2003

As máquinas falantes

por Maria Rita Kehl

Resumo

Acreditem: antes de Freud não se concebia o sofrimento humano em termos de sofrimento psíquico. A alma padecia, sim. Havia possessões, os descaminhos da alma, as crises de fé, os tormentos da consciência assolada pelo pecado do desejo. Havia também os loucos que padeciam de deficiências da razão, o que os situava, numa cultura pautada pelo Iluminismo e pela Ciência, um tanto à margem da nossa humanidade bem raciocinante. E havia o sofrimento do corpo, nossa morada terrestre, castigada pelos males enviados, por Deus ou pelo acaso.

Não se concebia que os delírios de um paranoico, as dúvidas incessantes de um obsessivo ou as queixas somáticas de uma histérica devessem ser escutados com atenção; não se concebia que houvesse um sentido na insensatez dos sintomas. Não se concebia que a fala pudesse curar.

Hoje, quando a Psicanálise já fez cem anos, vivemos o retrocesso a um novo império do corpo, compensado por formações (reativas) religiosas que propõem o retorno a um novo império da alma ou da fé. O corpo pós-moderno não é máquina desejante conceituada pelos deleuzianos, é uma máquina gozante e eficaz que não pode falhar, envelhecer, desarranjar-se. Ou, em contrapartida, a máquina pecadora, sempre a tempo de se arrepender.

Mais do que nunca, o dispositivo psicanalítico é hoje um dispositivo ético, capaz de nos libertar dos sintomas físicos e oferecer um percurso através do qual nos transformamos em sujeito de nossa cura, assim como somos sujeitos de nosso padecimento. Nem corpo-coisa a ser aperfeiçoado por invenções médicas e bioquímicas, nem alma assujeitada pela vontade de um suposto Deus (encarnado pelos interesses de um pastor carismático), mas sujeito desejante, capaz de constituir a verdade do desejo enquanto fala justamente daquilo que nunca soube que sabia.


Qual a relação entre o corpo e o Eu: o corpo é “propriedade” do Eu — costumamos dizer: meu corpo — ou se confunde com ele? O dualismo corpo/alma que se estabeleceu no Ocidente cristão não impede que o sujeito identifique a imagem do corpo com o contorno narcísico do Eu. O reconhecimento da imagem no espelho é a matriz de nossa identidade imaginária, para a qual, como o nome próprio, fornece o traço simbólico mais estável. Ao mesmo tempo, a ciência moderna nos ensina a pensar o corpo como coisa, propriedade e encargo do Eu, a quem cabem o zelo e os cuidados capazes de garantir o melhor rendimento, a máxima durabilidade e o maior desfrute possível dos recursos desta máquina que a um só tempo é a sede da mente e da vida.

Quero propor aqui uma terceira abordagem. Não pretendo tratar do corpo bioquímico nem do corpo psicológico. Proponho abordar outra dimensão do corpo que não é estranha à psicanálise: a do corpo como objeto social. O corpo próprio como corpo do Outro. Ao contrário da concepção do corpo como propriedade privada de cada um, afirmo que nosso corpo nos pertence muito menos do que costumamos imaginar. Ele pertence ao universo simbólico que habitamos, pertence ao Outro; o corpo é formatado pela linguagem e depende do lugar social que lhe é atribuído para se constituir.

Começarei ilustrando essa proposição com uma série de exemplos corriqueiros, conhecidos de nossa experiência cotidiana. Como o do mendigo que nos pede as horas na rua. Isso acontece com frequência, já me aconteceu mais de uma vez. Estamos passando por um desses moradores de rua crônicos, que já se tornaram comuns nas grandes cidades brasileiras, e o homem se adianta para pedir alguma coisa. Mas ele não pede uma esmola: pede que lhe digamos que horas são. É um pedido que sempre me espanta; por que um homem que vive totalmente à margem do sistema produtivo, sem compromisso algum a não ser com suas necessidades mais primárias, precisa saber as horas? Será que seu pedido só tem a função de autorizá-lo a trocar algumas palavras com alguém que lhe parece viver em melhores condições que a dele? É possível. Talvez ao perguntar as horas, uma pergunta tão neutra, uma demanda tão fácil de se atender, ele esteja buscando o meu reconhecimento. Se eu lhe disser que horas são, estarei reconhecendo sua humanidade e estabelecendo um princípio mínimo de equivalência entre a sua vida e a minha. Ele se dirige a mim e, surpresa! — pede-me as horas em vez de pedir uma esmola. É um favor entre iguais que, em vez de humilhá-lo, o dignifica.

Mas existe outra razão para que alguém que não tem hora marcada para nada na vida queira saber que horas são. É a necessidade de se inserir numa das modalidades predominantes de organização dos corpos, nas sociedades industriais. Ao se informar sobre as horas o mendigo está tentando se manter dentro da mesma temporalidade que me organiza, que organiza os corpos de todos vocês: no caso, a temporalidade ritmada, demarcada e veloz das sociedades industriais. Estamos tão acostumados a ela que nos espantamos ao ler alguns trechos do Capital em que Marx, há menos de dois séculos, retratou e analisou a violenta imposição do ritmo do trabalho industrial sobre os corpos dos homens, na Europa do século XVIII e sobretudo do XIX. Hoje submetemos todas as horas do nosso dia à violência do ritmo do trabalho industrial, como se fosse a coisa mais normal do mundo.

Aliás, também esse ritmo já se transformou. Nossos corpos, que há mais de cem anos pulsavam como motores mecânicos, hoje estão mais rápidos ainda; vibram no ritmo das ondas eletromagnéticas, decompõem suas funções em bits de informação, antecipam-se ao futuro, ultrapassam o comando do Eu.

Os corpos que não se inserem na marcação social do tempo ficam fora da história. Recentemente, li o segundo romance do cubano Pedro Juan Gutiérrez traduzido no Brasil, chamado O rei de Havana. O universo ficcional é o mesmo do primeiro livro, a Trilogia suja de Havana, que saiu aqui no ano 2000: o mundo dos ladrões, dos vagabundos, das prostitutas e dos pequenos traficantes e trambiqueiros que vivem nos bairros abandonados de Havana, em Cuba. São os marginalizados de uma sociedade que já é marginal em relação ao resto do mundo. O rei de Havana conta a vida de Reynaldo, um adolescente sem eira nem beira, de pai desconhecido, que perdeu mãe e irmão aos treze anos e, depois de fugir de um reformatório, passou a perambular pelas ruas sem outro objetivo a não ser o de conseguir comida cada vez que a fome se torna insuportável. Poderíamos ambientar essa história no Brasil.

O impressionante nesse livro é que Gutierrez conseguiu escrever a história de um personagem que não tem história nenhuma. A história de Reynaldo é basicamente a história de seu corpo, de suas fomes, de seu cansaço, de sua exuberante atividade sexual, de seu desânimo, de seus impulsos tão irrefreáveis quanto passageiros. Reynaldo e os outros mendigos que ele vai encontrando e abandonando pela vida são personagens sem memória do passado e sem projeto de futuro, sem fantasias, sem desejos. Mas que, por isso mesmo, não impõem nenhuma restrição à satisfação de seus impulsos corporais, como uma espécie de compensação às restrições determinadas pela extrema carência em que vivem. Nessas histórias de infâncias tão cheias de privações, em que o princípio do prazer não teve condições de vigorar, não se impõe o princípio da realidade. Reynaldo vive do corpo e para o corpo. Não tem ideais a não ser o da conservação do corpo orgânico, portanto não tem razões para se arrepender de seus atos. Sua auto-estima é sustentada pelo seu desempenho sexual, que enlouquece as mulheres e lhe vale o apelido de Rey, rei de Havana. Mas ele não se organiza nem ao menos para viver como garoto de programa, ou para se fazer sustentar por alguma mulher. Nas ocasiões em que isso acontece, assim que o alívio de matar a fome se torna habitual, ele escapa da casa que o acolheu. Não é por desejo de alguma outra coisa que ele volta a se perder no mundo, mas por dificuldade de caber em algum lugar, assim como a água mole e informe vaza pelas mínimas brechas do recipiente que a contém.

Fiquei chocada com a cena da morte de Reynaldo. Nunca tinha lido um relato como este, em que a morte de alguém é simplesmente a morte do corpo, morte sem simbolização, término de uma vida que não deixa traço, morte que é puro fim. A narração que Gutiérrez nos oferece da morte de seu personagem é testemunho da insignificância da vida do corpo que, excluído da comunidade dos homens, não produz sentido nem valor.

Se os corpos não existem fora da linguagem, as práticas da linguagem determinam a aparência, a expressividade e até mesmo a saúde dos corpos. Observem o que se passou, de uns vinte anos para cá, com os corpos dos jovens pobres no Brasil. São corpos muito diferentes do que foram os corpos de seus pais e de seus avós, tão pobres como eles, tão desamparados como eles, provavelmente tão negros — pois a grande maioria dos pobres brasileiros é de origem negra — como eles. No entanto, de duas ou três décadas para cá, os corpos dos jovens pobres brasileiros não se distinguem, a não ser pela cor da pele, dos corpos dos jovens da elite. Não são mais corpos humilhados, cabisbaixos, submetidos. Não são os corpos tristes, humildes e feiosos dos pobres que eu via na minha infância. Até mesmo na fome e na privação os jovens pobres de hoje ostentam corpos altivos, belos, erotizados. O que diferencia sua postura da de um playboy, que é como eles chamam os jovens de classe média, é a dose a mais de agressividade no olhar que nos encara.

São corpos que ostentam o que a cultura do rap chama de “atitude”: um orgulho da raça, um ar desafiador, uma postura de quem não deve e não pede favor para ocupar seu espaço. Em parte, essa recente erotização de todos os corpos é efeito da produção de imagens, efeito da cultura da publicidade e da televisão, que apela, sim, a que todos os corpos sejam belos, sensuais, sadios, desejáveis. Mas o padrão de beleza imposto pelo imaginário televisivo e publicitário poderia excluir os pobres e os negros, como de fato exclui. A inclusão deles não é efeito de imagem, é efeito de discurso. É efeito do apelo à auto-estima dos negros, do apelo a uma atitude de consciência e orgulho racial, próprios dos discursos da militância negra produzidos na década de 1960 nos Estados Unidos, que chegaram na década de 1970 ao Brasil, e da cultura do hip hop, que chegou por aqui na década de 1980 e intensificou seu alcance na de 1990.

Observamos que os corpos se modificam por efeito do que se diz sobre eles e do novo lugar social que se produz para os jovens pobres a partir dessa “rede de apoio” discursiva que faz apelo a um modo diferenciado de estar “dentro da própria pele”. Não creio que essa mudança seja apenas estética. A experiência do Eu que se reconhece em um corpo sem valor social é radicalmente diversa daquela de quem se representa, para o outro, como tendo valor. Ainda que esse valor seja uma fantasia, moeda falsa que só opera no campo das trocas imaginárias; ainda que esse corpo negro e pobre continue marginalizado do campo das trocas simbólicas, do mercado de trabalho, da cidadania, sujeito a perder a vida num confronto fútil com a polícia ou numa briga com alguém tão marginalizado quanto ele. Ainda assim, a um corpo investido de um novo discurso corresponde um outro eu.

Nossos corpos não são independentes da rede discursiva em que estamos inseridos, como não são independentes da rede de trocas — trocas de olhares, de toques, de palavras e de substâncias — que estabelecemos. Uma mulher que nunca se considerou bela, e portanto nunca foi considerada bela pelos que a rodeiam, resplandece da noite para o dia ao encontrar um homem que a deseje. Uma criança de família abastada, bem alimentada e cercada de todos os cuidados necessários, cresce doentia e franzina em função da secreta infelicidade conjugal dos pais. Um homem pode morrer subitamente, no dia e na hora previstos por um pai-de-santo ou um xamã no qual a comunidade em que ele vive deposite confiança.

A PALAVRA E A MAGIA

Os estudos de Lévi-Strauss sobre a eficácia do símbolo podem nos ajudar a compreender a estreita dependência entre o corpo, o Eu e o Outro. “O feiticeiro e sua magia” e “A eficácia simbólica” são dois ensaios importantes em que Strauss desenvolve hipóteses sobre a relação entre o corpo e a palavra, que valem tanto para culturas primitivas, organizadas pelo pensamento mágico, como para explicar a eficácia da psicanálise para o sujeito moderno.

No primeiro ensaio, trata-se de um aprendiz do xamanismo, numa tribo do Norte do Canadá, que tenta descobrir a diferença entre um “verdadeiro” xamã e um mistificador. Surpreso, o aprendiz vai descobrir que os truques do mistificador podem ser tão eficientes em promover a cura de um doente quanto a magia do xamã “verdadeiro”, contanto que sejam capazes de convencer a comunidade a que o doente pertence. A magia não opera entre duas pessoas, o doente e o feiticeiro, mas no espaço triangular composto pelo doente, o feiticeiro e a comunidade. Um falsificador investido de autoridade pela comunidade tem maior poder curativo que um xamã verdadeiro que, por uma razão ou outra, tenha perdido a credibilidade; a crença que anima as práticas xamânicas é a de que exista o xamã verdadeiro. O Outro funciona simbolicamente como garantia dessa verdade.

As mentiras e os truques de um xamã são eficientes em promover uma cura ou pelo menos em aliviar o sofrimento de um doente porque organizam sua experiência solitária e não simbolizada, esta experiência de exceção que é a de estar doente. O mito narrado pelo xamã para explicar a origem da doença oferece sentido ao que é singular, solitário, informulável. “O informulável é a doença do pensamento”, escreveu Lévi-Strauss. Do mesmo modo, se um xamã prevê a morte de alguém e toda a tribo acredita, é muito provável que o condenado venha a morrer na data prevista. Se a comunidade em que o sujeito vive, única referência capaz de confirmar sua existência, o reconhece como morto, ele se desorganiza subjetiva e também fisicamente. “A integridade do corpo físico não resiste à dissolução da personalidade social.”

No texto seguinte, “A eficácia simbólica”, Lévi-Strauss analisa a cura de uma mulher em dificuldades de parto, a partir de uma narrativa em que o xamã atualiza o mito da concepção, da gravidez e do nascimento da criança. O mito não é estático; ele se compõe de uma parte de tradição e uma parte de invenção. O xamã é este intermediário entre a tradição e o presente, que, como o narrador de Walter Benjamin, acrescenta sempre um elo a mais na corrente narrativa que liga a crise do presente ao saber constituído pela experiência dos antepassados. A cura consiste em tornar pensável uma situação que o sujeito não sabe representar e que se torna insuportável se for vivida somente em termos afetivos e sensoriais. O mito tem o efeito de tornar aceitáveis, para o espírito da doente, as dores que o corpo se recusa a tolerar. Ajudando a parturiente a simbolizar sua dor até então intolerável, o xamã conduz o parto a bom termo — mas, para isso, é preciso que não apenas a parturiente, mas a comunidade a que ela pertence, acredite no xamã.

Lévi-Strauss compara a eficácia do xamanismo à cura pela palavra efetuada pela psicanálise, mas ele se esquece de observar que na psicanálise a palavra tem outra origem: não é a palavra dita pelo analista que cura, mas a palavra dita pelo analisando.

No entanto, também no caso da psicanálise, o vínculo que sustenta a relação da palavra com a verdade não é dual. A transferência, confiança a priori depositada pelo analisando nos poderes e saberes do analista, depende também de que a psicanálise seja reconhecida como um saber e como uma prática curativa pela comunidade à qual o analisando pertence. Se no século XIX a eficácia da palavra sobre os sintomas físicos das histéricas ainda era sustentada pelo prestígio do saber médico do dr. Freud, no início do século XXI a psicanálise, embora muito criticada e combatida pelos defensores de outros métodos terapêuticos ou neuroquímicos, goza de prestígio nas sociedades urbanizadas e industrializadas que a situam como o equivalente aos ritos de iniciação das sociedades primitivas. O desaparecimento de sintomas físicos que ocorre quando o neurótico consegue colocar em palavras endereçadas a seu analista algo que represente o informulável de seu desejo atesta a estreita relação entre o corpo, a linguagem e o Outro.

O CORPO E O OUTRO

Mas, antes de a linguagem falada fazer sua entrada em nossas vidas, o Outro já estava lá, encarnado no corpo de um semelhante, a mãe ou seu substituto, capaz de conferir sentido às sensações caóticas experimentadas pela criança e organizar seu campo pulsional. Esse saber da mãe a respeito das necessidades corporais do recém-nascido não tem nada a ver com o que o senso comum chama de “instinto” maternal; ele também foi transmitido à mãe pela cultura. Os cuidados corporais elementares, além de erotizar o corpo da criança, vinculando-o ao desejo da mãe e proporcionando as primeiras experiências de prazer e desprazer, incluem o corpo no circuito da linguagem, das práticas culturais, da organização do tempo, das primeiras interdições e das primeiras demandas.

É na relação com esse Outro, no prazer experimentado (por ambos) no contato entre o corpo da criança e o da mãe, que se organiza o circuito pulsional, circuito em que as necessidades vitais, biológicas, se transformam nas demandas de amor características do humano. A pulsão, força que emana da fronteira entre o biológico e o psíquico e se manifesta ao psiquismo como exigência de trabalho na busca de uma satisfação, poderia ser comparada ao instinto animal. Mas essa comparação só serve para atestar nossa desnaturação, pois, se o instinto tem a função de adaptar o filhote ao seu meio ambiente (o qual inclui a mãe), a pulsão só se constitui no encontro com o significante. Não há um saber da pulsão equivalente ao saber instintivo do animal; ela é pura força desorganizada em busca de um objeto que a satisfaça. Só que o objeto da pulsão não existe na natureza — nem em lugar nenhum. É quando a mãe, pela intermediação da linguagem, oferece à criança objetos parciais capazes de aplacar temporariamente a inquietação pulsional que o corpo infantil se organiza e a pulsão, por assim dizer, se especializa, dividindo-se em pulsões parciais em torno de objetos parciais: o seio, as fezes, a voz, o olhar.

Estes são justamente objetos de contato com o Outro, que circulam pelas aberturas do corpo — boca, ânus, ouvidos, olhos — e as erotizam. A pulsão é relacional: é entre os corpos que ela circula, e essa circulação é fundamental para organizar o corpo infantil.

Freud observa que a pulsão, justamente pela falta de um objeto natural que a satisfaça por completo, é extremamente plástica. Mesmo os objetos parciais de satisfação pulsional podem ser substituídos por outros, indefinidamente, através dos quais o objeto perdido retorna para o sujeito.

A plasticidade da pulsão é o que permite que a satisfação pulsional varie de acordo com as possibilidades que a cultura oferece e as interdições que cobra dos sujeitos. Cada cultura produz o corpo que lhe convém, assim como produz os sintomas que tentam dar conta do resto pulsional impossível de se satisfazer. A pulsão tende à descarga e só se satisfaz toda, idealmente, na morte, quando cessa toda a tensão vital; por isso dizemos que a pulsão por excelência seria a pulsão de morte, tendência a uma descarga de tensão tão completa que corresponde à aniquilação do organismo vivo. O gozo completo da pulsão é impossível, pois sua satisfação é sempre interceptada pela linguagem. Se nada se interpusesse entre a pulsão e sua finalidade, o corpo seria destruído pelo caos pulsional.

O objeto perdido da pulsão, por intermédio da linguagem, transforma-se no objeto do desejo inconsciente. O desejo é um impulso, escreve Freud em A interpretação dos sonhos, que parte da recordação de uma experiência de satisfação e percorre um caminho na cadeia significante até encontrar a representação de um objeto de satisfação, que nunca é idêntico ao objeto perdido, e sim equivalente. Se a pulsão busca satisfação no real do corpo, o desejo, movimento que se origina de uma satisfação perdida, vai se realizar no campo simbólico. O objeto do desejo, que se constitui na tentativa de recobrir a falta do objeto da pulsão, é um objeto simbólico. É por isso que o desejo pode se realizar num sonho, num chiste, num ato de palavra, enquanto a pulsão se satisfaz no corpo. Porém não toda! Há sempre um resto, que, na melhor das hipóteses, será sublimado — ou se transformará em sintoma. O sintoma é a um só tempo um representante deslocado do objeto do desejo e um meio de gozo da pulsão. Essa condensação é possível porque o corpo em que se representa o desejo recobre o mesmo corpo em que circula a pulsão. É um corpo de linguagem, que se insere na cultura e se reconhece na palavra dirigida ao Outro, ao contrário do corpo da pulsão, que depende da satisfação obtida por meio do contato de um outro corpo com as bordas, as aberturas através das quais se manifesta a demanda pulsional.

A unificação imaginária desse corpo se dá, assim como a organização do campo pulsional, pela intervenção do Outro. O filhote de homem não nasce senhor de seu corpo, muito menos de seu Eu. O corpo do bebê, que ele experimenta como um campo confuso de sensações fragmentadas, oferece uma imagem perfeita, unificada e diferenciada dos outros objetos do mundo para todos os que o rodeiam, menos para o próprio recém-nascido. A criança recém-nascida não se representa pela imagem que ela oferece aos outros. A experiência dos primeiros meses de vida é para ela a de um conjunto confuso e descoordenado de sensações de prazer e desprazer que não recortam exatamente o limite entre um “fora” e um “dentro” do “eu” corporal. O seio que conforta e alimenta pode ser percebido como uma extensão do corpo que sente prazer na amamentação, e as sensações desprazerosas do estômago vazio ou das cólicas intestinais podem ser expulsas do “eu” imaturo como se fossem provenientes do exterior. Esse corpo fragmentado, auto-erótico, sede de um “eu/prazer” que não se diferencia dos objetos de prazer do corpo materno, precisa passar, no dizer de Freud, por um ato psíquico específico para se transformar no corpo do narcisismo, sede do amor que o Eu dedica a si mesmo, separado do Outro e identificado com a imagem de si que, até então, era reconhecida pelos outros mas não pela criança.

A esse ato psíquico Lacan vai denominar “estágio do espelho”. A metáfora do espelho é bastante exata; todos nós já observamos o momento em que um bebê dá sinais de reconhecer que aquela pequena figura refletida no espelho é a imagem de seu próprio corpo. Esse momento depende da maturação da criança: até os dezoito meses, mais ou menos, podemos observar que ela é indiferente à própria imagem, ou reage a ela como a qualquer outro objeto. É com manifestações de júbilo, escreve Lacan, que o pequeno filhote de homem demonstra reconhecer-se na imagem especular, na qual se plasmam ao mesmo tempo a matriz do Eu unificado com o qual o sujeito vai se identificar por toda a vida e o ideal de perfeição ao qual vai tentar corresponder — esse eu ideal de uma identificação impossível. Isso porque, diante da imagem do corpo, a criança tem a medida da distância entre o corpo que ela apresenta para o Outro — integrado, simétrico, destacado do fundo como uma Gestalt perfeita — e o corpo imaturo de sua experiência. O espelho é o olhar do Outro, que vê na criança uma perfeição que não corresponde à sua precária experiência de controle e coordenação, locomoção, comunicação.

Capturada pelo fascínio de sua imagem no espelho do olhar do Outro, como Narciso diante de seu reflexo no lago, a criança sucumbiria à impossibilidade de corresponder à perfeição do eu ideal se não encontrasse a possibilidade de identificação com a imagem do corpo de seus semelhantes. O estágio do espelho termina quando se inaugura a possibilidade de identificação com a imago do semelhante, que representa para a criança não mais um grande ideal de perfeição inatingível a acompanhá-la até o túmulo — onde afinal se realizará por algumas belas palavras que seus familiares farão gravar em mármore —, mas uma série de ideais do eu aos quais, por identificação, ela poderá corresponder.

Assim, o corpo de um homem está todo impregnado do Outro. Desde a organização da circulação pulsional pela linguagem, que barra o gozo absoluto da pulsão de morte, passando pelo olhar do Outro, que faz função de espelho e permite a unificação da imagem de si necessária para a constituição do narcisismo que sustenta o Eu. O processo de constituição de um corpo próprio capaz de desenvolver habilidades e talentos prossegue então com as identificações com os corpos imperfeitos dos outros, os “semelhantes na diferença”, mediante as quais o sujeito se liberta do espelho e inaugura a série de empreendimentos pelos quais tentará corresponder aos ideais do eu. Sem a entrada do Outro, o corpo biológico pode sobreviver, mas não se constitui como o corpo de um sujeito que se reconhece como tal entre seus semelhantes. Sem a entrada dos outros, o sujeito não se liberta da prisão especular e da exigência impossível de se tornar idêntico à sua imagem.

O CORPO CIVILIZADO

O corpo é, como vimos, a sede imaginária do narcisismo do Eu. Mas, no Ocidente, o Eu não é o corpo. Ele habita um corpo e se identifica com sua imagem, mas sua existência é assegurada pelo pensamento. Desde Descartes, o homem ocidental afirma sua existência pelo pensamento, potência que se pretende autônoma, soberana e individual; entre o pensamento de um homem e o mundo que ele alcança e compreende, só Deus pode interferir — pelo menos até o final do século XVIII, quando os filósofos iluministas desbancaram a determinação divina e instauraram o império da razão. Como se constituiu essa separação entre o Eu e o corpo, assim como entre cada corpo individual e os corpos dos outros homens? Como foi que a sede do ser se deslocou do corpo para o pensamento, na Modernidade?

Recorro nesse ponto ao pensamento do sociólogo Norbert Elias, cuja obra analisa o longo processo que separou os homens de suas funções corporais e de seus semelhantes, até se produzir o que hoje chamamos de civilização. Uma sociedade composta de indivíduos é o resultado desse processo civilizador, ao fim do qual cada homem se crê isolado dos outros e responsável pelo controle soberano de seu corpo, impulsos, afetos e necessidades. Este é o sujeito moderno, que não reconhece sua pertinência a uma comunidade e sua dívida para com os semelhantes, vivos e mortos. É o sujeito da culpa neurótica, que vive através de seus pensamentos atormentados o conflito com os desejos que ele se acredita capaz de controlar; o corpo negado assim como o laço social recusado retornam a ele na forma de sintomas neuróticos, angústias, percepções paranóicas do outro, solidão e falta de sentido para a vida.

Para entender como se deu esse longo processo de separação eu/outro, eu/corpo, não precisamos retroceder até à ética dos “cuidados de si” que regulava as relações dos homens com seus corpos na Antiguidade. Vamos acompanhar Norbert Elias até a Idade Média, quando esse saber antigo já estava esquecido em função da vasta influência obscurantista da Igreja. Elias compreende a civilização como o resultado da transformação das relações dos homens com seus corpos. A passagem da sociedade medieval para as sociedades de corte, caracterizadas por maior mobilidade social tanto no sentido vertical das ascensões sociais como no sentido horizontal, dos deslocamentos geográficos, exigiu um grande trabalho de disciplinarização dos corpos. Muitos manuais de educação foram escritos e divulgados desde o século XIV até o XVIII na Europa; a importância desses manuais na construção de uma nova norma reguladora da vida em sociedade é atestada pelo fato de que o mais conhecido deles foi escrito pelo maior filósofo do humanismo, Erasmo de Rotterdam.

A civilidade pueril (De civilitate morum puerilium) foi escrito em 1530 e teve imensa circulação entre as cortes europeias, chegando a 130 edições, traduzidas em várias línguas, até o século XIX. O pequeno livro de Erasmo deu ao antigo termo civilização a conotação moderna que prevalece até hoje.

Seu ensinamento é a cortesia, esta série de normas de contenção necessárias à vida em sociedades onde as pessoas já não convivem mais apenas com seu pequeno círculo íntimo — habitantes de um mesmo feudo isolado, de uma família camponesa, de uma aldeia fechada sobre si mesma —, mas passam a conviver, cotidianamente, com um número crescente de estranhos, advindos de outras regiões e de outras classes sociais. Esta é uma característica bastante central da vida moderna, sobretudo nas cidades: a imposição de um contato cada vez mais frequente com um número cada vez maior de corpos de pessoas estranhas, que só é suportável à custa da automatização de um número infindável de regras de controle corporal. A cortesia funciona também como uma série de sinais de distinção social, numa sociedade em que as diferenças entre as classes sociais, até então bastante estáveis, estavam começando a perder a nitidez característica da rígida sociedade feudal.

Os manuais de civilidade da passagem das sociedades feudais para as sociedades de corte nos dão notícias das origens da instauração de uma centena de pequenas regras de controle, hoje tão difundidas na cultura que mal nos damos conta de sua existência. Erasmo de Rotterdam ensina à criança que pode vir a se tornar um príncipe, ou um nobre, a ter controle, por exemplo, sobre a expressão do seu olhar, que não deve ter uma expressão estúpida, nem muito ousada, nem muito curiosa, não deve demonstrar ira nem lascívia.., o sucesso desse aprendizado ao longo de várias gerações se revela no fato de que hoje isso não precisa mais ser ensinado a ninguém. Aprendemos a olhar respondendo aos olhares que nos são dirigidos, dos quais foram apagados todos os sinais de curiosidade, ira, lascívia e estupor.

Erasmo de Rotterdam, como todos os outros autores de manuais civilizadores, ensinou regras de decoro e controle corporal necessárias às novas condições de sociabilidade que estavam se estabelecendo. Alguns exemplos extraídos desses livrinhos populares nos fazem saber como o homem medieval se relacionava com suas funções corporais e experimentava a proximidade com os corpos alheios, de uma maneira despudorada e desprovida de nojo, que hoje chamamos de promiscuidade. À mesa, o recém-chegado à corte era ensinado a não recolocar na travessa coletiva das carnes o osso já roído, nem mergulhar o pão já meio comido no molho da terrina que servia a todos. Recomendava-se não limpar os dentes com a ponta da faca, não se assoar com a toalha da mesa, com a mão que segura a comida ou com a manga da camisa. Não era adequado soltar gases à mesa ou cuspir no chão, assim como satisfazer as necessidades fisiológicas nas proximidades do espaço destinado às refeições. Tudo o que hoje nos parece óbvio, regulado por sentimentos de pudor, nojo e vergonha que acreditamos muito “naturais”, foi incutido no comportamento ocidental ao longo de séculos de trabalho civilizador.

A despreocupação em mostrar o corpo nu, escreve Elias, só desaparece, muito aos poucos, no final do século XVI. Nas hospedarias era frequente que várias pessoas compartilhassem uma mesma cama, sem a imposição de proteger os corpos para dormir. O lenço, o garfo e a camisola, três objetos que servem para separar os homens de suas funções corporais e cada corpo do corpo dos outros, foram adotados mais ou menos simultaneamente nas sociedades de corte. A extensão desse esforço autodisciplinar para as práticas corporais mais ínfimas não poderia se dar por imposição do soberano, por meio da força militar. O trabalho de autocontenção era exercício de servidão voluntária que cada homem ou mulher que quisesse ser aceito na corte praticava, na esperança de cair nas boas graças do rei e se distinguir, perante os outros nobres, dos membros das classes inferiores.

Ao mesmo tempo, o cristianismo trabalhou para estender o hábito da vigilância para além dos atos, sobre todos os impulsos corporais, até atingir o próprio pensamento. A prática da confissão, lembra Michel Foucault, funcionou como um dispositivo de poder disciplinar sobre os corpos e as mentes, ao convocar os fiéis a colocar todos os detalhes da vida sob a forma de discurso. A passagem do poder soberano ao poder disciplinar, que para Foucault é característica dos Estados modernos, foi atingindo progressivamente todas as camadas da população. Assim foi se produzindo a alienação dos homens em relação tanto a seus próprios impulsos corporais e afetivos como ao fato mesmo de sua submissão, já que a eficácia dessa modalidade de poder consiste justamente em que cada um se considere senhor soberano de seus atos.

Houve assim um avanço dos dispositivos repressivos, que incidiram primeiro sobre os atos e depois sobre a linguagem. O desenvolvimento do que hoje a burguesia chama de “bom gosto” não é outra coisa além do afastamento progressivo, tanto em atos como em palavras, de todas as referências diretas às funções corporais banidas do convívio social. Do mesmo modo, a vergonha incide sobre os lapsos de autocontrole, em que alguém deixa escapar um gesto ou uma palavra que evoque impulsos antisociais — e a repugnância, como uma espécie de avesso do erotismo, nos afasta instintivamente de uma intimidade excessiva com os corpos alheios. O homem moderno é governado permanentemente por uma excessiva consciência de si, que pretende tudo controlar, tudo saber: daí a ilusão de que existimos através do pensamento.

No entanto, essa consciência vigilante produz sua contrapartida inconsciente. Do que não pode ser feito ao que não pode ser dito, e daí ao que não pode nem mesmo ser pensado — temos aí concluída a passagem da repressão ao recalque, da consciência autovigilante à inconsciência do desejo que nos habita e do código ao qual já estamos submetidos desde o nascimento. A divisão do sujeito, tal como a psicanálise deu a conhecer no século XX, é fruto do processo civilizador.

O caráter excepcional do processo civilizador no Ocidente moderno deve-se ao alto nível de especialização dos agentes sociais e à imensa complexidade das cadeias de relações sociais em que cada homem está inserido, a um nível que ele mesmo é incapaz de perceber. À reorganização do comportamento dos homens em meio a seus semelhantes, à nova relação entre os corpos, correspondem mudanças na estrutura da personalidade. Quanto mais integradas, especializadas e complexas as relações que se estabelecem entre os membros de uma sociedade, maior a interdependência entre eles e, consequentemente, maior a necessidade de automatização e controle dos impulsos, das pulsões e dos afetos. Ironicamente, na sociedade em que nos consideramos mais livres é que somos mais dependentes dos outros, dependência agravada pela nossa alienação, isto é, pelo fato de que não somos conscientes dela. Quanto mais intrincado o tecido social, mais diferenciado, complexo e estável o aparato socializador de controle dos corpos e das mentes humanas.

Sabemos que o Estado moderno se caracteriza pelo monopólio da força física, que institui grandes espaços sociais pacificados e normatizados. É claro que essa forma de exercício de poder não exclui outros tipos de violência, como a da exploração econômica e a da exclusão social. Quanto aos não-excluídos, o amparo social e a segurança oferecida aos cidadãos pelo Estado cobram seu preço em renúncia às experiências de prazer, euforia e agressividade, acessíveis aos homens que viviam, por exemplo, nas sociedades medievais.

A passagem da coerção externa à coerção moral depende de um incremento da vigilância atribuída à instância psíquica do Supereu, encarregado do controle de uma extensão cada vez maior de comportamentos e impulsos, até que uma parte do sujeito saia absolutamente do alcance de sua consciência. O sujeito moderno, cercado e amparado por técnicas e saberes científicos que visam lhe proporcionar saúde, bem-estar corporal e um adiamento indefinido da morte, está ao mesmo tempo cada vez mais distante de saber escutar as demandas e manifestações de seu corpo pulsional. Acostumado a adiar o prazer e a satisfação de necessidades, já não é capaz de desfrutar da sexualidade, do repouso, do ócio e das pequenas sensações provocadas pelo contato com a natureza.

Norbert Elias chama a atenção para o deslocamento provocado pela necessidade de sublimação das experiências que afetam diretamente o corpo. Tudo aquilo a que o homem civilizado foi obrigado a renunciar em sua vida diária foi sendo substituído pela experiência estética. A nobreza cortesã, afastada dos campos de batalha, apaixonou-se pelos romances de cavalaria. A relação com a natureza foi se tornando cada vez menos fisiológica e mais contemplativa; no romantismo, pintores e poetas idealizaram uma natureza tão mais harmoniosa e nostálgica quanto mais a vida civilizada os distanciava dela. A própria sofisticação crescente dos códigos de cortesia pode ser interpretada como resultado estilístico do trabalho da sublimação de todos os impulsos sexuais e agressivos que a vida em sociedade exigia que fossem adiados ou suprimidos.

O pensamento de Norbert Elias conduz-nos à observação freudiana de que o preço que pagamos pela civilização é o afastamento entre o Eu e o corpo e o distanciamento, ainda que imaginário, entre cada sujeito e os outros que o rodeiam e dos quais ele depende, sem no entanto reconhecer sua dependência. A sociedade dos indivíduos, para Elias, é montada sobre o esquecimento de nossa pertinência à comunidade dos nossos semelhantes; a violência e a intolerância, assim como o sofrimento neurótico e as patologias narcisistas, são a resposta sintomática a esse esquecimento.

O CORPO SEM HISTÓRIA

Com as revoluções industriais, os corpos foram submetidos a um ritmo mais ou menos uniforme, e o tempo social padronizado substituiu rapidamente o tempo dos ciclos vitais. Desenvolvemos uma capacidade sem precedentes de controlar o ritmo do corpo — sono, fome, carências afetivas e sexuais estão automaticamente submetidos às conveniências do tempo social. A contemplação deixou de fazer sentido. O ócio nos aflige, somos compelidos a “otimizar” os momentos vazios, transformá-los em trabalho ou em consumo de lazer. Com isso baniu-se da vida o vazio, essencial para as experiências criativas ou para se conhecer o mero prazer de estar aí. Vivemos projetados para o futuro. Tentamos antecipar nossas ações e as de nossos semelhantes a fim de melhor nos movimentar entre eles e com isso obter vantagens na corrida pela ascensão social. Nessa luta, a capacidade de racionalizar nossos atos, controlar as emoções e obter algum controle sobre os outros vale mais do que a coragem ou a destreza física. A antecipação do futuro impede a fruição do presente — de que vale prolongar a vida se não sabemos o que fazer do tempo “economizado”?

O futuro é um tempo sem história. A capacidade da linguagem de projetar simbolicamente o sujeito em direção a essa representação abstrata de um tempo não vivido é um recurso que nos ajuda a prever perigos e calamidades. A confiança imaginária na existência do futuro é um elemento necessário na mobilização de todos os nossos recursos criativos. O homem inventa para, na expressão feliz de Hannah Arendt, dar início a algo que ainda não existe — para isso, é necessário “acreditar” na continuidade da vida. Mas o futuro é também um tempo gelado, inabitado pela memória e pela experiência; é o tempo da morte certa, lugar da nossa angústia. Quanto mais vivemos projetados para um ideal de futuro, mais tememos a morte e tentamos banir do horizonte suas representações.

Como nossos corpos são efeito dos discursos que dão consistência simbólica à vida social, a ânsia contemporânea pela eterna juventude produziu, de fato, corpos que permanecem jovens por muito mais tempo. A tecnologia, a medicina, a boa alimentação, os manuais de vida saudável, tudo isso contribui para o rejuvenescimento dos corpos; mas o apelo social para que permaneçamos jovens e a difusão de um “estilo jovem” de vida para todas as faixas etárias têm mais efeito sobre os corpos do que todas as vitaminas e academias de cultura física. Na década de 30 do século passado, Freud observou, numa conferência sobre a feminilidade, que as mulheres na faixa dos trinta anos pareciam muito mais velhas do que os homens da mesma idade. Enquanto estes ainda se conservavam “jovens e inacabados”, prontos para muitas mudanças e desenvolvimentos futuros, as mulheres se transformavam rapidamente em verdadeiras matronas, enrijecidas e desvitalizadas, como se já tivessem cumprido sua função na vida e agora esperassem pacientemente a velhice ou a morte.

Ora, uma mulher, até a primeira metade do século XX, tinha mesmo muito pouco a esperar da vida depois de ter realizado seu destino social de parir e educar filhos. É compreensível que sua aparência, sua saúde, sua disposição física atestassem o fim de linha próprio de sua condição. Hoje a vida social pede coisas muito diferentes às mulheres, e o fim da linha está adiado indefinidamente. A diversidade das perspectivas profissionais, a liberdade relativa da vida erótica, o relaxamento da exigência de dedicação exclusiva aos filhos, tudo isso faz com que as mulheres de quarenta ou cinquenta anos, hoje, sejam efetivamente muito mais jovens do que as balzaquianas observadas por Freud em 1932.

Em contrapartida, o apelo da cultura de massa à erotização do corpo feminino influi no amadurecimento precoce das meninas. A puberdade, período de mudanças hormonais que dá início à transformação das crianças em adultos, até uma ou duas décadas atrás costumava ter início por volta dos doze, treze anos de idade. Hoje, essas transformações corporais estão se antecipando; meninas de nove ou dez anos desenvolvem as características sexuais secundárias e menstruam muito mais cedo do que suas mães. Amadurecem cedo, para em seguida passar o resto de suas vidas com medo de envelhecer.

A velhice torna-se aterradora quando o tempo vivido não tem nenhum valor. O mito da eterna juventude, no limite, tende a produzir corpos sem história, dos quais tentamos apagar, com o auxílio da medicina, todas as marcas do passado. E como é impossível ostentar uma aparência jovem sem adotar “atitudes” jovens, vamos vendo que a vida já não pode nos acrescentar experiência nem sabedoria. A disponibilidade permanente para a moda, o consumo do efêmero, a aceitação de todas as novidades produzidas pela indústria cultural impedem que as pessoas se apropriem do vivido e transformem sua história de vida na marca de sua diferença, pessoal e intransferível. Vivemos negando a morte, mas corremos o risco de morrer — o que ainda é inevitável — como se nunca tivéssemos vivido.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Claude Lévi-Straus, “O feiticeiro e sua magia” e “A eficácia simbólica”, in Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Biblioteca Tempo Universitário, 1975.

Jacques Lacan, “O estádio do espelho como constitutivo da função do eu”, in Escritos, vol. I. México: Siglo Veintiuno, 1989.

Norbert Elias, La societé des individus. Paris: Gallimard, 1976.

__________O  processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.

Sigmund Freud, A interpretação dos sonhos, 1900.

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