2014

Fazer silêncio

por Elie During

Resumo

Existem, tanto em música como além, vários silêncios. É o que Jean-François Lyotard comprovou num texto de 1972 reproduzido em “Dispositifs pulsionnels”. Trata-se de retomar e desenvolver essa intuição. Afirmar que o silêncio é desde o início plural é reconhecer que o silêncio absoluto não existe, ou existe apenas como análogo do que Wittgenstein chamou de “o Místico”, designando com isso a orla do mundo, a fronteira do sentido. O “Tractatus logico-philosophicus” encerra-se com a seguinte injunção solene, tão célebre quanto misteriosa: sobre o que não se pode falar, deve-se fazer silêncio – escreve o filósofo. E não “deve-se calar”, já que essa tradução errônea reconduz, de fato, ao tema do segredo ou do indizível e, portanto, à ideia de que o silêncio traz em si, afinal, um conteúdo, ao passo que, para Wittgenstein, ele não é senão o invólucro, a forma e talvez a condição do próprio sentido. “Darübermuss man schweigen”… Mas daquilo de que não se pode falar, como observou o filósofo Frank P. Ramsey, tampouco se pode cantar ou assobiar! À figura hiperbólica de um silêncio cheio de sentido – ou cheio de não sentido –, retomada pelas variantes contemporâneas da teologia negativa, convém então opor uma concepção sóbria do silêncio como limite interno do sentido. A menos que se considere desde o início a diversidade qualitativa dos silêncios, das diversas maneiras de fazer silêncio. Esse é o caminho a seguir. O que, por exemplo, acontece quando “um anjo passa”, como se diz daqueles momentos nos quais, em meio a uma refeição entre amigos, a conversa progressivamente se esgarça e se suspende, antes de retomar seu curso? O que se passa, ao contrário, quando a superposição de duas fontes sonoras antagônicas parasita a escuta, introduzindo vacúolos de silêncio semelhantes ao “ruído branco” de que se servem os engenheiros de som?

Do esvaziamento à saturação, as estratégias do silêncio são múltiplas, vindo interromper, de vez em quando, o rumor ensurdecedor do “chat” universal, a conversação contínua e seus retransmissores digitais. Note-se que o silêncio pode interromper, perfurar ou pontuar um fluxo de fala ou de informação, pode apagar ou subtrair alguma coisa, ou, inversamente, proceder por adição e acúmulo até a saturação, numa grande equivalência ruído-silêncio… Em todos os casos, o silêncio nunca é simplesmente o oposto da fala e do sentido, mas antes uma dimensão interna de toda fala e todo sentido. Como demonstraram os psicólogos da Escola de Palo Alto, queira-se ou não o silêncio tem sempre um valor comunicacional. Fazer silêncio, ou nada dizer, é ainda comunicar no registro do implícito. O silêncio aqui não é o indizível, mas o tácito. E toda a questão é saber como o silêncio opera, e o que se pode fazer dele. “Tacet”, “tacet”, “tacet”: são as indicações mínimas que escandem o tempo puro na célebre composição de John Cage, 4’33’’ (“Quatro minutos e 33 segundos”) de silêncio. Ao se desfazer do silêncio “intencional”, ora simples limite entre dois sons, ora simples pontuação do som, Cage quer se desfazer de certa concepção da obra musical como ligação e organização do campo sonoro. Para ele, trata-se, literalmente, de “lançar os sons no silêncio” (“throwing sounds into silence”), como ele escreveu a Boulez, a fim de demonstrar que o silêncio absoluto não existe, que ele está carregado – como a própria música – do rumor do mundo. Em geral a música oferece um bom paradigma para abordar de maneira fina as diferentes espécies de silêncio e a variedade de seus modos de operação. Numa vertente oposta àquela ocupada por Cage, mas no fundo chegando às mesmas questões, Glenn Gould utiliza o silêncio para introduzir, no fraseado, na articulação de uma nota a outra, bolsas de vazio que permitem traçar uma espécie de diagrama melódico sobre o qual é bordado o contraponto. Por trás dessa técnica pianística, há, evidentemente, a experiência da solidão e do silêncio dos grandes espaços canadenses (“a ideia do Norte”) que Gould colocava em tensão, numa relação complexa e não antagônica, com o frenesi comunicacional da cultura contemporânea e dos novos meios de comunicação.

 A partir desses dois exemplos musicais, procura-se desenvolver a seguinte simples: para escapar à mundanidade tagarela da época, não basta calar-se; não se trata de criar zonas de silêncio, ilhotas de não comunicação ou de comunicação não verbal, mas de introduzir novas figuras da sobriedade, um novo contraponto. O silêncio… é preciso fazê-lo.


PREÂMBULO A PARTIR DE JANKÉLÉVITCH

Preciso fazer uma confissão: as virtudes do silêncio me parecem espontaneamente duvidosas, e a questão do silêncio é daquelas que poderiam a priori me irritar.

Sempre me pareceu que os que reclamam por silêncio, dão uma atenção especial a ele, querem nos vender alguma coisa.

Desconfio do silêncio quando é o enaltecimento da interioridade de um sujeito que faria calar o rumor do mundo para nos trazer, na forma do recolhimento ou da prece, algo como uma revelação, seja do mutismo das coisas de antes ou depois do homem, seja dos harmônicos sutis da alma…

Notem que nada tenho contra o recolhimento nem contra a prece em si mesmos. A questão que coloco é saber o que se ganha em ligar essas atitudes, essas disposições existenciais, a certa ideia do silêncio e de seus poderes. “Há uma retórica do silêncio, e que de metafísica só tem as pretensões”, escrevia Jankélévitch[1]. “Para dizer que devemos nos calar, já é preciso fazer um pouco de ruído.”[2]

Um pouco de ruído, e até mesmo muito. Na verdade, que vozerio! O silêncio é tagarela, e há sempre algo de cômico em discorrer de maneira prolixa sobre a necessidade do silêncio ou mesmo suas ambiguidades. Aqui talvez se aplique a frase de Nietzsche: se o pensador não quer morrer de impaciência ou de dor de cabeça, “é preciso que ele aprenda a encontrar seu silêncio entre dois ruídos”, com o risco de “fazer-se de surdo até que se o torne”[3].

Assim, é com certa reserva que acrescentarei minha voz ao alarido teórico tão brilhantemente iniciado por este ciclo de conferências.

Pascal teve pelo menos a elegância de ser breve quando, em menos de dez palavras, exprimiu o pavor cósmico da criatura entregue aos dois infinitos mudos que “a encerram e a ignoram”: “O silêncio eterno desses espaços infinitos me apavora”.

Não esqueço, por outro lado, que Silêncio! é também (no modo do paradoxo performativo) o grito rouco do vigia de internato ou do guarda de prisão que busca fazer calar a multiplicidade das vozes, reduzir a pluralidade dos ritmos.

Mas esse outro clichê – o do caráter potencialmente mortífero do silêncio – talvez não seja mais interessante que o tema metafísico sobre o qual estendi minhas observações.

Felizmente existe a música.

Que ela mantém com o silêncio uma relação íntima, e mesmo consubstancial, é uma evidência.

A tal ponto que se poderia dizer que somente a música se encarrega propriamente do silêncio, somente ela o trata, isto é, não apenas lhe dá a medida (como aprendemos nos cursos de solfejo), mas o dispõe, o configura e testa sistematicamente seus efeitos.

A música, que faz ela própria tanto ruído, é o silêncio de todos os outros ruídos.”[4]

Inversamente, dir-se-á que há música tão logo o silêncio é tratado dessa maneira, numa relação construtiva com a organização sonora. E essa proposição permite pensar, a rigor, uma peça musical inteiramente silenciosa, contanto não seja entregue a si mesma, mas configurada de uma maneira ou de outra no espaço e no tempo. Foi, e voltarei a falar disso, a grande lição de John Cage.

Assim é preciso sempre voltar à música, para ter certeza de que o discurso não constrói em torno de uma simples palavra catedrais de vento – sopros de boca, no caso, flatus vocis, como diziam os filósofos medievais para denunciar as proposições puramente verbais.

Pois o silêncio é propício a todas as projeções. E não só teóricas, evidentemente. O silêncio funciona literalmente como uma superfície de projeção, como um teste de Rorschach, se quiserem. Cada um projeta nele o que entende ou quer entender: o sentido ou o sem sentido, o real ou o simbólico, o recolhimento contemplativo ou a presença surda da carne etc.

INTERLÚDIO (TESTE DE PERCEPÇÃO AUDITIVA)

Eu gostaria, nesse ponto, de lhes contar uma anedota impressionante e, a bem dizer, difícil de acreditar. Devo-a ao célebre neurologista Oliver Sachs que, por sua vez, a ouviu de um amigo. Eis o que ele conta em seu livro Microfilia. Um de seus amigos melômanos decide instalar-se confortavelmente no sofá para escutar a gravação de sua sinfonia preferida de Mozart, que possui em vinil. Retira o disco da capa, sopra a poeira, coloca-o sobre o prato e senta-se confortavelmente para ouvir. Após trinta minutos de deleite, levanta-se para mudar de lado. É então que percebe, para sua grande estupefação, que não havia sequer acionado o prato: durante todo esse tempo, ele se mantivera sentado em sua sala em silêncio, acreditando escutar uma música que, na verdade, não podia ouvir. De uma ponta a outra, havia mentalmente projetado Mozart, numa espécie de escuta alucinatória.

Experiências de laboratório (Kraemer & Kelley) confirmaram nossa capacidade de interpolar os sons ouvidos para recriar mentalmente uma continuidade sonora ou melódica nas fases de silêncio. O protocolo consiste em degradar sistematicamente a qualidade de gravação de peças célebres, submetendo-as a uma espécie de estroboscópio auditivo: assim, por exemplo, num segundo da peça original, adiantam-se amostras em um décimo de segundo, regularmente espaçadas por trechos de silêncio em nove décimos de segundo. Essa proporção pode variar, mas o mais surpreendente é que podemos nos contentar com informações acústicas muito parcelares: o cérebro se ocupa do resto, ele mobilia o silêncio, por assim dizer. Na ausência de qualquer estímulo sensorial, as regiões do córtex especializadas na audição se ativam e produzem um Ersatz de experiência musical, por prolongamento contínuo.

Talvez se compreenda melhor o que está em jogo fazendo uma analogia com a visão. A visão, o fato é conhecido, opera por impulsos; e a informação visual efetivamente transmitida aos nossos aparelhos receptores é consideravelmente mais pobre que aquilo que o cérebro (ou o espírito) é capaz de recompor sobre essa base. Fenômenos do mesmo tipo ocorrem na escuta musical. Não são soluções na falta de melhor, são necessidades: a atenção não pode ser uniformemente densa e focalizada. Ela precisa da respiração trazida pelo silêncio para se distribuir e se manter ativa no conjunto do campo auditivo.

O JOGO DAS INTERPRETAÇÕES

A experiência de psicologia experimental que acabo de descrever não deve, evidentemente, fazer supor que o silêncio seria um buraco a preencher, um vazio a mobiliar; é antes, e voltarei a esse ponto, uma respiração que abre espaços na estrutura e torna a significação possível.

Quis simplesmente ilustrar o fato de que o silêncio se preenche por tudo que nele colocamos. Isso é verdade no campo perceptivo; o é ainda mais no campo da teoria. Aí, o significante silêncio carrega todos os aspectos de um ponto de projeção ou de investimento fantasmático. E ele convida, naturalmente, a uma série de voltas e reviravoltas dialéticas. Jankélévitch, como outros, não se privou de praticá-las, ainda que com certa malícia, denunciando a natureza artificial dos procedimentos. De fato, como ele mostra claramente, os paradoxos do silêncio têm sua origem na propriedade bem conhecida da reversibilidade da figura e do fundo.

Nesse sentido se poderia dizer que a música nasce do silêncio e a ele retorna. É um refrão bem conhecido. A música é arrancada de um fundo mudo, é como uma ilha sonora em meio ao oceano, e é o que faz dela uma perfeita alegoria da existência, cingida dos dois lados pela imensidão do nada… Claro que esse silêncio, que é sua origem e sua destinação, em outras palavras, sua condição, a música o acolhe também dentro dela: o silêncio é o que a areja, é o oxigênio que a faz respirar.

Mas então já não se trata mais do silêncio absoluto (não ser ou nada); é do silêncio relativo ou diferencial que se trata. Um silêncio que se imiscui entre as notas, na junção delas, silêncio que articula o campo sonoro, que espaça o som segundo relações reguladas (metronômicas) e que o torna simplesmente audível, assim como as consoantes, na língua, recor tam e articulam o fluxo sonoro, tomando audíveis os elementos vocálicos como unidades significantes. É mais ou menos desse modo que ele foi concebido na tradição musical ocidental. A isso poderia se opor (mas seria somente outra figura relativa ou diferencial do silêncio) um silêncio não medido, um silêncio que não é pausa ou repouso, mas antes tensão, silêncio carregado de virtualidade, de potencialidade.

É o mié, no teatro kabuki, a imobilização e suspensão do gesto, semelhante à onda congelada do Laocoonte descrita por Winckelmann. É ainda, na arte da flauta japonesa, o intervalo de silêncio (ma) que articula os motivos rítmicos ou melódicos pelo efeito de um retardamento ou de uma defasagem às vezes imperceptível…

Essa compreensão do silêncio como dimensão interna do discurso musical e de sua organização nos leva evidentemente a inverter as coisas e a opor, à visão grandiloquente, escatológica, do silêncio de que partimos, uma figura empírica e concreta. Pondo entre parênteses a questão da natureza ontológica dessa trama silenciosa sobre a qual a música se destaca e organiza seus efeitos, diremos agora que a música é que suspende o continuum sonoro e traz o silêncio ao núcleo do rumor universal. E então o ruído – identificado ao alarido da comunicação forçada ou da publicidade – é que desempenha o papel de pano de fundo, enquanto o silêncio faz um bordado sobre ele, ou melhor, o pontua, o esburaca. “O silêncio aflora através dos buracos do perpétuo clamor”[5]. A música não é o que interrompe o silêncio, mas o que o reintroduz no centro da agitação confusa de nossas vidas. Ela abre assim uma enseada de quietude e de recolhimento, um lago, uma bolsa de solidão no seio da universal tagarelice.

Eis o que se pode dizer. Mas pouco importa, no fundo, e é onde eu queria chegar. O essencial é que em todos os casos o silêncio absoluto continua sendo uma construção mítica, “um inconcebível limite”[6], que nos permite pensar a maneira como a música é instituída, o lugar privilegiado que lhe damos em nossa vida pessoal e social.

Pensando bem, aliás, a função real do silêncio no seio da música – sua função constitutiva – presta-se indiferentemente às duas leituras. É uma questão de acentuação.

Ora se insistirá no essencial parentesco da música e do silêncio, se dirá que toda manifestação musical do silêncio reconduz a um Silêncio primordial numa espécie de pianíssimo generalizado. Ora se insistirá, de forma mais pragmática, na maneira como o silêncio intervém concretamente para arejar o continuum sonoro, apagando tendencialmente, ao mesmo tempo, sua especificidade. Pois se percebe bem que, no limite, o silêncio pode não ser, realmente, senão uma nota retida aquém do limiar do audível: uma espécie de “fonema zero” musical. É bom observar que essa maneira “técnica” de considerar o silêncio não exclui de forma alguma uma dimensão de mistificação. O jazzista Count Basie pôde assim explicar: “O essencial naquilo que eu toco são as notas que vocês não ouvem”. E já não se descreveu, na mesma ordem de ideias, a música de Thelonius Monk como esculpida “em falésias de silêncio” (Michel Contat)? Ou sobre Glenn Gould, mais interessado pelos “ritos de passagem” de uma nota a outra que pelas notas mesmas, isolando cada nota com um invólucro de silêncio para obter seu célebre jeito solto de tocar? O silêncio como antilegato, rompendo a continuidade melódica do grande fraseado romântico em favor de uma dissecção analítica das virtualidades contrapontísticas, substituindo, se preciso, as indicações dinâmicas do compositor por silêncios que valem como acentos negativos e que reduzem a marcha melódica como uma freada… Muitos outros exemplos desse tipo poderiam ser citados.

O fato é que somos apanhados, mais depressa do que pensamos, pelo fundo romântico que identifica a música ao rumor cósmico ou ao silêncio dos espaços infinitos. Mesmo Gould não está totalmente imune a isso, quando associa a beleza estelar das fugas de Bach aos espaços desertos do grande Norte canadense (sua Ideia do Norte).

É como se o pianíssimo, ao qual se dirige tendencialmente toda música, mesmo a mais barulhenta, encontrasse um analogon na vasta gama dos procedimentos de atenuação ou de concentração pelos quais a música tende a se confundir com uma espécie de murmúrio, no limiar do inaudível. Pense-se na expressão conhecida dos músicos: “fazer morrer a nota”. Pense-se em Debussy, Fauré, Albeniz, que são os exemplos favoritos de Jankélévitch, mas também em Arvo Part ou mesmo em Wagner, com o prelúdio do Ouro do Reno, que se inicia lentamente num quase silêncio. Poder-se-ia evocar igualmente o começo quase apagado da Primeira Sinfonia de Mahler, com seu grave, obstinado, que entra a passos de veludo, em pianíssimo. Ou, ainda de Mahler, mas desta vez na outra ponta, no encerramento da obra, o último movimento da Nona Sinfonia (sobre esses exemplos, ver Bernard Sève).

Pode-se ir ainda mais longe e chegar à ejaculação metafísica e reconhecer na música, com Schopenhauer, a expressão de uma Vontade cega e muda à qual se agarraria a ordem da aparência ou da representação. O silêncio, manifestado de outra maneira na escrita neutra, afásica, de um Blanchot ou de um Beckett, forneceria assim o paradigma da a-significância de que se alimenta nosso regime estético, herdeiro tardio do romantismo.

Mas o que importa é realmente o que o silêncio faz. E não é por acaso que nos voltamos de maneira privilegiada para o lado da música tão logo queremos falar dos poderes do silêncio. Antes de ser a expressão da Vontade refratada no zumbido do mundo (musica mundi), a música é uma arte da composição e do jogo, das formas e dos processos.

Ora, Jankélévitch tem razão de lembrar isso (antecipando-se talvez aos mal-entendidos que sua prosa inspirada ensejaria): “Na verdade, a ‘mensagem musical’ não é uma mensagem metafísica: pelo menos, só o é metaforicamente…”[7]. A mensagem musical não fala de outro mundo, mas deste.

Por isso é importante não confundir a relação de conaturalidade da música e do silêncio com uma relação de identidade. A música não é o silêncio; é, quando muito, uma espécie de silêncio. E, tudo bem considerado, o silêncio é que é voz de acesso à música, não o inverso. O silêncio serve de revelador a certas operações próprias ao musical que permitem dizer, por extensão, que todo silêncio tem algo de musical. Talvez esteja aí a lição mais profunda do texto de Jankélévitch: “A outra voz, a voz que o silêncio nos faz ouvir, chama-se Música”[8].

UMA CONCEPÇÃO SÓBRIA DO SILÊNCIO COM WITTGENSTEIN

Num certo sentido, eu gostaria de dar mais um passo e defender uma abordagem pragmática – e talvez, no fundo, materialista – do silêncio.

Reforço que é somente num certo sentido, mas acho importante começar por aí, para não nos contentarmos com palavras vãs.

Abordagem pragmática ou sóbria, pode-se dizer também. Não metafisica, por certo. Sigo nesse ponto a recomendação de Lyotard quando ele lembrava judiciosamente, num texto dos Dispositifis pulsionnels dedicado à música contemporânea, que existem vários silêncios.

Para mostrar isso, é útil concentrar-se primeiro na função sintática (estrutural) do silêncio, mantendo a distância os jogos de associação metafórica ligados à sua função semântica.

Em suma, o silêncio é mais bem definido pelo que ele faz e torna possível, por sua função, portanto, que pela significação ou pelo conteúdo que se é tentado a lhe atribuir.

Esqueçamos assim os silêncios carregados de sentido, os silêncios eloquentes.

Esqueçamos mesmo a dimensão do tácito, que não é o Escondido (o que é calado), mas antes o que é escusado dizer, ou o que constitui o fundamento de nossas evidências ou daquilo que o pensamento contemporâneo identifica hoje sob a rubrica do comum.

Dizer de saída que o silêncio é plural e que as funções que ele pode assumir (no discurso evidentemente, mas também na vida) são múltiplas é reconhecer imediatamente que o silêncio absoluto não existe, ou existe apenas como análogo ao que Wittgenstein chamava “o Místico”.

Vale lembrar que o Tractatus logico-philosophicus terminava com uma injunção solene, tão célebre quanto misteriosa: sobre aquilo de que não se pode falar, escrevia o filósofo, deve-se fazer silêncio. E não: “deve-se calar”, como quer uma tradução errônea. Dizer “deve-se calar” é reconduzir imediatamente ao tema do indizível, do inefável, portanto à ideia de que o silêncio possui finalmente um conteúdo positivo que se furtaria a nós, enquanto ele é justamente, para Wittgenstein, apenas o invólucro, a forma e talvez a condição do sentido mesmo.

Darüber muss man schweigen, diz o alemão… Mas daquilo que não se pode falar, como observou o filósofo Frank P. Ramsey, tampouco se pode cantar ou assobiar! À figura hiperbólica de um silêncio hipostasiado, de um silêncio cheio de sentido – ou, o que dá no mesmo, cheio de não sentido -, figura retomada pelas variantes contemporâneas da teologia negativa, convém então opor uma concepção sóbria do silêncio como limite interno do sentido. Longe de toda mística do silêncio, o “Místico” designa a borda do mundo, a fronteira do sentido e do não sentido.

Wittgenstein insistiu, de maneira geral, nessa dimensão formal do sentido. A ideia de um silêncio puro não deve ser reinvestida como um silêncio significante, carregado de sentido; não se deve esperar que a ausência de sentido forneça, por acréscimo, um sentido de tipo especial, sentido eminente que seria o sentido do não sentido, espécie de sentido ao quadrado.

Nisso, o silêncio do Místico é comparável à periferia de nosso campo visual, que absolutamente nada tem a ver com uma região de nosso campo visual, com uma linha, uma fronteira designável que limitaria esse campo. É um limite difuso através do campo inteiro, sobre o qual não podemos ter um ponto de vista dominante.

Compreende-se então que o Místico não é mais silencioso que ruidoso: não há nada, absolutamente nada que possa ser objeto de uma identificação desse tipo.

Não é o silêncio que é o Místico, é o Místico que prescreve o silêncio.

A seu respeito, trata-se apenas de fazer silêncio.

O Tractatus não diz outra coisa. E, quanto ao seu aforismo final, eu proporia, de minha parte, a seguinte versão: “Aqui,façamos silêncio”.

Contudo, algo aqui deve nos deixar insatisfeitos. É que tal proposição permanece puramente negativa. Ao dizer que se deve fazer silêncio, foi dito o que não se devia fazer; não se indicou o que se devia fazer.

Resta considerar, portanto, a diversidade qualitativa dos silêncios, das maneiras de fazer silêncio. É o caminho que eu gostaria de seguir.

QUESTÃO DE MÉTODO

É preciso registrar o fato de que o silêncio não é um conceito no sentido comum que remeteria a uma classe de objetos, de fenômenos que ele abrangeria, em oposição a uma classe de objetos ou de fenômenos que não abrangeria (som, ruído, sentido). Um conceito se aplica ordinariamente a objetos caracterizados por traços comuns. O silêncio não é um conceito desse tipo. Não é um conceito classificador (que procede por subsunção numa classe e, por definição opositiva, chega ao gênero e à diferença específica), mas um conceito assimilador (que procede por insinuação, por propagação). Esse tipo de conceito, como explica Stéphane Chauvier, “nos serve menos para identificar uma espécie de coisas que para descobrir, graças a aproximações, uma maneira de ser ou de agir, ou, se quiserem, uma estrutura [e os silêncios literais, como interrupções ou ausências de som, não são os únicos a encarná-la] que nos ensina a ver, do mesmo modo que uma amostra de tecido vermelho nos serve para identificar essa cor noutras partes que não em pedaços de tecido”[9]. Poder-se-ia dizer, se o termo já não estivesse um pouco gasto, que o silêncio é mais uma categoria ou um conceito formal do que um conceito obtido por abstração de uma diversidade de casos. Enquanto categoria, ele tem por vocação introduzir certo ponto de vista, certa perspectiva do mundo em sua totalidade, em vez de identificar domínios de objetos.

A questão, portanto, não é saber o que é o silêncio (propondo uma definição por gênero e diferença específica), mas antes pensar sob o ponto de vista do silêncio; quando não, pensar em silêncio…

Não se trata de distinguir gêneros de silêncio, tipos de silêncio (subclasses): é preciso remontar ao princípio e reconhecer efeitos característicos, linhas de ação associadas a certa maneira de agir. Mais uma vez: maneiras de fazer silêncio. Não existe em francês o verbo silencier. Mas é claro que fazer silêncio não é necessariamente calar-se… O mutismo é uma possibilidade, mas não a única.

Primeira consequência, notável, dessa abordagem do silêncio: é possível fazer silêncio, isto é, fazer o silêncio atuar, performatizá-lo, sem precisar, para isso, não produzir ruído.

O silêncio objetivo ou literal é só uma expressão entre outras possíveis da capacidade de fazer silêncio, de dispor e propagar os efeitos do silêncio. Devemos ser imaginativos e considerar não apenas silêncios explícitos, mas formas de silêncio menos literais. Silêncios virtuais.

QUESTÕES E PROBLEMAS

E quero lhes dar de imediato algumas amostras das questões que se colocam se adotarmos essa perspectiva.

Por exemplo, o que acontece quando “um anjo passa”, como se diz daqueles momentos em que, numa refeição entre amigos, a conversa se distende aos poucos e se suspende antes de retomar seu curso?

É o problema da distensão da organização temporal, a atenuação em música sendo uma espécie de equivalente.

O que se passa, na comunicação ordinária (por carta ou e-mail, o problema é basicamente o mesmo a despeito das proezas das tecnologias de comunicação ditas “instantâneas”), o que se passa quando é preciso contar com um intervalo ou defasagem entre uma emissão e uma recepção, um envio e uma resposta?

É o problema da ausência que escava ou rói toda comunicação a distância e mergulha a experiência viva da coexistência numa atmosfera de silêncio e de separação.

Vejam o que Sartre diz a esse respeito:

Imagino que, se vivêssemos a simultaneidade aqui em todas as suas dimensões, passaríamos o dia a sangrar como um desgraçado, mas muitas coisas a escondem de nós. Por exemplo, as cartas que recebo levam três dias para me alcançar, as que envio levam três dias para chegar.[…] Eu mesmo, quando escrevo, hesito sempre entre dois tempos: aquele em que estou traçando as linhas para o destinatário, aquele no qual ele estará quando me ler. Isso não torna essa “companhia” irreal, mas antes atemporal[10].

Se, como a música nos ensina, o silêncio participa ativamente da organização temporal do processo, não nos surpreenderíamos de que ele tenha algo a ver com essa capacidade que possui o tempo de fazer flutuar o tempo.

Prolonguemos um pouco essa intuição, passando, por uma inversão dos valores, do esvaziamento (indicado pela experiência da ausência, que mina ou rói a simultaneidade) à saturação. O que se passa quando a sobreposição de duas fontes sonoras vem parasitar a escuta, introduzindo vacúolos de silêncio semelhantes ao ruído branco utilizado pelos engenheiros de som?

É o problema da inteiferência, que poderíamos também chamar: transparência.

Essa palavra merece algumas explicações. Trata-se, claro, de uma analogia visual. Mas penso que ela é exata e capaz de esclarecer nosso propósito. Retomo-a de Gyorgy Kepes (artista e teórico de origem húngara associado à Bauhaus de Chicago) que, em seu livro Language of vision, designava por esse termo, transparência, o dado simultâneo, numa mesma captura perceptiva, de duas formas contraditórias que se sobrepõem ou se interpenetram sem se ocultar nem se destruir. As figuras ambíguas, tipo cubo de Necker, fornecem casos puros dessa classe de fenômenos. Os arquitetos contemporâneos (de Eisenman a Toyo Ito) redescobriram o interesse delas ao se afastar das facilidades da arquitetura de vidro para explorar configurações onde vários espaços estão de certo modo imbricados uns nos outros, mantidos num estado de equilíbrio flutuante.

Uma modalidade interessante do silêncio seria, segundo minha hipótese, ele cumprir no campo auditivo – e de maneira mais geral no campo da comunicação – uma função estruturalmente equivalente à da transparência na ordem visual.

Esvaziamento e saturação, vazio e transparência: eis aí dois caminhos que eu gostaria agora de examinar mais em detalhe.

Na verdade, eles foram formulados, sem ser realmente desenvolvidos, no texto de Jankélévitch que já tive a ocasião de citar várias vezes. De fato, ele escreve: “O silêncio faz aparecer o contraponto latente das vozes passadas e vindouras, que o tumulto do presente embaralha; de outro lado, ele revela a voz inaudível da ausência que o clamor ensurdecedor das presenças recobre”[11].

Essa passagem sugere de forma concentrada duas estratégias pelas quais o silêncio pode ser mobilizado de maneira construtiva no contexto contemporâneo – o da difusão quase ubíqua das tecnologias (móveis ou não) de comunicação a distância, sob o imperativo da conexão universal.

Trata-se de interromper ou de esburacar, de quando em quando, o rumor ensurdecedor do chat planetário, da conversação continuada e seus substitutos digitais. O esvaziamento é, sem dúvida, a estratégia mais familiar. É a que os artistas, nas paragens da música experimental, exploraram com mais aplicação. Aliás, ela pode tomar duas formas: ou interromper literalmente a comunicação ou a difusão de um sinal, isto é, fazer silêncio; ou pontuar um fluxo existente, perfurando-o. O que, como dissemos, é a operação ordinária da música.

Mas pode-se proceder de maneira contrária, não por subtração, mas por adição e acumulação. Também aí é possível distinguir duas modalidades dessa operação, duas modalidades do silêncio por excesso, se quiserem: ou acumular até a saturação, para sugerir algo como uma grande equivalência ruído-silêncio (a técnica da colagem, nas vanguardas do século XX, geralmente buscou esse efeito de confusão); ou produzir efeitos de sobreposição ou de visão simultânea, conforme o modelo da transparência evocado há pouco. Aqui o modelo pictórico seria mais especialmente o dos papiers collés cubistas, ou ainda as explorações pictóricas de Klee ou de Escher, que multiplicam num mesmo espaço de representação as linhas de contornos ambivalentes e as perspectivas contraditórias. A arte musical tem um nome para essa técnica: o contraponto, isto é, a capacidade de organizar o desenvolvimento paralelo e simultâneo de vozes que conservam sua independência, ao mesmo tempo em que coexistem numa forma global unificada.

Eu gostaria agora de desenvolver essas intuições e explicitar o que está em jogo. Para escapar à mundanidade tagarela de nossa época, não basta calar-se; não basta criar zonas de silêncio, ilhotas de não comunicação, de desconexão. É preciso, sobretudo, tentar introduzir novas figuras da sobriedade ou da transparência, e talvez algo como um novo contraponto.

EFEITOS DE QUADRO

Mas antes deve ficar bem claro, agora, que a concepção sóbria e austera do silêncio como condição sintática do sentido não podia ser a última palavra em nosso assunto. E isso por uma razão evidente: é que ela tomava as coisas num nível de abstração considerável. O silêncio, é preciso fazê-lo. Ora, uma abordagem pragmática do silêncio supõe interessar-se pelas determinações psicofisiológicas e mesmo físicas do som, ou da ausência de som. Essas considerações são essenciais para dar corpo às hipóteses que acabo de evocar no que diz respeito ao esvaziamento e à transparência.

Em primeiro lugar, é importante notar que o silêncio, antes de desempenhar o papel de quadro para a música – quadro externo ou párergon para a identificação dos limites temporais da obra musical, quadro interno para destacar articulações, dispor efeitos de iminência, tensões dinâmicas etc. -, resulta ele mesmo de um efeito de enquadramento.

Somos tentados a dizer que o silêncio borda o universo sonoro, que se desdobra entre uma falta e um excesso de volume sonoro (ou de intensidade, ou de pressão).

O decibel mede a amplitude da onda acústica: zero decibel indica o limiar de audição (silêncio por falta), 120 decibéis, o limiar de dor (silêncio por excesso: saturação que ameaça o tímpano e o ouvido interno).

São dois limiares do inaudível, entre os quais nosso sistema auditivo organiza a experiência sonora.

Mas esse efeito de enquadramento (ou de filtragem) evidentemente nada tem de absoluto: está ligado à nossa aparelhagem fisiológica, à maneira como esta efetua uma proteção no campo sensível.

O silêncio natural ou fisiológico aparece, em suma, como o produto de uma anestesia local. Nosso equipamento sensorial faz uma filtragem; grande parte do campo de influências físicas no qual estamos mergulhados não tem contrapartida alguma no campo sonoro efetivamente percebido.

Notem que essa anestesia da audição deixa abertas outras maneiras de sentir a vibração sonora: pelo tato, pelas sensações cinestésicas. Os músicos surdos (há alguns) sabem perfeitamente que as vibrações sonoras são percebidas pelo corpo inteiro. Há muitas maneiras de ouvir: pelas pernas (para os sons graves), pelo rosto, o pescoço e o peito (para os sons agudos)…

Mas isso significa também que o silêncio mesmo está cheio de sons, cheio de vibrações geralmente imperceptíveis ao ouvido humano: infrassons, ultrassons, definidos em termos de frequência. O silêncio é barulhento. O silêncio está longe de ser ausência de som. No vocabulário de Aristóteles ou de Francis Wolff, eu diria de bom grado que ele é antes privação do que negação.

A LIÇÃO DE CAGE

Essa primeira determinação (a saber, o caráter duplamente relativo do silêncio: o silêncio como filtragem do sensório e o caráter irredutívelmente impuro do silêncio puro) não é a menos interessante.

Ela faz compreender melhor o princípio de uma experiência que está no fundamento da experimentação feita por John Cage a partir do começo dos anos 1950. Vou apresentá-la brevemente, pois o episódio é bastante conhecido: em 1951, Cage visita uma câmara à prova de som, anecoica, acreditando fazer ali a experiência do silêncio perfeito. Mas, nesse ambiente artificialmente asseptizado, uma surpresa o espera: não é o silêncio que ele encontra, mas o som de seu corpo. Nessa câmara confinada, dois sons persistem, lancinantes, um som agudo e um som grave. É o ruído de seu próprio corpo, de seus nervos e de seu sangue que invadiu todo o espaço. Disso ele tira a conclusão, também muitas vezes repetida, de que o silêncio literal não existe, de que o silêncio está repleto do rumor do mundo. Tudo se encadeia a partir daí. Nas composições dos anos seguintes, desfazendo-se do silêncio intencional, ora simples limite entre dois sons, ora simples pontuação do som, Cage busca liquidar certa concepção da obra musical como ligação e organização dos sons, mas também como dessensibilização e filtragem do material sonoro. Quando ele intervém de maneira emblemática na peça composta um ano mais tarde (refiro-me evidentemente a 433″ [Quatro minutos e trinta e três segundos] – que não se chama, justamente, 4’33” de silêncio!), o silêncio é encarregado de agir como um captador ou uma caixa de ressonância do meio ambiente. Longe de ser uma espécie de prece minimalista, como o próprio Cage chegou a sugerir, 4’33” é uma obra centrífuga através da qual se refrata a atmosfera ruidosa do contexto, geralmente denegado, da sala de concerto. É um dispositivo ambiental. Ao escandir um pouco de tempo em estado puro (segundo o princípio dos três movimentos. Escrupulosamente cronometrados: Tacet, tacet, tacet[12], a ideia não é introduzir uma bolha de silêncio na cena musical, ou no ambiente urbano quando Cage toca sua peça (ao piano) ao ar livre, na Harvard Square. A obra atua antes como defletor da atenção do que como zona de concentração; ela incita a deixar flutuar a atenção de maneira lateral, para levar em conta os microacon tecimentos periféricos. O silêncio está cheio de ruído, contanto que se saiba ser sensível a ele. Mas em 4’33″ ele se dá primeiramente como uma forma do tempo, um formato temporal, nada mais. Por isso é tentador ver essa peça como uma pura obra conceitua!, em que a música acabaria por se confundir com as condições formais de uma organização do tempo.

Sabe-se que Cage via em 4’33” seu maior êxito musical; uma peça da qual dizia jamais se cansar, escutando-a diariamente. Existe aí mais que uma boutade. (Sabe-se que Cage pensou seriamente, por um tempo, em vender à empresa Musak, fornecedora de música por quilômetro para elevadores e centros comerciais, “um longo trecho de silêncio ininterrupto”.) O notável é que o silêncio adquire aqui a forma de uma estrutura móvel. O músico – ou todo aquele que deseja, por um exercício de atenção, tocar essa peça para si mesmo, com ou sem instrumento – pode dispor dela à vontade. É um prisma, uma estrutura transparente, nisso semelhante às White paintings de Rauschenberg – que refletem de diferentes maneiras, em diferentes horas do dia, as intensidades da luz ambiental -, ou ainda às construções fluidas e translúcidas de Mies van der Rohe, nas quais se refletem as nuvens ou as árvores ao redor.

Assim o silêncio cagiano (em todas as variações que conheceu desde 1952) traz à tona o fundo inaudível seguidamente recoberto pela agitação atarefada de nossas existências e recalcado por toda a tradição musical (inclusive Schoenberg). Portanto, é exatamente o contrário de uma exfiltração do sensível. O que vem à tona, então, não é o silêncio absoluto, mas um silêncio determinado, contextual, a cada vez ligado a uma determinada performance, a determinadas condições atmosféricas. Em Woodstock, em 1952, por ocasião da audição de estreia interpretada pelo pianista David Tudor, não se ouvia apenas o estalar das cadeiras e os suspiros exasperados do auditório, como aconteceu várias vezes; ouvia-se também o ruído do vento e das gotas de chuva no telhado…

A atenção dada a esse silêncio se aparenta a uma escuta difusa ou flutuante – no sentido da escuta flutuante da psicanálise. Ela manifesta a copresença do acontecimento da performance musical com uma pluralidade de elementos, processos ou fluxos heterogêneos que, juntos, constituem a contextura de um mundo. Assim, é a simultaneidade que está em jogo aqui.

Roland Barthes a teorizou noutro contexto, ao evocar uma escuta que não seria mais a escuta dos índices ou dos signos, mas a do grão da voz, ou da própria performance enunciativa. Uma escuta sensível ao pulular obtuso da significância. O que o separa de Cage e o aproxima talvez de Sartre é que ele introduz no núcleo dessa experiência de escuta a mordida da distância e da separação. É o que aparece nos Fragmentos de um discurso amoroso quando ele evoca a escuta monstruosa, a escuta alucinada do amado, que se transforma afinal em escuta do silêncio mesmo. A troca amorosa se desenrola sobre um fundo de mutismo, é atravessada pela angústia da separação, da ausência, do desaparecimento. Efeito naturalmente amplificado pelo uso do telefone que escava, no mais próximo da presença, uma dimensão de ausência. Quando “alô?” rasga o silêncio, nada mais é possível: o outro está sempre na outra ponta do fio. Essa situação de presença a distância contamina até o bate-papo amoroso. Como quando um fala e o outro escuta: “Nesses momentos breves em que falo à toa, é como se eu morresse. Pois o ser amado torna-se um personagem lívido, uma figura de sonho que não fala, e o mutismo, em sonho, é a morte”[13]. Essa experiência no fundo dolorosa deveria fazer refletir os propagandistas da comunicação continuada. Mas ela sugere também um trabalho construtivo sobre o qual não quero me estender aqui: ele consistiria em complicar os dispositivos de inspiração cagiana para inventar situações de defasagem ou de desconexão produtiva. No quadro da mítica exposição Art by telephone, foi marcado (telegramas o atestam) um encontro telefônico entre James Lee Byars e Alain Robbe-Grillet: a ideia era manter uma conversa silenciosa por trinta segundos. Essa conversa, pelo que compreendo, jamais pôde ocorrer. Esse exemplo tirado do registro da arte conceitua! tem o caráter de uma proposição especulativa.

Temos uma singular falta de imaginação para criar situações de comunicação “restrita” (no sentido em que se falava, um tempo atrás, de ação restrita) ou de comunicação sob coerção (no sentido em que se falava, um tempo atrás, de escrita sob coerção)[14]. Mas é que a interrupção ou a desconexão não são as únicas modalidades de silêncio. Na hora da gestão multitarefa e da atenção distribuída, talvez seja a multiplicidade das linhas de fluxo simultâneas que contenha os potenciais mais interessantes. É nesse ponto que devemos nos voltar para Glenn Gould.

A LIÇÃO DE GOULD

Aqui, igualmente, tudo começa com uma experiência fundamental, subjetivamente determinante. Estamos no começo dos anos 1950, em Toronto. Glenn Gould, criança, trabalha ao piano Fuga K 394, de Mozart. O barulho de um aspirador manipulado nas proximidades pela faxineira paralisa de repente sua execução. E eis então o que se passa: nas passagens em forte, a música é como que banhada num halo de vibrato; as passagens em piano, ao contrário, tornam-se completamente inaudíveis, bem figuradas ainda pela posição dos dedos e pelas sensações táteis associadas. Jamais Mozart havia soado tão bem.

À primeira vista, tudo opõe essa experiência à da câmara anecoica de Cage. Gould conquista o silêncio da música pura através do ronco de um aspirador; Cage imerge no silêncio que reconduz ao ruído. De um lado, o silêncio das extensões geladas do grande Norte canadense (The Idea of North, grande tema gouldiano), “o segredo desses lugares imóveis e desertos”[15] revelados na fuga de outro, o som entregue ao seu livre processo e ao rumor barulhento da Sixth Avenue… Mas, sobretudo, enquanto Cage reinscreve o ruído no silêncio, e o silêncio na exterioridade do mundo, Gould utiliza o ruído como um prisma. O dispositivo piano-aspirador age como um filtro: é uma tela especial, simultaneamente superfície de interposição e de projeção. O sentido estésico do procedimento é imediato: dessensibilização material (eliminação, ocultamento de uma parte do espectro sonoro) e dissociação sensorial (desligamento do tátil e do sonoro). A vantagem estética é evidente: a fuga acaba por descolar, ela se projeta idealmente numa superfície puramente mental: “O que aprendi do encontro fortuito de Mozart e do aspirador é que o ouvido interno da imaginação é um estimulante muito mais poderoso que tudo que pode provir da observação exterior”[16].

Como sempre em Gould, o modo de usar fornece sua própria interpretação. O dispositivo, descrito como um “processo mecânico”, tem por efeito desligar a atenção dos “compromissos táteis” impostos pelas propriedades materiais do instrumento; assim ele orienta a atenção para a estrutura ideal muda da obra, segundo um procedimento de tipo radiográfico que revela seu organismo cristalino. Bastou reduzir os baixos ao silêncio para operar esse prodígio.

Seria um erro, porém, supervalorizar esse aspecto de filtragem que, de qualquer maneira, só acontece no espírito de Gould. A experiência do aspirador tem um valor muito geral: “Desde então, e ainda hoje, quando por uma razão ou outra tenho necessidade de adquirir rapidamente a marca tátil de uma partitura nova que já tenho na cabeça, simulo o efeito do aspirador, colocando tão perto quanto possível do piano as mais variadas fontes opostas, quaisquer que sejam”.[17] Poderiam ser multiplicados os exemplos de dispositivos aparentados, variações sobre o tema do aspirador: “Colocar de cada lado do piano um rádio ou, melhor ainda, um rádio, num lado, e uma televisão, no outro, e aproveitar isso ao máximo”[18]. Ao que cabe acrescentar exercícios de dissociação imaginativos (tocar Bach num sintetizador, como faz a compositora e musicista americana Wendy Carlos). Essas astúcias encontram um eco inesperado em certas técnicas de anestesia dentária que Gould se compraz em relatar. O paciente é submetido a duas fontes sonoras: ruído branco, de um lado, e uma ária familiar de Mantovani ou de Beethoven, de outro. A relação entre essas duas fontes é variável, mas sempre em favor do ruído branco que constitui então “um bloqueio a vencer”. Para reconhecer e integrar a melodia, o paciente é obrigado a esforços de concentração tais que acabam por fazê-lo esquecer a dor[19]. Não resta senão transpor a experiência: “[…] era preciso que o nível [sonoro] fosse suficientemente elevado para que, embora sentindo o que fazia, eu percebesse primeiro o som do rádio, ou da televisão, ou, melhor ainda, dos dois juntos. Naquele momento eu conseguia separar minha concentração em duas partes […]”[20].

Dissociação, descolamento: é assim que funciona a tela de ruído branco, que é outra figura do silêncio. A hiperestesia produz, paradoxalmente, um efeito de anestesia local, que é a condição de uma experiência nova da obra. Mas ela mantém assim aberto o regime da atenção dividida ou distribuída que essa sobreposição de fluxos sonoros infalivelmente evoca. E tal regime de atenção é exatamente o que a prática do contraponto requer, em particular na forma fugada da qual Gould era um adepto fervoroso.

Para além dos procedimentos montados especialmente para a execução da obra musical, Gould dava grande importância à ideia do fundo ou da trama sonora. Ele dizia amar “estar cercado de todos os lados pela música como por uma espécie de tapeçaria elétrica e sonora”; só dormia ouvindo rádio. Tinha um interesse singular pelas músicas de fundo ou ambiente tipo Musak (interesse comum com Cage), mas também por músicas de spots publicitários ou filmes de horror B, que ele adorava[21]: “Sou totalmente incapaz de compreender as pessoas que não suportam a música de elevador. De minha parte, eu poderia subir e descer num elevador que não parasse nunca, sem me aborrecer uma vez sequer”[22]. Também aí não se trata simplesmente de uma boutade. E a observação de Gould sobre a Musak tem a ver diretamente com o problema do regime de atenção que essa disseminação da música no ambiente urbano é capaz de favorecer. A música ambiente não é um ligante, como se pensa ao se falar de sopa, mas sim uma trama para uma série de operações. Ou seja, ela tem menos por função preencher o vazio ou formar um invólucro tranquilizador do que produzir nichos ou células que são outras tantas ocasiões de separação ou de dissociação. Numa entrevista pela TV em 18 de fevereiro de 1970 com Curtis Davis (transmitida pela CBC), Gould dá o motivo de sua predileção pelas viagens em elevador e pela travessia dos espaços públicos sonorizados (lojas, saguões de hotel e restaurantes): elas mantêm com a forma fugada uma relação essencial, que não se deve tanto aos conteúdos musicais difundidos nesses locais quanto ao gênero de experiência polifônica que autorizam, precisamente quando apenas se passa por eles.

Há, na verdadeira natureza da fuga ou mesmo na de todas as músicas cujas diferentes vozes possuem uma vida autônoma, uma significação que não deixa de ter ligação com a Musak; pois a função primeira de uma fuga é transmitir a impressão de uma finalidade aberta. […] Gosto de pensar que se pode entrar e sair de uma experiência musical tão facilmente quanto se sobe num elevador (com um pouco de Mantovani durante 35 segundos) para chegar ao 19º andar. […] Parece-me que isso corresponde bem aos propósitos de Bach, pois ele manifestamente se dispunha a aceitar que todos os dados fossem intercambiáveis (diferentes distribuições, diferentes tonalidades etc.)[23]

O problema da música ambiente fica mais claro, então. Não sofremos com hiperestesia ou anestesia, saturação ou redundância, mas com monofonia. Não se trata de criar bolhas ou cápsulas de silêncio, como se criam nos aeroportos áreas reservadas à sesta, à prece ou ao cigarro. É preciso inventar um novo contraponto: um contraponto capaz de dar forma ou dar sentido – à simultaneidade porosa da tagarelice a distância e dos fluxos digitais, ao mesmo tempo invasores e intermitentes; um contraponto capaz de organizar nossa distração endêmica. Os mestres da montagem cinematográfica quiseram enfrentar um desafio do mesmo gênero quando sonhavam com uma câmera-olho capaz de sentir a pulsação das grandes metrópoles e de traduzir em imagens sua efervescência descontínua. Faltou-lhes talvez, justamente, a música.

Tradução de Paulo Neves.

Notas

  1. Vladimir Jankélévitch, La musique et l’ineffable, Paris: Seuil, 1983, p. 179.
  2. Idem, ibidem, p. 172.
  3. Friedrich Nietzsche, Legai savoir, Paris: Pluriel, 1987, § 331. Ed. bras.: Idem, A gaia ciência, São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
  4. Vladimir Jankélévitch, op. cit., p. 172.
  5. Vladimir Jankélévitch, op. cit., p. 167.
  6. Idem, ibidem, p. 169.
  7. Idem, ibidem, p. 186.
  8. Idem, ibidem, p. 190.
  9. Stéphane Chauvier, Qu’est-ce qu’un jeu?, Paris: Vrin, 2007, p. II
  10. Jean-Paul Sartre, Carnets de la drôle de guerre, Paris: Gallimard, 1995, p. 259.
  11. Vladimir Jankélévitch, op. cit., p. 186.
  12. Palavra latina que significa, nas partituras, que o instrumentista deve permanecer em silêncio. (N.T.)
  13. Roland Barthes, “Fragments d’un discours amoureux”, em: Oeuvres completes, t. III, Paris: Le Seuil, 2002, p. 616.
  14. Um exemplo seria o romance de Georges Perec, La disparition, Paris: Gallimard, 1989, em que a letra “e” nunca aparece. (N.T.)
  15. Glenn Gonld, Contrepoint à la ligne. Écrits 11, B. Monsaingeon (ed.), Paris: Fayard, 1985, p. 317.
  16. Glenn Gould, Écrits 1, Paris: Fayard, 1983, p. 52.
  17. Idem, ‘Discours à l’occasion…”, em Le dernier puritain, Écrits I, Paris: Fayard, 1983, p. 52.
  18. Idem, Entretiens avec]onathan Cott, trad.J. Drillon, Paris: Fayard, 1983, p. 57.
  19. Idem, ibidem, pp. 53-54.
  20. Idem, ibidem, p. 57.
  21. Idem, “Les perpectives de l’emegistrernent”, em: Le dernier puritain. Écrits I, B. Monsaingeon (ed.), Paris: Fayard, 1983, pp. 93 ss.
  22. Idem, Entretiens avec Jonathan Cott, op. cit., p. 124.
  23. Citado por Michael Stegemann, «La fugue et son côté ‘Muzak”‘ [A fuga e seu aspecto ‘Musa’”], no folheto de apresentação do segundo volume do co Clavier bien tempere [Cravo bem temperado], de Glenn Gould, Sony Classical, 1993.

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