1988

Cinema: revelação e engano

por Ismail Xavier

Resumo

O poder de convicção da imagem sobre o espectador envolve revelação e engano. No cinema, esse binômio faz parte do aparato de construção de um olhar que está em toda parte e em nenhuma, olhar sem corpo. No começo do cinema (anos 1910-20), isso se traduziu em ilusionismo, depois em melodrama como expressividade (a exploração do rosto em close-up acentuando a identificação, a intimidade). No entanto a vanguarda também apostou no poder analítico do registro cinematográfico. Eisenstein valoriza a montagem. Mais tarde, André Bazin vai destacar o realismo do plano-sequência, capaz de acompanhar o acontecimento em seu fluir integral. Mas a partir de 1970 há uma mudança de referenciais. Jean-Louis Baudry questiona o fundamento da objetividade e vê na produção de efeitos ilusórios o destino mesmo do cinema, o que justificaria não só a permanência do ilusionismo do cinema industrial como também a tendência pós-moderna ao simulacro, à citação, à autorreferência (não há lugar para juízos de verdade e mentira, as imagens valem como efeitos de superfície). Contudo há outras forças e possibilidades no simulacro. Este não reside só na imagem, mas na sua relação com um sujeito. Em Um corpo que cai (1958), desde o movimento de uma espiral na apresentação, Hitchcock oferece uma metáfora viva do próprio filme, explorando uma trama sobre simulação e fingimento. Se há controle no olhar fabricado pelo cinema, aqui há oferta de pontos de vista para que o espectador possa enxergar mais, atento ao visível e ao que, fora do campo, torna visível.


A TESTEMUNHA DE McCARTHY

Há quem tome o cinema como lugar de revelação, de acesso a uma verdade por outros meios inatingível. Há quem assuma tal poder revelatório como uma simulação de acesso à verdade, engano que não resulta de acidente mas de uma estratégia. Discuto esta questão especificando determinadas condições de leitura das imagens, ao mesmo tempo, faço uma recapitulação histórica, pois o binômio revelação/engano se projeta no tempo, referido a dois momentos da reflexão sobre cinema: o da promessa maior, aurora do século, e o do desencanto, anos 70/80.

Comento, de início, uma situação extraída do documentário Point of Order (1963), de Emilio de Antonio, filme que focaliza os processos e as seções de tribunal no período do macarthismo nos Estados Unidos. Trata-se de uma remontagem da documentação colhida ao vivo nos interrogatórios. Em determinado momento, uma testemunha da acusação é inquirida pelo advogado de defesa de um militar acusado de atividades antiamericanas. Esse advogado mostra uma foto à testemunha. Nesta foto se vê, numa tomada relativamente próxima, duas figuras: o réu e, a seu lado, alguém já comprometido, já indexado na caça às bruxas. A imagem, ao mostrar os dois conversando em tom de certa intimidade, é assumida pela promotoria como peça importante da acusação. O advogado pergunta à testemunha se considera a foto verdadeira. A resposta é “sim”. O advogado, então, mostra uma foto maior onde aparece, numa reunião ampla, um grupo de pessoas — dentre elas algumas insuspeitas — que traz num dos seus cantos a dupla anteriormente vista na foto menor. Entendemos sem demora que a primeira imagem é um recorte da segunda, ou seja, é parte de um contexto maior, com muita gente envolvida, uma situação pública que não denota qualquer cumplicidade maior entre o réu e seu interlocutor. O curioso no fato é que, ao ser reiterada a pergunta — “você continua achando esta foto [menor] verdadeira?” — a resposta é de novo “sim”. Chegamos aqui ao dado significativo. A resposta nos surpreende mas ilustra muito bem uma certa noção de verdade, noção muito mais presente no senso comum de uma sociedade como a nossa do que talvez gostaríamos. A testemunha trazia a convicção de que a verdade estava em cada pedacinho da foto, como também da realidade. Aquele canto da imagem, aquele fragmento extraído da situação maior, foi obtido sem que se adulterasse cada ponto da foto, sem maquiagem, sem alteração das relações que lhe são internas. Logo, ele “contém” a verdade. É uma imagem “captada”: as duas figuras estiveram efetivamente juntas diante da câmara (não importa aí o contexto). O recorte, definidor da moldura, não incomodou a testemunha para quem a verdade é soma, está em cada parte.

Em nossa cultura, o processo fotográfico tem grande poder sobre as convicções deste tipo de observador assim embalado pela evidência empírica trazida pela imagem. Mais até do que a acuidade da reprodução (eixo da semelhança), a imagem fotográfica (e cinematrográfica) ganha autenticidade porque corresponde a um registro automático: ela se imprime na emulsão sensível por um processo objetivo sustentado na causalidade fotoquímica. Como resultado do encontro entre o olhar do sistema de lentes (a objetiva da câmara) e o “acontecimento”, fica depositada uma imagem deste que funciona como um documento. Quando se esquece a função do recorte, prevalecendo a fé na evidência da imagem isolada, temos um sujeito totalmente cativo ao processo de simulação por mais simples que ele pareça. Caso típico é o desta testemunha de McCarthy a consagrar o engodo de uma promotoria.

Diante de tal fé na imagem, nossa primeira operação é reverter o processo e chamar a atenção para a moldura, para a relação entre a foto e seu entorno, para o fato de que o sentido se tece a partir das relações entre o visível e o invisível de cada situação. Vou aqui um pouco adiante, para ressaltar o quanto, além da foto e de seu contexto, há que se inserir no jogo também o universo do observador e o tipo de pergunta que ele endereça à imagem. Ou seja, dentro de que situação se dá a leitura e ao longo de que eixo se opõem verdade e mentira, revelação e engano. voltando à foto menor apresentada pelo advogado, constatamos, num nível mais elementar de interrogação, que ela produz um resíduo de documento na imagem dos interlocutores (sua postura e suas roupas indicam certo estilo, etc.). No entanto, a ilegitimidade da foto é flagrante quando, interessado na dimensão política da imagem, fabrico o fato “conversa isolada” e o faço evidência da culpabilidade. Quando pergunto pela autenticidade de uma imagem não estou, portanto, discutindo sua verdade em sentido absoluto, incondicionado. Não discuto a existência das figuras dadas ao olhar. Pergunto pela significação do que é dado a ver, numa interrogação cuja resposta mobiliza dois referenciais: o da foto (enquadre e moldura), que define um campo visível e seus limites, e o do observador, que define um campo de questões e seu estatuto, seu lugar na experiência individual e coletiva.

No cinema, as relações entre visível e invisível, a interação entre o dado imediato e sua significação tornam-se mais intrincadas. A sucessão de imagens criada pela montagem produz relações novas a todo instante e somos sempre levados a estabelecer ligações propriamente não existentes na tela. A montagem sugere, nós deduzimos. As significações se engendram menos por força de isolamentos (como na foto comentada), mais por força de contextualizações para as quais o cinema possui uma liberdade invejável. É sabido que a combinação de imagens cria significados não presentes em cada uma isoladamente. É celebre o experimento do cineasta russo Kulechov, primeiro grande teórico da montagem. Selecionando uma única tomada do rosto de um ator e a inserindo em contextos diferentes, ele chegou a conclusões radicais: a cada combinação o rosto parecia expressar algo bem diferente, num espectro que incluía ternura, fome, alegria.

A elasticidade admitida por Kulechov num primeiro momento (anos 20) foi depois atenuada por ele próprio e seria hoje ingênuo supor um poder absoluto da montagem nestes casos. Dentro de determinados limites, já no período do cinema mudo era comum a utilização da diferença entre as circunstâncias da filmagem e as da imagem na tela para sugerir um acontecimento ou dar significado particular a um rosto em dose-up.

Pudovkin, ao realizar A mãe (1926), queria uma expressão particular de alegria no rosto do heroi numa cena em que, na prisão, ele recebe uma mensagem de sua mãe trazendo esperanças de liberdade. O jovem ator não conseguiu a expressão pedida; o cineasta buscou outra solução. Surpreendeu o ator num momento desavisado, numa circunstância de riso, e filmou seu rosto que, então, reagia a um estímulo completamente estranho à cena do herói. Combinou depois a imagem registrada com as cenas vizinhas no filme e julgou satisfatório o efeito obtido. Se cada imagem do ator é um material no qual a montagem pode inocular um sentido, este foi e ainda hoje é um dado de desconforto para muita gente. Os atores têm razão em desconfiar dessa distância entre seu trabalho e a percepção da sua imagem na tela. Operações como esta de Pudovkin desde cedo entraram na rotina do trabalho. Muitos teóricos têm se interessado pela discussão de diferentes aspectos ° desta manipulação que ilustra com bastante evidência a relatividade das “expressões” e das performances no cinema.

Comparando a questão dos atores a serviço da ficção com a da foto observada no tribunal, ganha toda ênfase a importância da pergunta que o observador dirige à imagem em função de sua própria circunstância e interesse. Afinal, na condição de espectador de um filme de ficção, estou no papel de quem aceita o jogo do faz-de-conta, de quem sabe estar diante de representações e, portanto, não vê cabimento em discutir questões de legitimidade ou autenticidade no nível da testemunha de tribunal. Aceito e até acho benvindo o artifício do diretor que muda o significado de um gesto — o essencial é a imagem ser convincente dentro dos propósitos do filme que procura instaurar um mundo imaginário.

A partir de imagens de esquinas, fachadas e avenidas, o cinema cria uma nova geografia; com fragmentos de diferentes corpos, um novo corpo; com segmentos de ações e reações, um fato que só existe na tela. Não questiono a cidade imaginária — o que vejo na tela não corresponde, por exemplo, ao Rio ou São Paulo que conheço. No cabe perguntar de quem é o corpo imaginário ou qual a estrutura real de um espaço visto na tela em fragmentos. Se assim o fizer, o espectador rompe o pacto que assina ao entrar na sala escura para assistir a um filme que tem título, diretor, atores. Diante da imagem apresentada como prova em tribunal, a circunstância e o compromisso são outros, o eixo da verdade e da mentira requer critérios próprios. Para iludir, convencer, é necessário competência e faz parte desta saber antecipar com precisão a moldura do observador, as circunstâncias da recepção da imagem, os códigos em jogo. Embora pareça, a leitura da imagem não é imediata. Ela resulta de um processo onde intervêm não só as mediações que estão na esfera do olhar que produz a imagem, mas também aquelas presentes na esfera do olhar que as recebe. Este não é inerte, pois, armado, participa do jogo.

O OLHAR DO CINEMA COMO MEDIAÇÃO

Há entre o aparato cinematográfico e o olho natural uma série de elementos e operações comuns que favorecem uma identificação do meu olhar com o da câmara, resultando daí um forte sentimento da presença do mundo emoldurado na tela, simultâneo ao meu saber de sua ausência (trata-se de imagens e não das próprias coisas). Discutir esta identificação e esta presença do mundo à minha consciência é, em primeiro lugar, acentuar as ações do aparato que constrói o olhar do cinema. A imagem que recebo compõe um mundo filtrado por um olhar exterior a mim, que me organiza uma aparência das coisas, estabelecendo uma ponte mas também se interpondo entre eu e o mundo. Trata-se de um olhar anterior ao meu, cuja circunstância não se confunde com a minha na sala de projeção. O encontro câmara/objeto (a produção do acontecimento que me é dado ver) e o encontro espectador/aparato de projeção fazem dois momentos distintos, separados por todo um processo. Na filmagem estão implicados uma co-presença, um compromisso, um risco, um prazer e um poder de quem tem a possibilidade e escolhe filmar. Como espectador, tenho acesso à aparência registrada pela câmara sem o mesmo risco ou poder, enfim sem a circunstância. Contemplo uma imagem sem ter participado de sua produção, sem escolher ângulo, distância, sem definir uma perspectiva própria para a observação. Ao contrário das situações de vida em que estou presente ao acontecimento, na sala de espetáculos, já sentado, não tenho o trabalho de buscar diferentes posições para observar o mundo, pois tudo se faz em meu nome, antes de meu olhar intervir, num processo que franqueia o que talvez de outro modo seria, para mim, de impossível acesso. Espectador de cinema, tenho meus privilégios. Mas simultaneamente algo me é roubado: o privilégio da escolha.

Nesse compromisso de ganhos e perdas, aceito e valorizo o olhar mediador do cinema porque as imagens que ele me oferece têm algo de prodigioso — hoje talvez banalizado — advindo de sua liberdade ao invadir a intimidade (uma liberdade da qual usufruo sem riscos), de sua precisão e destreza nos maiores desafios. No cinema, posso ver tudo de perto, e bem visto, ampliado na tela, de modo a surpreender detalhes no fluxo dos acontecimentos, dos gestos. A imagem na tela tem sua duração; ela persiste, pulsa, reserva surpresas. Se é contínua, posso acompanhar um movimento enquanto este se faz diante da câmara; se a montagem intervém, vejo uma sucessão de imagens tomadas de diferentes ângulos, acompanho a evolução de um acontecimento a partir de uma coleção de pontos de vista, via de regra privilegiados, especialmente cuidados para que o espetáculo do mundo se faça para mim com clareza, dramaticidade, beleza. As possibilidades abertas pela temporalidade própria da imagem são infinitas: há o movimento do mundo observado e o movimento do olhar do aparato que observa. Quando a imagem é de um rosto, tenho a interação dos olhares que se confrontam, verdadeira orquestração: o olho que vê e o que é visto têm ambos sua dinâmica própria e cada um de nós já teve ocasiões de avaliar, com maior ou menor consciência, a intensidade dos efeitos extraídos desta orquestração.

O usufruto desse olhar privilegiado, não a sua análise, é algo que o cinema tem nos garantido, propiciando esta condição prazerosa de ver o mundo e estar a salvo, ocupar o centro sem assumir encargos. Estou presente, sem participar do mundo observado. Puro olhar, me insinuo invisível nos espaços a interceptar os olhares de dois interlocutores, escrutinar reações e gestos, explorar ambientes, de longe, de perto. Salto com velocidade infinita de um ponto a outro, de um tempo a outro. Ocupo posições do olhar sem comprometer o corpo, sem os limites do meu corpo. Na ficção cinematográfica, junto com a câmara, estou em toda parte e em nenhum lugar; em todos os cantos, ao lado das personagens, mas sem preencher espaço, sem ter presença reconhecida. Em suma, o olhar do cinema é um olhar sem corpo. Por isso mesmo ubíquo, onividente. Identificado com esse olhar, eu espectador tenho o prazer do olhar que não está situado, não está ancorado — vejo muito mais e melhor.

Observando a experiência por esse ângulo, como então não exaltar o cinema? Como não pensar sua técnica de base em termos de conquista, de progresso? Retomemos um clima típico ao início do século.

O PRIMEIRO ELOGIO ÀS POTÊNCIAS DO OLHAR CINEMATOGRÁFICO: O MOMENTO DA PROMESSA

Alguns cineastas e estetas dos anos 10-20 deixaram registradas as duas reações a esse lado prodigioso da imagem oferecida pela então nova técnica de reprodução. Pensaram o cinema quando sua mediação era um dado inaugural que gerava certas descobertas, uma constelação de sentimentos e percepções novas, ainda não bem equacionadas, que exigiam novos conceitos, um trabalho com a linguagem escrita para expressar o lado mais peculiar da nova experiência. Hoje, é praticamente impossível recuperar vivamente aquele momento, nós que crescemos saturados de imagens e nos movemos num mundo onde o que era antes promessa de revolução se faz agora dado banal do cotidiano, experiência reiterada. De uma pluralidade de reações, elogios, desconfianças, destaco dois tipos de recepção ao advento do cinema. Na primeira, ele é observado enquanto coroamento de um projeto já definido na esfera da representação; na segunda, se vislumbra o cinema enquanto inauguração de um universo de expressão sem precedentes, destinado a provocar uma ruptura na esfera da representação.

Aqueles que o vêem, com simpatia, como um coroamento, inserem o cinema na tradição do espetáculo dramático mais popular, de grande vitalidade no século XIX. Avaliam que, cumprindo os mesmos objetivos, o cinema vai mais longe, pois multiplica os recursos da representação, faz o espectador mergulhar no drama com mais intensidade. O “olho sem corpo” cerca a encenação, torna tudo mais claro, enfático, expressivo: Ao narrar uma estória, o cinema faz fluir as ações, no espaço e no tempo, e o mundo torna-se palpável aos olhos da plateia com uma força impensável em outras formas de representação. Ou seja, em seu “tornar visível”, a mediação do olhar cinematográfico otimiza o efeito da ficção, cumprindo com muita competência uma tarefa que, na esfera da cultura, se considera como própria à arte e, em especial, aos espetáculos. Ao exaltar este salto na eficiência dentro da continuidade de princípios e funções, os críticos, cineastas e produtores afinados às regras do mercado cultural da época celebram o êxito, na produção industrial do século XX, de um projeto que vem do século XVIII e que se definiu, na origem, para a representação teatral.

É comum sermos lembrados do quanto a câmara fotográfica constitui uma objetivação tecnológica recente de princípios da representação já conhecidos, cuja sistematização vem da Renascença italiana (câmara escura, o método da perspectiva, os efeitos de profundidade na superfície da tela). Com a imagem em movimento, o representar a ação dos homens se dá com a franca hegemonia do ilusionismo — a encenação tal e qual o real —, plantado no cinema industrial desde os tempos de Griffith. Fato que cristaliza uma herança menos tematizada pela crítica: a do olhar tal como constituído no drama burguês. Aqui, a referência teórica essencial é Diderot. No momento em que ele escreve suas peças e formula a teoria renovadora do teatro, definindo o drama sério burguês do século XVIII, um elemento central no seu ideário é a crítica ao teatro vinculado aos gêneros clássicos — principalmente ao tipo de encenação que se dava às tragédias clássicas francesas do século XVII. Esse teatro, por demais ancorado na palavra, depende da exclusiva força poética do texto, desdenhando do aspecto visual da experiência do palco. Ou seja, é incapaz de elaborar a cena propriamente dita. Em oposição a essa tradição que reduz a mise-en-scène à recitação do texto com atores quase imóveis, Diderot propõe um teatro que explore a expressividade do gesto, privilegie a ação (não somente as grandes mas também as cotidianas), a composição visual da cena (define os tableaux construídos pela posição recíproca dos atores e da cenografia).

Diderot queria um teatro dirigido à sensibilidade através da reprodução integral das aparências do mundo, queria um método de “dar a ver” as situações, os gestos, as emoções. O ilusionismo, fonte do envolvimento da plateia, é então assumido como a ponte privilegiada no caminho da compreensão da experiência humana, da assimilação dos valores básicos que orientam a peça. Há no filósofo uma forte demanda de expressividade, contra as convenções; de exposição das paixões, de explicitação dos movimentos do coração que se revelam mais autenticamente pelo gesto. Tal demanda, própria ao universo da Ilustração do século XVIII, tem seus desdobramentos e, depois da Revolução Francesa, em outra atmosfera social e política, explode no teatro popular de 1800. Aí se consolida o gênero dramático de massas por excelência: o melodrama. Este tem sido, através do teatro (século XIX), do cinema (século XX) e da TV (desde 1950), a manifestação mais contundente de uma busca de expressividade (psicológica, moral) onde tudo se quer ver estampado na superfície do mundo, na ênfase do gesto, no trejeito do rosto, na eloquência da voz. Apanágio do exagero e do excesso, o melodrama é o gênero afim às grandes revelações, às encenações do acesso a uma verdade que se desvenda após um sem-número de mistérios, equívocos, pistas falsas, vilanias. Intenso nas ações e sentimentos, carrega nas reviravoltas, ansioso pelo efeito e a comunicação. Destinado ao grande público, o melodrama envolve toda uma pedagogia onde nosso olhar é convidado a apreender formas mais imediatas de reconhecimento da virtude, de sinalização do pecado.

Na virada do século, não surpreende que a técnica do cinema, então emergente, tenha assumido esta pedagogia e tenha substituído o melodrama teatral na satisfação de uma demanda de ficção na sociedade. Quando falo em ilusionismo, reprodução das aparências, na verdade que advém do conflito de forças que se expressam e se revelam pelo olhar, estou a afirmar princípios da representação aos quais o cinema vem se ajustar como uma luva. Como braço da indústria cultural, ele participa do movimento de objetivação institucional da Ilustração. Sua otimização do “olhar melodramático” é ponto-limite de um projeto de expressão total da natureza na representação. Reflete um ideal de domínio e controle da aparência como sinal de um “conhecer a natureza”, um ideal que inscreve a arte como espelho pedagógico que requer a competência tecnológica de “criar ilusão” e, por esta via, atingir a sensibilidade: a passagem das trevas à luz se faz de efeitos sobre o olhar.

Dentro do projeto de revelação do mundo para o olhar, os efeitos do close-up logo adquirem a condição de emblema das virtudes da nova arte. Mais do que a montagem — sua condição prévia — o close-up, na França e nos Estados Unidos, atrai o elogio dos cinéfilos como ponto de condensação de um drama que se faz pelo movimento dos olhos — o que vê e o que é visto — e pela trama feita da sucessão de detalhes enganadores e reveladores. Como movimento em direção à intimidade, é visto como potência maior do cinema que, muito cedo, impressionou a todos pela sua capacidade de devastação das intenções ocultas, do pequeno gesto fora do alcance dos interlocutores, do movimento facial que trai um sentimento. Não foi preciso a manifestação da crítica: cineastas e produtores conduziram as experiências reveladoras da força dramática do rosto isolado na tela e D. W. Griffith, usando a tradicional metáfora, muito antes de 1920 já instruía seus atores para a importância dos olhos — “janela da alma” —, trazidos para perto no close-up , disponíveis para o exame.

Foco das atenções e dos elogios, o close-up estará, em 1920, também no centro das reflexões de quem, afastado dos valores promovidos pela indústria do cinema, observa os seus prodígios com outra moldura de interesses e julga os filmes do mercado por demais “domesticados” pela demanda de ficção que induz o novo meio a Seguir os passos do teatro e da literatura popular. Encontramos aqui quem vê o cinema como ruptura, espectadores avessos aos códigos do filme de ação corrente, cinéfilos não interessados na fluência dos acontecimentos, no pulsar da narrativa, nas tensões dramáticas usuais. Através deles, o cinema ganha uma recepção mais empenhada em surpreender aspectos da plástica da imagem, do trabalho da câmara e da presença peculiar do mundo na tela que permanecem recalcados na visão dominante. Para esse olhar diferenciado, através do cinema toda uma esfera nova de percepções se abre a nossa experiência desde que sejamos capazes de entender a expressividade da nova imagem em outros termos, elogiando sim close-up, mas dentro de uma outra ótica: a de quem entende o cinema não como coroamento do ilusionismo teatral, mas coma ruptura, inauguração de um novo diálogo com a natureza e os homens.

São os intelectuais e artistas ligados à arte moderna que lideram essa nova leitura do cinema numa perspectiva que, na França, se traduziu no cinéma d’avant-garde , nas experiências dos surrealistas e nas polêmicas onde esteve em pauta a superação da moldura melodramática, a libertação do olhar sem corpo das amarras da continuidade narrativa, a adequação da nova arte a sua técnica moderna. A convicção que reúne os diferentes grupos, postos de lado os conflitos que os dividem, é a de que o cinema se destina a cumprir uma tarefa de redenção. A tradição cultural do ocidente europeu estaria falida, poder criador preso a convenções obsoletas, saturado de referências que o desvigoram. Enredado em formas de pensar e sentir desgastadas, o homem culto se vê separado da natureza, reprimido, cercado de mentiras, clichês da linguagem, máscaras. O cinema é radicalmente novo, inocente, e traz a precisão da tecnologia. Ele pode e deve romper esta grade, devolvendo aos homens o acesso a uma natureza alienada pelos artifícios de uma cultura hipócrita.

A vanguarda se estabelece como cultura de oposição, separando o espaço utópico da verdade (cinema, vida futura) e o espaço da mentira, da convenção (tradição literária, teatro, cotidiano burguês). Sua fé no cinema se ancora numa ideia de “expressão” que também se apoia na acuidade de reprodução da aparência própria à nova técnica, mas tem um traço peculiar que afasta a vanguarda do pensamento gerado na esfera da indústria. Germaine Dulac e Jean Epstein, principais porta-vozes da avant-garde, concebem o cinema como “expressividade do mundo” num sentido radical. Combatem a noção vaga que nos leva a dizer, sob qualquer pretexto, “isto expressa aquilo”, de um modo que equivale a “isto significa aquilo”, dentro dos variados caminhos pelos quais vamos de um polo a outro, do significante ao significado. Reservam “expressão” para designar um processo determinado, impelido por forças naturais, no qual a composição de forças interior a um organismo deixa marcas na superfície do mesmo — “expressão” é o movimento pelo qual o que está no interior vem forçosamente à tona, aflora, moldando a superfície, engendrando a forma (mutável) que o cinema vem “captar” com exclusividade, pois ele fixa os movimentos na película sem as atrapalhações do olho natural. O cinema tem seu vigor, próprio a um olhar mais automático, regular, implacável, objetivo, não maculado pelos preconceitos culturais, pelas vicissitudes da subjetividade. Dado irônico, porque não tem “interioridade”, o olhar da máquina atinge o princípio interior dos movimentos, revela a verdade que, organicamente, se expressa em sentido pleno, se imprime numa textura do mundo que só a câmara é capaz de registrar. O próprio-instantâneo fotográfico, em sua estrutura mais simples, já nos mostra o quanto a imagem revelada faz emergir dados ocultos que não estavam na mira do fotógrafo. No cinema, o movimento potencializa tal desocultamento, o qual pode tornar-se mais efetivo quando os cineastas forem cúmplices da nova técnica, ao invés de tentar adaptá-la à tradição, como no melodrama. Neste, a expressividade do close-up fica atrelada a toda uma cadeia de imagens cuja lógica é tomada de empréstimo à tradição do naturalismo do século XIX, onde o tornar visível resulta do cálculo, de uma retórica que simula o espontâneo. Para Epstein, o que era adequado ao teatro — como ilusionismo do século XIX — não o é para cinema do século XX, pois a imitação dos gestos, antes oferecida a olhos desarmados, não resiste à análise da nova sensibilidade. Com o cinema, a percepção humana ganhou um acesso especial à intimidade dos processos — nele, a aparência é já uma análise. O close-up não é o lugar do fingimento, é uma presença que revela o que se é, não o que se pretende ser (inúteis as caretas dos atores).

A aposta da vanguarda está no poder analítico do registro cinematográfico, no que ressalta não apenas o close-up (ampliação da imagem no espaço), mas também as alterações de velocidade da câmara, principalmente a câmara lenta (ampliação da imagem no eixo do tempo) que revela o mundo em outra escala e nos descobre a vida secreta que se tece a nossa volta e em nós, ganhando expressão nas formas instáveis, fora da nossa consciência, que agora temos fixadas pela técnica.[1] Epstein, nos seus filmes, experimenta o poder expressivo das diferentes velocidades; Dulac analisa as imagens do movimento animal e dos fenômenos naturais, Fernand Leger explora as relações de forma dos objetos fora de sua inserção utilitária no cotidiano. Embora ‘não totalmente afinado com o cinéma davant-garde, o surrealismo torna-se o movimento de contestação ao cinema industrial de maior impacto, com sua exploração da montagem como revelação das pulsões, anatomia do desejo. Em diferentes direções busca-se a experiência fora do senso comum, olhar em sintonia com — impulsionando — a sensibilidade efetivamente moderna. A “inteligência da máquina” (Epstein) surge então como nova pedagogia — demoníaca, em contraposição ao cenário piedoso do melodrama — pois o cinema teria como destino nos trazer de volta uma cosmologia e um encantamento do mundo para os quais o carte-sianismo e a Filosofia da Ilustração permaneceriam cegos. O horizonte desta Renascença seria a “explosão do universo carcerário da existência atual” (para usar a expressão usada por Walter Benjamin em 1936, ao falar de reprodução técnica, arte e cinema).

A formulação de Epstein-Dulac é questionável quando examinada a partir de sua ideia-matriz de expressão, pois esta torna absoluto o poder analítico (inegável) da imagem cinematográfica, projetando ai uma fé integral no dado visível, na capacidade da imagem, pela força exclusiva de suas relações internas, trazer a verdade à tona (de novo, trata-se da desatenção à moldura, ao contexto de cada imagem). Sua intervenção mais decisiva, no entanto, está no impulso utópico nela presente e no salto teórico que ela oferece ao buscar um pensamento à altura dos aspectos radicalmente novos da experiência do cinema no início do século. Walter Benjamin, o filósofo atento às transformações da sensibilidade geradas pelas novas técnicas, dirá em seu célebre ensaio de 1936: “a natureza que se dirige à câmara não é a mesma que a que se dirige ao olhar”. Estas e outras observações suas — sobre o ator, o poder analítico da imagem — retomam muito do repertório da vanguarda dos anos 20, inserindo a caracterização do olhar do cinema numa reflexão mais ampla sobre técnica e cultura. Nesta reflexão a moldura é outra mas prevalece o mesmo movimento de ressaltar o papel subversivo, revelador, da fotografia e do cinema dentro da cultura europeia. A promessa então se reafirma, sem as premissas de “expressividade total” e de retorno à natureza. Com Benjamin, ela assume um contorno histórico mais bem-demarcado, é formulada por um pensamento mais sensível à contradição e ao caráter das forças sociais em conflito. Pensamento que nos trouxe uma avaliação da questão da arte dentro de uma articulação mais lúcida com a conjuntura política e a própria natureza das apostas em jogo na Europa dos anos 30, polarizada por uma confrontação decisiva entre revolução e reação.

A CRÍTICA DO OLHAR SEM CORPO

No seu elogio ao aspecto revelador do olhar no cinema, o pensamento dos anos 20 colocou o debate em termos de verdade (cinema) e mentira (a tradição cultural) e deu toda ênfase à cumplicidade entre cinema e natureza, solidários enquanto um organismo e sua expressão visual, prontos a expulsar a simulação desde que a nova técnica fosse salva de sua adulteração promovida pelo universo da mercadoria. Por este caminho, a oposição entre um cinema desejado, objeto do recalque social, e aquele que realmente impera (a pedagogia da indústria cultural) se orienta por uma teleologia: o presente é o momento dos entraves que impedem o desenvolvimento na direção correta, capaz de realizar as promessas da nova técnica; o futuro é o preenchimento dessas promessas que, desde já, as vanguardas anunciam e preparam. Entre 1920 e 1960, os poderes reais insistiram em repor o mesmo cinema dominante, o que trouxe em linhas gerais a reiteração da mesma matriz de contestação. O conflito dominante / dominado, traduzido em termos de verdade e mentira, refez-se ao longo de eixos diversos. Quando prevaleceu um eixo político, o pólo da verdade (futuro) se identificou à cultura revolucionária, o da mentira (presente), às mistificações da reação. Quando prevaleceu um eixo estético, verdade foi poesia, originalidade, experimentação; mentira foi a rotina do comércio, o kitsch industrializado.

Não cabe agora a recapitulação do que foram as diferentes versões desse conflito vanguarda /cultura de massa conforme país e época. Não o poderia fazer nem quero, pois meu objetivo é saltar desta primeira reflexão dos anos 20 para uma bem próxima de nós, gerada no contexto francês pós-68, reflexão que abandonou a tradição de se opor verdade e mentira, deslocando a discussão sobre a técnica do cinema.

No grande intervalo que saltamos, a crítica avançou na caracterização do olhar sem corpo e suas implicações, notadamente na avaliação de sua estrutura mais comunicativa e sedutora: o cinema clássico, olhar da indústria, expressão da ideologia dominante nos meios. Extensão do que chamei “olhar melodramático”, o cinema clássico é sua modernização. Faz com que ele abandone os excessos maiores do passado, ganhe em sutileza, profundidade dramática, amplitude temática, concretizando o ver mais e melhor do cinema na direção de um ilusionismo mais completo — o cinema clássico é o olhar sem corpo atuando em sentido pleno, conforme a caracterização dos seus poderes apresentada em minha primeira descrição que, de fato, se ajusta mais precisamente a este estilo particular, dominante no mercado, e não a todo o cinema possível. É nele, mais do que em qualquer outra proposta, que vemos realizado o projeto de intensificar ao extremo nossa relação com o mundo-objeto, fazer tal mundo parecer autônomo, existente em seu próprio direito, não encorajando perguntas na direção do próprio olhar mediador, sua estrutura e comportamento. Somos aí convidados a tomar o olhar sem corpo como dado natural.

Entre a Segunda Guerra Mundial e os anos 60, dois grandes polos de reflexão conduziram a crítica a essa •naturalidade postulada pelo cinema clássico: a teoria radical do cinema-discurso baseado nas operações da montagem (o Eisenstein dos anos 20-30 permaneceu aqui a referência maior) e a crítica francesa inspirada na fenomenologia, tendo como foco maior André Bazin.

Falar de Eisenstein exigiria uma abordagem radicalmente distinta da que faço agora, pois a sua crítica ao ilusionismo começa com a advertência de que a imagem cinematográfica não deve ser lida como produto de um olhar. Para ele, a suposição de que houve um encontro, uma contiguidade espacial e temporal, entre câmara e objeto não é o dado central e imprescindível da leitura da imagem. A sua presença na tela é um fato de natureza plástica que deve ser observado em seu valor simbólico, avaliadas as características da sua composição e sua função no contexto de um discurso que é exposição de ideias, não sucessão natural de fatos “captados” pelo olhar. A diferença entre um plano geral e um close-up, por exemplo, muitas vezes não pode ser entendida como “olhar à distancia” versus “olhar de perto”, mesmo quando se focaliza o mesmo objeto, mas como confronto de duas imagens de valores distintos. A diferença é de função, valor, não de posição no espaço, pois pode não haver continuidade e homogeneidade espacial para que se possa falar num “chegar mais perto” — tudo depende do contexto do discurso por imageris.

Ao contrário de Eisenstein, os críticos inspirados na fenomenologia endossam e defendem a premissa.de que, no cinema, toda imagem é produto de um olhar — é essencial que se a veja como tal — e a sucessão define sempre a atitude de um observador diante de um mundo homogêneo. À imagem-signo de Eisenstein, eles opõem a imagem-acontecimento, à defesa da descontinuidade própria ao cineasta russo, respondem com uma defesa até mais radical do princípio de continuidade já presente na narração clássica, fazendo a esta um reparo fundamental: se a imagem em movimento nos traz a percepção privilegiada do homem como ser lançado no mundo, como ser-em-situação, a falsidade do cinema clássico está na manipulação implícita em sua montagem, pois o olhar sem corpo e a onividência criam, na tela, um mundo abstrato, de sentido fechado, prejulgado e organizado pelo cinema. Toda montagem é discurso, manipulação, seja de Eisenstein, Griffith ou Buñuel. Em oposição, um crítico como Bazin solicita um olhar cinematográfico mais afinado ao olho de um sujeito circunstanciado, que possui limites, aceita a abertura do mundo, convive com ambiguidades. Quando pede realismo, ele não se detém em considerações de conteúdo (o tipo de universo ficcional ou documentário). Sublinha a postura do olhar em sua interação com o mundo, tanto mais legítima quanto mais reproduzir as condições de nosso olhar ancorado no corpo, vivenciando uma duração e uma circunstância em sua continuidade, trabalhando as incertezas de uma percepção incompleta, ultrapassada pelo mundo. Daí a sua minimização da montagem (instância construtora da onividência), sua defesa do plano-sequência (olhar único, sem cortes, observando uma ação em seu desenrolar, um acontecimento em seu fluir integral).

Em nossa visão de hoje, prestamos atenção especial ao que aproxima e não apenas ao que afasta o cinema-discurso de Eisenstein e o realismo existencial de Bazin: há em ambos, novamente, a atribuição de um poder de verdade e de um poder de mentira encarnados em determinados estilos. Para Eisenstein, há um estilo capaz de dizer o mundo social-histórico, colocando o cinema como potência maior no plano do conhecimento. Para Bazin, o cinema é uma espécie de “terceiro estado da criação” e existe um estilo autêntico, exclusivo, na captação da vivência humana em sua essencial abertura no tempo.

Contra este pano de fundo da tradição teórica, a intervenção de Jean-Louis Baudry, em 69-70, põe em questão a constante promessa de um estilo mais verdadeiro e dirige seu ataque às premissas do cinema em geral, examinando mais fundo as condições do espectador (seu raciocínio está municiado para analisar o espectador do filme clássico, mas Baudry fala em cinema tout court).[2] O horizonte de seu exame do espectador é ressaltar o modo pelo qual a recepção da imagem possui uma estrutura que, a seu ver, solapa o reiterado crédito — de Bazin, Eisenstein, Griffith, Epstein na revelação da verdade como destinação fundamental do cinema. Ele inverte a tradição e vê na simulação, na produção de efeitos (ilusórios) de conhecimento o destino maior da nova arte (visão que julga confirmada pela permanência do ilusionismo do cinema industrial). Tal se dá por força da própria natureza da técnica cinematográfica, herdeira das ilusões da perspectiva, da persistência retiniana (não vemos os fotogramas, vemos o que não ocorre na tela, ou seja, o movimento da imagem, temos a impressão de continuidade), da falsa autenticidade documental da fotografia. Rearticulando elementos já conhecidos, Baudry nos traz uma interpretação radical que questiona não estilos particulares de fazer cinema, mas o fundamento mesmo de sua objetividade enquanto técnica, esta mesma objetividade que tem sido a sustentação maior das esperanças de verdade. Na nova perspectiva, as diferentes posições teóricas, desde 20, definem um pensar o cinema apriori capturado pelas ilusões da técnica e desatento às implicações contidas na própria estrutura do olhar da câmara tal como se dá para nós na plateia. A técnica tem suas inclinações, seus efeitos ideológicos e, neste sentido, é ela mesma que impele o cinema industrial a desenvolver seu ilusionismo e trazer o espectador para dentro do mundo ficcional. A força de encantamento deste cinema persiste na história porque o dado crucial em jogo não é tanto a imitação do real na tela — a reprodução integral das aparências —, mas a simulação de um certo tipo de sujeito-do-olhar pelas operações do aparato cinematográfico.

Avaliar a potência do olhar sem corpo não é então inventariar as imagens que ele oferece, é focalizar o seu movimento próprio, sua forma de mediação, o que implica analisar sua incidência no espectador que vivencia o poder de clarividência, a percepção total. Na sala escura, identificado com o movimento do olhar da câmara, eu me represento como sujeito desta percepção total, capaz de doar sentido às coisas, sobrevoar as aparências, fazer a síntese do mundo. Minha emoção está com os “fatos” que o olhar segue, mas a condição de tal envolvimento é eu me colocar no lugar do aparato, sintonizado com suas operações. Com isto, incorporo (ilusoriamente) seus poderes e encontro nesta sintonia — solo do entendimento cinematográfico — o maior cenário de simulação de uma onipotência imaginária. No cinema, faço uma viagem que confirma a minha condição de sujeito tal como a desejo. Máquina de efeitos, a realização maior do cinema seria então este efeito-sujeito: a simulação de uma consciência transcendente que descortina o mundo e se vê no centro das coisas, ao mesmo tempo que radicalmente separada delas, a observar o mundo como puro olhar. Nesta apropriação ilusória da competência ideal do olhar, estou, portanto, no centro, mas é o aparato que aí se coloca, pois é dele o movimento da percepção, monitor da minha fantasia.

Para Baudry, uma filosofia idealista que postula um sujeito transcendente em oposição ao mundo objeto que se dispõe ao conhecimento encontra aí, na técnica do cinema, sua tradução visível. Toda a sua ênfase recai sobre a produção simultânea da imagem e do sujeito-observador onividente. A engenharia simuladora do cinema define, com o efeito-sujeito, o seu teatro da percepção total cujo protagonista sou eu-espectador identificado com o olhar da câmara.

Nestes termos, o que dificulta a consolidação de linguagens alternativas “mais verdadeiras” é este pecado original inscrito na técnica. Esta tem na ilusão seu sustentáculo e os percalços das vanguardas se devem a que sua aposta é a de reverter a função daquilo que já nasceu para cumprir outro destino. Digo destino porque a lógica desta teoria transforma o cinema num órgão que surgiu para cumprir um programa: o de objetivar, na esfera do visível, estratégias de dominação, especialmente as da classe burguesa que presidiu a sua origem. Assim, antes de instância liberadora, subversiva, a condição do cinema é de preencher uma demanda do próprio “universo carcerário”, tornando este mais preciso e poderoso em seu aparato.

Há uma atmosfera de desencanto instalada a partir dos anos 70; a formulação aqui exposta é a tradução teórica radical dos impasses da contestação no cinema. Temos o esgotamento de um teleologia — a da técnica redentora “entravada” pela política e a economia — e sua substituição por uma outra: a da técnica como instrumento maior de reposição de um sistema de poder. Em consonância com a tonalidade da reflexão sobre a linguagem, a cultura e a ideologia naquele momento, a teoria do cinema mais original e polêmica ressalta o lado sistemático, inelutável, das ilusões e dos enganos do olhar da câmara. Neste contexto, a própria prática do cinema amplia o espaço para a reflexão teórica voltada para a questão do simulacro — a citação, a imagem que alude a imagem, o circuito das referências a si mesmo que o cinema leva ao paroxismo entram para valer na esfera da indústria, constituem sua nova marca. Tal reflexão se faz dentro de molduras conceituais diversas e num processo em que a teoria do cinema reflete o andamento dos debates mais abrangentes sobre a cultura contemporânea. A imagem cinematográfica é então observada a partir de sua participação em outra rede de relações, onde não há lugar para a interpretação (este tomar a imagem como representação de algo exterior a ela), para o juízo de verdade ou mentira, onde se dissolve a oposição aparência (imagem)/ essência (substância) — nada há por trás das imagens, estas valem como efeitos-de-superfície, imagem remetendo a imagem, fluxo de simulacros.

Faço agora uma incursão que não é propriamente no terreno da nova filosofia e das questões mais amplas do simulacro na produção. Trata-se de uma análise particular no nível da engenharia da simulação, caracterização de um efeito onde não é necessário assumir as noções com toda a ressonância que elas adquiriram na literatura dos anos 80. Fecho a exposição com a consideração de um novo exemplo que, acredito, esclareça algumas observações feitas até aqui sobre a interação entre espectador e imagem, sobre o papel da “moldura do sujeito” na leitura.

Parti de um primeiro exemplo mais simples para explicar como o efeito de uma imagem depende de sua relação com um sujeito em determinadas condições. Da situação da testemunha de McCarthy, passei a uma caracterização mais detida do olhar do cinema e examinei dois momentos opostos dentro do conflito de perspectivas que marcou a reflexão crítica em torno do que há de engano e revelação neste olhar. A partir de uma discussão mais geral sobre a simulação do fato — na fotografia, no cinema — chegamos a uma questão mais específica: a simulação do sujeito na estrutura mesma do olhar cinematográfico . Dentro da discussão mais geral, o novo exemplo envolve uma situação mais complicada do que a das fotos do tribunal — estaremos no cinema. Como inspiração, terei presentes as lições de Baudry sem, no entanto, incorporar o movimento totalizador de sua crítica ao olhar do cinema. Seu amplo diagnóstico, mobilizando a psicanálise, tem como pressuposto que sabemos o bastante sobre a natureza do espectador de modo a prever o caráter de sua identificação com o aparato, a qual assume uma dimensão única de adesão à imagem por força do efeito-sujeito. Conhecedores do desejo do espectador, denunciamos o conluio deste desejo com o programa da indústria e deduzimos daí a alienações do cinema e da plateia. Não tenho condições de endossar a generalidade deste saber a respeito do espectador; o aparato atua em determinada direção mas a experiência do cinema inclui outras forças e condições que não se ajustam ao programa do sistema. A formulação de Baudry, embora inclua com toda a força a dimensão do desejo do espectador, não deixa de ser uma outra versão das teorias da manipulação global, centradas em excesso no aspecto programático da experiência, de modo a confundir o processo que efetivamente se dá com a lógica ideal do sistema. Focalizo uma situação particular, didática neste contexto, onde é perfeito o funcionamento do aparato, onde podemos verificar o mecanismo da simulação em estado, digamos, de laboratório.

SIMULAÇÃO E PONTO DE VISTA

Toda leitura de imagem é produção de um ponto de vista: o do sujeito observador, não o da “objetividade” da imagem. A condição dos efeitos da imagem é esta. Em particular, o efeito da simulação se apoia numa construção que inclui o ângulo do observador.[3] O simulacro parece o que não é a partir de um ponto de vista; o sujeito está aí pressuposto. Portanto, o processo de simulação não é o da imagem em si mas o da sua relação com o sujeito. Num plano elementar, podemos tomar o cinema como modelo do processo. O que é a filmagem senão a organização do “acontecimento” para um ângulo de observação (o que se confunde com o da câmara e nenhum outro mais)? O que é a fachada de prédio de estúdio senão a duplicação do mesmo princípio da fachada “de rua” que sugere o que não é justamente quando observada de um certo ângulo e distância já pressupostos em sua composição? O que é a ficção do cinema clássico senão uma simulação de mundo para o espectador identificado com o aparato?

Vejamos Um corpo que cai, o filme de Hitchcock realizado em 1958. Ele é a trama da simulação por excelência, como já observado pela crítica. Trago um aspecto novo à consideração: o do espelhamento que existe entre o estratagema que envolve as personagens do drama e o próprio princípio da narração do filme. Tal como em outras obras de Hitchcock, o cinema clássico aqui opera com eficiência máxima e, ao mesmo tempo, oferece a metáfora viva para o seu próprio processo. Interessado nesta metáfora acentuo nesta análise a mecânica da simulação, o funcionamento exterior do aparato, não o que, nas personagens, é desejo do estratagema e disposição para a vertigem da imagem.

Sigamos passo a passo a narrativa, até o ponto que interessa.

Vertigem, título original, é a palavra que condensa as ideias-força do filme em sua tematização do olhar, do ponto de vista. A apresentação de Vertigo, criação de Saul Bass, nos traz a imagem do rosto feminino em close-up, tratado como máscara enigmática, imóvel. Uma aproximação maior e um passeio da câmara examinam esta máscara em seus detalhes até que, isolado, o olho ofereça os sinais de vida. Os seus movimentos, no entanto, não criam uma expressão definida, uma intencionalidade do olhar. Preparam apenas o cenário para um movimento em espiral, na profundidade. Mergulho na interioridade onde nunca atingimos o fundo sempre em recesso. Aproximação e recuo, atração e fuga — a ambiguidade do movimento da espiral figura a experiência matriz de todo o filme cujo eixo é o percurso de Scottie, profissional do olhar, detetive, personificação da vertigem. Logo na primeira sequência se define a questão deste protagonista: numa, perseguição pelos telhados de San Francisco, a vertigem de Scottie o faz responsável pela morte de um guarda que cai no vazio ao tentar ajudá-lo. Sentimento de culpa, aposentadoria compulsória. Estabelecida a disponibilidade total de Scottie, a situação-chave de Vertigo se desenha quando ele atende ao chamado de Elster, ex-colega de escola que, no reencontro, o surpreende com o pedido para que siga sua mulher, Madeleine. Elster se mostra apreensivo com as manifestações de ausência de Madeleine, períodos de comportamento estranho em que ela parece ser outra pessoa, viagens de que retorna sem lembranças. O ex-detetive ensaia um ceticismo apenas aparente e se dobra ao enigma proposto. Passa a acompanhar os trajetos de Madeleine, pesquisa pela cidade, recolhe dados essenciais. Um primeiro quadro se compõe: a figura que se apossa de Madeleine em seus transes é Carlota Valdez, mulher que viveu em San Francisco no século XIX e que se suicidou em circunstâncias melancólicas. Novamente com Elster, Scottie relata as descobertas. O marido introduz novo dado: Madeleine está em perigo de vida, pois descende de Carlota, outras mulheres da linhagem cometeram suicídio e ela tem agora a idade de Carlota ao morrer.

Na primeira série de passeios de Madeleine, fase em que se compõe o quadro, tivemos uma ostensiva duplicação: num primeiro plano, Scottie observa Madeleine, que não reconhece sua presença (ele está fora do território dela) e se põe disponível ao olhar se movimentando como numa cena; num segundo plano, ao longo do mesmo eixo, a câmara observa Scottie que vigia Madeleine. São duas esferas, uma dentro da outra, que não se tocam. Ela enquadrada pelo ponto de vista dele, ambos enquadrados por nós no lugar da câmara. Madeleine nunca devolve o olhar a Scottie, ninguém devolve o olhar à câmara (regra do filme clássico). Mas é ambígua esta passividade pois é o movimento dela que dirige o olhar dele, é a ação de ambos que dirige o nosso olhar, sempre na esteira do ângulo de observação de Scottie, com quem partilhamos a ignorância, a curiosidade, a descoberta.

Após a segunda conversa com Elster, o tema do suicídio engendra uma ruptura neste esquema de perfeita simetria. Madeleine /Carlota atira-se na baía de San Francisco; Scottie a resgata. Nós permanecemos puro olhar; ele passa ao plano da intervenção e do diálogo. Os dois juntos, ganha certa concretude o que, em Scottie, é já sonho romântico, tonalidade de experiência ironicamente mimetizada pela textura do filme, projetada nos espaços, no som, configurando um desfile de clichês do melodrama. Encarnando a figura híbrida de detetive, apaixonado e terapeuta, Scottie permeia cada encontro de inquirições, procura devassar o imaginário de Madeleine / Carlota, decifrar a esfinge, provocar a catarse reveladora, curar Madeleine. Nada nos coloca adiante dele na investigação.

A nova ruptura vem quando Scottie conduz Madeleine a uma missão católica perto de San Francisco, procurando explorar um sonho dela que julga revelador, sinal de que a solução do enigma está próxima e com esta, a salvação, superada a pulsão de morte que a domina. Lá chegando, tudo se precipita quando Madeleine abandona suas recapitulações e insiste em caminhar sozinha em direção à igreja, procurando livrar-se de Scottie, que não consegue, enfim, retê-la e percebe, em pânico, a torre alta do sino. A montagem alternada nos traz a pressa de Madeleine rumo à capela e à torre, seguida de Scottie, que, como suspeitamos, jamais chegará ao topo da escada, retido pela vertigem — somos retidos com ele. Ouve-se o grito e, por uma das aberturas da torre, vislumbra-se o corpo que cai.

O ex-detetive vive a reiteração da culpa, humilhação pública de um julgamento onde é absolvido porém psicologicamente massacrado; Elster se despede olimpicamente não sem antes também absolvê-lo. Scottie entre em colapso, é internado. Quando retorna às ruas de San Francisco, destila sua fixação no passado, volta aos mesmos lugares, quer encontrar em cada mulher a figura perdida, movido por qualquer semelhança. Um dia, depara com Judy (Kim Novak, novamente), diferente nas maneiras, no cabelo; distante em termos de classe. Em tudo o mais a réplica de Madeleine. Ele a segue, bate à porta do seu quarto de hotel, explica os seus motivos, convida-a para jantar. Ela desconfia, dá provas de sua identidade (sou Judy, não o conheço), tenta a rejeição, mas finalmente aceita. Satisfeito, ele diz a hora do encontro e se retira. Pela primeira vez em todo o filme não o acompanhamos, nos separamos de seu ponto de vista. De repente, não é mais dele a moldura que define os contornos do nosso olhar. Retidos no quarto, ficamos ao lado de Judy, nova baliza, e temos a revelação imediata, sem delongas, que não espera o final: Judy é Madeleine.

Sozinha no quarto, hesitante, nervosa, precisando decidir se foge ou assume o risco do reencontro com nova identidade, Judy/Madeleine recapitula a trama urdida por Elster. Para se livrar da sua mulher, este contratou Judy para simular Madeleine. Ou seja, assumir esta identidade para alguém colocado no ponto de vista de Scottie. Elster sabia dos problemas do detetive aposentado e engendrou o esquema do crime que fez de Scottie a testemunha ideal pois era esperado que ele nunca chegaria ao topo para ver Madeleine ser atirada por ele, Elster, quando Judy, com o mesmo traje e aparência, chegasse, certamente sozinha, ao alto da torre. Pensando ser sujeito ativo na cura de Madeleine/ Carlota, Scottie tentou resgatar e se apaixonou por um simulacro, por uma imagem construída para seu ponto de vista. O dispositivo montado estava todo apoiado nas posições recíprocas de observador e imagem, dueto que deu corpo à ficção consagrada a posteriori pela sistemática do tribunal (num estratagema bem mais complexo, Judy/Madeleine ocupa o lugar da falsa evidência apresentada à testemunha no meu primeiro exemplo). O diagnóstico do suicídio que absolve Scottie é a consumação do crime perfeito. A posição de Elster — aquele que sabe — corresponde à posição do dispositivo narrador da estória no cinema clássico (permanece à sombra e orquestra as imagens). Portanto, no enredo que coloca em cena, Vertigo espelha o próprio mecanismo deste cinema que, via de regra, se constrói segundo a lógica do crime perfeito: define o meu ponto de vista, dá corpo ao simulacro, é monitor de meu desejo, tal como o dispositivo Elster-Judy-Madeleine-Carlota em relação a Scottie.

O filme de Hitchcock vai adiante, não se reduz à exposição deste mecanismo. Este se encontra inserido num tecido de relações que envolve não só a identidade e o desejo de Scottie mas também a identidade e o desejo de Judy/Madeleine (a simulação não foi apenas para ele, a paixão não foi apenas dele). Uma leitura mais completa de Vertigo exigiria a consideração detalhada do movimento derradeiro da trama. Revelado, para nós, o estratagema do crime, as questões permanecem na esfera das duas personagens, agora entregues à resolução de todo o dispositivo de identidade/simulação/vertigem.[4] Permanecendo, porém, nas considerações sobre o aparato do olhar, meu objetivo central aqui, me afasto do filme, não sem antes fazer breve referência ao que, na parte final de Vertigo, nos devolve à questão da leitura da imagem no cinema.

No reencontro das personagens, Scottie, impelido por sua fixação na imagem do passado, insiste em fazer de Judy, nos mínimos detalhes, a réplica fiel de Madeleine. Ao observar a sua metamorfose, redefinimos a nossa relação com a cena antiga: a imagem de Kim Novak era Judy, que era Madeleine, às vezes Carlota, Judy possuída por Madeleine (a possessão, transferência, se refaz agora); Madeleine (Judy) falando de sentimentos que eram de Judy (Madeleine), numa duplicação de palavras, expressões, gestos que não permite definir os contornos que separam, uma da outra, estas quatro presenças. Refiro-me a Kim Novak porque todo o estratagema do filme conta com os falsetes, fragilidades de seu desempenho para o bom efeito. A construção das identidades em abismo embaralha a enunciação dos gestos: como dizer quem “expressa” o quê quando a ação dramática requer um fingir fingimento num processo em cascata? Vertigo ilustra, neste aspecto, o quanto a leitura do rosto está atrelada à moldura que possuo e não à exclusiva expressividade da imagem. Tudo nas palavras e gestos de Judy/Madeleine ganha um sentido novo a partir de cada deslocamento do ponto de vista. O que não significa apenas uma questão de espaço e informação mas inclui, de modo decisivo, uma disposição particular do observador, que completa a ação invisível do aparato (no caso, para a consumação dos efeitos desejados, era preciso que o espectador da cena fosse Scottie, com seu perfil e seu passado).

Tomei Vertigo como um laboratório onde, sob controle, exibe-se uma engenharia da simulação: aquela acionada pelo olhar do filme clássico, a qual alia a força de sedução da cena _à invisibilidade do aparato. Para finalizar, gostaria de ir além desta referência mais imediata ao aparato do cinema clássico, pois a análise aqui feita permite uma inversão nos mecanismos destacados por discursos sobre o poder que mobilizam a metáfora da sociedade como “universo carcerário” e se desdobram em imagens do “aprisionamento pelo olhar”. Frente aos aparatos de comunicação que nos cercam é comum a caracterização de uma competência de controle, de ordenamento, cristalizada no olhar vigilante, onipresente, que se volta o tempo todo para nós. Considerando as tecnologias do olhar, podemos, entretanto, destacar um processo ordenador menos ostensivo que envolve a ação de um olhar que, ao invés de estar voltado para mim, olha por mim, me oferece pontos de vista, coloca-se entre eu e o mundo (lembremos a ironia de Vertigo: Scottie é o olhar vigilante, profissional, mas o processo de controle atua em sentido inverso — é o dispositivo que define o seu ponto de vista). Cercado de imagens, me vejo inscrito pela media numa segunda natureza, num processo que implica um cotejo de pontos de vista muito peculiar, que me afasta, por exemplo, do enfrentamento próprio à relação pessoal, intersubjetiva. Esta se constitui pela devolução do olhar e nela repercute o que nos diz o poeta Antonio Machado: o olho que vejo é olho porque me vê, não porque o vejo. Diante do aparato construtor de imagens, minha interação é de outra ordem: envolve um olho que não vejo e não me vê, que é olho porque substitui o meu, porque me conduz de bom grado ao seu lugar para eu enxergar mais… ou talvez menos.

Dado inalienável de minha experiência, o olhar fabricado é constante oferta de pontos de vista. Enxergar efetivamente mais, sem recusá-lo, implica discutir os termos deste olhar. Observar com ele o mundo mas colocá-lo também em foco, recusando a condição de total identificação com o aparato. Enxergar mais é estar atento ao visível e também ao que, fora do campo, torna visível.

[1] Esta aposta no poder analítico do cinema tem uma versão radical naquele momento na União Soviética, encarnada no projeto do Cine-Olho, de Dziga Vertov, que procura realizar no cinema documentário a verdade que desmascara a cultura burguesa tradicional. A especificidade de Vertov frente aos franceses é a ligação essencial que ele estabelece entre desmascaramento e exposição dos processos efetivos do trabalho, da produção social, exposição das relações de classe e de poder que se faz pela montagem cinematográfica.

[2] O mais importante dos textos de Jean-Louis Baudry desta época, em torno de 1970 — “Os efeitos ideológicos do aparelho de base” —, está publicado na antologia A experiência do cinema, Rio de Janeiro, Graal/Embrafilme, 1983

[3] Nestas asserções, estou me apoiando no artigo _de Xavier Audouard, “Le simulacre” , in Cahiers pour Panalyse n° 3, mai.-jun. 1966, Paris, Cercle d’épistémologie de l’Ecole Normale Supérièure. O horizonte de Audouard é o de uma discussão sobre o idealismo platônico; seu terreno é, portanto, distinto e meu empréstimo não implica uma identificação de perspectiva de análise.

[4] Para uma leitura de Vertigo que trabalha o dispositivo identidade-simulação-vertigem e, em particular, sua resolução trágica ao final do filme, ver Robin Wood, Hitchcock’s Films. Nova York, Castle Books, 1969, onde a moldura é a psicanálise; e Nelson Brissac Peixoto, Cenário em ruínas, São Paulo, Brasiliense„ 1987, cujo texto pressupõe uma reflexão mais recente sobre o mundo dos efeitos-de-superfície, o vazio, a dissolução da origem, o simulacro.

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