Crença e opinião
por Marcelo Coelho
Resumo
Qual seria a distinção entre os conceitos de “fé”, “crença” e “opinião”?
Naturalmente, essas noções podem superpor-se conforme o contexto, mas ao separá-las, será possível verificar de que modo, no momento atual, fragilizou-se o que cada uma possuía de específico.
A opinião é um fenômeno primordialmente individual, enquanto a crença tem um caráter coletivo, com a fé religiosa assumindo um papel ao mesmo tempo mais largo e mais específico, institucionalizando, sistematizando e universalizando determinadas sensações e experiências que são de ordem essencialmente íntima e incomunicável.
Se a situação contemporânea se caracteriza por um enfraquecimento da subjetividade e pela dissolução da experiência do “real” diante do predomínio do “virtual”, em que medida haveria ainda condições para o exercício da opinião subjetiva? Nessa avaliação, seria plausível dizer que o campo da “crença” tomou posse, por assim dizer, o espaço da opinião individual? Se não nasce do confronto entre diferentes pontos de vista, qual o sentido atual de um termo como “opinião pública”? Ao mesmo tempo, vive-se a voga do termo “formador de opinião”. A aceitação recente desse termo, e a conotação mais para positiva que costuma acompanhá-lo, dizem muito a respeito desse estado contemporâneo de “vazio de pensamento”.
A ideia iluminista clássica de “liberdade de opinião”, como algo a ser exercido a partir da consciência individual, da experiência do sujeito em diálogo com seus pares e em confronto com as contingências do mundo real, já havia sofrido violento abalo com o desenvolvimento das técnicas de propaganda e dos meios de comunicação de massa durante o século XX. Não deixava de persistir, entretanto, uma contraposição ideal entre aquilo que seria da ordem do pensamento independente e aquilo que se deve aos recursos de manipulação e convencimento disponíveis aos donos do poder. Na ideia de “formação de opinião” parece estar em jogo uma forma particular, e bastante perversa, de se dar conta das mutações do espaço público depois do fim da Guerra Fria. Em que o processo de “formação de opinião” difere dos mecanismos mais crus de manipulação e propaganda? A historiadora americana Alice O’ Connor, discutindo a atualidade do pensamento de George Orwell no contexto ideológico da era Bush, nota a frequência com que se ocultam, no pensamento neoconservador, os argumentos diretamente ligados aos valores últimos da sociedade que se quer construir, em favor do uso pretensamente objetivo de dados estatísticos e de resultados “factuais” de pesquisas sociológicas. Seria como se os fatos — em seu estado “científico” — se transformassem em argumento, sem o recurso emocional característico da propaganda do século passado.
Ocorre, por outro lado, que a própria “materialidade dos fatos” se encontra sob suspeita, quando o poder da imagem e da sua manipulação virtual cresce na mesma proporção com que se democratiza o acesso aos meios de comunicação. “Quando o processo de determinar se os fatos de uma situação foram intencionalmente deturpados pelos ocupantes do poder (por exemplo, no que diz respeito à existência ou não de armas de destruição de massa nas mãos de Saddam Hussein)”, diz o jornalista Nicholas Lemann, torna-se muito mais difícil levar adiante a crítica das estratégias dominantes em termos de sua “linguagem” ou de sua
“ideologia”. O acesso aos fatos, e não propriamente à comunicação, é que se encontra barrado. Seria possível, nessas condições, falar em “opinião pública”, ou mesmo na simples possibilidade de se ter “opinião”? Terá a própria “opinião” passado a ser uma especialidade profissional, da qual apenas uma parcela mínima da população — os “formadores de opinião” — detém a posse e o segredo?
Um filme americano de 2008, intitulado Dúvida (Doubt), pode ajudar-nos a fazer, para os propósitos deste ensaio, uma distinção mínima entre os conceitos de “fé”, “crença” e “opinião”. Naturalmente, essas noções podem superpor-se conforme o contexto, mas ao separá-las, no início desta discussão, será possível verificarmos posteriormente de que modo, no momento atual, fragilizou-se o que cada uma possuía de específico.
A história do filme, dirigido pelo teatrólogo John Patrick Shanley, se passa num colégio católico americano, em meados da década de 1960. Na diretoria do colégio pontifica a figura soturna e severíssima da Irmã Aloysius Beauvier, vivida por Meryl Streep. Única figura masculina na hierarquia do colégio, o padre Brendan Flynn (Phillip Seymour Hoffman) tem uma personalidade bem mais tolerante, esportiva e liberal. A partir de alguns indícios extremamente vagos, a Irmã Beauvier desconfia que o padre esteja seduzindo um aluno pré-adolescente. Uma professora bem mais jovem, a Irmã James (Amy Adams), simpatiza com as ideias do padre. Acompanha o embate entre este e a diretora, e resiste a acreditar nas más intenções do primeiro. Enquanto isso, a diretora procura investigar se, anteriormente, o padre Flynn já não havia sido transferido de outros colégios por ter algum histórico de pedofilia.
Estamos aqui diante de três ordens, digamos assim, de convicção pessoal. O plano da fé é compartilhado pelos três personagens: são todos católicos, seguem rigorosamente os preceitos externos da religião, embora tenham modos de vida e interpretações mais rígidas, ou mais amplas, do que é o ensinamento católico.
O plano das crenças, por outro lado, envolve uma série de pressupostos relacionados à religião, mas não diretamente codificados por ela. Assim, se a fé católica exige obediência à Bíblia, aos mandamentos, às orientações do Vaticano, é evidente que a pedofilia e a homossexualidade são condenáveis. Não estaríamos aqui diante de uma questão de crença, nem de opinião, mas de fidelidade ao que afirma o catolicismo.
Na atuação da diretora do colégio, entretanto, a fé vem acrescida de uma crença específica: a de que um homossexual, um pedófilo, age de tal forma que, mesmo arrependido sinceramente do que fez, mesmo prometendo não incorrer nos mesmos pecados, será incapaz de resistir à tentação. “Um cão que morde uma vez morde sempre”, declara a diretora, que irá lutar de todos os modos para expulsar o padre da escola. Eis uma atitude que não está sancionada por sua fé, nem autorizada por sua religião. Seria este, portanto, o plano da crença, no qual se inserem, por exemplo, ideias como a de que todo homossexual é dissimulado, ou de que qualquer contato físico carinhoso entre dois homens é sinal de homossexualismo.
Num terceiro plano, mais específico do que o da fé ou da crença, situa-se a opinião. É uma questão de opinião, por exemplo, saber se o padre Flynn de fato era pedófilo ou não, a diretora e a professora mais jovem se dividem quanto a este aspecto. Acreditam, ou desacreditam da história do padre, mas na sua discordância não estão em jogo nem as crenças da diretora nem a fé que os três personagens têm em comum.
Dito deste modo, podemos concluir que a opinião é um fenômeno primordialmente individual, enquanto a crença tem um caráter coletivo, com a fé religiosa assumindo um papel ao mesmo tempo mais largo e mais específico, institucionalizando, sistematizando e universalizando determinadas sensações e experiências que são de ordem essencialmente íntima e incomunicável.
O que a opinião estaria a envolver, neste esquema, é a presença de um julgamento, a ser feito por um sujeito independente, baseado em sua história de vida, suas experiências com a realidade, sua capacidade de “ler” e “interpretar”, num contexto específico, sinais comunicativos e evidências factuais sobre os quais paira algum tipo de incerteza.
A pergunta básica a formular, como início desta discussão, seria a seguinte. Afinal de contas, é possível, hoje, alguém ter opinião? Uma opinião própria, pessoal, individual, sobre qualquer assunto? Precisemos um pouco os termos do debate. Naturalmente, qualquer pessoa tem suas crenças. Está convicto, por exemplo, de que Deus existe, de que duendes existem, de que a vacina que tomou contra a gripe suína de alguma coisa deve servir. A força dessas crenças, provavelmente, já é uma questão bastante relativa e variável, porque não sabemos exatamente, nem a própria pessoa sabe, no que acredita exatamente quando diz que acredita em Deus, nem o grau de certeza que tem, depois de tomar a vacina, quanto à sua imunidade real diante da gripe. A dúvida, muitas vezes, é pouco mais superficial do que a crença, basta retirar um pouco da película dos hábitós adquiridos e dos costumes de linguagem para que a dúvida apareça, e serão poucos os que podem ostentar a mesma solidez de convicções durante as 24 horas do dia. É possível dizer, ademais, que a fé seria, nesse contexto, quase que um recurso “in extremis” para transformar em adesão existencial, em acatamento de uma ordem superior de concepções codificadas e gerais, algo que, no plano das crenças, se dispersa no plano dos preconceitos, das ideias prontas, das superstições leigas, das conclusões nascidas da experiência parcial, do convívio de grupo, do rumor.
De todo modo, se parece possível, e natural, que uma pessoa tenha “crenças”, e se continua a ser uma disposição quase que anímica a possibilidade de traduzi-las, superá-las, esquecê-las ou colori-las pela fé religiosa, talvez caiba perguntar até que ponto, hoje, é natural que alguém tenha, ou forme, suas próprias opiniões. Àprimeira vista, não haveria nada de problemático no fato de se ter opiniões pessoais. Sem dúvida, não nos falta, ao fazer um contrato de aluguel, escolher uma marca de macarrão ou julgar o comportamento de um vizinho suspeito de adultério, o hábito de proferir opiniões.
Os exemplos que vêm de ser citados se situam, entretanto, na esfera privada, dos relacionamentos interpessoais ou dos julgamentos de gosto. No plano das opiniões coletivas, todavia — o da legitimidade de uma guerra, o dos acertos de uma decisão de governo, o da boa-fé de uma autoridade ministerial —, parece inquietante, de todo modo, o fato de que se fale com frequência na figura do formador de opiniões. Não existe, ao que se saiba, a figura do formador de crenças. Seria, talvez, correspondente ao apóstolo, ao pregador religioso, ao líder carismático, ao propagandista. Mas o que teria de específico, e de diferente, oformador de opiniões?
Podemos reformular a pergunta. Por que, a certa altura, aquilo que parecia ser da ordem exclusivamente pessoal, a “opinião”, passa a ser entendido como algo que se oferece no mercado das ideias? Por que uma coisa que deveria “nascer” de nossa própria experiência, de nossa própria reflexão, de nosso contato com livros, jornais, com a realidade cotidiana, passa a ser visto como algo que depende de outros — dos “formadores de opinião” — para ser formada?
Para desenvolver esse tema — a ideia do “formador de opinião”—, será importante recorrer a um livro que certamente influencia várias das discussões contidas nesta coletânea. Trata-se de Mudança estrutural na esfera pública[1], do filósofo alemão Jürgen Habermas. O livro foi publicado na década de 1960, e está a meio caminho entre a pesquisa histórica, sociológica, e o campo da filosofia social.
Tentemos resumir ao máximo a tese de Habermas, o que não se faz sem preocupação, dado que seu livro é muito detalhado, extenso, teórico e factual ao mesmo tempo. A que “mudança estrutural” Habermas está se referindo?
Seu raciocínio se baseia numa comparação entre o que era a vida intelectual e política durante o século XVIII e o que passou a acontecer nas sociedades do capitalismo avançado, com o surgimento dos meios de comunicação de massa.
No século XVIII, mais especificamente na Inglaterra e na França, Habermas identifica o surgimento do que ele chama de “esfera pública”. É o mundo dos cafés, das sociedades de debates, dos pequenos jornais opinativos, das discussões sobre religião, leis econômicas, relações internacionais, moda, arte, cultura. Essa “esfera pública” consistiria numa absoluta novidade, diz Habermas, porque surge num espaço que não é o do Estado — não se dá dentro da corte, dentro dos ministérios ou do Parlamento — e tampouco é o espaço da casa, da intimidade. Formalmente, o “cidadão”, o “homem educado”, o “burguês”, quando escreve uma carta, um artigo para um jornal, quando discute ideias num clube ou num café, está-se dissociando, no raciocínio de Habermas, do plano puramente pessoal, dos seus interesses privados, talvez inconfessáveis; não estaria falando apenas em seu próprio nome, como advogado pessoal das suas atividades como negociante ou como pai de família: sua intervenção se reveste de significado público. Por isso mesmo, nessa esfera pública, não importaria diretamente quem ele é: um nobre, um grande general, um bispo vale tanto quanto um escrevinhador sem dinheiro, mas com talento. O argumento da autoridade — eu digo isso porque eu tenho poder — não vale mais no debate: sai vitorioso, em tese, quem provar que o outro disse uma tolice, mentiu, se contradisse etc.
É claro que esse retrato da “esfera pública burguesa”, feito aqui resumidamente, é muito teórico e idealizado. Habermas não ignora, obviamente, que no século XVIII só alguns poucos privilegiados tinham acesso à leitura, tinham tempo livre para debater, tinham talento para intervir, amigos para cuidar de defendê-lo e publicá-lo. E que, por exemplo, as mulheres estavam excluídas desse círculo. Há volumes e mais volumes de críticas ao modo com que Habermas caracterizou a “esfera pública burguesa”; em especial se critica a confiança de Habermas de que, num debate entre pessoas teoricamente iguais, possa de fato “vencer” o argumento mais racional[2]. Destaque-se apenas que, para Habermas, criou-se a partir do século XVIII, teoricamente, em tese, um modelo de discussão democrática e igualitária, o qual poderia se ampliar e ser posto em prática.
Ocorre que esse “otimismo” teórico de Habermas com relação ao passado, ao século XVIII, é substituído por um grande “pessimismo” de sua parte com relação ao século XX, e aos anos 1950-1960 em especial, que correspondem ao período em que seu livro foi escrito.
A “mudança estrutural da esfera pública” se dá em vários aspectos. Habermas nota que, a partir de meados do século XIX, o Estado liberal, que não intervinha na economia, deixou de existir. O plano da “política” e o plano da “sociedade” passaram a se misturar, como que esmagando, comprimindo a margem de manobra, a atmosfera em que cidadãos “debatedores”, “independentes”, cheios de “opiniões” pudessem agir. Ao mesmo tempo em que aumentam as possibilidades de participação eleitoral, o Estado passa a cuidar diretamente, por exemplo, de assuntos como educação, saúde, investimentos, comunicações… Observemos de passagem que as grandes empresas passaram, aos poucos, a ter um caráter “público”, “estatal”, também. Basta ver, por exemplo, as atividades benemerentes e educativas de grandes bancos e conglomerados industriais, ligados a fundações diversas; não faltam, no Brasil de hoje, os anúncios relativos à quantidade de iniciativas de “interesse público” protagonizadas por empresas privadas. A própria família, que antes era um reduto privado e inviolável por excelência, se vê exposta às preocupações do legislador público. De certo modo, comentando livremente o texto de Habermas, poderíamos dizer que tudo se passa como se o cidadão passasse a ser objeto de muitas iniciativas legais, tendo sua interioridade “exposta”, “devassada”, e deixando proporcionalmente de ser sujeito de suas próprias ações. O próprio indivíduo já não se forma exclusivamente dentro do círculo familiar, constituindo a clássica estrutura psicológica do burguês rigoroso e independente. Desde o nascimento, sua “vida interior” já não é tão “interior” assim.
O exemplo mais típico desse processo, naturalmente, estaria na mudança dos seus hábitos culturais. Habermas diz, numa frase bem sintética, que o público “pensador de cultura” passou a ser um público “consumidor de cultura”. O mundo da mercadoria, do lucro, do lazer produzido “em massa”, penetra na vida cultural, e esta perde espontaneidade e liberdade. “O tempo do lazer”, diz Habermas, “permanece preso ao tempo do trabalho como seu suplemento”[3]. Ou seja, para dizer mais cruamente, ainda quando se diverte, o cidadão está dando lucro para alguém… Nada poderia caracterizar melhor esse estado de coisas do que a atual voga dos livros de autoajuda. No tempo livre, o cidadão lê um livro que o ensina a como ficar em forma, como administrar melhor seu tempo, como se tornar um gerente mais eficaz, como se adaptar melhor às tensões da vida moderna… Sem contar que a leitura, que era uma atividade eminentemente privada e solitária, deu lugar, como atividade de lazer, ao cinema de entretenimento e à televisão, onde por definição se reduz o espaço próprio para a “reflexão”, e se torna virtualmente impossível o ato de se voltar atrás no que lê, examinar a sequência dos argumentos, comparar o que é contado com a sua própria experiência de vida pessoal; o fluxo dos estímulos não se interrompe nunca, submergindo o receptor.
Do ponto de vista político e ideológico, para Habermas a situação é ainda pior. O princípio da discussão pública se corrompe completamente. Antes, cidadãos isolados debatiam determinados assuntos, e a exigência de “publicidade” nos negócios de Estado era um instrumento de emancipação: é praticamente um ato de contestação ao poder a exigência de acesso aos dados sobre as finanças públicas, a reivindicação do direito de acompanhar as deliberações do parlamento, a necessidade de conhecer os acordos diplomáticos e os segredos militares de um governo. Para Habermas, a “publicidade”, nesse sentido de acesso público à informação, para que o indíviduo possa debater, sofre um processo de degradação total. Tornou-se “relações públicas”, propaganda política, marketing eleitoral. Grandes empresas e governantes recorrem à esfera pública primordialmente para “vender” sua mensagem, ou melhor, para “comprar” o assentimento dos cidadãos. Acho que não precisamos pensar na Alemanha Ocidental na década de 1950 para ter exemplo disso: mais do que nunca, qualquer campanha eleitoral brasileira — e qualquer “debate” na televisão — é uma atividade administrada profissionalmente, e o marqueteiro, o videomaker, o assessor e o sociólogo eleitoral estão presentes em todos os passos de um candidato, instruindo-o exatamente sobre o que ele deve dizer e, mais importante ainda, sobre o que ele não deve dizer. A vida política é regida não pelos temas de um debate, mas pelo ato cotidiano de evitá-los.
Sem negar, e aliás reforçando, como acabamos de fazer, a atualidade da avaliação habermasiana, deve-se entretanto observar que seu trabalho data dos anos 1960. Seria incorreto ver apenas as semelhanças entre aquela situação e a de hoje, sem notar o que mudou nos últimos cinquenta anos.
Cabe discutir, com efeito, a possibilidade de que estejamos no limiar de uma nova “mudança estrutural da esfera pública”. A referência óbvia é a internet, como uma transformação tecnológica imensamente importante. É de bom-tom, por parte de todos que pretendemos manter viva uma atitude crítica diante do capitalismo contemporâneo, evitar a euforia ingênua diante dessa inovação tecnológica. Mas seria irrealista minimizar o quanto a internet traz de componentes de crise, inéditos, na minha opinião, para o modelo político descrito por Habermas.
Em primeiro lugar, antes mesmo de abordar o fenômeno da internet, é importante levantar alguns problemas nessa avaliação de Habermas a propósito da “fabricação do consenso”, da capacidade dos Estados democráticos ocidentais de se fecharem, pela propaganda, pelo marketing, a qualquer proposta de mudança mais radical da sociedade.
Se pensarmos exclusivamente no objetivo de realizar uma superação do sistema capitalista, sem dúvida nenhuma o caminho estava fechado em 1960, e mais ainda nos dias de hoje. A constatação não nos impede de ressaltar que novas e cruciais questões entraram em pauta, impedindo que o “debate público” tenha se reduzido a uma simples farsa. Debate-se a valer, e até de forma mais intensa e mais disseminada nos dias de hoje do que no auge do conformismo europeu dos anos pré-1968.
Não é de modo nenhum desimportante que, de 1960 para cá, a situação das mulheres tenha passado por uma transformação sem precedente em toda a história da humanidade — e não há, espero, exagero nesta afirmação. Que o casamento seja uma coisa completamente diferente do que era em 1950; que a liberdade sexual tenha sido conquistada, através de uma luta que só se pode chamar de política, numa dimensão muito maior do que seria de prever, que os direitos dos homossexuais tenham-se afirmado, que a discriminação racial, nos Estados Unidos, tenha sido objeto de uma luta seríssima, até ser abolida da legislação exatamente nos anos em que Habermas escrevia seu trabalho: eis evidências de que as vias de transformação, certamente bloqueadas no campo estritamente econômico, iam sendo abertas e exploradas, com grande sucesso, a partir dos anos 1960. De modo geral, todos os assuntos relacionados ao “politicamente correto” se impuseram ao debate público, pode-se discutir se com exageros ou não, mas sem dúvida o que se registrou foi um processo de convencimento de que determinadas posições, machistas ou racistas, não são mais sustentáveis. Ou, se quisermos, não são mais publicáveis — com tudo o que o termo acarreta de mudanças práticas no comportamento, na cultura e na legislação. Pode-se dizer, claro, que a forma da mercantilização, o sistema da publicidade e do lucro privado impuseram sua marca, e seus limites, sobre essas conquistas igualitárias. Mas, do ponto de vista da existência de um debate público, de lutas políticas reais, não há como caracterizar o quadro como marcado pela mesmice, pela paralisia e pela repressão. Atualmente, questões como a do aquecimento global, ou da influência das religiões sobre os governos, são discutidas com máxima vivacidade, e o entrechoque das ideias, no espaço público, só não existe para quem não quiser abandonar a fidelidade a seus autores preferidos.
Outra diferença com relação ao diagnóstico feito por Habermas talvez seja ainda mais importante. É que, ao contrário do modelo marcado pela TV aberta, pelo rádio e pelas grandes empresas jornalísticas, a internet — mas não só a internet — modifica de fato os padrões da comunicação pública. Ainda que de forma desproporcional, uma vez que, sem dúvida, um site com milhões de leitores é diferente de um blog lido apenas por um grupo de amigos, é inegável que se abrem muitas brechas para a participação de mais pessoas no debate público. O noticiário jornalístico é contestado ativamente por outros setores de opinião, de uma forma que o público televisivo não era capaz de fazer. Mais do que isso, o leitor tende a se transformar, ele próprio, em produtor de notícia, quando tem à sua disposição câmeras de video no celular. Fenômenos “virais” no YouTube podem ser, com frequência, puro entretenimento, fofoca ou cena bizarra — mas deixaram de estar sob o controle da direção de uma emissora, por exemplo. A capacidade de se quebrar, inclusive, o sigilo de Estado, com um site como o “wikileaks”, abre quantidades imensas de informação ao público. A possibilidade de mobilização dos cidadãos, do modesto caso de uma mudança na legislação eleitoral à disseminação via Twitter de movimentos antiditatoriais nos países árabes, começa a render resultados, e chega mesmo ao antiquíssimo, e tantas vezes tido por inexoravelmente declinante, “espaço público” por excelência: as ruas e praças de uma cidade. A própria produção artística e literária tende a baratear muito, não mais se sujeitando obrigatoriamente à lei das grandes tiragens, dos grandes números, dos grandes lucros, como no antigo sistema da indústria cultural.
Podemos dizer que tudo isso conta pouco, diante do esmagador investimento em marketing do cinema e da música pop, para não dizer dos gastos de marketing dos próprios políticos. Pode-se também apontar, com razão, que o barateamento da produção cultural funciona quase como que uma “terceirização” da tarefa, antes entregue aos “caçadores de talentos”, de apostar às cegas naquilo que cairá no gosto do público. É inegável, todavia, que o processo de propaganda e publicidade centralizado, que era aquele com que Habermas estava lidando na década de 1960, passou a conhecer, no mínimo, correntes de contrapropaganda, de contestação, de questionamento e de debate. Não estaríamos sendo fiéis ao espírito, tantas vezes defendido de forma solitária pela escola de Frankfurt, da dialética, se simplesmente invocássemos a teoria crítica para simplesmente repetir, com um dolorido sinal negativo de desespero, a concepção típica do pensamento conservador, segundo a qual nada muda nem pode mudar. Para dizer tudo, nas mãos de alguns de seus adeptos contemporâneos a teoria crítica nada mais fez do que transformar-se em seu contrário.
Dito isto, e com essas duas constatações mais “otimistas” que cabe contrastar ao diagnóstico de Habermas, cumpre voltar à pergunta inicial. É possível falar de “opinião” hoje em dia? E por que terá surgido a figura do “formador de opiniões” como uma especialidade na arena pública, em vez do velho ideólogo, do publicista, do pregador?
Talvez seja o caso de dizer que a “nova” esfera pública, da internet, traz algumas características que dificultam, a meu ver, a construção de algo como uma arena em que se confrontam opiniões pessoais e na qual crenças possam ser demolidas ou contestadas. A esse respeito, caberia notar quatro características: hipersubjetividade, hiperobjetividade, transitoriedade e tribalização.
O sujeito que intervém pela internet, ao mesmo tempo que está “livre”, podendo se expressar por meio de pseudônimos, e “desvinculado” de qualquer base territorial ou temporal, tende a ser mais o sujeito que se expressa, que diz quem ele é, do que o sujeito que diz o que ele pensa, o sujeito que constrói um argumento. Sites de grande sucesso, como o Facebook, significam quase que a transformação do próprio sujeito numa espécie de mercadoria, em oferta no mercado de relações, de amizades e de sexo, não raro “vendidos” com uma ou duas frases publicitárias a seu próprio respeito. O comportamento de quem tem acesso a um meio de comunicação interativo muitas vezes lembra a atitude daquelas pessoas que aparecem por acaso diante da câmera do noticiário televisivo, acenando para os conhecidos: estar na TV, aparecer, é mais importante do que dizer alguma coisa. Predomina, ao menos por enquanto, a função fática da linguagem, elevada a seu paroxismo no celular; a isto se soma a atuação performática do sujeito, intensificada pelo uso de recursos visuais (que, por sua vez, açambarcam a própria expressão escrita, do uso dos “emoticons”, como 🙂 e congêneres, a uma espécie de expressionismo gesticulatório na sintaxe e no vocabulário).
Ao mesmo tempo, essa hipersubjetividade “narcísica” convive na internet com uma hiperobjetividade na informação. Como descrevê-la? Com o risco de chocar os que consideram a imprensa, cada vez mais, o instrumento de interesses partidários, e sem negar o grau de preconceito e de ideologia, no velho estilo, que pulula em toda parte, eu gostaria de apontar para o fenômeno inverso: a qualidade da informação na internet, principalmente, mas também no jornal ou na televisão, parece ter adquirido um cunho predominantemente ostensivo. Mostra-se o que acontece, mas de certa forma pouca coisa se revela. O vulcão, a geleira derretendo, o escândalo da cantora famosa, a nova pesquisa eleitoral, a cena de um político recebendo dinheiro de um financiador, são repetidas e consumidas, várias vezes ao longo do dia, mas não se enquadram em nenhuma narrativa mais complexa e se esgotam em si mesmas, num modelo de repetição infinita aqui, sim, claramente ligada aos mecanismos industriais de consumo e produção.
O que já é raro de acontecer no jornal ou numa revista ganha na internet uma pulsação ainda mais imediata; todos sabem, por experiência própria, como é difícil manter a atenção por mais de alguns minutos no texto de um site, por exemplo, porque inúmeros estímulos nos levam a clicar outra coisa, e mais outra, terminando geralmente… num site de compras. Desse modo, a linha de raciocínio do leitor se perde e, digamos, se precipita em ação: o internauta participa de uma enquete online — geralmente formulada do modo mais estúpido possível muda de site, verifica o e-mail, compra alguma coisa, atualiza o seu perfil, e desse modo se entrega a uma espécie de “ativismo” sem fim, sem conclusão; a lógica é mais do videogame do que de um debate.
Por fim, quando existe debate, o grande risco da internet é que ele se reduza a grupos de interesse muito definidos, que apostam mais na criação da própria identidade do que no convívio com outras formas de pensamento. Pelas próprias características do meio, a internet favorece mais a divisão do que a convergência: micropúblicos se reforçam mutuamente em sua linguagem, em suas convicções, em seus códigos, e novamente a expressão de identidades, mais do que a enunciação de argumentos, tende a predominar.
Tomando-se em conjunto essas características, não será difícil notar o quanto se distanciam daquela tríade apresentada inicialmente, que expunha as diferenças entre fé, crença e opinião. De certo modo, parece ter ocorrido um curto-circuito entre o sujeito e o objeto do pensamento; não teríamos mais, para retomar o exemplo do filme citado, duas freiras com opiniões diversas a respeito da culpabilidade do padre, ou alguém com crenças tão sólidas a respeito do comportamento dos homossexuais que fosse incapaz de perdoar os supostos crimes que atribuiu ao padre. O intervalo entre indício e conclusão, entre “evidência” (ainda que vaga) e opinião a respeito do que aconteceu de fato, o processo reflexivo, ou até mesmo “digestivo” pelo qual informações do mundo externo possam ser processadas pelo indivíduo, parecem esgarçar-se. Há, no mundo da internet, uma reação menos interiorizada ao que acontece; para manter a comparação com o processo “digestivo”, predomina agora o que poderíamos chamar de reação “alérgica” ao que acontece, especialmente visível, aliás, nos comentários de internautas a respeito de qualquer assunto sobre o qual lhes seja solicitada uma “opinião”. Desse modo, hipersubjetividade, hiperobjetividade, transitoriedade e tribalização se somam para formar uma espécie de ativismo da autoexpressão, no qual sequer está pressuposta a existência de um sujeito “coerente” com suas próprias crenças, ou capaz de ver nos fatos confirmações de sua própria opinião. Na dança dos avatares, “nicks” e pseudônimos, a intervenção instantânea não exige compromisso consigo mesmo, ou memória quanto ao que foi dito anteriormente. Num paradoxo notável, a exaltação das “identidades” chega ao ponto de sua virtual dissolução. Se isso se verifica especialmente nos comentários de leitores aos sites informativos, nas enquetes promovidas pelos portais, no telégrafo sem fio dos “spams” pela internet, parece restar, parcialmente, aos blogs assinados por indivíduos algum resto de coerência interna de crenças (mais de gosto do que de crenças, talvez), e mesmo assim exposto à característica também evanescente do meio.
Afora essas características do uso da tecnologia, que podem até modificar-se para melhor ou para pior ao longo dos próximos anos, há ainda outro problema para quem espera, digamos assim, um debate democrático de opiniões. Neste ponto, será interessante sair do mundo da internet para apontar algumas características da vida política oficial, da vida politica institucional.
A dificuldade que se enfrenta no debate público institucional, atualmente, está no fato de que convicções, ideias, visões de mundo não se colocam em foco; surgem, apenas, de forma periférica (na periferia onde se exaltam os extremistas e os fanáticos), enquanto a disputa política se dá em torno de quem, ou de que partido, tem mais condições de ocupar o centro, o espaço de uma neutralidade administrativa e vazia.
Haveria vários exemplos dessa situação. Tomem-se, para citar um caso evidente, os debates entre candidatos à presidência, na campanha de 2010. A discussão concentrou-se em números administrativos, em realizações e planos de investimento, sobre os quais ninguém, a rigor, teria como se posicionar. Qualquer questão de fato polêmica foi evitada sistematicamente pelos candidatos, porque significaria “perder votos”, quando se tentou colocar em pauta a questão do aborto, o jogo entre os candidatos foi o de passar para o adversário a obrigação de se definir, sabendo-se desde o início que, para não cair em desgraça junto a alguns setores do eleitorado, o principal era falar o menos possível sobre o caso. A iniciativa de exigir “conteúdo” a respeito do problema, como se sabe, partiu principalmente dos grupos religiosos mais convictos e exaltados — numa situação em que parece estar a cargo das franjas extremistas de opinião o único compromisso com a clareza e a publicidade do debate. Na concepção dos candidatos e seus assessores, portanto, tudo se passou como se o eleitorado exigisse, dos postulantes, o compromisso de não fazê-lo pensar.
Outro exemplo: a polêmica sobre aquecimento global. Posso, formalmente, ter uma “opinião” mais favorável aos ecologistas, ou mais favorável aos “céticos” do clima —, mas, a rigor, a tecnicalidade da discussão torna-a pública só na aparência, e envolve mais uma questão de confiança subjetiva nos defensores de uma ou outra posição do que de qualquer raciocínio que eu possa ter acompanhado de fato.
Um terceiro exemplo, o da decisão americana de invadir o Iraque. A Casa Branca argumentava possuir dados seguros quanto à posse, pelo ditador Saddam Hussein, de armas de destruição de massa. O acesso à informação, entretanto, estava barrado a quem quer que quisesse participar do debate. E a informação, de qualquer modo, não adiantaria de nada, porque uma vez desmentida a ideia de que Saddam Hussein possuía armas de destruição de massa, mesmo assim o governo Bush justificou o acerto de sua invasão. Simplesmente a possibilidade de um debate democrático foi abortada, devido a um extremo de concentração do poder decisório. O governante não tem, a rigor, que prestar contas do que decide, e parece, em muitos casos, imune a qualquer procedimento de crítica racional, como por exemplo a de que está em contradição, de que está mentindo, de que está fazendo algo que criticava em seus adversários… Simplesmente seu modo de atuação passa incólume à crítica democrática.
De maneira geral, a própria estrutura do noticiário e a referência cabem também ao jornalismo impresso, tornam até certo ponto opacas as, conclusões que se poderia tirar de determinado acontecimento. Haveria muitos exemplos pontuais a dar, mas sem dúvida é geral nos leitores de jornal a sensação de que, depois de ler determinada notícia, sobre tema controverso, como por exemplo o pré-sal ou a politica para os aeroportos, simplesmente não há como ter alguma opinião sobre o assunto. A controvérsia existe, mas mobiliza argumentos, hipóteses, conjunturas sobre as quais não temos clareza; sequer os indícios tirados da experiência pessoal concreta, que faziam da “opinião” algo reconhecível quando a freira de Dúvida sopesa na memória as atitudes, gestos e expressões faciais do padre suspeito, estão disponíveis para o sujeito. O mesmo, em escala maior, se pode dizer do quanto determinada posição política, de esquerda ou de direita, deve ao conjunto de experiências vividas pelo membro de determinada classe social. O plano opinativo do “vivido”, num debate técnico-científico, naturalmente diminui.
Para sintetizar essa situação, será oportuno lembrar o diagnóstico geral proposto pelo organizador deste volume, Adauto Novaes, a respeito de um “vazio de pensamento”.
De certa forma, o vazio de pensamento pode ser entendido, sobretudo, como a falta de parâmetros claros, e mesmo de parâmetros ideológicos, a partir dos quais o cidadão poderia se posicionar diante dos debates e das controvérsias de Estado. Podíamos entender, em meados do século XX, ou pelo menos até a onda neoliberal de Reagan e de Thatcher, muitas das disputas políticas em termos de “esquerda” e “direita”, em termos de favorecimento dos grandes grupos corporativos ou das políticas públicas de distributivismo e acesso aos mecanismos de decisão.
Esses critérios permanecem, com certeza, quando se pensa nos debates sobre o sistema de saúde nos Estados Unidos, ou nas opções entre “linha dura” e “diálogo” na política externa americana.
Entretanto, deve-se sublinhar que o próprio modelo clássico da representação política, com governantes eleitos com base em máquinas partidárias e instituições (sindicatos, empresas, grupos de pressão), entrou num processo de crise. Bem ou mal, era em função de decisões de governo que se dava, basicamente, o debate público. Claro que ainda há debate, se quisermos, com relação a leis antitabagistas, de aborto ou de controle de armas, de cotas raciais nas universidades, para citar exemplos de questões que resultam, afinal, em mudanças legislativas.
Ao mesmo tempo, a política vai assumindo uma dimensão que é cada vez menos pública, e cada vez mais identitária. Uma passeata do orgulho gay, por exemplo, é sem dúvida uma manifestação política, de forte teor antipreconceito, mas não parece ter como foco principal a reivindicação de alguma política pública específica.
Do mesmo modo, os mecanismos de comunicação à disposição do público, em especial a internet, ocupam-se de manter os procedimentos clássicos de debate político, com blogs de opinião, sites informativos, grupos de discussão, mas se apresentam sobretudo como fontes de afirmação, de expressão pessoal, de identidade de grupo.
Nesse sentido, são menos o campo de enunciação de opiniões, e mais um campo de autopropaganda, de automanifestação individual. O indivíduo se manifesta como “marca”, pelo que “consome”, pelo que “prefere”, mas não estamos aqui no campo das opiniões de um sujeito constituído, e sim, principalmente, no campo dos esforços de um sujeito para se constituir, para se diferenciar ou se integrar num grupo.
Qual seria, então, a importância do “formador de opiniões”? Pensemos nos blogs de esquerda e de direita que durante os últimos anos se digladiaram, por exemplo, na defesa ou no ataque do governo Lula, enquanto o debate eleitoral propriamente dito transcorria de forma tediosa. Seria provavelmente o caso de dizer que os “formadores de opinião” representam a sobrevivência de cisões ideológicas e divisões de crenças políticas públicas, num meio e diante de um grupo de leitores que já opera segundo uma lógica distinta. No caso brasileiro, haveria condições mesmo de prognosticar que, passadas as paixões específicas que a figura do presidente Lula inspirava, por preconceito ou vitimismo, nos seus adversários e adeptos, a exaltação ideológica do período 2002-2010 talvez se mostre antes como um ponto “fora da curva”, uma exceção, do que um fenômeno permanente.
A partir de uma ótica mais permanente, valeria assinalar que há de todo modo um descompasso entre as formas de expressão privadas, dos usuários da internet, e os procedimentos de deliberação e debate institucional dentro do Estado e do parlamento. A mobilização via internet raras vezes se traduz em consequências políticas no “mundo real”. Talvez estejamos vivendo uma transição: seria o caso de acreditar que, nos próximos anos ou décadas, a deliberação política possa encontrar meios técnicos mais imediatos do que os oferecidos pelo sistema representativo clássico. Mas, enquanto isso, o âmbito das opiniões, do argumento politico constituído entre cidadãos, parece oscilar entre a inexistência — a opinião que é impossível ter — e a sua forma teleguiada, através do sequestro, se podemos dizer assim, do julgamento individual pelo sistema de crenças, de claques partidárias e de marqueteiros que atuam ou no atacado das campanhas eleitorais, ou no varejo da guerrilha ideológica da internet. Não é, insista-se, o fim do mundo. Talvez seja só o começo.
Notas
- Jürgen Habermas, Mudança estrutural na esfera pública (1961), Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984. ↑
- Ver, por exemplo, Craig Calhoun (org.), Habermas and the Public Sphere, Cambridge/Londres: The MIT Press, 1992. ↑
- Jürgen Habermas, op. cit., pp. 389 ss. É de se perguntar, entretanto, se nessa fórmula não há algo de prestigiditação conceitual. Em sua análise, ao mesmo tempo que identifica uma mudança no processo cultural objetivo, Habermas opera uma mudança no próprio enfoque com que procura descrevê-lo. Assim, ao descrever a relação do burguês, em seu duplo papel de “bourgeois” e “homme”, com a cultura, Habermas privilegia o lado, digamos assim, do receptor da cultura. Ao descrever o que acontece depois do advento da indústria cultural, a análise passa a destacar o lado do produtor. Ora, é evidente que, do lado do produtor, das forças impessoais que oferecem literatura “industrial”, por meio da “fabricação intencional de uma patenteada indústria cultural” (p. 190), a recepção da cultura se torna mera etapa no “ciclo de produção e consumo”. Mas, deste ponto de vista, nada nos impediria de identificar, na produção desenfreada de romances e panfletos que caracterizou o século XVIII, o mesmo fenômeno de inserção num “ciclo de produção e consumo”. O sujeito autônomo do “espaço público” habermasiano seria, igualmente, um “consumidor” de cultura. A prestidigitação conceitual que parece ocorrer está, sem dúvida, ligada ao fato de que sempre se pode dizer que o “ato de consumo” de um objeto cultural só se faz completamente quando, ao mesmo tempo, é um “ato de pensamento”. Não haveria, portanto, dessa perspectiva, uma diferença clara entre “pensar” e “consumir” cultura. Ao menos, não quando a visão do processo se dá a partir de uma perspectiva externa, quase que quantitativa e econométrica, da transformação ocorrida. Incorrendo nesse tipo de análise, Habermas não escaparia das críticas de um Umberto Eco, por exemplo, para quem os processos de publicidade, as estratégias de mercado, a política de “best-seller” eram identificáveis até mesmo na divulgação das romanças e estórias de cavalaria durante a Idade Média (cf. Umberto Eco, Apocalípticos e integrados, São Paulo: Perspectiva, 5979, pp. 12 ss.). Outra seria, na verdade, aposição de autores como Adorno e Clement Greenberg, para quem a degradação de “pensamento” em “consumo” é algo que se dá no interior da própria obra, que já fornece, prefiguradas e pré-digeridas, as reações e “modos de usar” que busca despertar no leitor. Discuto o ponto extensamente no capítulo 4 de meu livro Crítica cultural: teoria e prática, São Paulo: Publifolha, 2006. ↑