áreas e com outros propósitos, como no uso particular que ele mesmo fez da câmera fotográfica, transformada em instrumento vital na visualização do movimento.[6]
Acertadamente, os cientistas do século XIX já haviam suspeitado da natureza subjetiva dos sentidos, em especial da visão. Por outro lado, o investimento no desenvolvimento dos aparelhos ópticos estará perfeitamente integrado com o paradigma científico do século XIX, o racionalismo, que vai contrastar com o paradigma anterior, o empirismo, ao recolocar no centro e na medida de abordagem do mundo exterior o corpo do observador, por meio do olhar mediado pelas máquinas de visão. É nesse momento que se relativiza o que é explicado, observado, a partir do próprio observador, tese desenvolvida por Jonathan Crary em 1992, em influente texto que rediscute teses sobre a cultura visual do século XIX. Crary prefere chamar o espectador de observador, dado o perfil aparentemente mais passivo que o caráter de espectador pode assumir, e cria a produtiva expressão corporalização da visão.[7] Lembro também que Chomsky (1998) mostra que os conhecimentos científicos bastavam e poderiam explicar tanto o mundo orgânico como o inorgânico, enquanto Crary acentua a combinação entre olhar e câmera, em que os dois aparelhos se unificam e as imagens estão dentro do corpo. Tal formulação remete-nos à teoria e prática do cineasta soviético Dziga Vertov e sua conceituação bastante engenhosa do kino-glaz ou “olho-câmera”, que, ao elogiar os poderes ilimitados da montagem cinematográfica, dizia: “Eu sou a câmera, eu sou o construtor”.[8]
É nesse sentido que se afirma que o aparecimento de processos mecânicos tão diversos como a fotografia e o eletrocardiograma possibilitava aos médicos a realização mais adequada de um trabalho anteriormente restrito aos cientistas. É claro que a subjetividade do médico nunca desaparecia por completo. Era simplesmente transferida para outros agentes, como esses novos instrumentos. Entre esses outros agentes situava-se, naturalmente, o paciente. Enquanto o diagnóstico durante a era pré-moderna da medicina se baseava fundamentalmente na própria descrição dos sintomas feita pelo paciente, as mudanças na percepção médica criaram um ambiente no qual o olhar do médico era predominante. Com a mudança da medicina clínica para a medicina experimental, o olhar do médico se transferia do local mesmo da “doença”, no corpo humano, para a inscrição mediatizada dos processos corporais. Tais inscrições, como as chapas de raios X, eletrocardiogramas ou gráficos de temperatura, entre outros, tiravam do paciente a autoridade da descrição do local “onde doía” para a interpretação especializada e autorizada do médico. O médico, por outro lado, consolidava sua posição de autoridade na ausência do paciente, ampliando, com isso, a distância entre eles. Como todos nós sabemos por experiência própria, a dor é muito mais fácil de ser encarada quando se esconde sob a textura fria de um papel ou de uma superfície qualquer, fotográfica ou digital.
Se a objetividade também provoca a objetificação, tais máquinas tinham em comum a habilidade de inscrever, algumas vezes de forma invisível, processos de vida num meio legível e visível. E os médicos sabiam disso e valorizavam o cinema exatamente por essa razão. As imagens eram mais fáceis de ser analisadas do que os movimentos “vivos” do paciente. Em verdade, esse cinema científico diz respeito, de forma mais próxima, a uma tradição que está mais afeta aos instrumentos de registro gráfico e de medição, tal como o eletrocardiograma, do que às convenções de representação próprias da fotografia ou do teatro fixadas tanto pelo documentário como pelo cinema narrativo dos primeiros tempos. A imagem cinematográfica era inaceitavelmente ambígua demais, e alguns médicos voltaram a escrever com giz colorido ou lápis de cera diretamente nos corpos dos pacientes, apontando atrofias e isolando sintomas como forma de registrar e descrever sensações efêmeras e perdidas. Por trás desse procedimento percebe-se um raciocínio que, apesar de reconhecer a capacidade do cinema de se aproximar o mais perfeitamente possível do registro gráfico, preferia se sustentar, em primeiro lugar, na criação mesma de uma imagem legível, palpável e passível de controle imediato.[9]
O registro e sua consequente tradução facilitavam, sobremaneira, a troca de informações, afinal tão importante para a consolidação da autoridade médica quanto para a entronização dessa almejada e necessária objetividade. Talvez aqui possamos compreender o relativo fracasso da fluoroscopia, imagem efêmera e transitória que só pode ser reproduzida e exibida bem mais tarde. Num primeiro momento, a correlação das imagens fluoroscópicas só era possível na cabeça do médico, alvo natural de críticas pela possível subjetividade. Ao contrário, a objetividade necessitava de troca. Já qualquer paciente filmado surgia primeiro como um caso isolado, mas se transformava, pela troca de informações, num caso exemplar, não mais um paciente, mas um registro a ser permutado, registro esse que ajudou na classificação de doenças e no treinamento de um olhar especializado. Aqui e ali, os médicos se maravilhavam com o potencial fornecido pelo cinema e sua capacidade de tornar possível a criação de um arquivo visual de doenças, espécie de atlas cinematográfico do normal e do patológico.
O que se coloca em questão aqui, e que me interessa em particular, é tentar compreender os diferentes modos pelos quais tanto o cinema como também a cultura visual médica trabalham o corpo, muitas vezes como um espetáculo. Ambos celebram simultaneamente um prazer aliado à curiosidade pelo corpo humano. Na etimologia da noção de curiosidade encontramos o termo em latim curiositas, desejo de exploração mapeado no desejo dos olhos, sentido, afinal, que encontramos embutido na ideia de espetáculo. Um desejo de encontro que desemboca no fascínio pelo ver, uma atração perceptível por lugares, coisas, objetos ou pessoas que, consequentemente, constroem o espetáculo. Uma noção clara de espetáculo que podemos encontrar em diversas representações da “lição de anatomia”, uma configuração espacial que também é precursora do cinema em algumas instâncias. Penso, em especial, na arquitetura específica das salas de aula de anatomia nos cursos de medicina, com os alunos posicionados como espectadores, inclinados em diagonal em torno de uma distribuição espacial bastante próxima daquela das novas salas do tipo stadium encontradas pelos multíplex mundo afora. Na situação clássica da aula de anatomia, o “ver” não era logicamente direcionado apenas a coisas bonitas, produzindo atração também pelos lados mais sombrios do visível.
Tanto o “espetáculo” da lição de anatomia como o cinema possuem, como terreno comum, o discurso da investigação e da fragmentação do corpo. O espetáculo da lição de anatomia revela um impulso analítico, uma obsessão pelo corpo, pelas partes do desmembramento em que recai a ênfase, a atenção detalhada. Esse desejo analítico também está presente na linguagem do filme, inscrito na construção semiótica do cinema, em sua decupagem, termo, afinal, que pode ser tomado ao pé da letra, como um processo de “dissecação” da narrativa de viés clássico em planos, cenas e sequências, estendida às técnicas de enquadramento e, em especial, ao processo de edição, que, em português ao menos, era chamado, até antes da edição linear digital, literalmente, de corte — em inglês também se usa o cut —, afinal, um processo que não é outra coisa senão a construção de corpos no espaço. Gostaria aqui de lembrar também a noção apropriada de sutura, conforme utilizada tanto por uma teoria contemporânea do cinema como, tradicionalmente, pela medicina, ao definir a prática de costura pós-operatória.[10] Parece-me, ainda que de forma bastante intuitiva, haver muitas semelhanças entre o olhar anatômico, próprio da medicina, e o olhar cinematográfico, no sentido em que ambos dissecam o corpo, movimentando-se por ele em profundidade, mergulhando no espaço, atravessando-o. Essa forma corpórea de visualidade molda os efeitos de prazer proporcionados pelo aparato cinematográfico. A invisibilidade visível que existe na “lição de anatomia” está na base do aparato cinematográfico, conforme teorizado por Baudry ao explicar a ilusão de continuidade na imagem em movimento existente na relação de velocidade fotograma-câmera-projetor e também no espaço de recepção (a arquitetura da escuridão, que possibilita a visibilidade fílmica) e na (in)visibilidade da dinâmica do espetáculo inscrita textualmente como ponto de direcionamento. Baudry indicou muito bem quanto o aparato cinematográfico é construído em cima dessa geografia do visível/invisível.[11]
Ao construir espaços de luz e sombra, escuridão e visibilidade, o texto cinematográfico transforma o corpo humano e o corpo das coisas numa geometria de formas, superfícies, volumes, texturas e linhas, numa relação epistemológica entre o olhar cinematográfico e o olhar da anatomia. Ao articular anatomias do visível, tanto o cinema como a lição de anatomia aproximam tudo espacialmente. A genealogia analítica do cinema descende, de certa forma, de uma fascinação anatômica distinta pelo corpo, por sua fragmentação e pela superexposição ampliada numa tela de cinema, conforme explica o fascínio prático e teórico pelas possibilidades ilimitadas do rosto humano fotografado em close-up.[12] Trata-se de um desejo corpóreo, encontrado, de maneira forte, nos primeiros filmes, obcecados por atos e performances sobre o corpo, mostrando, com um realismo até então inédito, o corpo caminhando, correndo, dançando, lutando, trabalhando, levantando-se da cama, dando um espirro etc. Tal obsessão realizou-se basicamente de duas maneiras distintas, inscritas no cinema desde o início da história das imagens em movimento, ou seja, com a natureza mágica de um Georges Méliès (que desmembrava o corpo e o fazia levitar), ou a natureza científica de um Muybridge, que dissecava e analisava o corpo em movimento. Em alguns momentos do cinema, testemunhamos o encontro dessas duas formas justificadas pela exacerbação do espetáculo voyeurista em exemplos genéricos que se filiam à ficção científica, como em Viagem fantástica (Fantastic voyage, de Richard Fleischer, 1966) ou em Viagem insólita (Innerspace, de Joe Dante, 1987), dois filmes que narravam de forma espetacular diferentes viagens pelo interior do corpo humano. A filmografia, no entanto, é extensa e inclui, em especial, a diversidade dos chamados “filmes científicos”, que também transformavam o corpo humano em narrativa, apesar de se situarem, com pretensa isenção, no domínio do filme de não-ficção.
O corpo como atração encontra-se assim presente desde os primórdios do cinema, constituindo-se em sua maior atração, conforme o termo empregado por Tom Gunning (1955).[13]
Desde os primeiros tempos, o cinema foi antropomórfico, materializando na tela imagens do corpo humano que agradavam aos espectadores. A história do cinema demonstra quanto buscamos prazer ao ver o corpo humano projetado numa tela, quanto nos identificamos com esse duplo projetado.
Todos os estudos de fisiologia que culminaram no registro do movimento acabam criando um indivíduo capaz de satisfazer as exigências de produtividade do sistema econômico, do capitalismo resultante da Revolução Industrial, ou seja, a necessidade de um controle mais aperfeiçoado na coordenação entre olho e mão, na atenção dirigida, no tempo de reação — necessidades fundamentais exigidas na adaptação às tarefas mais racionais de produção das estruturas de trabalho. Aqui antecipamos a figura-chave do robô, ponto de interseção privilegiado entre o homem e a máquina, na criação de um duplo.
A visão dissecada da fragmentação do movimento do corpo humano conforme efetuada por Marey e Muybridge pressupõe uma relação mecanizada, intermediada pela máquina, em qualquer um desses aparelhos ópticos do período pré-cinema. E, por meio da magia e não do simples registro, Georges Méliès nos introduziu no gênero-chave na construção de corpos-máquina, a ficção científica. É ele o pioneiro na manipulação e construção de novos mundos, em filmes como Viagem à Lua (1902) ou, ainda antes, A Lua a um metro (1898), ou títulos como, numa extensa filmografia, A estátua animada (1903) ou A conquista do polo (1912).
Em seu conjunto, o legado de Méliès nos introduz em um repertório básico da ficção científica, completo em suas imagens fantásticas e generosas em aparições, desaparições, truques e transformações de todos os tipos, que visualizaram, pela primeira vez em movimento e com realismo, viagens interplanetárias, monstros, selenitas, objetos futuristas. Ou seja, materiais próprios de um território especial e único, o cinema. Méliès e seus contemporâneos encontravam-se no limiar de uma atitude emergente na época, rigorosamente moderna com respeito à realidade, o que hoje chamamos mais facilmente de “realidade como um jogo”.[14] Em vez de utilizar a câmera para o registro da realidade, afinal, uma atitude mais científica e condizente com a época e com as origens do próprio cinema, Méliès optou por construir novas realidades de acordo com o que lhe permitiam a imaginação e a fantasia da época, presentes nos esboços narrativos de seus primeiros filmes. Ele próprio surgia diante dos espectadores experimentando as diferentes possibilidades da representação fantástica, desmembrando sua cabeça do corpo e colocando-a em cima de uma mesa para, em seguida, inflá-la com ar, como no filme O homem com a cabeça de borracha (1902). Seu interesse concentrava-se não apenas na criação de novas realidades, mas também na investigação dos diferentes tipos de jogos permitidos pela câmera e suas possibilidades lúdicas de relacionamento com a natureza do mundo e seus habitantes. Os filmes de Méliès surgiam em oposição à realidade, ao mundo que tínhamos à nossa volta e, por isso mesmo, eram, efetivamente, cinema. Em sua exploração inédita das diferentes possibilidades do artificio, esses filmes se localizavam para além da superfície da vida, permitindo ao seu criador a descoberta simultânea de uma das grandes atrações do cinema e também de um de seus problemas, uma vez que, com essa habilidade extrema de construir qualquer mundo, incluindo aí seres humanos e outros seres, se denunciava, também, o próprio limite do artifício, ou seja, a consciência de que este não era, de forma alguma, o mundo em que vivíamos, era apenas cinema e nada mais. Um século de cinema depois, com as imagens televisivas dos ataques terroristas ao World Trade Center, testemunhamos, inversamente, uma relação inescapável entre alta tecnologia, efeitos especiais e a espetacularização perversa da realidade. No período de formação do cinema, entretanto, são comuns os filmes que mostram a criação de seres humanos ou sobrenaturais, visualizando todo tipo de transformação, incluindo a investigação da possibilidade concreta da materialização de autômatos e robôs, figuras já familiares ao universo de Méliès. Proprietário e administrador do célebre teatro de mágicas Robert-Houdin, em Paris, a partir de 1888, Méliès conhecia os dois robôs que entretinham a platéia do teatro, chamados Psycho (Psicose) e Zoé. O primeiro usava um apito para chamar a atenção, enquanto Zoé, robô-mulher, desenhava perfis dos espectadores.[15]
O cinema dos primeiros tempos já é pródigo na representação de seres sobre-humanos, artificiais ou não. Thomas Edison é o primeiro a adaptar o clássico Frankenstein, de Mary Shelley, em 1910. A criação em laboratório de seres superdotados cuja malevolência só é interrompida graças a algum fenômeno de ordem natural, como um raio, foi desenvolvida no seriado alemão Homúnculos (1916). Nessa linha, existe também um bom número de filmes que giram em torno da criação de seres humanos a partir de animais, criaturas que, a exemplo de Frankenstein, se voltam muito facilmente contra seus criadores, como acontece na primeira adaptação do clássico de H. G. Wells, A ilha do dr. Moreau, intitulada Island of Lost Souls (direção de Erie C. Kenton, 1933). Também é desde o período mudo que encontramos atitudes ambíguas em relação a transformações científicas, no gênero que combina ciência com horror, como na adaptação de 1920 de O médico e o monstro, com John Barrymore. Simultâneo ao horror, a comédia sempre coexistiu com o cinema de transformações mágicas e efeitos especiais, combinando em relação de causa e efeito a surpresa com o riso. São inúmeros os exemplos em que, calcados no suposto realismo da imagem cinematográfica, se posiciona uma máquina por onde passam os cachorros e saem as salsichas, ou na qual se entra gordo e feio e, num passe de mágica, se sai magro e belo. Tais máquinas podem, igualmente, transferir a personalidade de uma pessoa para outra, além de promover um processo de regressão em que adultos voltam a ser crianças, como em The rejuvenators (1918).
Mais especificamente voltado para os mistérios dos robôs, existe uma extensa linhagem de filmes que materializaram essa identidade homem-máquina. Méliès não estava sozinho e, como o assunto era popular, seu competidor inglês que vivia em Nova York, J. Stuart Blackton, fez sucesso em 1907 com um filme intitulado A estátua mecânica, atiçando ainda mais a concorrência e criando uma espécie de subgênero do cinema fantástico, do qual os principais produtores da época não conseguiram escapar. Títulos sugestivos como O marido mecânico (1910), A casa automatizada (1915), O homem mecânico (1915) ou mesmo O segredo do inventor (1911), dirigido por Mack Sennett sob a supervisão de D. W. Griffith, apresentando uma garota mecânica, antecipam, de forma eloquente, o que viria a ser conhecido, nas décadas seguintes, como a era da máquina.
Estendendo-se pela década de 1930, esse período de celebração da máquina fixava o impacto da modernização, das novas tecnologias e dos novos princípios científicos e, principalmente, de uma maior difusão de valores utilitários que começaram a dominar as esferas do comércio e da produção. No campo do conhecimento, tal período resulta numa consciência de uma nova era mecânica, conforme celebrado pelas vanguardas, em especial no contexto revolucionário do construtivismo soviético. Junto com a glorificação dos ideais de velocidade, eficiência e produtividade, trazida pelas máquinas, surge também uma visão mais ambígua e menos celebradora, na qual esses novos ícones de uma sociedade de consumo afluente, como o carro, o rádio ou a máquina de lavar roupa, também passaram a representar um poder desestabilizador e incontrolável, com promessas de ansiedade. Se existe um filme que vai trazer essa visão distópica com força total e propor uma síntese dessa desconfiança é o clássico de Fritz Lang, Metrópolis, de 1926. Ali está, com certeza, a imagem mais completa jamais concebida de um robô, certamente o mais famoso do período mudo do cinema. E, também de forma ambígua, encontramos no filme de Lang, para além do poder da tecnologia, a investigação das ansiedades e tensões que se escondem por baixo das superfícies sedutoras desse fascínio tecnológico. Perturbador em todos os sentidos, Metropolis parece sempre falar numa espécie de voz dupla: de um lado, as desastrosas consequências de uma sociedade completamente submissa às forças da produção e da tecnologia; de outro, o filme encontra muito de seu fascínio e apelo exatamente na visão e na construção dessas forças, ou seja, no poder sedutor das imagens de uma sociedade altamente tecnológica. De discussão inesgotável, Metropolis até hoje serve de referência tanto pela importância e pelo imediatismo de seus temas — a questão da opressão e das forças econômicas mostradas em suas imagens — como por suas características puramente visuais, de superfície e textura cinematográficas, como a imponência de seu décor futurista, até hoje copiado em exemplos os mais diversos, como Blade runner, o caçador de androides (1982), ou, ainda, as diversas sequências de Batman.
Talvez essa tensão possa ser encarada como o elemento mais revelador desse filme ao manter uma simetria com toda uma tradição da ficção científica que se “rebela”, “critica”, se posiciona com atitudes contrárias, voltadas diretamente para elementos da tecnociência que lhe dão forma e identidade. Numa espécie de voz dupla, o filme questiona o artifício, as estruturas do artifício, o poder tecnológico exercido sobre todos nós, mas também “fala” e celebra o cinema de ficção científica, as formas sob as quais esse gênero, desde os seus primórdios, nos fascina e exerce grande influência e poder sobre os espectadores. Sedução parece ser a palavra certa, no sentido utilizado por Baudrillard: um discurso manifesto, seu lado mais superficial, que age sobre uma proibição subjacente, consciente ou inconsciente, de maneira a negá-la, substituí-la pelo charme e pelo truque das aparências.[16] Tais truques ou tal charme são as imagens de uma tecnologia poderosa e fascinante, que se torna completa com a figura do robô. Daí que o filme parece muito consciente desse nosso “desejo” em relação ao desenvolvimento tecnológico, ao mesmo tempo denunciado pelo próprio filme. Lang parece antecipar esse sentido de sedução definido por Baudrillard quase literalmente: o superficial, o “discurso manifesto” corporificado na cidade alta, situada na superfície de Metrópolis, onde a personagem de Freder (Gustav Froehlich) está sempre tentando descobrir o que está por trás e por baixo, com várias sequências que dramatizam e mostram as operações do poder tecnológico, simultaneamente sedutor e destrutivo.
A sequência da criação do robô Maria é a mais eloquente. Tal padrão aparece aqui com toda a sua força quando é evocada exatamente a imagem da duplicidade — a imagem da interrelação entre o natural e o mecânico, entre a mulher e a máquina, ela mesma a própria corporificação da sedução. Nessas sequências o filme consegue falar, de forma reflexiva, das contradições, da duplicidade e das intenções de seu próprio discurso, assim como do poder de sedução sobre o qual, em princípio, todos os filmes de ficção científica são construídos. O filme todo, mas em especial essa sequência, esbanja em excesso uma espécie de ideologia formadora do gênero e que se traduz numa exibição cada vez mais elaborada de tecnologia, de acordo com o tamanho e a generosidade dos orçamentos, prometendo prazeres visuais e ao mesmo tempo escondendo os segredos de suas operações, a fonte, a origem do poder.[17] Parece haver, de forma exagerada e excessiva, uma preocupação obsessiva com as aparências, traços também definidores do gênero da ficção científica, espécie de construção radical de diferenças com o nosso mundo contemporâneo, como o branco excessivo da primeira parte de 2001: uma odisseia no espaço (1968) ou o seu contrário, a atmosfera escura, sombria e altamente poluída de Blade runner, o caçador de androides. Claro que tais contrastes sempre carregam consigo um valor metafórico, ao passo que a fascinação em Metrópolis se encontra mais no poder e na vitalidade da tecnologia, em que, desde a abertura do filme, se destacam as máquinas, os geradores, os pistões, as prensas e caldeiras e os operários mecanizados, vistos como extensões da própria engrenagem, numa composição muito próxima daquela que, seis anos mais tarde, poderia ter inspirado Diego Rivera na execução dos monumentais murais sobre a indústria automobilística de Detroit.[18] Em ambos, o ser humano transforma-se numa peça da engrenagem mecanizada, o que é acentuado por semelhanças como a quase ausência de cor dos tons cinzentos e azulados que recobrem igualmente homens e máquinas. Tanto nas fábricas de Detroit como em Metrópolis a arquitetura das máquinas gigantescas confunde-se com a própria fábrica, a cidade e o corpo onde coração e músculos são as máquinas e os geradores, ao passo que ruas, pontes e viadutos formam as artérias e a cabeça é a grande torre de onde o líder empresário Jon Fredersen (Alfred Abel) comanda suas operações. Na sequência de apresentação do robô, à medida que Rotwang (Rudolf Klein-Rogge) revela o ser mecânico, ele mesmo fascinado com sua última criação, o descreve como “uma máquina feita à imagem do homem, mas que nunca cansa, nem erra”, e, oferecendo-o ao empresário, conclui que “agora não precisaremos mais de trabalhadores vivos”, indicando, com clareza, o temor e a ansiedade introduzidos pela ameaça da substituição que nos atemoriza até hoje. Essa imagem do robô humanoide está profundamente enraizada no imaginário ocidental, em que o medo da substituição se encontra presente numa espécie de resposta psicológica dotada de uma história complexa que só um estudo maior do mito, da literatura e do próprio cinema pode nos ajudar a entender, junto com nossas possibilidades de resposta concreta à materialização de um ser parecido conosco.
Também em consonância com o filme de Lang, no qual a engrenagem monumental da máquina se metamorfoseia no deus Moloch, Rivera, ao representar uma das máquinas de prensagem utilizadas na fabricação de automóveis, faz referência à deusa asteca Coatlicue, entidade ligada à criação e à guerra, buscando um paralelo com a função cósmica daquela deusa que, usando seu enorme poder, criou a humanidade em troca do sacrifício humano necessário para a manutenção de uma ordem universal. Mas a figura do robô também passou por transformações. Em oposição aos vilões, à Maria de Metropolis ou ao invencível guarda-costas Gort de O dia em que a terra parou (1949), essas representações de ameaça cedem lugar, às vezes, ao revisionismo perpetuado pelos simpáticos R2D2 e C3PO da série Guerra nas estrelas ou, mais recentemente, à encarnação melíflua de um Robin Williams em O homem bicentenário (2000), cuja matriz pode ser encontrada no pequeno Robby, da década de 1950.[19] Robby era o protótipo do robô bonzinho, introduzido no filme O planeta proibido (Forbidden planet, dir. de Fred McLeod Wilcox, 1956), num momento tardio da ficção científica, pós-Guerra Fria, período em que invasões alienígenas, mutações e criações também robóticas colocavam em xeque questões políticas bem mais próximas, que dramatizavam problemas do simulacro, do hiperreal. A máquina no pós-guerra torna-se uma figura dócil, não ameaçadora, em geral utilitária, cuja função, pelo menos superficialmente, era relativizar a tecnologia diante das narrativas anteriores, que privilegiavam a devastação atômica, as invasões alienígenas ou as mutações humanas. Robby trazia implantado em seus componentes um dispositivo que lembrava os três mandamentos da lei básica da robótica segundo Isaac Asimov:
- um robô não pode ferir um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal;
- um robô deve obedecer às ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que tais ordens contrariem a primeira lei;
- um robô deve proteger a sua própria existência, desde que tal proteção não entre em conflito com as duas primeiras leis.[20]
Entretanto, tais mandamentos foram diversas vezes desrespeitados, com consequências, em geral, desastrosas para o ser humano. Algumas vezes o robô merecia a punição máxima, o seu desligamento, como acontece com HAL em 2001: uma odisseia no espaço. Outras, ele entra em conflito corpo a corpo com o ser humano, e suas partes, desmembradas, ganham sempre uma espécie de sobrevida, em especial as mãos e a cabeça, como acontece no primeiro Alien, o oitavo passageiro (Alien, dir. de Ridley Scott (1979).
Robin Williams, em O homem bicentenário, também faz o tipo bonzinho e prestativo, além de engraçado e quase mágico, ou seja, tudo o que torcemos para que sejam, efetivamente, nossas criações tecnológicas. Em última instância, ele representa a quintessência do aparelho utilitário doméstico, espécie de etapa final na evolução das tecnologias domésticas. Sempre uma imitação, apesar de ter poderes sobre-humanos, Williams é centrado no ser humano e, efetivamente, encontra-se sob controle do homem. Duplo dos mais perfeitos, ele almeja a semelhança total com o corpo humano, materializada no filme numa sequência em que a ênfase recai sobre a mão e a cabeça humanas, comparadas com uma personagem humana diante de um espelho voltado, naturalmente, para o espectador. Ainda assim, como um duplo, ele carregará, sempre, conotações positivas e negativas, insinuando uma sutil ameaça. Como questão radical, fica sempre a sugestão de que, pelo menos, algumas funções humanas já foram substituídas, mas qual será o limite? E, se uma função pode ser substituída, por que não todas? Trata-se de uma presença sempre preocupante por causa da duplicidade, do simulacro que força, diante do espelho, a busca da semelhança. E que traz inquietação ao sugerir, no fundo, a facilidade com que nós podemos ser substituídos por alguma outra coisa ou, talvez, sermos, de verdade, considerados obsoletos, irrelevantes para o funcionamento do mundo. Entre a imagem mais antiga do autômato e essas criações, digamos, pós-modernas, encontra-se a diferença entre a analogia com o humano e a equivalência. O homem bicentenário faz essa passagem, pois é na equivalência que o autômato efetivamente absorveu todo o sentido da diferença e, nesse processo, revela o problema com a fascinação anterior pela imitação.
No redundantemente visionário Futureworld (dir. de Richard Heffron, 1976), cria-se uma máquina que permite acesso direto ao cérebro — narrativa já trabalhada anteriormente por Alain Resnais no menosprezado Eu te amo, eu te amo (1968) —, espécie de câmara de sonhos que pode reconverter as ondas de pensamento nas imagens criadas pelo cérebro e, consequentemente, transformar os sonhos individuais em espetáculos públicos, amplamente exibidos no parque temático do título original do filme. Tais imagens são passíveis até mesmo de gravação para exibição exterior. Tudo aquilo que a gente reprime, internaliza, guarda para si pode, por intermédio da máquina, ser exteriorizado e monitorado. Em resumo, não mais existem espaços privados, lugares para onde você possa escapar. Tal nível de transparência, antecipando em quase três décadas a profusão dos chamados reality shows da televisão mundial — aqui representados pela histeria popular em torno de programas como No limite, Casa dos artistas e Big Brother Brasil —, parece ter como um de seus propósitos maiores, além da objetificação, o domínio por meio da tecnologia. Na medida em que, mais que os robôs, as pessoas são transparentes, o mundo passa, então, a ser visto de dentro para fora, tornando-se um espetáculo público em que a realidade é elusiva, efêmera.
Entre as décadas de 1930 e 1950 parece haver um caminho que leva, gradualmente, ao abandono do corpo, no qual o sonho da tecnologia é refazer o corpo, numa espécie de desencarnação, como aparece em filmes próximos e clássicos como Frankenstein (1931) e O homem invisível (1933). Vivencia-se um período intermediário com certa ênfase no horror da própria experiência científica, em especial, tomando o corpo humano como cobaia. A questão do significado de criar um ser humano — e, naturalmente, da definição da própria vida — ganha hoje mais relevância diante de realidades cada vez mais concretas, como os direitos ao aborto, da inseminação artificial, da engenharia genética, da clonagem humana reprodutiva e terapêutica. Já deciframos o código genético, sequenciamos o genoma e, a cada dia, o ser humano vai se transformando num objeto que pode ser conhecido, dissecado de fora para dentro, manipulado, alterado, transformado e moldado de acordo com os nossos desejos, um tipo de deus protético, como já dizia Freud.
Como observamos, a ficção científica no cinema tem chamado atenção, desde seu início, para a natureza problemática do ser humano e a tarefa difícil que é ser humano. Ao mesmo tempo que as certezas sobre nós mesmos se tornam cada vez mais efêmeras, o mesmo acontece com o agir de forma humana. A ficção científica enfatiza o artifício em seu sentido mais amplo, pois, na criação da ciência, da tecnologia, dos mecanismos mais variados, o que se glorifica é o artifício, com um fascínio absoluto pelo nosso próprio nível de construção. Assim, a ficção científica, em geral, vem nos acostumando a apagar continuamente as distinções entre vida e artifício, entre o natural e o artificial, ao mesmo tempo que interpela essa mesma fronteira difusa. Esse cinema tem também colocado questões relevantes a respeito de algumas ansiedades contemporâneas, alimentadas em especial por novos conhecimentos adquiridos a respeito de nossas próprias habilidades em criar novas formas de vida, decodificar e alterar padrões genéticos e, consequentemente, de destruir a própria vida. Junto com o fascínio pela tecnologia, a ficção científica também promoveu a associação de ciência e tecnologia com o desastre. Nesse sentido, Metrópolis volta a ser um filme emblemático, que, apesar do fascínio inerente ao gênero, e do enorme investimento em tecnologias cada vez mais sofisticadas de efeitos especiais, se resguarda, sempre, de uma adesão completamente irrestrita a essas especulações fascinantes em que civilizações futuras e utópicas logo revelam seu caráter distópico.
O cinema mais contemporâneo tem desenvolvido uma obsessão com o reposicionamento e a redefinição do que é humano, da imagem problemática do que é ser humano. Nas últimas três décadas, por exemplo, as telas têm sido dominadas por imagens e representações variadas desse duplo que pode ser um robô, um androide, um cyborg, um replicante, um novo ser qualquer, híbrido. Filmes seriados como RoboCop (dir. de Paul Verhoeven, 1987) ou O exterminador do futuro (em suas duas versões, dirigidas por James Cameron em 1984 e 1991), ou, mais recentemente, Inteligência artificial (dir. de Steven Spielberg, 2001), refletem não só os medos e as inquietações ou as esperanças em torno desse mundo em expansão que é a robótica e a inteligência artificial, mas também uma atenção e uma consciência crescente diante de nossos próprios níveis de artificialização, ou construção. Ou seja, diante do fato inexorável de como também parecemos cada vez mais controlados por um tipo de programa não muito distante daquele que impulsiona os seres artificiais que habitam o cinema atual. É provável que nossa consciência e nosso conhecimento detalhado dessas ansiedades possam, com certeza, nos ajudar na redefinição do que seja humano, numa adaptação a esse futuro cada vez mais presente.
Entre os primeiros robôs e estas últimas invenções tecnológicas, transformam-se em narrativas, popularmente, as conquistas da engenharia genética, com a criação de seres programados, completamente semelhantes aos modelos humanos e com a determinação clara de tomar o nosso lugar no mundo exterior, como os replicantes de Blade runner. Estamos já numa fase de aliança crescente do tecnológico com o corpo, baseada no desenvolvimento de próteses mais sofisticadas, partes substituíveis, sistemas mecânicos de apoio, além da inserção definitiva da robótica no trabalho, esta sempre carregando consigo a inquietação da ameaça de substituição. Esse excesso de novidades, de imagens do artifício, do tecnológico, torna-se comum para o desenvolvimento e a aceitação de um novo tipo de anatomia do humano — uma anatomia cinematográfica que explora novos níveis diferentes de construção do artificial e que revela quanto somos controlados por um tipo de programa internalizado, não muito distante daquele que impulsiona os seres artificiais que habitam os filmes. O primeiro RoboCop apresenta um futuro sombrio em que a necessidade dos indivíduos é mediatizada pela publicidade, bem de acordo com um planejamento corporativo e pós-capitalista, regulado por uma força privada, computadorizada. Cidadãos e policiais são meros dados econômicos, personagens completamente manipulados tanto pelo submundo do crime como pelo capitalismo corporativo. De todos os filmes citados até agora, este talvez seja o mais emblemático, literalmente, da noção de homem-máquina. Numa versão bem mais complicada para um dilema de identidade, o RoboCop do título é um policial que fica em frangalhos após um acidente e que tem partes de seu corpo, na verdade quase todo o corpo, reconstituídas como matéria restituível, recomposta mecanicamente. Tais partes são substituídas por equipamentos biônicos. Com isso ele se transforma num super-herói, corporificando uma aliança perfeita entre técnica, ciência e iniciativa privada, celebrando a eficiência de uma sociedade capitalista pós-industrial que provoca, no espectador, uma espécie de reconhecimento. Trata-se de uma identificação com os esforços canalizados em prol da manutenção de uma noção hegemônica de paz, de verdade e de outros valores morais, como respeito aos mais velhos e à propriedade privada. Como um cyborg, sua identidade precisa ser reavivada a partir de sua própria memória de policial comum, um tipo qualquer interpelado pela mídia, por programas de televisão e pela publicidade, imagens que pontuam todo o filme. Mas, quando ele é o RoboCop, já se trata de um produto que a indústria quer colocar no mercado, espécie de corpo híbrido, sujeito público, definido por um programa específico e dotado de um lugar no crescente mercado da segurança pública e privada. Ele passa a corporificar, talvez de forma exagerada, um tipo de identidade humana prevista num futuro mais próximo do que gostaríamos, ou seja, uma identidade determinada e manipulada por interesses corporativos privados e governamentais, programado pela voz da mídia. Menos de vinte anos depois desse filme, em programas claramente mercadológicos e de pretensa divulgação científica veiculados pelo canal a cabo Discovery, já se anuncia como mercadoria contemporânea uma espécie de robocop vigilante (mais máquina, entretanto, do que homem, sem o visual futurista do qual a ficção anterior o dotou), além de diversos sistemas de vigilância calcados em pesquisas que retomam dos velhos raios X a possibilidade de visualização de interiores, sejam eles orgânicos ou não.
Importantes nessa espécie de breve quadro evolutivo são os dois exemplares de O exterminador do futuro, encenando narrativas num momento futuro em que os seres humanos praticamente já desapareceram. Há diferenças entre os dois filmes e seus personagens, apesar de ambos lançarem mão do valor icônico de Arnold Schwarzenegger como herói de ação dentro da dinâmica própria desse tipo de filme de aventura. No primeiro filme a personagem é um vilão, apenas máquina, espécie de chassis-geringonça cuja mão, uma vez mais, tem vida própria e, desmembrada, ainda é capaz de causar muito estrago. No segundo filme a personagem é boa e administrável. O mau é uma espécie de robô bem mais avançado, de outra geração, e não se pode ver seu interior. Ele é todo superfície, carregando um nível maior de complexidade, à medida que vamos nos acostumando rapidamente com novas tecnologias. Visualmente indistinguível do ser humano, sua textura é a projeção dos efeitos de um mundo cada vez mais tecnológico, povoado de cyborgs avançados e apresentando um corpo completamente variável, enganoso e regenerativo, com trânsito livre até mesmo entre gêneros sexuais e objetos. Da mesma forma que o policial-cyborg pode se metamorfosear em mulher, parte de seu braço pode imitar uma faca, apontando para a amorfia do corpo numa era pós-biológica. Com a tendência contemporânea de reduzir tudo a superfícies visíveis, numa obsessiva busca de superexposição, o filme traz consigo uma questão ainda relevante que problematiza a distinção entre o real e o simulacro, questão que também nos remete à clássica especificidade da imagem fotográfica e cinematográfica diante da chamada realidade pró-fílmica, vis-à-vis as novas tecnologias de visualização digital, criadas em computadores e que sepultaram a presença dessa mesma realidade.
Finalmente, o canadense David Cronenberg, que em todo conjunto de seus filmes fixa obsessivamente o corpo como representação, filmes que articulam, simultaneamente, uma política, uma tecnologia e uma estética da carne, visceral, perturbadora e francamente desconfortável. Autor visionário, enigmático e dono de marcante coerência temático-narrativa, seu filme eXistenZ (1999), assim como seus anteriores, trata dos pesadelos da alma e do imaginário com o futuro humano, quase sempre de forma radical.[21] Mesmo em filmes que parecem compor um panorama à parte, como M. Butterfly (1993) ou Mistérios e paixões (Naaked lunch, 1992), alucinações e questões de conflitos de identidade e individualidade são uma constante. Mais recentemente, contudo, e falando da coerência mencionada, o conjunto de seus filmes tem apontado para questões que dizem respeito à posição do sujeito na era eletrônica, como a interface da tecnologia com o ser humano ou as “novas” formas ontológicas que se apresentam ao indivíduo por meio da tecnologia, redefinindo uma outra “realidade” repleta de seres e paisagens virtuais. Nesse contexto, algumas perguntas óbvias que surgem são: o que passa a significar “existir” no mundo a que estávamos habituados? e em que “mundo” passamos a “existir”?
Pode-se dizer que eXistenZ é descendente direto de Videodrome (1983), tanto na temática como em sua dimensão textual. Ambos dirigidos e roteirizados pelo próprio Cronenberg, são repletos de diferentes níveis de referências, loops narrativos, percepções, estados alterados e “realidades” dentro de realidades.[22] A questão central nesses dois filmes parece tratar do que o professor Scott Bukatman chama de identidade terminal: uma inquietação contemporânea que provém de uma possibilidade palpável do fim do sujeito e o surgimento de uma nova individualidade construída na tela do computador, da televisão ou do videogame, em simbiose inescapável com a máquina.[23]
Videodrome e eXistenZ são filmes que se alinham à crítica de uma realidade gerada pela tecnologia, já tradicional a partir do pós-guerra e representada por autores como Lewis Mumford, Hans Magnus Enzensberger, Joshua Meyrowitz, Jean Baudrillard, Donna Haraway, Régis Debray ou Stephanie Mills. Particularmente em relação ao cinema, esses dois filmes realçam as transformações geradas por nossa relação com a biotecnologia e pelo discurso da mídia contemporânea. Referem-se a um apagamento de fronteiras de gênero e de suportes tecnológicos de informação, ou entre cultura de elite e cultura popular, entre o real e o imaginário e, principalmente, entre formas hegemônicas e experimentais de representação audiovisual. Na era dos seres de proveta, cyborgs, clones, pele artificial, proteína animal aplicada em chips e realidade virtual, o cinema de Cronenberg dramatiza uma espécie de espaço de acomodação a uma nova existência tecnológica, exibindo o corpo em sua materialidade primordial e crua. Por meio de uma habilidosa combinação de linguagem, iconografia e narração, o choque do novo é simultaneamente estetizado e investigado. O espectador desse jogo acaba habitando — e habituando-se a — um mundo repleto de alterações cognitivas e figurações poéticas, que refletem suas próprias configurações sociais, tais como estas vêm sendo construídas e modificadas pela tecnologia da engenharia genética de ponta. São filmes que, em sua maioria, provocam um curto-circuito na lógica social da informação e da representação, colocando em xeque essa lógica, de volta a suas condições afetivas e fisiológicas. Obras que sugerem que essas novas biotécnologias do capitalismo pós-industrial, longe de apagarem nossa experiência do corpo, de fato aumentam essa experiência ao investirem o corpo de usos novos e intensos. É nesse sentido, por exemplo, que a máquina inventada pelo cientista Seth Bundle (Jeff Goldblum) em A mosca (1985) é típica, pois ostensivamente efetua o teletransporte, uma fantasia pós-moderna por excelência que permite a transmissão instantânea, de um lugar a outro, sem os inconvenientes do movimento corporal e da passagem do tempo. Como o filme se alinha a uma visão distópica da biotecnologia, tudo dá errado e, muito além de negar os limites de distância e de duração, a tal máquina acaba implantando a diferença e a demora, inscritas diretamente na carne, no corpo do cientista. Todo o processo de transformação ocorre no corpo do cientista que cruza o abismo enorme que separa o humano do inseto, num processo doloroso e lento de aflição e sofrimento corpóreo.
Além desse filme e dos outros dois já mencionados, produções anteriores como Scanners — sua mente pode destruir (Scanners, 1981) ou Gêmeos, mórbida semelhança (Dead ringers, 1988) já enfocavam a crise da coerência humana, a alteração de identidade em consequência da vida contemporânea e da introdução das novas tecnologias. O espaço narrativo nos filmes de Cronenberg produz uma complexa função metafórica na medida em que a expressão, ou o desejo, do corpo é espacializada e interpelada pelas forças do espetáculo num jogo dialético de prazer e repulsa e numa tendência quase obsessiva em querer ver e mostrar aberrações, anomalias, cortes, feridas, reentrâncias e vísceras. No texto cronenberguiano a ênfase está na figuração do corpo como local de conflito psicossexual, social e político. Estamos diante de filmes em que não mais se dramatiza a dualidade corpo-mente, e sim uma realidade tricotômica de corpo, mente e máquina. O corpo é tão vulnerável que é facilmente absorvido e controlado pela tecnologia, tornando-se flexibilizado em sua matéria e transformado em mero invólucro de uma subjetividade que não mais lhe pertence como indivíduo. Esta lhe é introduzida pela tecnologia, como o espírito que controla o corpo do médium na possessão espiritual.
Para Cronenberg, a tecnologia pode gerar possibilidades que oscilam entre o grotesco e o irônico na relação do corpo com o objeto inorgânico. Algo muito diferente do cyborg a que nos acostumamos, que se faz à imagem do ser humano e tenta reproduzir as formas originais ditadas pela natureza. Em Videodrome ou eXistenZ, corpo e objeto fundem-se de maneira estranha, às vezes repulsiva, desconsiderando a busca da cópia do modelo natural. Aqui, o diretor parece parodiar seu conterrâneo e conhecido estudioso da comunicação Marshall McLuhan (1994), na literalização do objeto como extensão orgânica ou na prerrogativa do meio em tornar-se o próprio significado e, como tal, a significação do sistema. Processos biológicos e mentais ganham, simultaneamente, dimensão espácio-temporal. A topografia da mente ganha uma espacialização literal.
eXistenZ radicaliza o que já era apresentado por Videodrome, ou seja, a redução da experiência humana a uma espécie de simbiose com a mídia. Em sua alucinação, o personagem Max Renn (James Woods) se vê como o próprio aparelho de vídeo (o cassete chega a sair de seu estômago). Nesse filme há, ainda, a imagem de uma enorme boca em close-up que parece querer sair da tela e literalmente engolir o personagem. O aparelho ganha, ainda, materialidade e textura carnais, com veias e movimentos peristálticos. Trata-se de uma relação que insere e integra as tecnologias eletrônicas de forma mais imediata e ambígua, e certamente muito menos confiável do que se tinha antes (no cinema, na televisão), quando havia uma separação física entre ser e meio. Ainda em Videodrome, Max Renn usa um revólver que vem a ser uma extensão do corpo, integrado em carne e osso ao braço. Já em eXistenZ, os revólveres, apesar de objetos exteriores ao corpo, são construídos a partir de material completamente orgânico (as balas são feitas de dentes humanos), obtido em “fazendas” criadas para esse fim, como um órgão de cyborg mais “avançado”.[24]
A narrativa do filme é apresentada como uma espécie de jogo em que a relação espectador/filme, de fruição coletiva a partir de uma única fonte, o aparato tecnológico, se repete na relação dos jogadores de eXistenZ, acrescentando, todavia, um teor mais erótico. Nele o jogo só pode ser acionado com, pelo menos, dois participantes. Assim como no espetáculo cinematográfico, o jogo representa coletividade. Só que a socialização aqui se dá fisicamente. Os participantes precisam ser conectados a uma central do jogo por uma espécie de cordão umbilical (UmbyCord). Esse centro de controle do jogo (game pod) é concebido como um pedaço orgânico de carne, com sua cor, textura e forma, e interior com mamilos excitáveis, feitos de DNA sintético e órgãos também sintéticos obtidos nas tais “fazendas” de órgãos. O jogo incide diretamente sobre a memória, ansiedades e preocupações dos jogadores e ganha a força de personagem humano. Sua criadora, a designer Alegra Geller (Jennifer Jason Leigh), tem com ele uma relação muito especial, marcada por afetividade e carinho. Ela deseja eXistenZ. Submete-se ao jogo de forma ostensivamente erotizada. Alegra carrega o jogo carinhosamente para a cama e, deitada — em estado de entrega, imóvel e passiva —, deixa-se levar pelas fabulações lúdicas.[25] O jogo possui o corpo dos participantes como um vírus ou uma doença que gera o vício. Os jogadores aparecem em um local que lembra um centro de apoio a drogados, algo como uma igreja onde acontecem essas reuniões. Cronenberg repete aqui o mesmo clima de culto que já apresentara em Videodrome, no qual o espaço do gerador dos sinais das mensagens hipnóticas, a Missão do Raio Catódico, também parecia um templo religioso, ou, ainda, em Na hora da zona morta (Dead zone, 1983), quando Christopher Walken mostra o candidato a presidente.[26] Cronenberg explica que evitou em eXistenZ qualquer ambiente ou objeto que normalmente estariam associados a filmes de ficção científica, como laboratórios, telas de computadores, ambientes urbanos high tech e frios. Proibiu o uso de tênis, relógios e jóias. As roupas deveriam ser lisas. Criou um modelo de ficção científica baseado em subtração, e não no uso de objetos codificados pelo gênero. Buscou distanciamento em ambientes campestres e interiores com materiais naturais como madeira, a exemplo do templo citado no início do filme, onde o jogo nos é apresentado pela primeira vez, e também no final do filme. Os ambientes, assim, são simples e muito orgânicos. Vêem-se chalés com mesas toscas, tecidos de aspecto doméstico, utensílios prosaicos e muita vegetação, como no caso da “fazenda de trutas” ou no restaurante oriental. Esse afastamento da estética de ficção científica a que estamos acostumados faz com que eXistenZ pareça, a nosso ver, bem mais próximo do espectador e, por isso mesmo, provoque mais incômodo, ao possibilitar um discurso crítico sobre o presente. Por outro lado, há semelhanças com outros clássicos de ficção científica do cinema moderno, como Alphaville, de Godard (1965) ou Fahrenheit 451, de Truffaut (1966), que emprestam a eXistenZ um clima ambíguo. Com relação a Fahrenheit 451, eXistenZ surpreende ao repetir a frieza azulada que dá o tom à fuga do casal principal pela estrada em meio à floresta, reminiscência da paisagem moderna e depressiva por onde circulavam os personagens de Julie Christie e do bombeiro Oskar Werner no filme de Truffaut. A distância entre a iconografia de eXistenZ, seus espaços de representação e o presente do espectador é mínima ou quase imperceptível. Ted Pikul (Jude Law), o suposto guarda-costas da também suposta e célebre designer de jogos eletrônicos Alegra Geller, projeta um perfil de um tipo de espectador bastante próximo da platéia, com suas dúvidas e hesitações. Entretanto, por trabalhar clichês e imagens cotidianas de forma ostensiva, às vezes o filme induz a um distanciamento, como na sequência em que surge a necessidade de se abrir um “bioporto” no corpo do guarda-costas, operação que “pode ser efetuada, ainda que ilegalmente, em qualquer posto de gasolina da vizinhança” (local gas station), sentença que é dita pelo personagem e literalizada na imagem imediatamente depois, quando surge o posto que se chama exatamente Local Gas Station.[27] Tal estratégia aponta para um contraditório processo de desnaturalização da narrativa, fazendo com que o jogo proposto de construção de mundos virtuais se torne constantemente reflexivo, pondo à mostra seus processos de significação. Por essa mesma via, mais adiante, os personagens comentam suas próprias narrativas e, como em um jogo de RPG, enfatizam aspectos voltados exclusivamente para uma definição daquilo que é “humano” no comportamento, ou comentam sua atuação, seus diálogos e sotaques. Ted Pikul, que antes se expressava num sotaque canadense, termina o filme com um sotaque britânico.
eXistenZ acaba por alegorizar um momento intermediário — e por isso mesmo bem mais próximo de nós do que outros filmes de ficção científica, como Matrix (1999), O 13º andar (The thirteenth floor, 1999) ou Cidade das sombras (Dark city, 1998) —, momento em que, apesar de já estarmos vivenciando uma crise do corpo em processo de transformação, como signo ele ainda permanece central às operações do capitalismo pós-industrial, nada supérfluo como objeto. O corpo aqui não é apenas uma figura retórica, ele é essencial ao funcionamento autônomo de uma tecnopaisagem virtual, estando até mesmo em processo de interação com outros corpos. Ao contrário de outros filmes em que o inconsciente projetado no jogo narrativo é radicalmente tecnológico, eXistenZ trata de uma espécie de utopia tecnológica mais orgânica e, por que não, ecológica, reciclável, biodegradável. Aparentemente seria um mundo menos poluído, ao contrário, por exemplo, de Blade runner, o caçador de androides (1982). No filme canadense, as personagens plugam-se umas às outras por uma espécie de cordão umbilical, ligado, por sua vez, ao controle do jogo, ostensivamente projetado para ser uma extensão de um novo órgão do corpo humano, completo em sua materialidade, sua textura e seu volume carnais.
Os efeitos especiais do filme voltam-se mais à construção de novos objetos e “animais”, e sua visualização pressupõe uma reconfiguração do corpo humano e uma nova relação do sujeito com esses objetos. O próprio Cronenberg faz referência à “nova carne”, com relação a Videodrome e eXistenZ. Contudo, essa relação de diferentes matérias, ora em amálgama, ora em contraste, se faz também presente em filmes anteriores. Tanto em Gêmeos, mórbida semelhança como em Crash (1996) tal relação aparece em oposição uma à outra, como se houvesse nas diferentes naturezas um choque óbvio, traduzido no horror da tortura ou do sadomasoquismo. Já em Mistérios e paixões as alucinações do personagem do escritor (Peter Weller) combinam material inorgânico (máquina de escrever) com matéria orgânica (inseto). Em A mosca vemos que a junção de matérias orgânicas é mais harmônica, mas de espécies diferentes (animal e humana). Nessa tendência, a junção de duas matérias orgânicas de espécies diferentes parece ainda mais integrada em eXistenZ.
Em Videodrome e eXistenZ o redesenho do corpo e a naturalização do efeito são condições essenciais para deslanchar a(s) narrativa(s). No caso de eXistenZ, o novo corpo se faz a partir da necessidade de instalação do bioporto e da penetração do plugue do UmbyCord. Para Ted Pikul, identificado com a plateia, a instalação do bioporto em seu corpo acontece em um clima de desconforto e representa certo grau de homofobia, apesar da aparente comicidade da sequência. A ansiedade da perda da virgindade do corpo íntegro para o corpo-máquina, ainda que orgânico, representa também a passagem para outra natureza, feminilizada. Vale ressaltar que a penetração é executada pela personagem feminina no corpo do personagem masculino, que aqui é a parte virgem e passiva, demonstrando um visível propósito de apagamento de papéis sexuais tradicionais.[28]
Um forte conteúdo ideológico permeia tanto Videodrome e Scanners como eXistenZ. Há nos três filmes complôs de companhias privadas (Scanners e eXistenZ) ou de concorrentes ou fanáticos (Videodrome e eXistenZ) pelo domínio ou pela destruição de certa tecnologia. No caso de eXistenz, a luta ideológica gira em torno da própria questão realista. Os fanáticos e terroristas defendem o realismo do mundo contra os criadores e fabricantes dos jogos, que devem ser destruídos “por deformarem a realidade”. A apropriação desse desenvolvimento por parte de interesses políticos conduz a narrativa nos três casos.[29]
O mundo de eXistenZ é um mundo prefigurado como simulacro em que um novo sujeito parece ter sido criado: um sujeito que situa o humano e o tecnológico como coexistentes, co-dependentes e que mutuamente se definem. Ele é simultaneamente constituído pela biotecnologia e pelas maquinações do texto, produzido no ponto de interseção entre tecnologia e narração, no qual um constrói o outro, num círculo vicioso, ovo e galinha, interior e exterior. Tanto Videodrome como eXistenZ trazem uma representação gráfica da dissolução da vida real no virtual — o que Baudrillard nomeia de “viral”, no sentido de equacionar imagem e vírus.[30] Os dois filmes literalizam essa equação na medida em que o corpo é invadido, penetrado pela imagem que, como um vírus, se espalha indefinidamente, num cérebro de aparente vida própria que produz mais e novas sequências de imagens. Corpo e imagem se fundem, se tornam uma única (id)entidade, numa dissolução completa entre o real e sua representação, entre as fronteiras que delimitavam o interior e o exterior. Não há mais nenhum resquício de proteção privada onde o próprio corpo não consegue mais encobrir a individualidade do sujeito. Ele se encontra ameaçado por estruturas centralizadas de controle, pela biotecnologia, que aliena e ao mesmo tempo mascara a alienação pela percepção de sua própria impotência. Daí o medo e a revolta que tomam conta dos guerrilheiros do realismo, que, mesmo como personagens virtuais, ainda têm força para lutar e gritar: “Morte ao videodrome!”, no filme de 1983, ou: “Morte a Alegra Geller!”, em eXistenZ.
O cinema de Cronenberg é violentamente literal e visceral, não poupa o espectador de imagens de violação e da desarticulação da carne viva, não nos poupa nenhum detalhe anatômico presente na transformação física por que passam seus personagens. Tudo nos filmes parece ser corpóreo, assustador, enraizado na interseção da fisiologia com a tecnologia. A carne não é tão rigidamente determinada, sendo mais fluida e aberta às metamorfoses. Nesse sentido, é um cinema que extrapola a biotecnologia, fixando uma plasticidade e ambiguidade perturbadoras. Como sintetiza o crítico Steven Shaviro,[31] nos filmes de Cronenberg o tecido é vivo e polimorfo e
tem a capacidade de atravessar todas as fronteiras, desfazer a rigidez da função orgânica e da articulação simbólica onde novos arranjos e situações da carne rompem com as oposições binárias tradicionais entre pensamento e matéria, imagem e objeto, o eu e o outro, exterior e interior, homem e mulher, natureza e cultura, humano e não humano, orgânico e mecânico.
A desconstrução sistemática dessas distinções, em todos os níveis possíveis, é um princípio que organiza os filmes desse realizador.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Notas
[1] Convênio de cooperação técnica na área de vídeos educativos celebrado pela Universidade Federal Fluminense e pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1993.
[2] Ao contrário da medicina, na qual a descoberta e a demonstração do raio X têm data e local de nascimento bastante concretos, o centenário do cinema foi celebrado num período amplo, entre 1993 e 1998, de acordo com interesses e enfoques diversos. O aparecimento da película cinematográfica e o registro de imagens em movimento são anteriores a 1895 e foram comemorados nos Estados Unidos, por exemplo, a partir de 1993. A rigor, o que se festeja em 28 de dezembro de 1895 é a célebre sessão de cinema promovida pelos irmãos Lumière num café do mítico Boulevard des Capucines, em Paris, num formato que pouco ou nada mudou até nossos dias, ou seja, um projetor no fundo de uma sala, uma plateia que pagou ingresso para assistir a essa projeção e uma tela à frente dessa plateia sentada, fixando essa configuração como um espetáculo pago, de fruição coletiva. O quinetoscópio, de Thomas Edison, que também utilizava película cinematográfica de 35 mm, ao contrário, permitia a fruição de imagens em movimento de maneira individual, antes dessa sessão parisiense.
[3] A centralidade do olhar na constituição do corpo como um espetáculo decifrável em seus sintomas está detalhada no capítulo VII, “Ver, saber”, de O nascimento da clínica, de Michel Foucault (2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1980, pp. 121-39).
[4] No cinema contemporâneo, essa noção do corpo-livro, corpo-texto, ganhou representação literal no filme O livro de cabeceira (The pillow book, de 1995), no qual Peter Greenaway cria mais um jogo interessante entre cinema, literatura, artes plásticas e, aqui, artes gráficas, inspirado em texto de Sei Shonagon, calígrafo e escritor, para quem pele e papel se confundem como suportes de uma poesia que se revela, ao final, insuspeitada e macabra.
[5] Para uma análise detalhada da importância do trabalho pioneiro de Marey sobre os usos da fotografia como instrumento da fisiologia, ver Marta Braun, “The photographic work of E. J. Marey”, Studies in Visual Communication, n. 9, vol. 4, outono de 1983, pp. 4-23.
[6] Nas histórias que tratam da arqueologia do cinema, o nome de Marcy sempre aparece ao lado de um outro cientista pioneiro, Eadweard James Muybridge, ambos rigorosamente contemporâneos e que se influenciaram mutuamente, apesar da enorme diferença de resultados na produção fotográfica de cada um. Um breve comentário comparativo é feito por Marta Braun no texto acima referido.
[7] Jonathan Crary, Techniques of the observer. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1992.
[8] Dziga Vertov, “Kinoks: a revolution”, in Annette Michelson (org.), Kino-Eye, the writings of Dziga Vertov. Berkeley: University of California Press, 1984., p. 17.
[9] Mais detalhes em Lisa Cartwright, Screening the body, tracing medicine’s visual culture. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1995. Segundo essa autora, é interessante lembrar as experiências com expressões humanas que resultaram na criação de certos traços do Mickey. Partindo de informações fornecidas pelo Instituto Neurológico de Nova York e traduzidas em vários gráficos, curvas e fórmulas matemáticas, chegou-se a medir a hiperatividade lateral dos cantos da boca durante o chamado “sorriso involuntário”, e tal coeficiente mimético do sorriso tinha uma credibilidade de 98%, portanto era bem-vindo na criação de efeitos mais realistas no desenho animado.
[10] O termo sutura, que nos estudos cinematográficos significa, simplesmente, “costurar o espectador no texto fílmico”, foi introduzido como conceito crítico por Jean-Pierre Oudart (1977), com base em estudos efetuados na década de 1960 por Jacques Lacan, referentes à psicanálise da criança. Para uma definição completa do termo e de seus usos, ver Susan Hayward, Key concepts in cinema studies. Londres; Nova York: Rou-tledge, 1996, pp. 371-9.
[11] Jean-Louis BatOry, “Cinema: efeitos ideológicos produzidos pelo aparelho de base”, in Ismail Xavier (org.), A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal; Embrafilme, 1983, pp. 383-99.
[12] Ver a seleção de textos de Vsevolod Pudovkin e Bela Balázs em Ismail Xavier (org.), A experiência do cinema, op. cit., pp. 55-99.
[13] Tom Gunning, “Uma estética do espanto: o cinema das origens e o espectador (in)crédulo”, Imagens, n. 5, ago./dez. 1995, pp. 52-61.
[14] Sobre as implicações diversas do conceito de jogo aplicado a teorias da recepção, ver Michel Picard, La lecture comme jeu. Paris: Minuit, 1986. E também Humberto Maturana, A ontologia da realidade. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1997.
[15] Mais detalhes sobre Méliès e o Teatro Robert-Houdin, ver Erik Barnouw, The magician and the cinema. Nova York; Oxford: Oxford University Press, 1981, p. 14.
[16] Baudrillard, Jean. “On seduction”, in Jean Baudrillard: selected writings. Stanford, California: Stanford University Press, 1988, pp. 185-206.
[17] Curioso notar que a rapidez no desenvolvimento tecnológico digital de efeitos especiais, em particular no que diz respeito ao som, tem provocado uma febre de relançamentos de sucessos maquiados para novas e velhas plateias, por exemplo, a série Guerra nas estrelas e, mais recentemente, ET, o extraterrestre, filmes que causaram impacto exatamente pelos seus aspectos sedutores, possibilitados pela alta tecnologia.
[18] Esses célebres murais de Rivera foram encomendados ao pintor mexicano por Edsel Ford, presidente da Ford Motor Company, e executados por Rivera entre 1932 e 1933 nas paredes de um jardim interno do Instituto de Arte de Detroit.
[19] Bem antes de todo o merchandising deslanchado pela série Star Wars, o simpático Robby inaugurava esse tipo de estratégia de consumo ligado ao público infanto-juvenil. Além de O planeta proibido, ele voltou, no ano seguinte, em The invisible boy, dirigido por Herman Hoffman (1957).
[20] Isaac Asimov, Os robôs do amanhecer. Rio de Janeiro: Record, s/d.
[21] O próprio autor vê seu trabalho como uma obra única, dividida em capítulos (Joyard & Tesson, 1999, p. 73.)
[22] Chamamos atenção para o fato de eXistenZ ser o primeiro filme escrito e roteirizado por Cronenberg desde Videodrome. Entre os dois, o cineasta trabalhou com material de terceiros, como romances tão distintos quanto A hora da zona morta, de Stephen King; The naked lunch, de William Burroughs; Crash, de G. Ballard; ou mesmo a peça teatral M. Butterfly, de David Hwang.
[23] Scott Bukatman, Terminal identity. Durham e Londres: Duke University Press, 1993.
[24] De certa maneira, eXistenZ expõe e naturaliza a perda de poder sobre o controle das formas que definiam o mundo animal, representado pela “fazenda de trutas”, onde animais híbridos são criados e manipulados em diferentes estágios de mutação genética numa verdadeira linha de montagem. Utilizados na fabricação de controles de jogos virtuais de última geração, os órgãos desses animais são despachados em pequenos e nada higiênicos embrulhos para os pontos de manufatura dos novos produtos, em diferentes lugares. O que sobra é consumido num restaurante operário. Ou seja, nada se perde nessa espécie perversa de “utopia” ecológica biodegradável.
[25] A dildônica já é um fato em jogos de realidade virtual. Do inglês dildonics, refere-se ao uso de dildos (gadgets que auxiliam na masturbação) e vibradores virtuais criados para promover o estímulo sexual, controlados via internet, de forma a que duas pessoas possam se estimular sexualmente a distância (Howard Rheingold, Virtual reality. Morristown, TN: Cosy Book Nook, 1991, e Mark. Lipton, “Forgetting the body: cyber-sex and identity”, in Lance Strate, Ronald Jacobson & Stephanie B. Gibson (eds.), Communication and cyberspace, social interaction in an electronic environment. Cresskill, NJ: Hampton, 1996. pp. 335-49).
[26] eXistenZ parece também dramatizar a representação mais profunda e completa do vício pela imagem. Um vício que parece fundado numa antropologia que combina textos e pele, grafismo e carne, na sucessão de transparências construídas nos créditos iniciais do filme, uma verdadeira “arqueologia do texto”.
[27] O “bioporto” é um orifício feito por uma máquina na parte inferior da espinha dorsal, como um buraco de tomada onde se conecta o plugue que liga o indivíduo ao jogo.
[28] Jean-Marie Lalanne fala no bioporto como signo do ânus, e a utilização do recurso do deslocamento metafórico, já usado por Magritte em sua famosa pintura Isto não é um cachimbo ou por Francis Bacon, que retratou o ânus na boca humana, como forma de promover a aceitação pelo público, é aqui repetida.
[29] Em Videodrome essa questão é mais ostensivamente política. A mesma empresa que produz o videodrome do título também é responsável pela fabricação de óculos especiais para o Terceiro Mundo e de mísseis para a OTAN. Chama-se Spectacular Optics. Curioso notar a relação entre produto e identidade empresarial em alguns dos nomes das empresas que aparecem nos filmes de Cronenberg. É a empresa de nome Antenna que produz o eXistenZ. Já o próximo jogo, transCendenZ, é um produto da Pilgrimage. O próprio filme é uma produção da empresa intitulada Natural Nylon.
[30] Scott Bukatman, Terminal identity, op. cit., cap. 1.
[31] Steven Shaviro, The cinematic body. Minneapolis e Londres: University of Minnesota Press, 1993.