1990

Do erotismo à parte maldita

por Luiz Renato Martins

Resumo

Desde o início, pela via dos relatos transgressivos em que se multiplicam as figuras eróticas, observa-se a suspensão, na obra de Bataille, de definição do homem. Eclipsados os limites que, no agir humano, circunscrevem a normalidade, os elementos constitutivos da vida assumem uma opacidade até então desconhecida. A operação transgressiva em Bataille é cognitiva; não atesta desmedida. A configuração narrativa de certas possibilidades inesperadas, do ponto de vista moral, aponta nesta opacidade para um novo investigativo, cujas leis a obra experimental de Bataille tratará de obter.

No percurso que vai de La somme athéologique (A Suma Ateológica)(1939-1944) a La part maudite (A parte maldita), amadurecida no pós-guerra, o cenário do sujeito do conhecimento é relativizado. A experiência mística sem Deus cede passo a um tratado econômico. Em linhas gerais, verifica-se uma inversão, ou pelo menos uma distinção básica quanto à concepção de desejo: há, em Le coupable (1939), um desejo posto como falta ou ferida formal manifestando o inacabamento do ser. Essencialmente, tal desejo, tomado como categoria ontológica, é aspiração temperada de angústia, pontuada pela morte ou pela ideia de finitude, valendo enquanto reflexo e mediação na relação do homem com o infinito.

Já no âmbito da economia do universo, visada em A parte maldita, a concepção do desejo se dá na circulação geral de energia e perde importância a nível conceitual. O exercício erótico, concebido como desperdício, equivale a um ato de poder. Desfecha-se a partir de um acúmulo insustentável de forças e deriva de um conflito em que amar e desejar aparecem como sinais de perversão.


A meu pai

Bataille afirma que o erotismo é “uma forma soberana, que não pode servir a nada”.[1] Tal afirmação denota preocupação ética e filosófica. A ideia de soberania encaminha diretamente para uma encruzilhada de significações, percorrida também por ideias relativas a liberdade e poder. A proposição ainda aponta, mesmo se negativamente, para a ideia de finalidade. Assim, o sentido do erotismo, para o autor, aparece em meio a uma série de ideias. Pede demarcações conceituais. Encontra-se numa cadeia de questões por explorar.

De início, a análise do erotismo não destoa da formação hegeliana do autor. A vastidão e a variedade dos temas de Hegel permite, sem infringir a tradição, também a inclusão deste. Assim, Bataille, focalizando o erotismo, não está, por princípio, transgredindo ou contestando. Efetivamente, busca atualizar a validade da reflexão de Hegel. O desacordo de Bataille com perspectivas marginais é patente, como está expresso no prefácio de Sur Nietzsche:

O anarquismo me irrita, principalmente as doutrinas vulgares que fazem a apologia dos criminosos do direito comum. As práticas da Gestapo trazidas à luz mostram a profunda afinidade unindo a ladroagem e a polícia: ninguém é mais inclinado a torturar, a servir cruelmente o aparelho de coerção do que homens sem fé nem lei. Odeio mesmo esses débeis de espíritos confusos que pedem todos os direitos para o indivíduo: o limite de um indivíduo não está dado apenas nos direitos de um outro. Ele o está mais duramente naqueles do povo. Cada homem é solidário com o povo, partilha com este os sofrimentos ou as conquistas, suas fibras são parte de uma massa viva.[2]

Assim, o pensamento do autor diverge do individualismo. Nada tem em comum com pontos de vista naturalistas ou doutrinas anti-repressivas sobre a espécie. Nega o eudemonismo, já que desconsidera a felicidade. Enfim, o enfoque de Bataille, tratando do erotismo, não vem de uma fantasmática perversa, não visa o prazer, não tem o sentido clínico da teoria psicanalítica. Quer dizer, não se orienta pelas representações mais correntes da sexualidade.

Esta alteridade fundamental afirma uma caracterização rigorosamente impessoal da experiência erótica. Atesta pertinência filosófica. Constitui instrumento de discussão, arma intelectual, chave de implosão de sistemas cognitivos, interrogação sem fim. Ou seja, dá-se dentro de um debate de ideias preciso e datado a ser delimitado, denotando, antes de tudo, uma crise do humanismo.

Esse discurso sobre o erotismo, encetado primeiro na forma literária e depois também na ensaística, está ligado de partida a uma interpretação da Fenomenologia do espírito, de Hegel. O autor foi levado ao pensamento de Hegel pelas aulas de Alexandre Kojève, na École des Hautes Etudes, de Paris, onde este último lecionou a partir de 1933. Muitos intelectuais franceses frequentaram essas aulas que marcaram a introdução da filosofia de Hegel na França. Bataille foi aluno de Kojève, de 1934 a 1939, conta o escritor Raymond Queneau, seu amigo e colega na época. O autor cultivou assim o pendor para lidar com ideias e sistemas de pensamento e ficou para sempre marcado pelo vocabulário de Hegel. Desse modo, pautou o seu trabalho pela formalização segundo princípios e leis universais, e em referência frequente à obra de Hegel.

Além da filosofia, também as ciências motivaram os estudos de Bataille. Manteve relações amistosas com muitos cientistas. Obteve colaboração científica de porte, não apenas para a revista Critique, que dirigiu, mas inclusive para seus trabalhos de ensaísmo. Assim incorporou preocupações científicas variadas em suas atividades. Além de tal curiosidade pelos saberes e dando largas ao espírito de estudioso, o autor foi por profissão, e até a aposentadoria, funcionário de bibliotecas públicas. Então, conciliando esses traços de erudição e de escrúpulos, sem esquecer as preocupações próprias ao cultivo do pensamento de Hegel, como explicar o incessante interesse pelo erotismo próprio de sua obra?

A passagem de uma conferência, feita em 5 de fevereiro de 1938, no âmbito do Collège de Sociologie, traz razões que buscarão justificar tal tema insólito à luz da filosofia. Assim, abordando questões metodológicas, Bataille observa que a Fenomenologia do espírito, pela força da época em que fora escrita (1806), ficara à margem dos dados que, um século depois, seriam fornecidos pelos trabalhos científicos de Freud e de Marcel Mauss, na antropologia e na psicanálise. Desse modo, Bataille, mesmo aceitando a direção da intuição filosófica de Hegel, acha necessária uma atualização e afirma:

Se é verdade que Hegel se dirigiu expressamente na direção em que o essencial pode ser descoberto, não se segue que o método de investigação imediata de que ele dispunha tenha lhe permitido dar acerca dos fatos uma descrição verdadeira e correta. Só a intervenção da ciência objetiva tal como foi efetuada desde há algumas dezenas de anos pelos sociólogos e psicólogos permitiu apreender e representar com uma precisão apreciável aquilo que, permanecendo heterogêneo ao espírito consciente, não podia ser apreendido e representado no espírito de Hegel, exceto de fora.

As ciências vão servir, portanto, a esse projeto de modernização, e Bataille conclui: “A fenomenologia hegeliana representa o espírito como essencialmente homogêneo. Enquanto que os dados recentes sobre os quais eu me apoio concordam sobre esse ponto, pelo qual estabelecem uma heterogeneidade formal entre diferentes regiões do espírito.”[3]

Sem entrar no mérito desse juízo, o que importa, no caso, é que essas alegações têm consequências para o exame do erotismo. Situam-no à luz de uma certa interpretação do pensamento de Hegel. Trazem razões que irão marcar o estudo do erotismo proposto por Bataille.

Partindo de Hegel, pensador por excelência do conflito, a análise do erotismo se fará sob tal perspectiva. A introdução de L’histoire de l’érotisme mostra a eclosão de conflitos relacionados ao erotismo:

Jamais captamos o ser humano — o que ele significa — senão de maneira equivocada: a humanidade se desmente sempre, ela passa de repente da bondade à baixa crueldade, do pudor extremo ao extremo impudor, do aspecto mais fascinante ao mais odioso. Frequentemente, nós falamos do mundo, da humanidade, como se houvesse qualquer unidade: de fato, a humanidade compõe mundos, vizinhos segundo a aparência mas em verdade estranhos uns aos outros; às vezes mesmo, uma distância incomensurável os separa: assim o mundo da ladroagem está num certo sentido mais longe de um convento de carmelitas do que uma estrela de outra. Mas não só estes diversos mundos se repelem e se desconhecem. Essa incompatibilidade se concentra também em um só ser: na sua família, esse homem é um anjo pela sua gentileza mas, a noite vindo, ele chafurda no deboche. O mais impressionante é que em cada um dos mundos, aos quais faço alusão, a ignorância, ou pelo menos o desconhecimento dos outros, é a regra. Mesmo de algum modo o pai de família esquece, brincando com a sua filha, os maus lugares onde ele entra como porco inveterado; ele ficaria surpreso, nessas condições, de se rememorar o sujo indivíduo que ele foi, infringindo todas as regras delicadas que ele observa em companhia de sua filha.[4]

Assim, a consideração do erotismo serve para estabelecer dois planos principais de conflito: primeiro, através do deboche, constitui-se uma oposição à elevação moral do pensamento; segundo, através da subjetividade focalizada, a do pai, manifesta-se uma cisão da consciência, colocando um problema para a integridade do espírito. Apontando tais conflitos, Bataille se mantém genericamente conforme aos moldes do pensamento de Hegel.

Os contatos da consciência com a vida e as relações entre as diferentes figuras da consciência são pensados por Hegel mediante o esquema da luta. Hegel tomou tal ideia de Heráclito, moldando-a para ficar conforme ao seu sistema. É importante seguir, mesmo brevemente, a interpretação da luta, por Hegel, na medida em que se diferencia, intrinsecamente, da interpretação do erotismo, por Bataille, associada a outra concepção de luta. Segundo Jean Hyppolite, Hegel, na juventude, interessou-se pela ideia do amor, enquanto forma unificadora. Assim, sob influência dos românticos, chegou a tomar o fenômeno amoroso como paradigma de unificação capaz de manter a diversidade das partes. Posteriormente, o filósofo abandonou o estudo do amor, julgando que este não dava conta da separação das partes, pelo da morte. Correlatamente passou a privilegiar a figura conceitual da luta. Desse modo, na Fenomenologia do espírito, a luta vem a ser, para Hegel, uma forma de manifestação privilegiada da negatividade, ou seja, da potência essencial da consciência.[5]

Em tal sistema, o conflito está determinado e tem um sentido. Assim, o entendimento, no papel de forma inferior do espírito, distingue externamente os oponentes; já na fase seguinte, o conflito é absorvido e se torna interno. Nesse percurso, o progresso da consciência de si acaba por conduzir à supressão das diferenças e ao reencontro da consciência consigo, constituindo-se então como Razão. Portanto, nessa evolução, desaparecem as desigualdades iniciais entre as consciências oponentes. Os polos adversários se reconhecem, em uma unidade externa e interna. Alcança-se assim a superação dos conflitos. Desse modo, para Hegel, a luta funciona apenas como forma provisória, fase de um processo cuja meta é a unidade pacífica e sintética de todas as diferenças.

Diversamente do finalismo de Hegel, comportando a afirmação de uma forma unitária acima dos conflitos, o erotismo, para Bataille, apresenta uma contradição insuperável. Designa contrastes irredutíveis, aponta uma cisão irreparável no âmago da consciência — consciência incapaz então de se unir, ulteriormente, conforme a pretensão de Hegel, para se tornar Razão. Afirma um postulado sobre o erotismo, proposto por Bataille, a partir de tal perspectiva:

A experiência interior do erotismo pede daquele que a faz tanta sensibilidade para a angústia que funda o interdito, quanto para o desejo que leva a infringi-lo.

Adiante, explica:

O interdito, fundado pelo terror, não nos propõe apenas observá-lo. Nunca falta a contrapartida. Derrubar uma barreira é em si algo de atraente; a ação proibida toma um sentido que antes não tinha, quando um terror que dela nos afasta a envolve de um halo de glória.[6]

A experiência erótica afirma, assim, simultaneamente o interdito e a transgressão. Para Bataille, verifica-se, além da oposição pensamento versus instinto, muito conhecida, uma outra, insanável e no cerne do pensamento, afirmando ordem e desordem. Para o autor, a emergência de tal conflito, propiciada pela experiência erótica, atesta a heterogeneidade do espírito. Desse modo, o erotismo é tratado, pelo autor, como prova intelectual. Propicia uma manifestação do caráter do espírito. Trata-se do veio característico do escritor: o enfoque filosófico, impessoal, da experiência erótica, relatada como choque de perspectivas.

O erotismo, para Bataille, produz evidências para um debate. Vale como paradigma de contrários não-conciliáveis. Delineia situações sem solução. Na novela como na reflexão, mesmo para o leitor apressado, é patente a insistência do autor na descrição de situações afetivas paradoxais. Séries de oposições incessantes, em todos os níveis de construção narrativa, perfazem a apresentação da dilaceração fundamental do espírito. As frases recolhem afirmações contraditórias e se distinguem pela visada de estados de tensão permanente que levam apenas à exaustão e ao vazio. Desse modo, o exame do erotismo vem para corrigir a fenomenologia hegeliana. Constitui a oportunidade para a atualização do sistema, ultrapassado por saberes mais modernos, como a psicanálise, a antropologia, a sociologia, etc. Logo, a ênfase de Bataille na questão do erotismo implica o salientar da sua qualidade de paradoxo. Jean-Paul Sartre julgou severamente tal propensão por afirmações contraditórias. Considera que Bataille suprime a síntese da trindade hegeliana e situa-o por isso entre os “discípulos infiéis de Hegel”.[7] A observação é procedente em parte, na medida em que Bataille, de fato, descarta a síntese e a pacificação das contradições. Porém, isso não se deve a uma leitura ingênua e inconsequente, como sugerem os termos da crítica. A aposta na exasperação máxima dos antagonismos é estudada. Ela se explica pelo contato intenso de Bataille com a obra de Nietzsche, contato desconsiderado por Sartre na sua crítica.

É necessário considerar paralelamente os riscos e os obstáculos desse importante e patente recurso do autor ao pensamento de Nietzsche. Em 1944, quando Bataille escreve Sur Nietzsche, elaborando, entre outras ideias, a perspectiva de contradições sem solução, o filósofo alemão é tido por muitos como pensador oficial do regime nazista, sendo reivindicado, inclusive, pelo próprio Hitler. Além disso, encontra-se um obstáculo pertencente à cena das ideias. A oposição marcada, desde o século XIX, entre Hegel e Schopenhauer, de quem Nietzsche se fazia discípulo, obstaculizava o projeto de Bataille de atualizar o sistema de Hegel à luz de algumas ideias de Nietzsche. Como relacionar esses dois veios da filosofia alemã? Eram tradicionalmente hostis, algo, talvez, como, para Shakespeare, os Montecchio e os Capuleto.

Nesse quadro, qual a importância do pensamento de Nietzsche para o autor? A doutrina de Nietzsche, afirma Bataille, “é o mais violento dos dissolventes”; seu pensamento “apenas abre quem dele se inspira para o vazio”. Nesse sentido, Nietzsche é o filósofo do ensino paradoxal; é o pensador das contradições infinitas. Descartou todo corolário universal do conhecimento. Eliminou a esperança de apaziguamento do espírito. Pergunta, então, Bataille: como reduzi-lo “ao nível de propaganda”? E afirma: “eu quero acabar com este equívoco vulgar” e prossegue com uma lista de razões… [8]

Salientando o niilismo de Nietzsche, Bataille afirma o conflito como inerente à constituição permanente do espírito.[9] Nesta leitura, apontando a demolição sistemática de todo finalismo, encontram-se as razões que resistem à interpretação da filosofia de Nietzsche como anti-semita e nazista; aí afloram também as razões que levam Bataille, com o gume de Nietzsche, a querer intervir cirurgicamente, pode-se dizer, no sistema de Hegel. Com Nietzsche, trata-se de evitar a síntese, impedir a constituição da Razão, para permanecer com o antagonismo das consciências ou a relação de opostos entre senhor e escravo, focalizada por Kojève.[10]

Resumindo a distinção que interessa para a conceituação do erotismo: Hegel toma a luta como via para o reconhecimento, a reconciliação, a síntese. Diversamente, Nietzsche vê uma luta de opostos que se diferenciam, na qual se acentua uma disjunção.[11] Em tal sentido Nietzsche é inovador, para Bataille, enquanto abole o finalismo ou o sentido transcendente e descarta soluções. O erotismo, para Bataille, significa algo equivalente: refutação da Razão, recusa da finalidade, afirmação insuperável de paradoxos.

Até onde, porém, permanece válido o paralelismo com Nietzsche, se Bataille efetua algumas operações próprias à filosofia de Hegel, como a consideração da morte e a ideia correlata de negatividade? Ao se alinhar com o perspectivismo de Nietzsche, Bataille despoja os procedimentos de Hegel de seu sentido original. Faz um recorte e abandona o sistema. Desse modo, a negação cessa de valer como ascensão, deixa de significar a supressão da particularidade em favor do universal.

Com isso, o que muda não é pouco. Para Hegel, cada uma das operações negativas implica o Todo. Como diz Hyppolite, “para Hegel, o Todo é sempre imanente ao desenvolvimento da consciência”.[12]O caráter teleológico de tal desenvolvimento tem no bojo a visada do Todo. Compromete-se a lógica do espírito, quando se afirma, como Bataille, a absurdidade da morte e o não-sentido, quando se destitui a negação de sentido. Bataille rompe o arcabouço metafísico do sistema de Hegel.

Partindo do domínio hegeliano, está em curso, desse modo, apesar dos desígnios de Hegel, uma manobra afirmativa da imanência. Antecedida, em senso amplo, pela de Marx, tal decisão não é inédita. Neste caso, como demarcar os limites do caminho de Bataille? Para determinar com rigor o seu pensamento, se responde à pergunta deste curso sobre o desejo, se na noção de erotismo encontra-se uma eventual resposta, será necessário recorrer à comparação com a fenomenologia e o existencialismo. Tais correntes, bastante inter-relacionadas, experimentaram o apogeu de 1930 a 1960, quando se destaca o caráter da produção de Bataille através de prolongada luta com as filosofias de Heidegger e de Sartre. O seu pensamento se ordena mediante esse confronto. Desse modo, se define, antes, como dissonante ou desafinado do existencialismo e da fenomenologia.

Todavia, convém ter claro, antes de intervir no conflito, o que se visa com a noção de desejo. O que se entende com isso? A escola de Freud, no século presente, introduz uma clivagem nas acepções ligadas à noção de desejo. O desejo passou a ser pensado como atributo de uma sexualidade e se confundiu tal qualidade com verdade. O abalo sísmico provocado na cultura pelo enobrecimento teórico dos sinais de sexualidade foi detectado por Foucault em La volonté de savoir.[13] O termo desejo compreendia, por conseguinte, sentidos diferentes, antes de Freud constituir o inconsciente e a teoria correlata. Assim, na tradição, pode-se dizer que os variados conceitos de desejo não remetiam imediatamente a uma conotação sexual.[14] Na Fenomenologia do espírito, de Hegel, o desejo também não é sexualizado. Hegel segue a via de Fichte, que propõe um impulso (Trieb) específico da consciência. Referindo-se a tal poder da consciência, Hegel usa o termo Begierde. Comumente, Begierde pode ser traduzido para o português por “desejo”, “apetite”, “cobiça”, “avidez”… Enquanto conceito hegeliano, Begierde se tornou, no francês, désir, por força da tradução concorde de Hyppolite e de Kojève, na década de 30. No francês da época já circulava um sentido para désir, forjado pelos tradutores franceses de Freud.[15] No interesse da interpretação do texto de Hegel e possivelmente para evitar contrassensos, Jean Hyppolite precisa o conceito filosófico por contraposição a tal acepção corrente. Assim, indica que o désir, ou desejo, restabelecendo no caso o português, para Hegel, sendo potência da consciência de si é menos aquele do amor do que aquele do reconhecimento viril de uma consciência desejante por outra consciência desejante.[16]

Sentido simile é adotado por Bataille. Amiúde, a noção de desejo em seus textos remete a situações sem conotação sexual direta.[17] Na maioria dos casos se tratam de operações do espírito, visando evolução cognitiva. Formas derivadas desse conceito básico aparecem com frequência em L’expérience intérieure e Le coupable, primeiros livros de La somme athéologique.[18] Tal tipo de desejo se caracteriza como mediação com a infinitude; neste sentido, supera a negação do outro, com vistas à síntese das consciências. Conduz a um reconhecimento. Forma ambivalente nessa estrutura de arcabouço metafísico, o desejo, pertencendo tanto à finitude quanto à consciência, leva as marcas da insuficiência, própria ao finito, e da potência maior, própria ao espírito. Segundo tal duplicidade intrínseca, atesta a falta e implica uma meta ontológica. Opera nesses termos para Hegel e para Bataille.

Para a abordagem do erotismo, tal conceito não é adequado, já que visa alhures. Ou seja, tem-se, de acordo com Hegel, um conceito de desejo filiado ao espírito. Bataille conserva em âmbito determinado tal noção, redimensionando seus desdobramentos, contrapondo-se assim à teleologia otimista de Hegel. Por outro lado, tem-se a hipótese do erotismo, colocada noutro plano por Bataille, com fim diverso, dessa forma irredutível à perspectiva sintética do espírito. Por fim, privilegiada pelo autor como decisiva para um problema de importância máxima, já que traz os dados de uma alteração fundamental na composição do espírito. Nesses termos, não se verifica correlação possível. Para Hegel, o espírito mostrava-se homogêneo. Já para Bataille, cabe ao erotismo provar o oposto. Assim, como esperar da noção de desejo, afirmativa da unidade do espírito, que dê conta do contrário? Desponta o impasse. O conceito de desejo não serve, já que as esferas do espírito e do erotismo são excêntricas. Cumpre desativar a via do desejo para a abordagem do erótico na obra de Bataille. A determinação do erotismo enquanto “forma soberana e que não serve a nada”, conforme o proposto no início, exige outras mediações.

Assim, a pista que leva ao problema do erotismo, ao valor que tal experiência assume no pensamento do autor, tem de ser obtida só através do confronto de sua obra com a fenomenologia e o existencialismo. Porém, como determinar os limites e os termos de tal disputa? Pensamentos com orientações diversas diferenciam-se em vários níveis. Tais diferenças só têm significado à luz da época, resituadas no amplo cenário comum que circunscreve o embate. Desse modo, os indícios de confronto entre discursos e sistemas, com diferenças concretas, como os de Bataille, Heidegger e Sartre, antes de ser respeitados, para atestarem diferenças efetivas, requerem remissão prévia a um campo interativo. Como recuperar tal contexto? Para proceder à comparação, ou seja, para organizar os embates na base desses sistemas e discursos, depara-se uma dificuldade inicial: o erotismo é um tema importante para Bataille, mas desconsiderado pela maioria dos filósofos — inclusive por Heidegger e por Sartre, o qual, em suas análises da relação sexual, dá primazia ao papel da consciência, realçando as suas figuras.

Na tradição metafísica, o relativo à experiência erótica e à sexualidade tem, possivelmente, o mesmo valor conceitual da necessidade e da tirania. Por contraste, a tradição estabeleceu o primado da liberdade e da razão no outro extremo desta escala característica do sujeito. Dessa maneira, a liberdade foi situada no domínio moral, definido como racional. O próprio existencialismo, propondo a crítica dos costumes e a redefinição das questões morais, ainda afirmou tal correlação, concorde com a tradição, entre liberdade e razão.[19] Tal noção de liberdade tem antecedentes teológicos, herdando traços da potência divina, como mostra a afirmação de Leibniz:

Deus apenas é perfeitamente livre, e os espíritos criados só o são na medida em que estão acima das paixões.[20]

Portanto, passa pelo realce das noções de liberdade e razão, na tradição, a obscuridade do problema do erotismo, verificada na história da filosofia moderna. Implica o legado de métodos e temas recebidos pela metafísica da teologia. Em tal caso, considerando-se o descompasso entre os pensamentos de Heidegger, Sartre e Bataille, relativamente ao tema do erotismo, será mediante o seu correlato oposto, seu duplo negativo na tradição, a ideia de liberdade, esta sim tema de discussão geral, que será possível efetuar a prova comparativa entre os três pensadores.

Heidegger e Sartre, principalmente, deram papel preponderante em seus sistemas à liberdade. Bataille, de outro lado, fez a crítica da ideia de liberdade, para vir a elaborar, posteriormente, a noção de soberania, em contraposição. Desse modo, pelo estabelecimento de parâmetros, concretizando as discordâncias mais evidentes, tem-se a dimensão das divergências do pensamento de Bataille com a fenomenologia e o existencialismo. Ulteriormente, em tal contexto, recoloca-se o sentido do erotismo para Bataille. O privilégio do erotismo está, assim, contraposto ao da liberdade, em outros sistemas.

Para Bataille, em L’ expérience intérieure, a escola de fenomenologia alemã é “há já algum tempo, a única filosofia viva”. Mas tal elogio encerra um desafio, já que se segue um ataque frontal. Assim, conforme Bataille, a fenomenologia “tende a fazer do conhecimento a extensão última da experiência interior”. Já o seu objetivo, neste livro, é explicitamente o de questionar o finalismo da experiência, postulado pela fenomenologia. Para Bataille, a vigência desse valor deve-se apenas “à pouca acuidade das experiências das quais partem os fenomenólogos”. Ir, segundo Bataille, ao limite da experiência, significa, “no mínimo, ultrapassar o conhecimento como fim”.[21] Logo, este autor contrapõe às experiências cognitivas, vivências de espécie diversa, todas desenvolvendo intensa atividade emocional, o riso, o choro, o sacrifício, o erotismo, a contemplação da morte e do horror etc. Conforme Bataille, tais experiências escapam à ordenação cognitiva. Não se determinam em nenhum sentido.

A crítica do autor à fenomenologia pretende lançar luz sobre a atividade afetiva, desvencilhada do esforço específico de significar. Por isso, decompõe a experiência segundo dois domínios distintos: afetividade e consciência. Trata-se de tomar como evidência uma região usualmente velada pela consciência, ou, nas palavras de Bataille, de “determinar a região obscura, fechada à fenomenologia”.[22] Desse modo, ainda uma vez, a preocupação maior é considerar a heterogeneidade do espírito, negligenciada tanto pela fenomenologia hegeliana quanto pela contemporânea.

A obra de Heidegger constitui um marco significativo, para Bataille, no momento em que escreve L’expérience intérieure. Contrapondo-se a Heidegger, em diversos níveis, Bataille busca forjar outro pensamento. Inúmeros pontos de atrito, com diversos aspectos e magnitudes, podem ser localizados nesse trajeto. No caso, dois são importantes e decisivos. Primeiro, comentando o ensaio de Heidegger, Que é metafísica?, datado de 1929 e complementado com um posfácio de 1943, contemporâneo de L’expérience intérieure, Bataille observa que Heidegger apóia o pensamento na angústia, enquanto o seu parte da consideração do riso.

De fato, esses afetos acarretam perspectivas muito diversas.[23] Para Heidegger, com a angústia advém o outro do ente, o “nada, (que é) o véu do ser”.[24] Desse modo, segundo Heidegger, a angústia constitui um estado propício à revelação da totalidade. Já o riso, para Bataille, pressupõe o não-sentido e conduz ao não-saber. Descarta toda remissão à totalidade.

Outro desacordo vasto, embora potencial, se refere ao problema da liberdade. A primazia do ser, para Heidegger, implica certa concepção de liberdade, vinculada intrinsecamente à essência da verdade e ainda à noção de totalidade. Dois textos de Heidegger, Sobre a essência do fundamento, de 1929, e Sobre a essência da verdade[25] de 1930, explicitam tal implicação. Num primeiro momento, a divergência sobre a questão da liberdade passa sob o silêncio de Bataille. Embora tais ideias de Heidegger fossem, quase com certeza, conhecidas por Bataille, uma vez que os dois textos famosos que as veiculam são da mesma família de outros textos, como Ser e tempo, de 1927, e Que é metafísica?, ambos citados criticamente por Bataille, este não menciona diretamente, em L’expérience intérieure, a concepção heideggeriana de liberdade. Entretanto, é possível adiantar que, da perspectiva do não-sentido, de Bataille, os desenvolvimentos ontológicos de Heidegger sobre a liberdade não podem ser aceitos.

A crítica direta do autor à ideia de liberdade, postulada pela fenomenologia, delineia-se no ano seguinte, 1944, em Sur Nietzsche, continuação de L’ expérience intérieure, englobada inclusive, posteriormente, sob o mesmo título, La somme athéologique. Coloca-se, então, para Bataille, desde o ponto de vista adotado do não-sentido, a urgência lógica de formular um conceito alternativo ao de liberdade, ou seja, alheio ao plano ontológico em que se instalava a fenomenologia e sem decorrências metafísicas. A resposta a tal desígnio antimetafísico virá com uma noção correlata à de experiência erótica, a ideia de soberania, cujo início de elaboração pode ser datado através da polêmica travada com Sartre.[26]

A liberdade, para Sartre, é um princípio ontológico. Já que Deus não existe, Sartre diz: “não há determinismo, o homem é livre, é liberdade”. Entretanto, como se revela a liberdade para o homem? Como se experimenta a efetividade desse princípio do humano? Conforme Sartre, “escolher ser isto ou aquilo é afirmar ao mesmo tempo o valor do que escolhemos”. Por conseguinte, segundo ele, “não há um dos nossos atos sequer (…) que não crie uma imagem do homem como julgamos que deve ser”.[27] Nesses termos, a experiência da liberdade se efetua mediante deliberação racional, conjugada a uma aspiração que escolhe valores. Caracteriza-se como ação moral. Assim, a consciência aparece como forma necessária da liberdade revelada, para Sartre.

Porém, o papel insubstituível da consciência é exatamente o que L’expérience intérieure, de Bataille, não considera. Tal alerta de Sartre aparece em “Un nouveau mystique“, vívido artigo de crítica, publicado em dezembro de 1943, pouco após a primeira edição da sua obra L’être et le néant. L’expérience intérieure apela para experiências sem significado. O que está em causa para Sartre sair em campo? A julgar pela fúria da crítica sartriana, com traços de imprecação e esconjuro, presume-se que o autor de L’être et le néant deparou, na obra de Bataille recém-publicada, uma ameaça ao seu grande ensaio de ontologia fenomenológica. Desse modo, L’expérience intérieure nem merece o próprio nome. Não pretende uma análise da consciência, não adota a sua centralidade, não traz deduções ontológicas rigorosas. Assim, descarta o que há de mais legítimo, para Sartre, na “descoberta interior”. Conforme a crítica, tal obra, por cima de desconsiderar a instância do cogito, ainda toma muitas vezes, sem questionar, o ponto de vista científico, que, além de “coisificar a existência e o homem”, para a fenomenologia, é incerto. Não vale mais que uma hipótese, diante das certezas imediatas da consciência.[28]

É exato que o texto de Bataille ratifica a perspectiva científica. Mas não se detém aí. Estende-se principalmente em considerações relativas à parte do finito. Focaliza insistentemente as ruínas do sujeito invadido, exasperado e devastado, como a França do período, pela ação negadora dos agentes da aniquilação: a morte, o horror, a guerra, a varredura do tempo, a individuação, o desenraizamento etc. Assim se trata de uma finitude insuficiente, como para Hegel. Porém, incapaz de atingir o universal, contrariamente ao finito com espírito, de Hegel. Encerrado na particularidade para sempre, este pathos caótico produz um discurso de súplica, que dá a tônica característica da obra.

Desse modo, a esquiva de Bataille da perspectiva da razão é acrescida ou reduplicada, por outra maneira, tão pouco científica quanto imprópria ao cogito, a dos afetos, adotados como algo nativo e imediato, e não como estados da consciência, de acordo com a posição de Sartre.[29] Neste caso, nota Sartre: “o Sr. Bataille toma para si mesmo dois pontos de vista contraditórios simultaneamente”. Ou seja, segundo Sartre, coexistem no espírito de Bataille, de maneira incongruente, duas atitudes distintas: a existencialista e a cientificista.[30]

Para ser preciso, tal querela remonta aos últimos séculos. E Sartre é justo quando procura arrolar Bataille com Pascal.[31] Para Sartre, na linha derivada de Descartes e de Husserl, o que provém da experiência direta da consciência é mais válido, oferece certezas imediatas.[32] Nesta linha, a experiência da consciência constitui uma instância primordial. Assim, há já pressuposta, deste ângulo, uma diferença de valor entre os dados provenientes de duas fontes de conhecimentos distintas: por um lado, a da consciência, que inclui também a experiência própria do carpo conjugado; por outro, a da perspectiva coisificante da ciência, cuja condição, para a fenomenologia, na verdade, reside no cogito. O partido decidido de Sartre é pela primazia da consciência, que manifesta a liberdade.

Já, noutro polo como justificar a posição de Bataille, descartando a unicidade do espírito e a primazia do cogito? Enfim, o seu anti-racionalismo? A multiplicidade de pontos de vista simultâneos apóia-se na ideia de luta sem desfecho definitivo, segundo Nietzsche. A equivalência, de princípio, das avaliações é permitida ainda pela indistinção de valor entre as linguagens do corpo ou da consciência, e da ciência. A heterogeneidade de tais linguagens é evidente, porém, não a autenticidade, como pressupõe a fenomenologia, de uma sobre outra. Para foco nietzschiano, as representações produzidas pelo organismo resultam tão artificiais quanto as que recebem a contribuição dos instrumentos e métodos das ciências. Para o observador foucaultiano dos dias que correm, a quem a causa de Bataille surgirá mais próxima e fecunda, estão em cena, antes de tudo, ordens discursivas ou redes de linguagem, cada uma conservando a sua especificidade.

Para resumir a contenda. De um lado, com o descarte da consciência, perde-se a liberdade. Por isso, a fúria de Sartre. De outro lado, se não existe a unicidade do espírito, como mostram suficientemente as ciências, a liberdade será apenas uma anacrônica figura de ficção da idade da fé. Tal é a perspectiva de Bataille. Para este, trata-se de abandonar a noção de liberdade, enquanto ela acarreta a manutenção de todo o equipamento da razão, com o seu vezo teológico ou metafísico. Assim, ele pode afirmar, “meu método está nos antípodas das ideias elevadas, da salvação, de todo misticismo”.[33] O conhecimento, para Bataille, não é um fim e deve ser ultrapassado. A consciência não é um fundamento, mas um objeto a ser examinado entre outros, submetido ao vexame de todo objeto de análise. A determinação eventual do humano passa a estar a cargo de inúmeros saberes. Sociologia, antropologia, economia etc. fragmentam, como num pontilhismo, a função da ontologia de antanho. Nesse quadro, o autor se permite o pastiche filosófico. Com toque sofístico, aborda os temas maiores da filosofia, mas tende para a paródia.[34] Dessa maneira, está propenso à transvaloração da liberdade. Mas, em tal quadro tipicamente modernista, a favor de quê e como se ultrapassar a ideia de liberdade?

Bataille põe em xeque a liberdade como valor, no prefácio de Sur Nietzsche. Nesse livro, Sartre já é um alvo designado. O prestígio da liberdade, para o autor, parece indevido e ele nota: “liberdade, sem dúvida, se entende de várias maneiras, mas quem se espantará hoje que se morra por ela?”[35] Note-se que o livro inteiro foi escrito de fevereiro a agosto de 1944, ou seja, com a França ocupada pelo nazismo. O desembarque aliado nas costas da Normandia, o dia D, foi em 6 de junho de 1944. Podia-se cotejar o valor da liberdade com o da vida. Ser livre, como situação superior, significava com alguma frequência o sacrifício da vida face à opressão. Em tal contexto, o autor observa:

É o exercício positivo da liberdade não a luta negativa contra uma opressão particular que me eleva acima da existência mutilada. Cada um de nós aprende amargamente que lutar pela sua liberdade é antes aliená-la.[36]

A existência íntegra, não-mutilada, conforme tal opinião, é um valor que conta. Contrapõe-se à noção vigente de liberdade, que sujeita a vida. Favorecendo sua perspectiva, Bataille diferencia a liberdade, exercida afirmativamente, da liberdade enquanto finalidade. Para ele, a liberdade visada, como um bem superior, contradiz a primeira, já que exige a negação prévia do exercício positivo da liberdade.[37]

Em Méthode de méditation,[38] texto seguinte, progride a elaboração da noção de soberania. Várias anotações indicam que sua elaboração passa pela refutação de alguns conceitos da metafísica como finalismo, duração, substância etc. A ideia de soberania se define versus estas outras. É engendrada como antimetafísica para se contrapor polemicamente à ideia de liberdade, de raízes transcendentes, defendida pelo existencialismo e pela fenomenologia. O questionamento da ideia de liberdade evolui, nesta etapa, para a formulação de um conceito contrário. A escolha do termo soberania já sugere, possivelmente, a afirmação de uma esfera histórica e conflitiva, típica das lutas políticas. Nesses termos, ratifica a orientação teórica antimetafísica.

A definição de soberania está formulada na Declaração dos Direitos, de 1789, cujo artigo III afirma:

O princípio de toda soberania reside essencialmente na nação; nenhum corpo, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que não emanar daí expressamente.[39]

Porém, a retomada desse conceito de soberania, marcado pela ideia de um todo transcendente em relação às partes, não é o objetivo do autor, que assegura:

A soberania da qual eu falo, tem pouca coisa a ver com aquela dos Estados, que define o direito internacional. Eu falo de maneira geral de um aspecto oposto, na vida humana, ao aspecto servil ou subordinado.

Algumas imagens são associadas, pelo autor, à ideia de soberania. Assim, têm-se mostras de soberania: “em um operário que se serve de um copo de vinho”; “num pobre que, numa manhã de primavera, vislumbra um raio de sol transfigurando uma rua miserável”[40]; “em alguém que fuma um cigarro”.[41] Para precisar os seus exemplos, além disso, o autor assevera que um burguês é o ser decididamente mais estranho à soberania.[42]

Repassando tal soma de parcelas variadas de prazer, interpretadas como diferentes, por natureza, do prazer próprio da opulência burguesa, o que se obtém em comum, antes da definição de uma ideia nitidamente afirmativa, consiste no elogio de atitudes improdutivas ou de esquiva em relação à servidão, tanto do trabalho alienado, quanto do empreendimento burguês. À primeira vista se trata de recusar a hegemonia de cadências e ditames capitalistas sobre os comportamentos. Encontra-se o autor outra vez na órbita do pensamento de Marx, tentando não apenas criticar a filosofia especulativa, mas também forjar um antídoto à ordenação das condutas pelo capital. Da crítica ao adestramento para a acumulação decorre a conjunção com a noção de despesa, motivo de estudos anteriores.[43] Desse modo, o conceito de soberania se define também contra o impulso exclusivo de acumulação, característico do capital.

Notas manuscritas, deste período de preparação de La part maudite, indicam que o autor lamenta equívocos suscitados pelas obras anteriores.[44] Preocupa-se em diferenciar o seu trabalho seja do existencialismo seja de Heidegger.[45] Assim, observa sobre o seu novo livro: “ver-se-á dos caminhos que segui que eles se apartam profundamente daqueles de Heidegger”.[46] Diz que a obra trata de “uma economia geral de energia”, ordenando

um sistema de relações — científico — de objetos de pensamento à modalidade humana não da substância mas da despesa de energia — ao imanente, não mais ao transcendente.[47]

Desse modo, a crítica da metafísica pretende chegar, como em Marx, à constituição de uma ciência. O autor apresenta, em La part maudite, finalmente um sistema, de modo claro e abrangente. Baseado nele, discute temas de interesse teórico e público, como, por exemplo, questões de economia das sociedades antigas ou primitivas, o Plano Marshall de ajuda financeira dos EUA à reconstrução da Europa ocidental, e os problemas da industrialização soviética. Nesta época, Bataille está à frente da revista Critique, fundada e conduzida por ele de 1947 até 1962, quando morreu. O periódico acolhe textos de pesquisadores e cientistas eminentes, franceses e de outros países. Discute questões de saber diversas, granjeando prestígio pela seriedade; tornando-se algo como uma súmula, até hoje existente, dos trabalhos científicos contemporâneos. Aparecem nessa publicação, desde 1947, os artigos e ensaios de Bataille que, depois, reunidos e remodelados, são englobados, em 1949, sob a denominação de La part maudite.[48]

É importante notar que a linguagem do escritor, nesta fase, está mudando. O tom, a postura, o estilo, antes exacerbadamente emotivos e instáveis, são temperados, agora, por afirmações positivas, apoiadas em estudos e análises científicas de problemas energéticos, econômicos, antropológicos, históricos etc. A tendência para a cientificose assim se reforça, poderia dizer, talvez, o adversário Sartre, se consultado. Vendo a questão de outra maneira, é possível perceber em esboço a linguagem mais suave e segura de um tratadista. Desse modo, um mundo, um planeta e até mesmo um cosmos são apresentados. De que trata, precisamente, tal discurso cientifico? Como se constituem as suas evidências? Por que vias a percepção se integra a esse novo modo de enunciação? Uma observação do autor esclarece, de alguma maneira, tal processo de reestruturação perceptiva:

O essencial de nossas percepções é percepção de energia — de energia emitida por outros e provocando o contágio (quer dizer a energia que, emitida em um indivíduo, tem, em circunstâncias favoráveis, o poder de provocar em um outro uma emissão de energia de mesma natureza).[49]

O caráter energético de tal descrição da atividade perceptiva é estranho às formulações da percepção, postuladas pela fenomenologia. Enquanto energia, a percepção se configura como atividade espontânea, dotada de uma positividade produtiva como de uma negatividade destrutiva. Não se põe face à suposta anterioridade do ser, do mundo ou da coisa captada.[50] Não acolhe um sentido inscrito na estrutura das coisas, conforme a concepção de Merleau-Ponty, mas sendo energia, emite forças, dita estímulos.[51] Substituindo o ser, pressuposto pela feno-menologia, instaura-se um campo energético como contextura ou composição perceptiva. Trata-se, para Bataille, de um

continuum exterior resultante do poder que tem o vivo de emitir energia, pela qual ele se mantém no continuum; o continuum interno resulta da apropriação de alimentos emissores de energia e da rejeição de uma parte residual destes alimentos não suscetível, esta, de emitir uma energia assimilável, emitindo ao contrário uma energia tóxica (que destrói os tecidos do continuum interno): […] o caráter inadmissível não é revelado à consciência senão no momento da excreção.[52]

Perdem função, em tal âmbito, noções, com formato metafísico, como as de ser, tempo, temporalidade, subjetividade transcendental, liberdade etc. A definição fundamental, para o novo discurso, passa a ser a de energia, como “uma incessante destruição de limites”. A partir daí, a imanência é dita “por essência ultrapassamento de si mesma, impossibilidade de aceitar um limite”. Invertendo o raciocínio especulativo da metafísica, que definia o imanente com base na determinação do fundamento transcendente, o autor denomina a transcendência de “imanência negativa”, O sagrado é entendido então como “uma interrupção na emissão de energia”. De acordo com o novo ponto de vista, é afirmada uma lei geral: “todo sinal de imanência provoca alguma emissão de energia”. Dentro dessa economia geral, a sujeira e a desordem equiparam-se a signos do divino, conduzem, à transcendência ou à imanência negativa. Assim, agem como absorventes; são definidas como excitantes ligeiros e cerrados que “desapropriam a energia introduzindo sinais (exteriores) de imanência”.[53]

O conceito de soberania, ou de operação soberana, tem importância vital para o sistema proposto por Bataille. Para uma definição precisa de soberania, convém retomar brevemente a comparação entre liberdade e soberania. Para Sartre, como para outros filósofos, podia-se conceber a liberdade na forma de um reencontro.[54] Assim, no ato livre, o homem encontrava-se no próprio cerne, ou se reencontrava, já que era definido livre por essência. A metáfora do reencontro incluía, portanto, a pressuposição ontológica da liberdade. Porém, sem tal pressuposto, como representar o correlato, na economia geral, do ato livre, ou seja, a operação soberana? Tal operação, para Bataille, acaba configurando uma perda, ao invés de um reencontro. Trata-se, noutros termos, de um ato improdutivo, insensato ou sem sentido; de um desperdício ou despesa de energia.

Os conceitos de operação soberana e de desperdício funcionam de modo acoplado, em níveis distintos. O desperdício, a perda ou a despesa referem-se a quantidades de energias acumuladas. A economia geral afirma que os organismos acumulam energia para o crescimentu. Captam, entretanto, em grau superior ao necessário. Quando o excesso se faz sentir, o desperdício, as perdas incontornáveis e sem sentido começam. A despesa se inicia, conforme Bataille, pela “ruptura do continuum”, pelo “se pôr em jogo”, quando a parte se desprende do todo.[55]Isto é, quando a lógica do todo, que pautava o esforço conjunto de crescimento, não consegue mais subjugar as forças acumuladas nas partes. Com o desligamento ou o rompimento da cadeia, cada parte passa a esbanjar a energia captada em nível excessivo, anteriormente dominada e consagrada à lógica transcendente da totalidade ou do crescimento conjunto.[56]

A operação soberana atua, noutro nível, em correlação com os impulsos de esbanjamento. Ela se refere a uma opção da consciência favorável ao desperdício, benevolente com a perda. Observações do autor determinam traços de exercício da operação soberana. Ela implica “ausência de duração”, “a destruição de si mesma”, e “a transcendência se destruindo”.[57] Assim, a soberania se apresenta como perspectiva operatória, que avalia condutas, excluindo, ao se efetuar, toda referência a alguma finalidade, a uma essência, a uma origem determinante.[58] Atua como um pulverizador das coordenadas transcendentes, mediante as quais o homem se interpretava. A soberania assinala a dispensa das representações da vida humana conjugadas a sinais de servidão e de insuficiência. Desfaz a associação do homem com a escassez, pretendida por Sartre.

Precisando a correlação distintiva entre desperdício e soberania, o escritor afirma que a conduta soberana não é rara, porém “ninguém se pensa soberanamente”.[59] Assim, no âmbito dos comportamentos, os seres não escapam à necessidade imperiosa, uma vez o excesso se fazendo sentir, de desperdício. Contudo, com frequência, tais gastos são malditos. A consciência não costuma tolerar perdas improdutivas ou insensatas. Logo se entende o que o autor distingue como conduta soberana nas imagens citadas: do operário bebendo um copo de vinho, do fumante, do olhar surpreso para a rua alterada com a luz. Sempre se trata da eleição do momento vivido como o melhor, do instante de suspensão das determinações e das finalidades acertadas, do lapso deliberado em relação ao todo. As cenas pretendem demonstrar a dissolução da vida mental dos imperativos, fins nulos e princípios inoperantes, representam gestos ao léu a fim de que reservas ilesas de energia, não servilizadas pelas necessidades, não empregadas para labuta, possam dispender-se sem objetivo algum como fumo no ar. O fumar é privilegiado pelo autor como demonstração, na atualidade, da persistência de soberanias e de desperdícios, comparáveis aos sacrifícios das culturas antigas, nos ritos, de parte imensa de seus bens. O exercício da soberania é um antídoto ao projeto e seus compromissos, afirmados pelo existencialismo sartriano, na esteira da moral de Kant.

Desse modo, constitui-se uma nova espécie de consciência de si. Como no caso da consciência de si, inventada por Hegel, ela é portadora de uma negatividade imanente, já que o caráter da operação soberana, perdulária sempre, é negativo sempre. Porém, à diferença da negatividade inventada por Hegel, a negatividade da consciência, segundo Bataille, mantém exclusivamente o aspecto destrutivo da negação. Não conduz ao universal ou à Razão, não se efetua como momento da síntese do espírito. Forja-se assim uma consciência do vivo, de base orgânica.[60] Como consciência do vivo retorna a algo que é ela, a sua base energética, mas que também é outro; efetua um reconhecimento de si, um auto-reconhecimento, porém, da sua própria alteridade irredutível, impossível de ser suprimida ou subsumida. Alteridade passível apenas de ser direcionada ou estimulada.[61] Assim, como explica Bataille, “a vontade decide da modalidade não da quantidade da perda”.[62] Por modalidade o autor entende distintas formas de ação — o sacrifício, o jogo, o erotismo, a arte, a guerra, etc. —, entre as quais cabe à consciência apenas optar, sem poder escapar da perda inevitável do tanto de si ou resistir a todo gênero de despesa.

Tal consciência de si, emissão energética na forma específica de vida mental, permite a perspectiva geral, da abundância de fontes geradoras ou do excedente de energia, por cuja via se explica o sistema. Tal parte não reconhecida, a parte do excedente, a ser destruída, é a parte maldita. O livro La part maudite constitui uma formulação, clara e distinta, dirigida à consciência do leitor, do ponto de vista geral, dado pela abundância. Visa demover a perspectiva particular, marcada pela angústia, falta e recusa da morte, em favor da perspectiva geral, do excesso energético, característico da esfera da imanência. A energia solar, o luxo e o erotismo, entre outras formas indicativas de soberania, porque fortemente dispendiosas de energia, têm valor paradigmático na apresentação da economia geral, proposta pelo autor. A economia geral pode ser entendida também à luz do discurso da ciência ou do saber que aponta a potenciação ou intensificação de energia no âmbito das partículas, opondo-se à energia vinculada a totalidades ou sistemas, ou seja, à força de coesão. Argumenta assim em favor da fissão ou desintegração, de acordo com várias pesquisas científicas contemporâneas.[63]

Em tal sistema, desprovido do paradigma do espírito, o conceito unificador de desejo perde valor operativo. O termo desejo é utilizado poucas vezes, em La part maudite, remetendo só a uma propensão ou tendência indeterminada. Remontando o percurso feito, verificou-se que a elaboração da perspectiva de acordo com desígnios antimetafísicos, ou condizente com a afirmação geral da imanência, conduz à apresentação de uma espécie de consciência, sem espírito e de fundação orgânica, adequada à heterogeneidade intrínseca das suas partes. Portanto, distinta da formulação hegeliana, criticada por Bataille. Neste percurso caem em desuso, no pensamento do autor, noções como desejo e liberdade, com fascínio perceptível ainda hoje, apesar da influência ascendente das ciências.

A trajetória filosófica de Georges Bataille tem de ser relativizada, situada em moldes coletivos, conforme se caracterizava, para ele, o trabalho filosófico.[64] Em tal sentido, é possível notar que o debate com Sartre reproduz na escala teórica, em larga medida, posições da polêmica de Schopenhauer contra o racionalismo da moral kantiana. A direção seguida pelo pensamento de Bataille mostra-se ainda de acordo com uma divisa de Schopenhauer, quando este afirma: “a solução de enigma do mundo tem que provir do próprio mundo”.[65] Além disso, observa-se que a importante assertiva acerca da inevitabilidade do desperdício de energia parece recordar afirmações de Nietzsche, quando este se contrapõe, em A gaia ciência, à ideia do predomínio de um instinto de conservação:

Querer conservar-se a si mesmo é a expressão de uma situação de penúria, de uma limitação do impulso fundamental de vida característico que caminha para uma extensão da potência e nesta vontade por muitas vezes põe em questão e sacrifica a autoconservação […], na natureza o que domina não é a situação de penúria, mas sim a superabundância chegando até ao absurdo […].[66]

Em Para além do bem e do mal, Nietzsche também afirma, no mesmo sentido:

Os fisiólogos deveriam prestar mais atenção, ao estabelecerem o impulso de autoconservação como impulso cardinal de um ser orgânico. Antes de tudo o vivente quer dar vazão a sua força — […] a autoconservação é somente uma das consequências disso. — Em suma, aqui, como em toda parte, cuidado com os princípios teleológicos supérfluos![67]

Notas

[1] Nessa passagem, o autor distingue o erotismo da sexualidade. Ver Georges Bataille, L’histoire de l’érotisme , in Œuvres complètes, Paris, Gallimard, 1976, v. VIII, p. 12.

[2] Bataille, “Sur Nietzsche”, in La somme athéologique, t. II, in Œuvres complètes, Paris, Gallimard, 1973, v. VI, p. 16. Redigido de fevereiro a agosto de 1944, Sur Nietzsche, volonté de chance, foi publicado em fevereiro de 1945 pelas edições Gallimard. Cf. “Notes”, idem, p. 377.

[3] As duas passagens encontram-se em Bataille, “Attraction et répulsion”, cf. Denis Holler, Le Collège de Sociologie (1937-1939), Paris, Idées/Gallimard, 1979, p. 216. Sobre Bataille e Hegel, ver Raymond Queneau, “Premières confrontations avec Hegel”, in Critique, hommage à Georges Bataille, Paris, Minuit, t. XIX, n. 195-6, ago.-set. 1963, p. 694-700.

[4] Bataille, L’histoire de l’érotisme, p. 17.

[5] Jean Hyppolite, Genèse et structure de la Phénomenologie de l’esprit de Hegel, Paris, Aubier-Montaigne, 1967, p. 158-60. Ver também p. 146.

[6] A passagem anterior e esta se encontram, respectivamente, nas páginas 44 e 55, in Bataille, L’érotisme, Paris, Minuit, 1970.

[7] A afirmação faz parte de uma crítica, adiante mencionada, de Sartre a L’expérience intérieure, de Bataille. A crítica de Sartre, intitulada “Un nouveau mystique”, foi publicada originalmente em Cahiers du Sud, n. 260-2, out.-dez. 1943. Cf. Bataille, Sur Nietzsche, p. 185. Posteriormente, o texto de Sartre foi republicado em Situations, I, essais critiques, Paris, Gallimard, 1973, p. 133-74. A frase citada está na página 144.

[8] Ver Bataille, Sur Nietzsche, p. 12-5.

[9] “Hoje eu acho bom afirmar minha desordem [désarroi]”, diz Bataille, no Prefácio. Idem,13.

[10] O privilégio concedido por Bataille à “dialética do senhor e do escravo”, cuja “lucidez é desconcertante”, fica bastante marcado numa nota do autor, posta na página 128 de L’expérience intérieure. Aí Bataille compara desfavoravelmente a crítica (“superficial”) de Kierkegaard a Hegel, bem como a Genealogia da moral, de Nietzsche (“prova singular da ignorância da dialética … “), com “o momento decisivo da história da consciência de si”, apontado nas relações entre senhor e escravo. Nessa nota também, Bataille deixa patente a proveniência da sua interpretação de Hegel, citando um comentário de Kojève da passagem de Hegel, bem como a sua tradução. La somme athéologi-que, t. I, in Oeuvres completes, v. V. Ver também Jacques Derrida, “Un hégélianisme sans réserve”, in revista Arc, Aix-en-Provence, 1967, n. 32, p. 24-44, reproduzido em L’écriture et la différence, Paris, Seuil, 1967.

[11] Para a interpretação de Nietzsche em relação à luta, ver Friedrich Nietzsche, “Homers Wettkampf”, Kroner, I, p. 242. “La joute chez Homère”, in Écrits posthumes 1870-1873, trad. francesa M. Haar e M. B. de Launay, Œuvres philosophiques complètes, Paris, Gallimard, 1975, p. 192-200. Ver também Nietzsche, “A filosofia na época trágica dos gregos”, in Nietzsche — Obras incompletas, org. Gérard Lebrun, trad. Rubens Rodrigues Torres Filho, 2 ed., São Paulo, Abril Cultural, 1978, p. 35-6, § 5 (Os Pensadores). Ver ainda comentários sobre essas passagens em Gérard Lebrun, O avesso da dialética, Hegel à luz de Nietzsche, trad. Renato Janine Ribeiro, São Paulo, Companhia das Letras, 1988, p. 93-105; Gérard Lebrun, “A dialética pacificadora”, trad. Rubens Rodrigues Torres Filho, in Almanaque 3 — Cadernos de Literatura e Ensaio, orgs. Walnice Nogueira Galvão e Bento Prado Jr., São Paulo, Brasiliense, 1977, p. 24-42.

[12] Hyppolite, op. cit., p. 20.

[13] Michel Foucault, La volonté de savoir, Paris, Gallimard, 1976.

[14] Modernamente, isso se verifica com Descartes, Locke, Spinoza e Hegel. Ver José Ferrater Mora, verbete Deseo, in Diccionario de filosofia abreviado, Barcelona, EDHASA, 1981, p. 108-9. Também a conferência de Marilena Chaui, neste curso, apresenta muito bem, com riqueza de dados, tratando inclusive do pensamento antigo, a ampla gama de significações associada, na tradição, ao termo.

[15] Freud, em seus escritos, emprega o termo Wunsch, com maior frequência, e às vezes Begierde ou Lust. As traduções para o francês dos textos de Freud cunharam para estes três termos um único equivalente nessa língua: désir. Laplanche e Pontalis notam a respeito dessa terminologia: “o termo desejo [désir] não tem o mesmo valor na sua utilização que o termo alemão Wunsch ou que o termo inglês wish. Wunsch designa sobretudo aspiração, o voto formulado, enquanto o desejo evoca um movimento de concupiscência ou de cobiça em alemão traduzido por Begierde ou ainda por Lust”. J. Laplanche e J.-B. Pontalis, verbete Desejo, in Vocabulário de psicanálise, trad. Pedro Tamen, Lisboa, Moraes, 1979, p. 158.

[16] Hyppolite, op. cit., p. 158.

[17] ver Bataille, L’expérience intérieure, p. 101-2, 105, 107, 121, 144, 158, 164, 260 e 262.

[18] La somme athéologique é o título de uma coletânea de ensaios de Bataille, organizados em dois tomos, em edição da Gallimard, em 1954. O nome adotado responde, provavelmente, ao esforço do autor para proteger a sua obra da pecha de misticismo, atirada por Sartre, após a primeira edição de L’expérience intérieure, em 1943. A maioria dos textos de La somme athéologique não era inédita e vinha sendo publicada na forma de livros ou de artigos desde 1943. Estão englobados, no primeiro tomo: L’expérience intérieure (1943), Méthode de méditation (1947), Post-scriptum (1953), Le coupable (diário redigido de setembro de 1939 a outubro de 1943 e publicado em 1944), L’alleluiah (redigido em 1946 e publicado em 1947). O segundo tomo compõe-se de: Sur Nietzsche (1945), Mémorandum (1945), Annexes (vários). Essa coletânea organiza, de algum modo, o caminho intelectual percorrido durante e sob a influência da guerra. Demarca um ciclo, sucedido por uma série de textos centrados, pode-se dizer, em torno de La part maudite e dos elementos da “economia geral”, de que adiante se tratará.

[19] Assim, para Sartre, é pelo cogito que o homem atinge a liberdade e a intersubjetividade, definida como “mundo [eml que o homem decide sobre o que ele é o que são os outros”. Cf. Sartre, O existencialismo é um humanismo, trad. Vergílio Ferreira, São Paulo, Abril Cultural, 1978, p. 16 (Os Pensadores). Ver também, sobre a linhagem cartesiana da liberdade sartriana, Sartre, “La liberté cartesienne”, in Situations, I, essais critiques, p. 289-308.

[20] Leibniz, Nouveaux essais sur l’entendement humain, trad. Paul Janet, in Œuvres philosophiques de Leibniz, Paris, Felix Alcan Éditeur, 1900, Livro II, cap. XXI, p. 137, § 8.

[21] Esta citação e as três anteriores, transcritas no mesmo parágrafo, encontram-se na página 20, in Bataille, L’expérience intérieure.

[22] Bataille, “Notes”, in Oeuvres complètes,v . V, p. 542.

[23] Esta oposição de Bataille ao sentido da angústia, o efetivo desprezo manifestado várias vezes por tal afeto, dignificado filosoficamente por Heidegger e por Sartre, explica muito das suas divergências intelectuais e pessoais com tais filósofos. A depreciação intelectual da angústia vai se manter ao longo de fases distintas da sua obra. Por exemplo, em La part maudite, Bataille associa a angústia ao sentimento de falta, próprio à perspectiva particular, em contraposição ao sentimento de abundância, típico do ponto de vista geral. Pode-se distinguir, talvez, nessa avaliação, um reflexo longínquo da perspectiva universalista e otimista de Hegel. Porém, o que se percebe com mais nitidez, através de várias afirmações de menoscabo pessoal pela vida professoral e pelas posições políticas de Heidegger, são os ecos de uma avaliação nos moldes aventados por Nietzsche, na “Primeira dissertação” da Genealogia da moral, distinguindo os afetos próprios aos fracos e aos fortes. Assim, Heidegger com suas citações professorais em grego não-traduzido exibe, para Bataille, “traços da coleira”. Bataille, “Notes”, in Œuvres complètes, p. 471. Sobre as críticas de Bataille, em 1945-46, às posições políticas de Heidegger, ver Bataille, idem, p. 474 (trecho citado integralmente adiante, na nota 45).

[24] Martin Heidegger, Posfácio (1943), Que é metafísica?, in Conferências e escritos filosóficos, trad. Ernildo Stein, São Paulo, Abril Cultural, 1979, p. 51 (Os Pensadores). Para a determinação do papel da angústia, para Heidegger, ver do autor Que é metafísica?, p. 39-42. Outro traço de confronto entre o pensamento de Bataille e o de Heidegger, possível de ser localizado no texto de 1943, diz respeito à interpretação do sacrifício. Assim, para Heidegger: “O sacrifício é destituído de toda violência porque é a dissipação da essência do homem — que emana do abismo da liberdade — para a defesa da verdade do ser para o ente. No sacrifício se realiza o oculto reconhecimento, único capaz de honrar o dom em que o ser se entrega à essência do homem, no pensamento, para que o homem assuma, na referência ao ser, a guarda do ser” (p. 50). Para Bataille, a noção de sacrifício constituía um tema central. Sua interpretação procedia diretamente de investigações antropológicas, sendo especialmente marcada pela noção de “potlach” , desenvolvida no Essai sur le don (1925), por Marcel Mauss. Nesta linha, a interpretação de Bataille, utilizando dados de análises antropológicas, buscava desvencilhar o sacrifício de conotações metafísicas, inserindo-o no rol das atividades sem sentido. A esse título, a noção de sacrifício valia inclusive como arma de argumentação, de Bataille, nas suas críticas à fenomenologia. Ver Alfred Metraux, “Rencontre avec les ethnologues “, in Critique, p. 677-84.

[25] Sobre a concepção de liberdade, ver Heidegger, “Sobre a essência do fundamento”, in Conferências e escritos filosóficos, p. 119-25, e “Sobre a essência da verdade”, idem, p. 137-9. É de ressaltar que este último texto resulta de uma conferência proferida, pela primeira vez, em 1930, e várias vezes repetida. Revisto muitas vezes, o texto foi editado pela primeira vez apenas em 1943, no mesmo ano, portanto, de L’expérience intérieure, de Bataille. A esta altura, no entanto, as suas ideias principais já eram bastante conhecidas do público interessado. Cf. Ernildo Stein, “Nota do tradutor”, in Heidegger, Conferências e escritos filosóficos, p. 127-9.

[26] Três momentos marcantes da polêmica entre Bataille e Sartre podem ser observados em Sartre, “Un nouveau mystique”, de 1943; Bataille, “Discussion sur le péché, annexe 5” in Sur Nietzsche, p. 314-59. (Esse texto inclui um resumo das teses de Bataille sobre o tema, apresentadas em conferência, a exposição do ponto de vista cristão pelo jesuíta Danielou, em seguida, e a transcrição integral dos debates, após, dos quais Sartre participou ativamente. Intervieram também, nessa discussão, Maurice de Gandillac, Klossowski, Hyppolite, Adamov, Gabriel Marcel. Estavam também presentes, nessa noite, Blanchot, Simone de Beauvoir, Camus, Leiris, Merleau-Ponty, Paulhan, etc. O debate aconteceu em 5 de março de 1944, na casa de Marcel Moré. Cf. idem, p. 315-6.) Outro momento de confronto aberto está em Bataille, “Genet”, in La littérature et le mal, Paris, Idées, Gallimard, 1972, p. 197-244.

[27] Todas as citações de Sartre, transcritas nesse parágrafo, encontram-se em Sartre, O existencialismo dum humanismo, p. 6-9.

[28] Ver Sartre, “Un nouveau mystique”, p. 146-52 e 172.

[29] Pode-se dizer que, para Sartre, a consciência tem uma definição mais ampla que a do cogito cartesiano, abrangendo também estados afetivos, e não só pensamento puro. Assim, Sartre afirma: “O conhecimento ou pura ‘representação’ não é senão uma das formas possíveis da minha consciência ‘desta’ árvore; eu posso também amá-la, temê-la, odiá-la…” (Sartre, “Une idée fondamentale de la phénoménologie de Husserl: l’intentionnalité”, in Situations, I, p. 31). Não obstante, a concepção da consciência, conforme Sartre, fundada na liberdade, tem de modo explícito no núcleo o cogito cartesiano. Ver Sartre, “La liberté cartesienne”, p. 289-308.

[30] Ver Sartre, “Un nouveau mystique”, p. 146 e 151

[31] Bataille, La somme athéologique, t. I, p. 228.

[32] “Uma vez tomada a via do cogito, não há mais como se perder — não há mais abismo, não há noite…” Sartre, idem, p. 172.

[33] Bataille, La somme athéologique, t. I, p. 228.

[34] Esse uso do material filosófico, que Sartre condenou como “sem discernimento” e com outras sentenças severas (“Un nouveau mystique”, p. 145-6, 156 e 170-1), duas décadas depois, para Derrida, surtiu efeito de uma excelência. Ver Derrida, op. cit.

[35] O grifo é do autor. Bataille, Sur Nietzsche, p. 13.

[36] Idem, p. 18.

[37] Sartre raciocina de modo oposto: “Queremos a liberdade pela liberdade e através de cada circunstância particular. E, ao querermos a liberdade, descobrimos que ela depende inteiramente da liberdade dos outros, e que a liberdade dos outros depende da nossa. Sem dúvida, a liberdade como definição do homem não depende de outrem, mas, uma vez que existe a ligação do compromisso, sou obrigado a querer ao mesmo tempo a minha liberdade e a liberdade dos outros; só posso tomar a minha liberdade como um fim se tomo igualmente a dos outros como um fim. Por consequência, quando, num plano de autenticidade total, reconheci que o homem é um ser no qual a essência é precedida pela existência, que é um ser livre, que não pode, em quaisquer circunstâncias, senão querer a sua liberdade, reconheci ao mesmo tempo que não posso querer senão a liberdade dos outros”. (Sartre, O existencialismo dum humanismo, p. 19.) Mais uma vez, a diferença entre os dois pensadores deve ser remetida à questão do cogito. Ou seja, para Bataille, trata-se de definir a liberdade exclusivamente no plano da vivência, atendo a sua determinação aos dados afetivos, estranhos e obscuros, à luz da consciência. Já, para Sartre, o dado do vivido, condicionado pela consciência, leva a uma concepção de liberdade implicando vários níveis de elaboração consciente, requerendo a experiência racional da intersubjetividade e rematada na forma de um valor. Daí duas noções distintas e inconciliáveis de liberdade. Elas refletem, antes de tudo, métodos de pensamento diversos.

[38] Esse texto foi escrito entre 1945 e 1946. Alguns extratos foram publicados no n. 48-9 da revista Fontaine, em janeiro-fevereiro de 1946, sob o título “Diante de um céu vazio” (cf. Bataille, “Notes”, in La somme athéologique, t. I, p. 456). Como L’expérience intérieure e L’être et le néant, ambos iniciados em 1939 e iSublicados em 1943, Méthode de méditation também tem um ponto coetâneo e equiparável até, em alguns aspectos, na obra de Sartre; é o citado O existencialismo é um humanismo, texto de uma conferência proferida no Club Maintenant, publicado em 1946.

[39] O artigo XXV da Declaração de 1793 acentua mais a raiz terrena da soberania: “A soberania reside no povo; ela é una, indivisível, imprescritível e inalienável”. Cf. André Lalande, verbete Souveraineté, in Vocabulaire technique et critique de la philosophie, Paris, PUF, p. 1016.

[40] A referência à noção de soberania e as duas imagens, em seguida, encontram-se em Beadle, La souveraineté, in Oeuvres completes, v. VIII, p. 247-9. Essas duas imagens de soberania, ainda uma vez, podem estar endereçadas a Sartre, que, no penúltimo parágrafo da sua crítica a L’ expérience intérieure, concluíra: “Mas as alegrias às quais nos convida o Sr. Bataille, […] não valem mais do que o prazer de beber um copo ou de se esquentar ao sol …” (“Un nouveau mystique”, p. 174). La souveraineté é um texto da primavera de 1953, planejado como continuação de La part maudite. Porém, ele só foi publicado de maneira desmembrada, dando origem a vários artigos,. publicados em diferentes revistas, a partir de 1956. Cf. Thadée Klossowski, “Notes”, in Bataille, Œuvres complètes p. 592-3.

[41] Bataille, “Collège socratique, annexe 2”, in Sur Nietzsche, p. 280.

[42] La souveraineté, in Œuvres complètes, V.

[43] “La notion de dépense”, escrito por Bataille em 1933, foi publicado em La critique sociale, jan. 1933, n. 7, p. 7-15. Essa revista era editada pelo Círculo Comunista Democrático. Cf. Bataille, “Notes”, in “Prémiers écrits, 1922-1940”, t. I, in Œuvres complètes, Paris, Gallimard, 1970, v. I, p. 624-36. Ver também “La notion de dépense”, in Œuvres complètes, v. I, p. 302-20. Pode-se também incluir entre os estudos preparatórios em torno da noção de despesa “L ‘économie à la mésure de l’univers”, publicado em “Constellation”, La France libre, jul. 1946, n. 65. Cf. Bataille, “Notes”, in Œuvres complètes, Paris, Gallimard, 1976, v. VII, p. 465. Além disso, segundo a apresentação de Foucault às obras completas de Bataille, pode-se considerar que a produção mais volumosa do autor, ocorrida de 1940 a 1961, tem como um dos eixos principais a noção de despesa. Essa questão ordena os quatro últimos tomos, do conjunto de dez, das obras completas de Bataille. Ver Foucault, “Présentation”, in Bataille, “Premiers écrits, 1922-1940”, p. 5-6.

[44] Bataille anota, no que seria, talvez, um esboço de prefácio para a reedição da sua obra “aforística”: “Além de minha intenção atual de exprimir meu pensamento mais simplesmente, com mais coerência […], uma única coisa me importa sobre meus primeiros livros. (Eu designo assim não somente L’expérience intérieure, mas Le coupable e Sur Nietzsche.) Frequentemente, os que deles gostam em realidade associam-nos ao espírito vago e à sentimentalidade: eu quero dizer aqui que decepcionarei irremediavelmente, estou certo, a maioria dos que me louvaram. Eu os decepcionaria se eles soubessem e eu desejo que eles saibam a que ponto meu gosto pela precisão seca e meu horror da facilidade os distancia de mim.

Sinto-me incapaz há muito tempo de me prestar, seja em aparência, ao mais fraco deslize místico. Aconteceu-me outrora de ter uma atitude menos clara. Em particular L’expérience intérieure, Méthode de méditation que a prolonga (sem falar de Le coupable ou de Sur Nietzsche) aos meus olhos de hoje são criticáveis…

Sinto-me mais e mais ligado à secura da inteligência, e me parece bom acrescentar estas páginas a meu primeiro livro para situá-lo em relação ao meu sentimento presente e para melhor me opor ao misticismo que, por engano, é possível nele encontrar, para denunciar aquilo que aliena ainda quase todo pensamento humano”. (Bataille, “Notes”, in Œuvres complètes, v. V, p. 490-1.) Consultar, também, neste sentido, do mesmo autor, Œuvres complètes, v. VIII, p. 581-92.

[45] Diz uma nota manuscrita: “Quando escrevo projeto, é que se trata de um projeto qualquer (não do Entwurf de Heidegger), de meu projeto de escrever ou de ir caçar. O vocabulário de professor tem mais consequência do que parece. (De minha parte eu escrevi ipseité no sentido do dicionário de Lalande, por causa de um equívoco sobre a individualidade…) As palavras existencial, existencialismo, que eu nunca tanto quanto me lembro jamais escrevi, acentuam deploravelmente uma tendência da linguagem em substituir uma operação servil da inteligência por alguma pretensa revelação.

O seu emprego me parece tão tolo quanto […1. A escola existencialista — refiro-me aos modernos — está embaraçada nestas asneiras. […]

Eu não quero ser colocado na continuação de Heidegger. (Eu não negligencio as críticas políticas que lhe fazem. Hegel era, após os trinta: tão decididamente reacionário quanto é ou foi Hei-degger: o pensamento substancial da revolução marxista procede contudo dele.) O pouco que eu conheço de Sein and Zeit me parece ao mesmo tempo judicioso, detestável. É possível que meu pensamento em alguns pontos proceda do seu. Imagino, aliás, que se poderia determinar um paralelo seguido pelos dois. Escolhi no entanto caminhos inteiramente outros e o que eu chego a dizer não é representado, em Heidegger, que por um silêncio (ele não pôde, parece, dar a Sein und Zeit o tomo II sem o qual ele fica em suspenso). Isto dito este Heidegger não está mais em seu lugar na minha casa do que estaria o pintor com a sua escada mesmo se tivesse pintado os muros outrora.

[46] A observação na íntegra diz: “Quando eu publicar (termino neste momento em que escrevo uma obra de ‘economia geral’ intitulada La part maudite) não mais fragmentos dando (pouco a pouco) o tatear do pensamento mas um conjunto coerente, ver-se-á dos caminhos que segui que eles se apartam profundamente daqueles de Heidegger.

Estas notas sobre o sacrifício ou o riso, o erotismo ou a angústia, que se misturam em meus livros a algumas reflexões chegam a uma teoria rigorosa.

Rir-se-á mas que posso fazer?”. (Idem, p. 475.)

[47] Idem, p. 472.

[48] La part maudite. Essai d’économie générale, I. “La consumation” foi publicado pelas Editions de Minuit, em 1949. Bataille planejava uma continuação desse primeiro tomo e nesse sentido anuncia numa carta, de 9 de janeiro de 1954, à mesma editora, que La part maudite incluiria: I. La consumation (segunda versão); II. La souveraineté, III. L’érotisme. Nessa carta, Bataille se queixa do estado de saúde que retarda o seu trabalho. L’érotisme seria publicado apenas em 1957, enquanto “La souveraineté” nunca foi publicado como livro (ver nota 40). Cf. Bataille, “Notes”, in Oeuvres completes, v. VII, p. 470-1. Existe uma tradução de La part maudite para o português: A parte maldita, precedida de A noçdo de despesa, trad. Júlio Castation Guimarães, Rio de Janeiro, Imago, 1975.

[49] Bataille, Œuvres complètes, v. V, p. 480.

[50] Sens et non-sens , Paris, Nagel, 1948, p. 127); “cada parte anuncia mais do que contém e esta percepção elementar é então já carregada de um sentido” (Phénoménologie de la perception, Paris, Gallimard, 1945, p. 9-10); “na realidade, cada cor, no que ela tem de mais íntimo, não é senão a estrutura interior da coisa manifestada externamente” (Idem, p. 265-6). Desse modo, pode-se afirmar que, para Merleau-Ponty, a percepção se define como relação dada numa ancoragem do sujeito ao mundo. Nesses termos, a visão vem a ser “o encontro, como numa encruzilhada, de todos os aspectos do Ser”. O olho e o espírito, trad. Gerardo Dantas Barreto, in Merleau-Ponty, Textos selecinados, org. Marilena de Souza Chaui, São Paulo, Abril Cultural, 1980, p. 109 (Os Pensadores).

[51] Tal formulação põe ênfase no caráter ativo do ato perceptivo, que desfruta, assim, antes de tudo, da própria iniciativa. Essa concepção está mais próxima do sentido latino do termo percipere, entendido como “apoderar-se de”. Ainda uma vez, a formulação de Bataille da atividade perceptiva se aproxima das ideias de Nietzsche: “O que é uma palavra? A figuração de um estímulo nervoso em sons. Mas concluir do estímulo nervoso uma causa fora de nós já é resultado de uma aplicação falsa e ilegítima do princípio de razão” (Nietzsche, “Sobre a verdade e mentira no sentido extramoral”, in Nietzsche — Obras incompletas, p. 47). Para Nietzsche, não se trata de um mundo preexistente, totalizado sinesticamente pelas diversas formas de sentir do homem, conforme pretende Merleau-Ponty (Phénomélogie de la perception, p. 265-6). Para Nietzsche, ao invés, a linguagem, as formas, resultam de ondas nervosas, sem coincidência alguma, constituindo distintas metáforas: “Um estímulo nervoso, primeiramente transposto em uma imagem! Primeira metáfora. A imagem, por sua vez, modelada em um som! Segunda metáfora. E a cada vez completa mudança de esfera, passagem para uma esfera inteiramente outra e nova” (op. cit., p. 47).

Para se determinar a proximidade da concepção ativista de Bataille, concernente à percepção, com a de Nietzsche, ver ainda o seguinte trecho: “Em todo perceber, quer dizer no apropriar mais originário, o acontecer essencial é uma ação ainda mais forte: uma imposição de formas — só os superficiais falam em ‘imprimir’. O homem aprende aí a conhecer sua força como contra-excitação e mais ainda como uma força determinada — que recusa, que escolhe, que ordena enfileirando seus esquemas. Há algo ativo no fato de nós recebermos essa excitação como tal. Há que se apropriar desta atividade e não apenas por colocar formas, ritmos e a sequência das formas, mas também avaliar a composição criada em relação à incorporação ou à recusa. É assim que o nosso mundo surge, todo o nosso mundo: e todo este nosso mundo pertencente só a nós, criado só por nós, não corresponde a nenhuma pretensa ‘realidade própria’; a nenhum ‘em si das coisas’: mas, ele mesmo é a nossa única realidade, e o ‘conhecimento’ prova-se, considerado de tal modo, apenas como meio de nutrição” (Nietzsche, Nachgelassene Fragmente 1882-1885, frag. 38 (10), in Samtliche Werke KS, v. 11, München, DTV, 1980, p. 608-9, trad. M. Lúcia M. O. Cacciola).

[52] Bataille, “Notes”, in Œuvres complètes, v. V, p. 480-1.

[53] Para todas as citações, transcritas nesse parágrafo, idem, ibidem, p. 479-81.

[54] Os estoicos e Spinoza, entre outros, partilham da ideia de que a liberdade pertence à essência do homem. Cf. André Lalande, verbete Liberté, in Vocabulaire technique et critique de la philosophie, p. 562.

[55] Cf. Bataille, “Notes”, in Œuvres complètes, v. V, p.417.

[56] A definição de soberania acoplada à de economia geral, por Bataille, em torno das noções de excesso e despesa, se comparada com o papel da noção de escassez, para Sartre, permite notar amplamente o caráter antitético das duas obras de pensamento, em vários níveis, das relações inter-disciplinares, das figuras de pensamento, dos valores, etc. Assim, diz Bataille, em 1945-46; “A questão desta economia geral se situa no plano da economia política, mas a ciência designada sob este nome não é que uma economia restrita (aos valores comerciais [marchandes]). Trata-se de um problema essencial para a ciência concernindo o uso das riquezas. A economia geral põe em evidência em primeiro lugar que excedentes de energia se produzem que, por definição, não podem ser utilizados. A energia excedente não pode senão ser perdida sem o menor objetivo, por conseguinte sem nenhum sentido. É esta perda inútil, insensata, que é a soberania. (No que o soberano como o sólido é uma experiência inevitável e constante).” (Méthode de méditation, p. 215-6). Já Sartre, de outro lado, afirma, em 1960: “Toda a aventura humana — ao menos até agora — é uma luta encarniçada contra a escassez [rareté]. Assim, em todos os níveis da materialidade trabalhada e socializada encontraremos na base de cada uma de suas ações passivas a estrutura originária da escassez como primeira unidade ocorrida na matéria por meio dos homens e retornando sobre os homens através da matéria […] resta que os três quartos da população do globo são subalimentados, depois de milênios de História; assim, apesar de sua contingência, a escassez é uma relação humana fundamental (com a Natureza e com os homens). Neste sentido, é preciso dizer que é ela que faz de nós estes indivíduos produzindo esta História e que se definem como homens. Sem a escassez, […] o que desapareceria é o nosso caráter de homens” (Sartre, Critique de la raison dialectique, théorie des ensembles pratiques, Paris, Gallimard, 1972, p. 201). (Todos os grifos das citações são dos autores.)

[57] As duas primeiras citações desse parágrafo estão em Bataille, “Méthode de méditation”, p. 223; a terceira citação, em “Notes”, in Oeuvres complètes, v. V, p. 482.

[58] Esse operador conceitual, que recusa “o encadeamento dos meios e dos fins”, pode ser remetido, ainda, ao pensamento de Nietzsche. Para a concepção de “Vontade de Potência”, como decodificador antiteleológico, ver Gérard Lebrun, O avesso da dialética, Hegel à luz de Nietzsche, p. 130-3e 146.

[59] Bataille, “Notes”, in Œuvres complètes, v. V, p. 482.

[60] Pode-se recordar, aqui, apesar do silêncio de Bataille, das formulações de Nietzsche sobre o intelecto, enquanto órgão animal (por exemplo, em “Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral”, in Nietzsche — Obras incompletas), por sua vez, derivadas de padrões schopenhauerianos.

[61] Ideia símile encontra-se na descrição do homem virtuoso, cujo logos mostra-se em consonância com as suas paixões, para Aristóteles, na Ética a Nicômaco. Cf. Gérard Lebrun, “O conceito de paixão”, in Vários autores, Os sentidos da paixão , São Paulo, Funarte/Companhia das Letras, 1987, p. 20-4.

[62] Bataille, “L’économie à la mesure de l’univers”, in La France libre, p. 13.

[63] O paralelismo do discurso da “economia geral” com pesquisas avançadas no domínio das ciências não é contingente, mas constitutivo, como se pode depreender de nota de Bataille, no prefácio de La part maudite: “Devo agradecer aqui meu amigo Georges Ambrosino, chefe de trabalhos no Laboratório dos raios X, sem o qual eu não poderia ter construído esta obra. […] Este livro é por uma parte importante também obra de Ambrosino. Pessoalmente lamento que as pesquisas atômicas às quais ele foi levado a participar o distanciaram, ao menos por uns tempos, das pesquisas de ‘economia geral’. Eu devo exprimir a aspiração de que ele retome em particular o estudo que ele começou comigo dos movimentos de energia na superfície do globo” (p. 23).

[64] Bataille, “Schéma d’une histoire des réligions, Conférences (26.2.1948)”, in Œuvres complètes, v. VII, p. 406-7.

[65] Nessa passagem, em que prega o entrelaçamento, “adequado e executado no ponto certo”, “dessas duas fontes de conhecimento tão heterogêneas”, “a experiência interna e a externa”, Schopenhauer parece apontar a raiz do método de Bataille, tão abominado por Sartre, recorrendo ora à experiência exclusiva do pathos ora à perspectiva seca e exterior da ciência. A leitura de Bataille desta página de Schopenhauer é quase certa, na medida em que o prefácio de L’expérience intérieure, com a sua fórmula “este mundo é dado ao homem tal como um enigma a resolver” (p. 11) parece ecoar a sentença schopenhaueriana: “o mundo e nossa própria existência apresentam-se para nós, necessariamente, como um enigma” (Arthur Schopenhauer, Crítica da filosofia kantiana, trad. M. Lúcia M. O. Cacciola, in Schopenhauer, São Paulo, Abril Cultural, 1980, p. 95 (Os Pensadores) ).

[66] Nietzsche, A gaia ciência, in Samtlicbe Werke KS, v. 3, München, DTV, 1980, p. 585, § 349, trad. M. Lúcia M. O. Cacciola.

[67] Nietzsche, Para além do bem e do mal, in Nietzsche — Obras incompletas, cap. 1, p. 271, § 13.

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