Bom dia, senhor Courbet!
por Jorge Coli
Resumo
É no campo da marginalidade que Courbet localiza o novo artista. Courbet não teoriza, a exemplo dos filósofos, a ética que adota para preencher o vazio provocado pelas rupturas com as formas tradicionais de pedagogia, com a cultura vigente e com a tradição clássica ligada ao ideal e ao imaginário. Essa ética do novo artista, Courbet a demonstra através de sua arte, de seu comportamento, de sua militância.
Courbet valoriza, em seus quadros, a simplicidade, a ética do olho. O realismo de Courbet é determinado pela cultura a qual ele pertence, pelo autêntico, pelo verdadeiro. Courbet , pinta ele mesmo, as mulheres, a natureza e os camponeses. Em sua pintura, o olhar é privilegiado, ele pinta o que vê.
O narcisismo também é muito evidente em sua obra. Nos seus quadros, Courbet utiliza sua própria imagem física para militar a favor do papel do artista moderno, ao mesmo tempo marginal e superior.
Courbet é o primeiro artista a liberar a produção artística do poder das instituições e a declarar a arte independente e livre de qualquer ética que não seja a das exigências artísticas.
Courbet e sua obra revelam uma relação intrincada entre aquilo que é subjetivo e aquilo que é coletivo; entre aquilo que é biografia individual e aquilo que é pintura propriamente dita. Essas relações se passam de um modo muito específico, numa configuração singular dentro da história das artes.
Não se trata de uma obra, à primeira vista, sedutora. Ao contrário, ela elimina o fascínio mais imediato — o fascínio das belas cores, por exemplo; o fascínio dos temas, torturados ou felizes. Contraditória com o modo de ser do artista — que era truculento, tagarela, escandaloso, barulhento —, essa obra é grave e silenciosa. Ela exige recolhimento, meditação, ela exige a frequentação persistente, ela exige o olhar prolongado. Os quadros de Courbet dão a impressão de conterem elementos destinados a afugentar o olhar superficial e mesmo, algumas vezes, a horrorizá-lo.
Mas essa obra e seu autor, de modo cúmplice, promoveram o desgarramento dos vínculos que submetiam os artistas a valores que estavam constituídos fora deles. Até Courbet, os artistas dependiam de um universo ético que estavam encarregados de veicular — por exemplo, David celebra a Revolução Francesa, ou celebra o Império napoleônico; Delacroix tratará de temas que envolvem a liberdade política. O que nós assistimos com a arte de Courbet é ao seu afastamento desses critérios externos que possuem valores já constituídos, e o estabelecimento, para o artista, de um lugar que é independente e que lhe é próprio: este lugar é o da marginalidade. Courbet circunscreve pela primeira vez o campo da marginalidade, e o define como um território de eleição, um território privilegiado em relação ao dos outros homens.
O artista marginal é aquele que não deve mais nada nem ao mundo, nem a ninguém — a não ser a si próprio. Ele está acima dos outros homens. Ao mesmo tempo independente e consciente da elevação de sua tarefa artística, é obrigado, para manter-se à altura de si mesmo, a estabelecer os seus próprios valores. Isto é, ele é obrigado a construir uma ética para si.
Courbet não teoriza, como um filósofo faria, essa ética do novo artista. Não discorre: mas a faz emergir através de seus comportamentos, de seus quadros, através de uma prática, através de uma militância. O que proponho é que vejamos como isso se dá.
A ética da ruptura
Em primeiro lugar, assistimos a uma série de rupturas proclamadas. Ruptura com o ensino — Courbet proclama incessantemente sua ignorância, insiste em fazer erros de ortografia, insiste em falar com um sotaque e em usar expressões camponesas e caipiras. Possui um profundo desdém por tudo o que é formação institucional.
No que concerne à pintura, é verdade que o essencial de seu aprendizado não se fez em grandes escolas, mas com um obscuro mestre de província. É em Ornans, na sua cidade natal, onde ele se criou (Franco-Condado, Jura, região profundamente camponesa), que ele aprende a pintar, com um certo Flajoulot, que se dizia aluno de David. E depois, em Paris, em 1841 (Courbet tem 22 anos), vai desenvolver esse aprendizado copiando Velásquez e Rembrandt no Louvre, estudando os espanhóis e holandeses, e, entre os modernos, particularmente Géricault e Delacroix. E, sempre que pode, vai se declarar um autodidata.
Em consequência, ele não teve discípulos, ele não ensinou. Com a exceção apenas de um episódio, breve, que transcorre no final de 1861. É quando um grupo de alunos da Escola de Belas-Artes de Paris pede a Courbet que abra um ateliê para que eles possam se iniciar no realismo — pois assim é denominada a arte de Courbet.
Courbet aceita, mas, em realidade, mais como uma oportunidade para proclamar seus princípios e causar algum escândalo que beneficie as suas concepções do que verdadeiramente para ensinar. A experiência, aliás, é muito breve: dura apenas alguns meses.
Nesse ateliê, Courbet começa por substituir os modelos, que tradicionalmente servem para as aulas de nus, os nus ditos de academia, por um boi — o que naturalmente vai provocar uma onda de caricaturas na imprensa satírica.
Charles Léger, um dos biógrafos de Courbet, reúne os mandamentos desse ensino. Eles são quatro:
1) Não faça o que eu faço.
2) Não faça o que os outros fazem.
3) Se você pintar como Rafael pintava em outros tempos, você não terá nenhuma existência.
4) Pinte o que você vê e o que você sente — faça o que você quiser.
Esse radicalismo se confirma pelo próprio artista. Veja-se um trecho de carta aberta de Courbet a seus “discípulos”, datada de Paris, 25 de dezembro de 1861:
Senhores e caros colegas
Os senhores quiseram abrir um ateliê de pintura onde pudessem continuar sua educação de artista, e quiseram colocá-lo sob minha direção.
Antes de qualquer resposta, é preciso que eu me explique com os senhores sobre essa palavra direção. Não posso permitir que seja questão, entre nós, de professores e de alunos.
Devo explicar-lhes o que tive recentemente oportunidade de dizer no congresso de Antuérpia: não tenho e não posso ter alunos.
Eu, que acredito que todo artista deve ser seu próprio mestre, não posso sonhar em me fazer professor.
E termina propondo um ateliê coletivo, nos moldes dos do Renascimento, onde ele, o “mestre”, teria uma função estimuladora dos talentos, “deixando”, diz, “a cada um, a inteira direção de sua individualidade, a plena liberdade de sua expressão própria”.
Portanto, em primeiro lugar, existe uma ruptura com as formas convencionais de pedagogia. Courbet se quer fora das instituições e, mais ainda, fora de qualquer princípio de ensino. Ele despreza as escolas, despreza os acadêmicos, os juízes dos salões. Isso não significa para ele, entretanto, a celebração do espontaneísmo — e nisso também ele se distancia das rupturas românticas, da crença na inspiração. Há em Courbet a ideia da arte ligada à fabricação, e nela está subentendido o domínio dos processos que levam à realização do objeto artístico.
Em realidade, a discussão é, aqui, antes de tudo, uma discussão cultural. É a cultura transmitida pelas instituições que está, primordialmente, em causa, ou, de outro modo, através das instituições, é a cultura que está sendo visada. Portanto, ruptura com as instituições — mas ruptura também com as tradições culturais imediatamente imperantes.
De que tradições se trata? De um lado, a tradição clássica: Courbet recusa o belo ideal, a referência greco-romana, o modelo de Rafael e das formas depuradas. De outro lado, a tradição romântica, no que ela possui de imaginário, de literário, de eloquente e de sentimental. Courbet tem horror do ideal, Courbet tem horror do imaginário. Para Courbet, as formas da cultura são convencionais, superficiais, supérfluas e enganadoras.
Uma vez o vazio, pelas rupturas, tendo sido feito, uma vez tendo sido recusados pedagogia, instituições, cultura, ideal, imaginário, é preciso nos interrogarmos sobre aquilo que Courbet propõe para preenchê-lo.
A ética da simplicidade e a ética do olho
Nós poderíamos seguir os caminhos de dois contemporâneos ilustres, que foram amigos de Courbet, Proudhon e Baudelaire, para tentarmos descobrir algumas linhas mestras de interpretação das escolhas de Courbet.
No caso de Proudhon, trata-se da interpretação social e política de suas obras. Isso é também sugerido pela própria militância política de Courbet. Ele se declarava um republicano, um anticlerical e um socialista — o que, sob o Segundo Império, significava ser triplamente subversivo. Procede, aliás, de uma família de republicanos históricos. Em 1848, participa com simpatia da revolução que depôs Luís Filipe — embora com restrições no que concerne ao emprego da violência — e desenha o frontispício para um jornalzinho político efêmero, intitulado Le Salut Publique.
Existe ainda um episódio marcante — e triste — no final de sua vida, que é sua participação no governo popular da Comuna.
Courbet é eleito presidente da Federação dos Artistas, que vai tomar medidas cuidadosas de proteção às obras de arte dos museus para salvá-las dos bombardeios mas que vai decidir também a demolição da coluna Vendôme, um monumento de caráter militar, celebrando o exército de Napoleão I. O envolvimento de Courbet, diretamente, com esse acontecimento, não ficou estabelecido. Mas, quando cai o governo da Comuna, e se inicia a Terceira República francesa, ele é condenado a seis meses de prisão. Em seguida, em 1873, Courbet é condenado a custear a reconstrução da coluna. Trata-se de um ato de vingança e de exemplo. Naturalmente, Courbet não tem os meios de pagar um monumento daquele porte, e se vê obrigado a se exilar na Suíça, numa região fronteiriça à de seu Franco-Condado natal, onde ele vai falecer em 1877.
Visto a partir desses fatos, Courbet surge, realmente, como um militante político, coisa que, aliás, não cessa de afirmar durante toda a sua vida.
Proudhon, que é seu amigo pessoal e de quem Courbet faz o retrato póstumo, em 1865, ano da sua morte, escreve uma série de textos cuja reflexão parte da obra do pintor. Eles serão reunidos num livro sob o título Do princípio da arte e de sua destinação social. O filósofo procura dar à pintura de Courbet uma interpretação que vai no sentido de militância política e social. Mas é preciso convir que essas interpretações são forçadas. Tomemos, como exemplo, A fiandeira, quadro de 1853.
Vejamos a análise de Proudhon:
Que criatura magnífica, esta fiandeira, e como ela dorme! O fio caiu de sua mão; parece que ouvimos sua respiração lenta no lugar do zumbido da roca. Todos os dias ela se levanta de madrugada; ela é a última a se deitar; suas funções são multiplicadas, sua ação, incessante, penosa; é nos instantes “perdidos” que ela toma seu fuso, trabalho minúsculo, cuja leveza e o barulhinho não poderiam manter acordada a robusta camponesa. Compreendem agora por que Courbet fez de sua fiandeira uma robusta camponesa? Sem isto, ela seria um contrassenso; digo mais, ela cairia na indecência. Há muito tempo que as castelãs não fiam mais; as burguesas nunca fiaram; as operárias das grandes cidades nem sequer aprenderam: foram construídas fiações que as dispensam disso; elas não poderiam ganhar suas vidas com este trabalho.
Notemos alguns pontos:
1) A história social dessa fiandeira que Proudhon é obrigado a construir, sem que nada no quadro o indique.
2) O trabalho camponês, arcaico, oposto ao trabalho urbano, industrial, moderno, que, este sim, poderia nos dar a indicação de uma denúncia social.
3) É evidente que a robustez da personagem não parece denunciar miséria ou sofrimento. É certamente uma moça do campo — mas de um mundo de pequenos proprietários de terra, uma certa burguesia camponesa que se desenvolveu desde a Revolução Francesa. Além disso, Proudhon não percebe que Courbet retoma nesse quadro um episódio de sua constante indagação sobre o feminino — visão que passa pela preponderância de certa percepção orgânica, só observável nos momentos de sono, ou de torpor.
Mas Courbet realizou pelo menos dois quadros que poderiam estar ligados à ideia de denúncia social ou política. São, aliás, os dois quadros que servem de fundamento principal para os raciocínios de Proudhon. Infelizmente, ambos não existem mais. O primeiro é Os quebradores de pedra, de 1849, que representava um jovem e um velho quebrando pedras.
Pertencia ao museu de Dresden, e foi destruído por um bombardeio dos Aliados durante a Segunda Guerra Mundial. Courbet, entretanto, dirá que o pintou apenas comovido pela miséria — e de modo algum o quadro aparece inscrito dentro de um programa de militância social.
O segundo tinha por título O retorno da conferência. Trata-se de um quadro anticlerical — figurava um grupo de padres bêbados, saindo de um almoço generoso em vinho. Mas aqui não há dúvida nenhuma: não se trata de um quadro político; o que Courbet procurava era o escândalo. Com efeito, um dos procedimentos constantes de Courbet era afirmar a sua presença por meio de escândalos muito calculados. E em 1863 — data do quadro — havia um clima de grande agitação nas artes, que culminaria no Salão dos Recusados, salão onde foi exposto, entre outras telas, o célebre Almoço sobre a relva de Manet. E, dentro dessa agitação toda, Courbet precisava do escândalo para se pôr em evidência. Georges Riat traz o testemunho de declarações de Courbet feitas durante uma visita, quando trabalhava na tela fora de Paris. Courbet diz:
Vou chegar com minha tela prontinha. Eu a apresentarei ao Salão. Como eles vão berrar!… Ninguém vai dizer que está malfeito. Eu trabalhei com cuidado, fiz concessões… [do ponto de vista técnico] Vejam o acabamento destas cabeças. Vão dizer que parece Rafael, mas vão recusar. Se aceitarem, a imperatriz se oporá… Ah! que barulho, meus amigos, que barulho!
Courbet atinge plenamente seus objetivos. É recusado, como previsto, por razões morais, no Salão oficial. Mas é também recusado no Salão dos Recusados pelo mesmo motivo. E, enfim, esse quadro, que ficou um tempo enorme na galeria de Georges Petit, em Paris, acaba, depois da morte do artista, conseguindo um comprador — um católico ardoroso, que o adquire com o fim expresso de destruí-lo.
Em realidade, salvo por meio de uma visão fortemente tendenciosa como a de Proudhon, é impossível extrair da obra de Courbet uma militância social ou política. Ao oposto de Daumier, artista empenhado politicamente, genial ilustrador satírico de jornais, Courbet não é um pintor da atualidade, do imediato. E, se nós examinarmos com cuidado a sua militância pessoal, vamos descobrir que se trata muito mais de gestos espetaculares do que de uma militância, digamos, séria. Pelos seus escândalos, Courbet se torna, sobretudo aos olhos conservadores, uma espécie de espantalho político, e um símbolo. Mas não alguém que pertencesse a alguma organização, a algum partido, que pudesse atuar na política de modo consequente.
De qualquer modo, os quadros de Courbet não formam uma arte política ou socialmente militante. Se o seu caminho não é este, poder-se-ia perguntar se o seu realismo não estaria vinculado a uma representação do contemporâneo. Seria então possível fazer apelo a Baudelaire, que foi amigo do pintor e de quem Courbet fez também o retrato.
A hipótese, à primeira vista, seria de que o realismo de Courbet corresponderia ao princípio do heroísmo da vida moderna, enunciado por Baudelaire. Isto é, de que o artista, pelo poder da sua arte, possui a virtude de transformar a banalidade da vida moderna, o cotidiano vulgar da sociedade industrial em algo de heroico, em algo de sublime.
Existe um quadro com o qual Courbet parece responder à estética baudelairiana. Quadro importante, embora estranho e inacabado. Trata-se de Bombeiros que correm para um incêndio. Data de 1851, e tem 4 x 6 metros.
Qualquer análise dessa obra levará a interpretações insatisfatórias das estranhezas que contém. Existem complexas decifrações simbólicas propostas por especialistas, mas creio que é preferível perceber na tela a criação do mistério da cidade — trata-se do único quadro urbano e noturno de Courbet.
Outro quadro, ao qual a crítica já se referiu com certo perfume baudelairiano, é O sono, também chamado de A preguiça e a volúpia, quadro de 1866, de 1,35 x 2 metros, com figuras de tamanho natural. A razão da aproximação com Baudelaire é o tema do homossexualismo feminino.
Novamente aqui o quadro se insere numa poética feminina que Courbet desenvolve numa grande quantidade de obras — poética do sono, poética do orgânico, poética do mistério desses seres que os homens não podem compreender, mas apenas contemplar, porque são irredutivelmente diferentes, e cuja autonomia é, nesse caso preciso, absoluta, porque essas mulheres nem sequer dependem do homem para o prazer. Portanto, parece desnecessário invocar Baudelaire para compreender a tela, a não ser de modo muito longínquo e geral, e é melhor entender essa obra no conjunto da produção do próprio Courbet.
Os vínculos com a poética do urbano, da moda, do passageiro, própria de Baudelaire — ao contrário da estética de Courbet, que é a da natureza e dos ciclos lentos e imutáveis, do tempo eternizado nas estações, fora da história —, se existem, são pequenos. O heroísmo da vida moderna não corresponde à ideia de realismo, tal como Courbet a praticava. Mas esse realismo de Courbet, proclamado por ele, também não corresponde às concepções fundamentais de realismo que o século XIX nos deixou.
Porque não existe, em Courbet, a ideia de uma objetivação do real. Isto é, Courbet não toma o real como se ele tivesse uma existência autônoma, que o artista devesse, ou pudesse, explorar completamente. Basta pensar em Balzac ou Zola e no projeto de uma descrição da humanidade contemporânea. Basta pensar nos camponeses de Millet, fixados num gesto generalizador, em posturas sintéticas que concentram todo um universo social.
Courbet não observa de fora. Sua frase preferida era: “Eu pinto o que eu vejo”. Há aqui o privilégio do olhar, vinculado a uma individualidade. Para Courbet, o artista só pode retratar aquilo que está ao seu alcance, e isso num sentido profundo de conhecimento íntimo, de vivido. É oposto dos levantamentos de Zola, por exemplo, sobre temas que não conhece e sobre os quais deve se instruir. O alcance do meu olho é determinado pela cultura à qual eu pertenço, por aquilo com o qual eu estou, verdadeiramente, familiarizado.
Não se trata de subjetivismo romântico, de reação sentimental a objetos amados. Trata-se de fazer surgir à tona, no mundo da pintura, o universo que eu, artista, conheço bem. Enquanto pintor, eu tenho o poder de tornar este mundo, que é o mundo no qual a minha experiência vivida se dá, culturalmente visível.
Do que é composto essencialmente o universo de Courbet?
1) Dele próprio. 2) Das mulheres. 3) Da natureza — mas em paisagens que ele conhece bem. 4) Dos camponeses, mas dos camponeses do Franco-Condado, da região de Ornans — isto é, da sua região, como os de sua família.
Eliminando todo sentimentalismo, toda eloquência, esse olhar deve ser simples. Deve tratar, sem efeitos fáceis, com grande fidelidade, aquilo que ele está representando.
Tomemos o Depois do jantar, em Ornans — que lhe valeu a medalha de ouro no salão de 1849. Há aqui a ideia do olhar antropológico, antissentimental, retratando objetos, práticas, costumes. Mais ainda, Courbet determina um olhar em curto-circuito, por assim dizer: ele é ao mesmo tempo antropólogo e objeto observado.
Esse ponto de partida serve também para uma de suas obras principais: O enterro em Ornans — 1849, exposto no salão de 1851 (3,13 x 6,64 metros). Os grandes formatos são aqui fundamentais. Eles permitem elevar, pela primeira vez, o tema vulgar dos camponeses — que sempre, na história das artes, foram confinados a pequenas telas da pintura de gênero — à dignidade da grande pintura, a pintura dita de história, que era, até então, a única merecedora das grandes superfícies.
O quadro sintetiza bem a ética da simplicidade e a ética do olhar — ambas muito importantes, porque a elas está ligado o princípio do autêntico, do verdadeiro.
A ética da marginalidade
Mas o ponto capital da ética artística de Courbet se concentra no papel que ele atribui ao artista — e não, pelo menos diretamente, ao objeto artístico. Os camponeses de Courbet não são importantes aos seus olhos porque eles são camponeses, mas porque eles existem artisticamente por um ato instaurador do artista. É esse ato o ponto nevrálgico. Não se trata, portanto, de uma ética da arte, mas de uma ética do artista.
Muito se escreveu a respeito do narcisismo de Courbet, de sua autoglorificação, do modo como ele se põe em evidência, e do modo como ele se impõe fisicamente à sociedade. A ideia do corpo, para Courbet, é importante. Até 1855, ele era um homem bem-apessoado. Depois, grande bebedor de cerveja, ele se torna obeso, imenso. Isso não é irrelevante, porque seus inimigos vão atacá-lo com frequência, pelo seu físico — é um corpo que incomoda, e ao grande volume se acrescenta o falatório incessante, em voz alta. As caricaturas que o representam como um ser monstruoso são inúmeras; e um texto como o seguinte, deixado por Alexandre Dumas Filho, é testemunho do ódio que o pintor podia inspirar, e que se exprimia caracterizando seu corpo como abjeto: “Sob que redoma, com a ajuda de que esterco, em consequência de que mistura de vinho, de cerveja, de muco corrosivo e de edema flatulento, pôde crescer essa abóbora sonora e peluda?”.
É que, se o narcisismo de Courbet se limitasse a um traço psicológico de seu caráter, ele não teria importância nem para os seus contemporâneos, nem para nós aqui. Porém, a militância de Courbet pelo novo papel do artista, do artista moderno, passa pela afirmação de sua própria imagem física. Ele utiliza seu narcisismo como um instrumento afirmador do lugar, ao mesmo tempo marginal e superior, do artista.
Esse narcisismo, na sua pintura, é muito evidente. O ateliê do pintor, de 1855, é o autorretrato mais megalomaníaco jamais executado: tela que possui aproximadamente 21 metros quadrados. O título completo é: O ateliê do pintor ou alegoria real que determina uma fase de sete anos da minha vida artística. O pintor reúne, como uma espécie de Deus no Juízo Final, à esquerda e à direita, os amigos e os inimigos.
Lembremos, a respeito desse quadro, alguns elementos:
1) O princípio da alegoria, que enfraquecera desde o final do antigo regime, aqui ressurge como uma manifestação pessoal: o artista impõe ao público não apenas sua imagem, mas os seus símbolos, as suas opiniões pessoais.
2) Apesar de possuir as dimensões e as aparências de um quadro da grande pintura, da pintura de história, ele celebra o gênero menos cultural possível, a paisagem. E também o olhar da infância, da inocência desprovida de preconceitos, mais capaz do que qualquer sábio, entretanto, ou do que qualquer acadêmico. Mas ele celebra, sobretudo, o artista.
Esse quadro é, em realidade, o ponto de chegada de uma série de autorretratos que nos permitem compreender o papel que Courbet consigna ao artista. Porque — como já foi dito —, ao se representar, Courbet está, em realidade, conferindo uma nova posição para o artista. É assim, por exemplo, no Autorretrato com o cão negro, de 1842, ou n’O homem com o cachimbo, de 1846. O pintor figura-se a si mesmo numa atitude altiva. Isto é, inverte os papéis: é o quadro que olha, superiormente, e que julga. Ao público é apenas conferida uma observação tímida, de baixo para cima.
Essa relação determinada pela obra entre ela mesma e seu público conhece confirmação clara por meio do quadro O encontro, ou Bom dia, senhor Courbet!
A tela é, à primeira vista, enigmática. Ela põe, face a face, o pintor e seu público, aqui representado por um colecionador de Montpellier, Bruyas, amigo de Courbet, que reuniu uma importante coleção de pinturas contemporâneas, hoje florão do museu daquela cidade. Entre elas figura, naturalmente, um significativo conjunto de obras do mestre de Ornans.
O papel de mecenas não confere a Bruyas, no entanto, uma posição lisonjeada dentro do quadro. Ao contrário, acompanhado por seu criado, ele presta uma homenagem cheia de reconhecimento, descobrindo-se diante do gênio.
Em verdade, nessa tela, Courbet transpõe aquela relação entre o artista e o público, disposta nos autorretratos precedentes, de um modo emblemático, incorporando dessa vez o público na imagem.
A reação dos críticos do tempo mostra que esse sentido fundamental foi perfeitamente compreendido.
Tomemos alguns breves exemplos.
Gustave Mathieu, em alexandrinos:
Passante, para, eis Courbet aqui
Courbet, cuja fronte pura espera o diadema
E não te espantes se ele te olha assim:
Courbet, cuja fronte pura espera o diadema
Courbet se olhando, se olha a si mesmo.
Edmond About:
O mais importante dos novos quadros do senhor Courbet é O encontro, ou Bom dia, senhor Courbet!, ou A fortuna se inclinando diante do gênio. O tema é de uma grande simplicidade. Faz calor; a diligência de Paris a Montpellier levanta ao longe a poeira da estrada: mas o senhor Courbet veio a pé […] Seu admirador e amigo, senhor Bruyas, vem ao seu encontro e o cumprimenta educadamente. Courbet tira o chapéu de modo senhorial e lhe sorri do alto de sua barba. O senhor Courbet colocou cuidadosamente em relevo todas as perfeições de sua pessoa: até sua sombra é vigorosa, ela tem canelas como poucas no país das sombras. O senhor Bruyas é menos embelezado: trata-se de um burguês. O pobre criado é humilde e se encolhe, como se servisse à missa. Nem patrão, nem empregado desenham sua sombra no chão; só há sombra para o senhor Courbet, só ele pode parar os raios do sol.
Os textos irônicos entenderam tudo. Dão conta do olhar superior, da posição elevada do artista diante do público, da relação quase sacralizada entre público e artista (o criado, como se servisse à missa), e também do fato de que o artista é independente — ele vai a pé, ele escolhe os seus caminhos, ele não tem necessidade de ser levado por diligência, ou cocheiro. Caricaturistas da época também trazem confirmação a essa leitura.
Porém, além disso, alguns estudos vão mostrar fontes de inspiração que se encontram como substrato, como camadas arqueológicas por trás dessa imagem. O novo papel do artista é nitidamente estabelecido, mas um processo de referências alusivas particularmente à cultura popular vem enriquecer o processo simbólico. Alguns especialistas, Meyer Schapiro e, para essa obra sobretudo, Linda Noschlin, propuseram algumas chaves nessa direção.
Uma delas é uma gravura popular do ciclo do judeu errante. Champfleury, amigo de Courbet, desenvolvera um interesse sistemático pelas imagens populares, ao ponto de publicar uma História das imagens populares — em que exatamente essa gravura serve de frontispício. O ciclo do judeu errante traz uma história contada em versos, cujas primeiras origens remontam ao século XIII mas que está ainda presente em pleno século XIX renovada e difundida que foi pelas gravuras, sobretudo no século XVIII. A última versão da lenda à qual se refere Courbet conta a aparição do judeu, condenado a errar pela eternidade afora, a alguns burgueses de Bruxelas que o recebem com muita polidez, tirando o chapéu.
Uma das versões do poema, certamente a mais difundida, encontra-se na Encyclopédie Larousse du XIX siècle. Ela demonstra muitos pontos em comum com o quadro de Courbet — a roupa desalinhada, e de caráter popular, do pintor e do judeu, a longa barba de ambos, a atitude deferente dos burgueses, e sobretudo, a saudação: Bonjour, maître: lembremos que Courbet se intitulava, num trocadilho de situações sociais, Maître peintre, o equivalente operário em pintura do que seria, para nós, o mestre de obras da construção.
Além disso, Courbet retoma, em seu quadro, alguns processos específicos das gravuras populares: a atitude hierática das personagens, as largas superfícies de cores unidas, a extrema simplificação da paisagem, onde as silhuetas se recortam contra o céu. Tudo isso confere, ainda mais fortemente, um valor emblemático ao conjunto.
Mas o que nos interessa aqui é perceber a identificação do artista com o judeu errante — isto é, com uma personagem que não tem o seu lugar, que está fora da sociedade, que está à margem dela.
Há ainda uma outra referência subjacente desse quadro — a do retrato do apóstolo Jean Journet, socialista iluminado que sai pelo mundo pregando a harmonia universal. Courbet fez dele um quadro a óleo, do qual tirou uma litogravura, em 1850. O chapéu na mão, a mochila carregada, o bastão, tudo isso encontra um eco na figura do próprio Courbet, tal como ele se representou no Bom dia, senhor Courbet! E mais uma vez se reforça a ideia de que o artista se assimila ao vagabundo, àquele que não possui o seu lugar na sociedade mas que deve construir, ele próprio, o seu lugar. O artista se identifica com o marginal.
Cito um texto de Courbet, de 1850, a seu amigo Wey:
Em nossa sociedade, tão bem civilizada, é preciso que eu leve uma vida de selvagem; é preciso que eu me liberte mesmo dos governos. O povo tem toda a minha simpatia; é preciso que eu me dirija a ele diretamente, que eu tire dele meus conhecimentos, e que ele me faça viver. Para tanto, eu acabo de ingressar na grande vida vagabunda e independente de nômade.
Entretanto, o que o diferencia dos dois modelos (judeu e Journet) e do nômade pintor é que, dentro da sua marginalidade, o artista se encontra superior. Para tanto, ele é obrigado a estabelecer uma ética de fidelidade à sua arte, isto é, eu renuncio ao meu lugar no mundo porque eu sei que o meu lugar é no universo elevado da arte, e ela vale o meu sacrifício.
No século XIX, há um processo de transformação do papel do artista que começa logo depois de David. David é o último dos grandes pintores que aderem ao poder, e que celebram esse poder. Courbet será o primeiro a encarar, sem ambiguidades, a produção artística como independente, livre do poder e das instituições — e de qualquer ética que não seja a das exigências estritamente artísticas. Ao traçar o terreno da marginalidade, ele vai estabelecer o lugar (ou o não lugar) dos artistas de vanguarda que lhe sucederão. Estes serão mais radicais — podem chegar ao ponto de ignorar o mundo, ou sacrificar a razão, a vida pela atividade artística. Basta pensarmos em Cézanne, Van Gogh ou Gauguin. Este último, por sinal, depois da visita que faz ao museu de Montpellier e de contemplar, em companhia de Van Gogh, o Bom dia, senhor Courbet!, pinta, em 1889, um Bom dia, senhor Gauguin! no qual se mostra através de uma visão imaginária, que integra não mais um burguês, mas uma pequena bretã, uma camponesa.
Que o eixo primordial das atitudes de Courbet seja um eixo ético (e não político, ou moderno, no sentido do retrato da sociedade industrial) não há dúvida. O quadro Bom dia, senhor Courbet! é uma obra-chave na instalação dessa ética, cuja prática rigorosa levará o pintor a posturas individuais exemplares. É assim, caso notável, no momento em que o governo de Napoleão III, o traidor da República, o usurpador da vontade popular, tenta aliciar Courbet por meio de uma alta condecoração e recebe como resposta uma forte negativa, acompanhada de uma carta que é um dos grandes documentos da dignidade humana. Com ela, dando, portanto, a palavra a Courbet, encerro minha palestra.
Senhor Ministro
Foi na casa de meu amigo Jules Dupré, em L’Isle-Adam, que eu soube da inclusão no Jornal Oficial de um decreto que me nomeia cavaleiro da Legião de Honra. Esse decreto, do qual minhas opiniões bem conhecidas sobre as recompensas artísticas e sobre os títulos nobiliários deviam ter me poupado, foi determinado sem meu consentimento, e é o senhor, Senhor Ministro, que pensou dever tomar a iniciativa.
Não tema que eu desconheça os sentimentos que o guiaram. Chegando ao ministério depois de uma funesta administração que parecia ter escolhido a tarefa de matar a arte em nosso país, e que o teria conseguido pela corrupção ou pela violência se não houvesse encontrado aqui e ali alguns homens de coragem para contrariá-la, o senhor desejou assinalar sua chegada a esse posto por uma medida que contrastasse com as atitudes de seu predecessor.
Esse procedimento o honra, Senhor Ministro, mas permita-me dizer-lhe que ele não poderia mudar em nada nem minha atitude, nem minhas determinações.
Minhas opiniões de cidadão se opõem a que eu aceite uma distinção que provém da ordem monárquica. Essa condecoração da Legião de Honra que, em minha ausência e para mim, o senhor estipulou, meus princípios a recusam.
Em tempo algum, em caso algum, por nenhuma razão, eu a teria aceitado. Ainda menos hoje, quando as traições se multiplicam de todos os lados e a consciência humana se contrista com tantas palinódias interesseiras. A honra não está nem em um título, nem em uma fita, ela está nos atos e nos motivos dos atos. O respeito a nós próprios e a nossas ideias constitui a maior parte dela. Honro-me mantendo-me fiel aos princípios de toda a minha vida; se eu os desertasse, deixaria a honra para tomar os símbolos dela.
Meu sentimento de artista também opõe-se a que eu aceite uma recompensa que me é outorgada pela mão do Estado. O Estado é incompetente em matéria de arte. Quando decide recompensar, usurpa o gosto público. Sua intervenção é inteiramente desmoralizante, funesta ao artista, que ela engana a respeito de seu próprio valor, funesta à arte, que ela aprisiona nas conveniências oficiais e que ela condena à mais estéril mediocridade; seria sábio para ele abster-se. O dia em que ele nos deixar livres, terá preenchido seus deveres em relação a nós.
Aceite, portanto, Senhor Ministro, que eu decline a honra que o senhor acreditou fazer-me. Tenho cinquenta anos e sempre vivi livre; quando morrer, quero que digam de mim: aquele nunca pertenceu a nenhuma escola, a nenhuma Igreja, a nenhuma instituição, a nenhuma academia, sobretudo a nenhum regime, a não ser o regime da liberdade.
Queira receber, Senhor Ministro, com a expressão dos sentimentos que acabo de lhe expor, minha mais distinta consideração.
Gustave Courbet