Fundamentalismo religioso: a questão do poder teológico-político
por Marilena Chaui
Resumo
Todo império ocidental empenhou-se em construir um inimigo, o “outro”, que o determina. Isso porque, para o governante, não há aliado maior do que o medo. No caso dos Estados Unidos, ele era, depois da Guerra-fria, difuso. O bárbaro, ou seja, qualquer país que não adotasse o modelo de governo democrático-liberal. Aí, houve o 11 de setembro de 2001. Depois dele, islamismo e barbárie alinharam-se.
Acontece que a barbárie não está no exterior. Tampouco é o avesso da civilização, mas seu pressuposto. Ela surge no interior dela, com a criação e a propagação da cultura. Assim foi com o nazismo e assim foi em 2003, quando Estados Unidos e Grã-Bretanha, ao menosprezarem não só a ONU, como os direitos das gentes e os internacionais, invadiram o Iraque.
A partir da ideia da barbárie interior, é preciso entender esse ato, que passou por cima de tudo. Fragmentação e dispersão produtivas, hegemonia do capital financeiro, rotatividade da mão-de-obra, obsolescência vertiginosa das qualificações de trabalho em decorrência do incessante surgimento de novas tecnologias, desemprego estrutural decorrente da automação nos diversos segmentos da produção – inclusive de serviços -, exclusões social, econômica e política – tudo isso que, para David Harvey, resume-se na expressão “compressão espaço-temporal”, já que, atualmente, todo lugar é “aqui” e todo tempo é “agora”. Daí, a proliferação de imagens velozes e fugazes. Acrescente-se a isso o fim do ideal – socialista, por exemplo -, e o que há é, como escreveu Adorno, o conhecimento isento de luz senão a que brilha sobre o mundo da redenção.
Tudo isso se aprofunda com a substituição da religião pela ética protestante do trabalho, que confere ao mercado o lugar no qual se efetiva a racionalidade do mundo. Como? Através da ilusão de satisfação de preferências individuais induzidas pelo próprio mercado, da redução do cidadão a consumidor, da exclusão do trabalho – descartável – e do consumo – reservado a uma elite econômica -, da guerra como fonte de lucros inimagináveis, da competição por sucesso e poder, da hegemonia de empresas supranacionais sobre instituições governamentais legítimas.
É por todos esses motivos que parece que se está rumo ao fim da política? Sim, se considerada a contrapartida da ideologia da eficiência, ou seja, o ressurgimento da teologia política, com seus líderes religiosos que, ao dominarem a lógica e a enciclopédia populares (como nota Marx), mostram-se carismáticos e mais compreensíveis do que os entediantes técnicos, de modo que as transcendências da eficácia técnica e da mensagem divina, restrita a alguns eleitos, assemelham-se tanto que pouco espanta o entrecruzamento dos fundamentalismos de mercado e da crença religiosa.
E quando a religião volta a misturar-se com a política?
Boa resposta dá Espinosa, para quem: “Quando o Estado encontra-se em maiores dificuldades é que os adivinhos detêm o maior poder sobre a plebe e são mais temidos pelos reis”.
Em seu livro Depois da paixão política, Josep Ramoneda escreve:
No Ocidente houve um empenho para construir um novo inimigo, porque o medo é sempre uma ajuda para o governante. O inimigo é o Outro, o que põe em perigo a própria identidade, seja a ameaça real ou induzida. O temor ao Outro favorece a coesão nacional em torno do poder e faz com que a cidadania seja menos exigente com os que governam, que são também os que a protegem. Em um primeiro momento, parecia que o fundamentalismo islâmico estava destinado a ser o novo inimigo. […] Mas as ameaças eram demasiado difusas para que a opinião pública propagasse a ideia de que o islamismo era o novo inimigo. De modo que se optou por um inimigo genérico: a barbárie. Quem é o bárbaro? O que rejeita o modelo democrático liberal cujo triunfo foi proclamado por Fukuyama como ponto final da história. […] O que não se adapta ao modelo triunfante fica definitivamente fora da realidade político-social. Ou não chegou — barbárie do que acode com atraso ao encontro final —, ou não chegará nunca — barbárie do eternamente primitivo que se afunda no reino das trevas. […] Como o bárbaro não é uma alternativa e sim um atraso, restam apenas duas possibilidades: ou sua paulatina adaptação ou sua definitiva exclusão. Todavia, a coesão social pelo medo se mantém porque é necessário defender-se da especial maldade dos bárbaros: daí a necessária (quase sempre fundamentada) satanização daquele ao qual se atribui a condição de bárbaro.[1]
Ramoneda escreveu antes de 11 de setembro de 2001. Depois dessa data, islamismo e barbárie identificaram-se, e a satanização do bárbaro consolidou-se numa imagem universalmente aceita e inquestionável. Fundamentalismo religioso, atraso, alteridade e exterioridade cristalizaram a nova figura da barbárie e, com ela, o cimento social e político trazido pelo medo.Tomemos, porém, uma outra perspectiva. Na tese 7 de Sobre o conceito de história, Walter Benjamin escreve:
Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que chamamos de bens culturais. […] todos os bens culturais que ele [o materialista histórico] vê têm uma origem que ele não pode contemplar sem horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corveia anônima de seus contemporâneos. Nunca houve um monumento de cultura que também não fosse um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo.[2]
Essa passagem de Benjamin é rica em sentido, mas aqui ela nos interessa por um motivo particular, qual seja, o de situar a barbárie no interior da cultura ou da civilização, recusando a dicotomia tradicional, que localiza a barbárie no outro e o situa no exterior. Pelo contrário, a tese de Benjamin coloca a barbárie não só como o avesso necessário da civilização, mas como o pressuposto dela, como aquilo que a civilização engendra ao produzir-se a si mesma como cultura. O bárbaro não está no exterior, mas é interno ao movimento de criação e transmissão da cultura, é o que causa horror àquele que contempla o cortejo triunfal dos vencedores pisoteando os corpos dos vencidos e conhece o preço de infâmia de cada monumento da civilização. A atualidade da tese de Benjamin, cujo pano de fundo histórico foi o nazismo, não é metafórica, mas encontra-se literalmente afirmada em nosso presente: em março de 2003, menosprezando a Organização das Nações Unidas e pisoteando a ideia de direito das gentes ou de direito e ordem internacionais, as tropas dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha invadiram o Iraque, em nome da civilização contra a barbárie.
A CONDIÇÃO PÓS-MODERNA
Partindo da tese de Benjamin, acerquemo-nos da barbárie contemporânea.
Examinando a condição pós-moderna, David Harvey[3] analisa os efeitos da acumulação flexível do capital, isto é, a fragmentação e dispersão da produção econômica, a hegemonia do capital financeiro, a rotatividade extrema da mão-de-obra, a obsolescência vertiginosa das qualificações para o trabalho em decorrência do surgimento incessante de novas tecnologias, o desemprego estrutural decorrente da automação e da alta rotatividade da mão-de-obra, a exclusão social, econômica e política. Esses efeitos econômicos e sociais da nova forma do capital são inseparáveis de uma transformação sem precedentes na experiência do espaço e do tempo. Essa transformação é designada por Harvey com a expressão “compressão espaço-temporal”, isto é, o fato de que a fragmentação e a globalização da produção econômica engendram dois fenômenos contrários e simultâneos: de um lado, a fragmentação e dispersão espacial e temporal e, de outro, sob os efeitos das tecnologias de informação, a compressão do espaço — tudo se passa aqui, sem distâncias, diferenças nem fronteiras — e a compressão do tempo — tudo se passa agora, sem passado e sem futuro. Na verdade, fragmentação e dispersão do espaço e do tempo condicionam sua reunificação sob um espaço indiferenciado e um tempo efêmero, ou sob um espaço que se reduz a uma superfície plana de imagens e sob um tempo que perdeu a profundidade e se reduz ao movimento de imagens velozes e fugazes.
Acrescentemos à descrição de Harvey algo que não pode ser esquecido nem minimizado, ou seja, o fato de que a perda de sentido do futuro é inseparável da crise do socialismo e do pensamento de esquerda, isto é, do enfraquecimento da ideia de emancipação do gênero humano ou da perda do que dizia Adorno nas Mínima moralia, quando escreveu que “o conhecimento não tem nenhuma luz senão a que brilha sobre o mundo a partir da redenção”. Perdeu-se, hoje, a dimensão do futuro como possibilidade inscrita na ação humana como poder para determinar o indeterminado e para ultrapassar situações dadas, compreendendo e transformando o sentido delas.
Volátil e efêmera, hoje nossa experiência desconhece qualquer sentido de continuidade e se esgota num presente vivido como instante fugaz. Essa situação, longe de suscitar uma interrogação sobre o presente e o porvir, leva ao abandono de qualquer laço com o possível e ao elogio da contingência e de sua incerteza essencial. O contingente não é percebido como uma indeterminação que a ação humana poderia determinar, mas como o modo de ser dos homens, das coisas e dos acontecimentos.
Essa imersão no contingente e no efêmero deu origem a sentimentos e atitudes que buscam algum controle imaginário sobre o fluxo temporal. De um lado, provoca a tentativa para capturar o passado como memória subjetiva, como se vê na criação de pequenos “museus” pessoais ou individuais (os álbuns de fotografias e os objetos de família), porque a memória objetiva não tem nenhum ancoradouro no mundo; de outro, leva ao esforço para capturar o futuro por meios técnicos, como se vê com o recrudescimento dos chamados mercados de futuros, que proliferam “em tudo, do milho e do bacon a moedas e dívidas governamentais, associados com a ‘secularização’ de todo tipo de dívida temporária e flutuante, ilustram técnicas de descontar o futuro do presente”.[4]
Mais profundamente, a fugacidade do presente, a ausência de laços com o passado objetivo e de esperança de um futuro emancipador, suscita o reaparecimento de um imaginário da transcendência. Os fundamentalismos religiosos e a busca da autoridade decisionista na política são os casos que melhor ilustram o mergulho na contingência bruta e a construção de um imaginário que não a enfrenta nem a compreende, mas simplesmente se esforça por contorná-la, apelando para duas formas inseparáveis de transcendência: a divina (à qual apela o fundamentalismo religioso) e a do governante (à qual apela o elogio da autoridade política forte). E não é casual que essa dupla transcendência apareça unificada na figura do chefe político travestido de chefe militar e religioso, uma vez que define sua ação como a luta do bem contra o mal.
Se podemos dizer que Marx e Baudelaire foram os que melhor exprimiram o pensamento e o sentimento da modernidade — o primeiro por afirmar que a liberdade não é escolha contingente, mas a consciência da necessidade, e o segundo por definir a arte como captura do eterno no coração do efêmero —, podemos também dizer que a autodenominada pós-modernidade é a renúncia a essas ideias e sentimentos, sem que, entretanto, a maioria das sociedades deixe de buscar imaginariamente substitutos para o necessário e o eterno. Não por acaso, ambos ressurgem nas vestes da religião, e, portanto, a necessidade aparece como destino ou fatalidade e o eterno se apresenta como teofania, isto é, revelação do deus no tempo.
O fundamentalismo religioso opera como uma espécie de retorno do reprimido, uma repetição do recalcado pela cultura porque esta, não tendo sabido lidar com ele, não fez mais do que preparar sua repetição.
De fato, que fez a modernidade ao propor e realizar o “desencantamento do mundo”? De um lado, procurou controlar a religião, deslocando-a do espaço público (que ela ocupara durante toda a Idade Média) para o privado. Nessa tarefa, foi amplamente auxiliada pela Reforma protestante, que combatera a exterioridade e o automatismo dos ritos assim como a presença de mediadores eclesiásticos entre o fiel e Deus, e deslocara a religiosidade para o interior da consciência individual. De outro, porém, tratou a religião como arcaísmo que seria vencido pela marcha da razão ou da ciência, desconsiderando, assim, as necessidades a que ela responde e os simbolismos que ela envolve. Julgou-se que a modernidade era feita de sociedades cuja ordem e coesão dispensavam o sagrado e a religião, e atribuiu-se à ideologia a tarefa de cimentar o social e o político.
Dessa maneira, a modernidade simplesmente recalcou a religiosidade como costume atávico, sem examiná-la em profundidade. Sob uma perspectiva, considerou a religião algo próprio dos primitivos ou dos atrasados do ponto de vista da civilização, e, sob outra, acreditou que, nas sociedades civilizadas adiantadas, o mercado responderia às necessidades que, anteriormente, eram respondidas pela vida religiosa, ou, se se quiser, julgou que o protestantismo era uma ética mais do que uma religião, e que o elogio protestante do trabalho e dos produtores cumpria a promessa cristã da redenção. Sintomaticamente, a modernidade sempre menciona o dito de Marx — “a religião é o ópio do povo” —, esquecendo-se de que essa afirmação era antecedida por uma análise e interpretação da religiosidade como “espírito de um mundo sem espírito” (a promessa de redenção num outro mundo para quem vivia no mundo da miséria, da humilhação e da ofensa, como a classe operária), e como “lógica e enciclopédia populares” (uma explicação coerente e sistemática da natureza e da vida humana, dos acontecimentos naturais e das ações humanas, ao alcance da compreensão de todos). Em outras palavras, Marx esperava que a ação política do proletariado nascesse de uma outra lógica que não fosse a supressão imediata da religiosidade, mas sua compreensão e superação dialética, portanto, um processo tecido com mediações necessárias.
Justamente por nem mesmo cogitar nas mediações e supor que seria possível a supressão imediata da religião, a modernidade, depois de afastar as igrejas e de alojar a religião no foro íntimo das consciências individuais, erigiu a ética protestante do trabalho em religião secular e por isso mesmo deu ao mercado o lugar de efetuação da racionalidade do mundo. Ora, no nosso presente pós-moderno, o que é a racionalidade do mercado?
Podemos reduzi-la a um punhado de traços: 1. opera provocando e satisfazendo preferências individuais induzidas pelo próprio mercado, as quais seguem a matriz da moda, portanto, do efêmero e do descartável; 2. reduz o indivíduo e o cidadão à figura do consumidor; 3. opera por exclusão, no mercado tanto da força de trabalho, no qual o trabalhador é tão descartável quanto o produto, como no de consumo propriamente dito, ao qual é vedado o acesso à maioria das populações do planeta, isto é, ele opera por exclusão econômica e social, formando, em toda parte, centros de riqueza jamais vista ao lado de bolsões de miséria jamais vista; 4. opera por lutas e guerras, com as quais efetua a maximização dos lucros, isto é, opera por dominação e extermínio; 5. estende esse procedimento ao interior de cada sociedade, sob a forma da competição desvairada entre seus membros, com a vã promessa de sucesso e poder; 6. tem suas decisões tomadas em organismos supranacionais, que operam com base no segredo e interferem nas decisões de governos eleitos, os quais deixam de representar seus eleitores e passam a gerir a vontade secreta desses organismos (a maioria deles privados), restaurando o princípio da “razão de Estado” e bloqueando tanto a república como a democracia, pois alarga o espaço privado e encolhe o espaço público.
Nesse mercado, a hegemonia pertence ao capital financeiro e à transformação do dinheiro, de mercadoria universal ou equivalente universal, em moeda sem lastro no valor, isto é, sem lastro no trabalho. Finança e monetarismo introduzem uma entidade mística muito mais misteriosa do que as mais misteriosas entidades religiosas: a “riqueza virtual”, ou seja, as transações financeiras virtuais, que deslocam, alocam e transferem riqueza imaginária por todo o planeta. A virtualidade, aliás, é o modo mesmo não só de expressão da riqueza, mas também da forma da competição entre os oligopólios e entre os indivíduos, pois se realiza como compra e venda de imagens e como disputa entre imagens, de sorte que não se refere a coisas e a acontecimentos, mas a signos virtuais sem realidade alguma. Aqui, rigorosa e literalmente, se realiza a essência mesma do capitalismo, no qual, como dissera Marx, “tudo o que é sólido desmancha no ar”.
O encolhimento do espaço público dá-se com as medidas tomadas para liquidar o Estado do Bem-Estar e resolver a crise fiscal do Estado, isto é, sua incapacidade para, simultaneamente, financiar o capital e a força de trabalho, o primeiro por meio de investimentos e a segunda por meio do salário indireto, ou seja, dos direitos sociais (férias, salário-família, salário-desemprego, previdência social, saúde e educação públicas gratuitas etc.). O Estado pós-moderno, isto é, neoliberal, diminui institucionalmente o pólo ligado aos serviços e bens públicos e, portanto, corta o uso do fundo público para os direitos sociais, canalizando a quase totalidade dos recursos estatais para atender ao capital.
Se articularmos o modo de operação do mercado e o encolhimento do Estado na área dos direitos sociais, veremos a barbárie contemporânea em pleno curso: a exclusão econômico-social, a miséria, o desemprego levam a desigualdade e a injustiça sociais ao seu máximo, tanto nas relações entre classes em cada país como nas relações internacionais.
Dessa maneira, se articularmos a secularização moderna — que simplesmente lançou a religiosidade para o espaço privado e esperou que a marcha da razão e da ciência findariam por eliminar a religião —, o mercado pós-moderno — que opera por extermínio e exclusão e com a fantasmagoria mística da riqueza virtual e dos signos virtuais —, o Estado neoliberal — caracterizado pelo alargamento do espaço privado e pelo encolhimento do espaço público dos direitos — e a condição pós-moderna de insegurança gerada pela compressão espaço-temporal — na qual o medo do efêmero leva à busca do eterno —, podemos compreender que a barbárie contemporânea provoque o retorno do recalcado ou do reprimido, isto é, o ressurgimento do fundamentalismo religioso não apenas como experiência pessoal, mas também como interpretação da ação política. Ou seja, estamos de volta à invenção imaginária do espírito num mundo sem espírito.
Além disso, o conjunto de traços do mercado, a presença política de megaorganismos econômicos privados transnacionais nas decisões dos governos e o Estado neoliberal indicam que estamos diante da privatização da pólis e da res publica. Essa privatização produz como primeiro efeito a despolitização. De fato, a ideologia pós-moderna é inseparável da ideologia da competência, segundo a qual os que possuem determinados conhecimentos têm o direito natural de mandar e comandar os demais em todas as esferas da existência, de sorte que a divisão social aparece como divisão entre os especialistas competentes, que mandam, e os demais, incompetentes, que executam ordens ou aceitam os efeitos das ações dos especialistas. Isso significa que, em política, as decisões são tomadas por técnicos ou especialistas, via de regra, sob a forma do segredo (ou, quando publicadas, o são em linguagem perfeitamente incompreensível para a maioria da sociedade), e escapam inteiramente dos cidadãos, consolidando o fenômeno generalizado da despolitização da sociedade. A privatização do espaço público e a despolitização são sinais alarmantes de que podemos estar perante o risco do fim da política. Com efeito, o helenista Moses Finley descreveu o nascimento da política — a “invenção da política”, escreveu ele — como um acontecimento que distinguiu para sempre Grécia e Roma em face dos grandes impérios antigos. A política nasceu ou foi inventada quando o poder público, por meio da invenção do direito e da lei (isto é, a instituição dos tribunais) e da criação de instituições públicas de deliberação e decisão (isto é, as assembleias e os senados), foi separado de três autoridades tradicionais: a do poder privado ou econômico do chefe de família, a do chefe militar e a do chefe religioso (figuras que, nos impérios antigos, estavam unificadas numa chefia única, a do rei ou imperador). A política nasceu, portanto, quando a esfera privada da economia, a esfera da guerra e a esfera do sagrado ou do saber foram separadas e o poder político, na expressão de Claude Lefort, foi desincorporado, isto é, deixou de identificar-se com o corpo místico do governante como pai, comandante e sacerdote, representante humano de poderes divinos transcendentes.
Por que parecemos estar rumando para o fim da política? Esse fim pode estar anunciado não só pela ideologia da competência (ou a identificação entre poder econômico e saber), mas também pela sua contraparte, o ressurgimento da teologia política (ou a fusão de poder político, chefia religiosa e militar), que sustenta os fundamentalismos religiosos. De fato, se seguimos o comando do técnico competente, por que não haveríamos de seguir o de um líder religioso carismático, que fala uma linguagem até mais compreensível (a lógica e a enciclopédia populares de que falava Marx)? A transcendência da competência técnica corresponde à transcendência da mensagem divina a alguns eleitos ou iniciados, e não temos por que nos surpreender com o entrecruzamento entre o fundamentalismo do mercado e o fundamentalismo religioso.
Mas não só isso. O traço principal da política, traço que se manifesta na sua forma maior, qual seja, na democracia, é a legitimidade do conflito e a capacidade para ações que realizam o trabalho do conflito, ações que se efetuam como contrapoderes sociais de criação de direitos e como poderes políticos de sua legitimação e garantia. Aqui, ainda uma vez, o retorno dos fundamentalismos religiosos nos coloca diante de um risco de imensas proporções. Por quê? Em primeiro lugar, porque, tendo a modernidade lançado a religião para o espaço privado, hoje o encolhimento do espaço público e o alargamento do espaço privado podem dar novamente às religiões o papel da ordenação e da coesão sociais. Em segundo lugar, porque a história já mostrou os efeitos dessa ordenação e coesão promovidas pela religião, ou seja, a luta sangrenta pelo poder sob a forma das guerras de religião.
De fato, as grandes religiões monoteístas — judaísmo, cristianismo e islamismo —, como religiões que produzem teologias (isto é, explicações sobre o sentido do mundo, a partir de revelações divinas), não têm apenas que enfrentar, do ponto de vista do conhecimento, a explicação da realidade oferecida pela filosofia e pelas ciências, mas têm ainda que enfrentar, de um lado, a pluralidade de confissões religiosas rivais e, de outro, a moralidade laica determinada por um Estado secular ou profano. Isso significa que cada uma dessas religiões só pode ver a filosofia e a ciência e as outras religiões pelo prisma da rivalidade e da exclusão recíproca, um tipo peculiar de oposição que não tem como se exprimir num espaço público democrático porque não pode haver debate, confronto e transforma ção recíproca em religiões cuja verdade é revelada pela divindade e cujos preceitos, tidos por divinos, são dogmas. Porque se imaginam em relação imediata com o absoluto, porque se imaginam portadoras da verdade eterna e universal, essas religiões excluem o trabalho do conflito e da diferença e produzem a figura do Outro como Demônio e herege, isto é, como o Mal e o Falso.
Não é, portanto, casual, em nossos dias, o súbito prestígio de Carl Schmidt: a política entendida como guerra dos amigos contra os inimigos e como vontade e decisão secreta do soberano, cuja ação é incontestada, corresponde perfeitamente à maneira como os funda mentalismos religiosos concebem a política como batalha entre o bem e o mal e a atividade soberana como missão sagrada porque comandada por Deus. Os discursos e as ações de Sharon, Bin Laden e Bush são as expressões mais perfeitas e mais acabadas da impossibilidade da política sob o fundamentalismo das religiões monoteístas reveladas. Com elas, a política cede lugar à violência como purificação contra o Mal, e os políticos cedem lugar aos profetas, isto é, aos intérpretes da vontade divina, chefes infalíveis.
Dessa maneira, o desencantamento do mundo, obra da civilização moderna, se vê às voltas com o misticismo do mercado e a violência da teologia política. Em outras palavras, com a barbárie interna à ação civilizatória.
A CRÍTICA DO PODER TEOLÓGICO-POLÍTICO EM ESPINOSA
Antes de nos aproximarmos da crítica espinosana à teologia política, convém, de maneira muito breve e sumária, recordar algumas das posições teóricas exemplares a respeito da relação entre fé e razão, teologia e filosofia, tomando como referência o cristianismo (ainda que posições semelhantes possam ser encontradas tanto no judaísmo como no islamismo). Destaquemos cinco delas:
- a de Paulo e Agostinho, que pode ser resumida na oposição paulina, segundo a qual a fé é escândalo para a razão e a razão é escândalo para fé, não podendo haver comércio e colaboração entre ambas. Acrescentemos à afirmação paulina a concepção agostiniana da ordem cósmica como hierarquia dos seres na qual o grau superior sabe mais e pode mais que o grau inferior, que por isso mesmo lhe deve obediência. No que respeita ao homem, além de seu lugar na hierarquia universal, há também uma hierarquia entre os componentes de seu ser, tal que o corpo é o grau mais inferior, seguido da razão, e esta, suplantada pelo espírito ou pela fé. Aqui, não só a razão está subordinada à fé, como é nada diante dela. Por isso mesmo, a teologia só pode ser negativa;
- a de Tomás de Aquino, para quem a razão natural ou luz natural é de origem divina, assim como é de origem divina a revelação ou luz sobrenatural. Ora, a verdade não contradiz a verdade, portanto, embora a revelação seja superior à razão, ambas não se contradizem, mas a revelação completa e supera a razão. A teologia é positiva como teologia racional e subordinada à teologia revelada, a qual, para o entendimento humano, só pode ser negativa e objeto de fé;
- a de Abelardo e Guilherme de Ockham, para quem é preciso separar verdades de fé e verdades de razão, admitindo a existência de um saber próprio da fé e outro próprio da razão, saberes independentes e que não se contradizem não porque a verdade não contradiz a verdade, mas porque nada têm em comum. Não havendo relação alguma entre fé e razão, ambas não podem se completar nem se contradizer;
- a de Kant, quando propõe “a religião nos limites da simples razão”, isto é, quando, depois de separar razão pura teórica e razão pura prática, coloca os conteúdos da fé e da religião na esfera da razão prática. Dessa maneira, exprimindo o espírito da modernidade, Kant circunscreve a religião à esfera da vida prática ou da existência ética individual e recusa validade para uma teologia racional ou especulativa, assim como para a teologia revelada;
- a de Hegel, para quem a religião é um momento da vida do Espírito Absoluto, que passa das religiões da exterioridade (greco-romana e judaica) à da interioridade (cristianismo) e tem no protestantismo sua figura mais espiritualizada, mais alta e final, e cuja verdade se encontra na filosofia como memória e realização do Espírito. Podemos dizer que a posição hegeliana é a inversão final da posição paulina-agostiniana, uma vez que a filosofia, ou a razão, é a religião compreendida e realizada.
Essas cinco posições são tomadas no interior da religião e da fé.
Todas salvam a religião, seja excluindo a razão, seja recorrendo a uma hierarquia entre fé e razão, seja estabelecendo uma separação em face da razão, seja por meio da filosofia da história, isto é, da interiorização do tempo judaico-cristão como um tempo dramático ou referenciado, teleológico, epifânico e teofânico, de tal maneira que a filosofia hegeliana é o ponto culminante da racionalização da religião e da sacralização da razão.
A essas posições interiores à religião, cabe contrapor a dos libertinos dos séculos XVI e XVII e a dos philosophes da Ilustração, com os quais o desencantamento do mundo se realiza do exterior da religião, isto é, pela ideia de que as religiões (sobretudo as reveladas) são ignorância, atraso, obstáculo à civilização, e instituídas com uma única finalidade, qual seja, a dominação política por meio do engodo e do logro. Nessa perspectiva, a razão ou a filosofia não salvam a religião, mas a destroem ou, no caso dos defensores da tolerância, a excluem do espaço público e a transferem para o interior da consciência, na qualidade de escolha ou preferência subjetiva, isto é, de opinião que, como opinião, deve ser tolerada, desde que não interfira no espaço político, no qual sua presença é causa de fanatismo, sectarismo e sedição, isto é, barbárie.
A posição de Espinosa distingue-se de todas essas. É verdade que, como Abelardo e Ockham, julga que fé e razão estão separadas e que, portanto, teologia e filosofia são inteiramente diversas. É verdade que, como Kant mais tarde, afasta a religião e a teologia do campo especulativo e as coloca no campo prático. É verdade também que, como os ilustrados mais tarde, considera a fé ou a religião uma opinião de foro íntimo que deve ser tolerada, desde que não interfira no espaço público, onde sempre provoca violência e terror. E é verdade que, como os libertinos, estabelece uma ligação necessária entre teologia e dominação política por engodo e logro. Todavia, essas semelhanças escondem diferenças profundas. Abelardo e Ockham separam duas esferas de saber; Espinosa demonstra que a separação entre filosofia e teologia não é uma separação entre dois tipos de saber, pois a teologia não é um saber, e sim um não-saber. Kant retira religião e teologia do campo especulativo, mas lhes dá funções práticas no campo da salvação e da esperança; Espinosa retira religião e teologia do campo especulativo, admite que qualquer religião (revelada ou não) é a busca imaginária de salvação, e afirma que a função prática da teologia não é a da religião, pois esta busca imaginariamente a salvação, enquanto aquela pretende conseguir a servidão humana. Diferentemente dos libertinos e dos ilustrados, não julga a religião uma forma arcaica ou primitiva do espírito humano, mas a relação necessária da imaginação humana com a contingência e com o medo que esta gera. E por fim, diferentemente de libertinos e ilustrados, que afastam a religião e a teologia como formas de engodo e logro, Espinosa busca a gênese de ambas e a maneira como constituem os alicerces ou os fundamentos de um determinado tipo de poder, o poder teológico-político. Sem destruir esses alicerces e fundamentos, julga Espinosa, toda crítica da religião e da teologia corre o risco de conservá-las sem que se perceba que estão sendo mantidas porque seus fundamentos não foram destruídos.
Para compreendermos o surgimento da religião e do poder teológico-político, é preciso remontar à sua causa primeira: a superstição. Assim, na abertura do Tratado teológico-político, Espinosa escreve:
Se os homens pudessem, em todas as circunstâncias, decidir pelo seguro, ou se a fortuna se lhes mostrasse sempre favorável, jamais seriam vítimas da superstição. Mas, como se encontram frequentemente perante tais dificuldades em que não sabem que decisão hão de tomar, e como os incertos benefícios da fortuna que desenfreadamente cobiçam os fazem oscilar, a maioria das vezes, entre a esperança e o medo, estão sempre prontos a acreditar seja no que for. […] Até julgam que Deus tem aversão pelos sábios e que seus decretos não estão inscritos em nossa mente, mas sim nas entranhas dos animais, ou que são os loucos, os insensatos, as aves, quem por instinto ou sopro divino os revela. A que ponto o medo ensandece os homens! O medo é a causa que origina e alimenta a superstição, […] os homens só se deixam dominar pela superstição enquanto têm medo […], finalmente, é quando os Estados se encontram em maiores dificuldades que os adivinhos detêm o maior poder sobre a plebe e são mais temidos pelos reis.[5]
O medo é a causa que origina e alimenta a superstição, e os homens só se deixam dominar pela superstição enquanto têm medo. Mas de onde vem o próprio medo?
Se os homens pudessem ter o domínio de todas as circunstâncias de suas vidas, diz Espinosa, não se sentiriam à mercê dos caprichos da fortuna, isto é, do acaso ou da sorte. Que é o acaso? A ordem comum da Natureza tecida com os encontros fortuitos entre as coisas, os homens e os acontecimentos. Os homens sentem-se à mercê da fortuna porque tomam essa ordem comum, imaginária, como se fosse a ordem necessária da realidade. De onde vem a ordem comum? Da maneira como interpretam a realidade conforme suas paixões, pois estas são a forma originária, natural e necessária de sua relação com o mundo. O desejo, demonstra Espinosa na Ética, é a própria essência dos seres humanos. Paixões e desejos são as marcas de nossa finitude, de nossas carências e de nossa dependência do que nos é exterior e que escapa de nosso poder. Por isso mesmo, a abertura do Tratado teológico-político propõe uma hipótese — se os homens tivessem poder e controle sobre todas as circunstâncias de suas vidas —, nega essa hipótese — os homens vivem agitados por desejos, medos e esperanças porque não controlam as circunstâncias de suas vidas —, e dessa negação vemos emergir a superstição.
Como não possuem o domínio das circunstâncias de suas vidas e são movidos pelo desejo de bens que não parecem depender deles próprios, os humanos são habitados naturalmente por duas paixões, o medo e a esperança. Têm medo que males lhes aconteçam e que bens não lhes aconteçam, assim como têm esperança de que bens lhes aconteçam e de que males não lhes aconteçam. Visto que esses bens e males, não parecendo depender deles próprios, lhes parecem depender inteiramente da fortuna ou do acaso, e como reconhecem que tais coisas são efêmeras, seu medo e sua esperança jamais acabam, pois, assim como coisas boas lhes vieram sem que se soubessem nem por quê, também podem desaparecer sem que saibam as razões desse desaparecimento; e, assim como coisas más lhes vieram sem que soubessem como nem por quê, também podem desaparecer sem que saibam os motivos de sua desaparição.
A gênese da superstição encontra-se, portanto, na experiência da contingência. A relação imponderável com um tempo cujo curso é ignorado, no qual o presente não parece vir em continuidade com o passado, e nada, nele, parece anunciar o futuro, gera simultaneamente a percepção do efêmero e do tempo descontínuo, o sentimento da incerteza e da imprevisibilidade de todas as coisas. Desejantes e inseguros, os homens experimentam medo e esperança. De seu medo nasce a superstição. Com efeito, a incerteza e a insegurança geram o desejo de superá-las encontrando signos de previsibilidade e levam à procura de sinais que permitam prever a chegada de bens e males; essa busca, por seu turno, gera a credulidade em signos; essa credulidade leva à busca de sistemas de signos indicativos, isto é, de presságios, e, por fim, a busca de presságios conduz à crença em poderes sobrenaturais que, inexplicavelmente, enviam bens e males aos homens. Dessa crença em poderes transcendentes misteriosos, nascerá a religião.
Assim, por medo de males e da perda de bens, e por esperança de bens e de sua conservação, ou seja, pelo sentimento da contingência do mundo e da impotência humana para dominar as circunstâncias de suas vidas, os homens se tornam supersticiosos, alimentam a superstição por meio da credulidade e criam a religião como crença em poderes transcendentes ao mundo, que o governam segundo decretos humanamente incompreensíveis. Porque ignoram as causas reais dos acontecimentos e das coisas, porque ignoram a ordem e a conexão necessárias de todas as coisas e as causas reais de seus sentimentos e de suas ações, imaginam que tudo depende de alguma vontade onipotente que cria e governa todas as coisas segundo desígnios inalcançáveis pela razão humana. Por isso abdicam da razão como capacidade para o conhecimento da realidade e esperam da religião não somente essa explicação, mas também que afaste o medo e aumente a esperança.
Mas Espinosa prossegue: se o medo é a causa da superstição, três conclusões se impõem. A primeira é que todos os homens estão naturalmente sujeitos a ela, e não, como afirmam os teólogos, porque teriam uma ideia confusa da divindade, pois, ao contrário, a superstição não é efeito e sim causa da ignorância a respeito da deidade. A sugestão é que ela deve ser extremamente variável e inconstante, uma vez que variam as circunstâncias em que se têm medo e esperança, variam as reações de cada indivíduo às mesmas circunstâncias e variam os conteúdos do que é temido e esperado. A terceira é que só pode ser mantida ou permanecer mais longamente se uma paixão mais forte a fizer subsistir, como o ódio, a cólera e a fraude. Facilmente os homens caem em todo tipo de superstição. Dificilmente persistem durante muito tempo numa só e na mesma. Ora, diz Espinosa, não há meio mais eficaz para dominar os homens do que mantê-los no medo e na esperança, mas também não há meio mais eficaz para que sejam sediciosos e inconstantes do que a mudança das causas de medo e esperança. Por conseguinte, os que ambicionam dominar os homens precisam estabilizar as causas, as formas e os conteúdos do medo e da esperança. Essa estabilização é feita por meio da religião:
Por isso é que estas [as massas] são facilmente levadas, sob a capa da religião, ora a adorar os reis como se fossem deuses, ora a execrá-los e a detestá-los como se fossem uma peste para todo o gênero humano. Foi, de resto, para prevenir esse perigo que houve sempre o cuidado de rodear a religião, fosse ela verdadeira ou falsa, de culto e aparato, de modo a que se revestisse da maior gravidade e fosse escrupulosamente observada por todos.[6]
Oficiantes dos cultos, senhores da moralidade dos crentes e dos governantes, intérpretes autorizados das revelações divinas, os sacerdotes buscam fixar as formas fugazes e os conteúdos incertos das imagens de bens e males e das paixões de medo e esperança. Essa fixação de formas e conteúdos será tanto mais eficaz quanto mais os crentes acreditarem que sua fonte é a vontade do próprio Deus revelada a alguns homens sob a forma de decretos, mandamentos e leis. Em outras palavras, a eficácia no controle da superstição aumenta se os conteúdos de medo e esperança surgirem como revelações da vontade e do poder de uma divindade transcendente. Isso significa que as religiões reveladas são mais potentes e mais estabilizadoras do que as outras. A potência religiosa torna-se ainda mais forte se os diferentes poderes que governam o mundo forem unificados num único poder onipotente — o monoteísmo é uma religião mais potente do que o politeísmo. A força da religião aumenta se os crentes estiverem convencidos de que o único deus verdadeiro é o seu e que ele os escolheu para enviar suas vontades. Em outras palavras, uma religião monoteísta é mais potente quando seus fiéis se consideram eleitos pelo deus verdadeiro, que lhes promete bens terrestres, vingança contra seus inimigos e salvação numa outra vida, que será eterna. E, por fim, a força dessa religião é ainda maior se seus crentes acreditarem que o deus se revela, isto é, fala aos fiéis, dizendo-lhes qual é sua vontade — a religião monoteísta da eleição de um povo e do deus revelado é a mais potente de todas.
Ora, a vontade divina revelada terá um poder muito mais forte se a revelação não for algo corriqueiro e ao alcance de todos, mas algo misterioso dirigido a alguns escolhidos — os profetas. Assim, o núcleo da religião monoteísta revelada é a profecia, pois dela provêm a unidade e a estabilidade que fixam de uma vez por todas os conteúdos do medo e da esperança. Essa fixação assume a forma de mandamentos ou leis divinas, que determinam tanto a liturgia, isto é, as cerimônias e os cultos, como os costumes, hábitos, formas de vida e de conduta dos fiéis. Numa palavra, a revelação determina as formas das relações dos homens com a divindade e dos homens entre si. Por outro lado, a profecia é também a revelação da vontade divina quanto ao governo dos homens: a divindade decreta as leis da vida social e política e determina quem deve ser o governante, escolhido pela própria divindade. Em suma, as religiões monoteístas reveladas ou proféticas fundam políticas teocráticas, nas quais o governante governa por vontade do deus. É isso que, no judaísmo e no cristianismo, aparece no texto de um livro sagrado, os Provérbios, no qual se lê: “Todo poder vem do Alto. Por mim reinam os reis e governam os príncipes”. É isso também que aparece no cristianismo com o chamado “princípio petríneo das Chaves do Reino”, ou o que se lê no Evangelho de Mateus: “Tu és pedra e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja. E as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Eu te darei as Chaves do Reino. O que ligares na terra será ligado no céu; o que desligares na terra será desligado no céu”.
Todavia, ainda que as profecias estejam consignadas em escritos sagrados invioláveis — as religiões monoteístas reveladas são as três religiões do Livro, judaísmo, cristianismo e islamismo —, o fato de que esses escritos sejam a fonte do poder teocrático os transforma em objeto permanente de disputa e guerra. Essa disputa e essa guerra se realizam em torno da interpretação do texto sagrado, seja em torno de quem tem o direito de interpretá-lo, seja em torno do próprio conteúdo interpretado. É na disputa e na guerra das interpretações que surge a figura do teólogo. Isso significa que a teologia não é um saber teórico ou especulativo sobre a essência de Deus, do mundo e do homem, e sim um poder para interpretar o poder do deus, consignado em textos.
A teologia é definida pela tradição judaica e cristã como ciência supranatural ou sobrenatural, pois sua fonte é a revelação divina consignada nas Sagradas Escrituras. Ora, Espinosa considera que a filosofia é o conhecimento da essência e da potência de Deus, isto é, o conhecimento racional da ideia do ser absolutamente infinito e de sua ação necessária. Em contrapartida, considera que o Livro Sagrado não oferece (nem é sua finalidade fazê-lo) um conhecimento racional especulativo da essência e potência do absoluto, e sim um conjunto muito simples de preceitos para a vida religiosa e moral, que podem ser reduzidos a dois: amar a Deus e ao próximo (os preceitos da justiça e da caridade). Não há na Bíblia conhecimentos especulativos ou filosóficos porque, afirma Espinosa, uma revelação é um conhecimento por meio de imagens e signos com que nossa imaginação cria uma imagem da divindade com a qual possa se relacionar pela fé. Eis por que não há que se procurar nas Sagradas Escrituras especulações filosóficas, mistérios filosóficos, exposições racionais sobre a essência e a potência de Deus, pois ali não estão: o Antigo Testamento é o documento histórico de um povo determinado e de seu Estado, hoje desaparecido, a teocracia hebraica; o Novo Testamento é o relato histórico da vinda de um salvador, de sua vida, de seus feitos, de sua morte e de suas promessas para quem o seguir.
Um vez que os escritos sagrados das religiões não se dirigem ao intelecto e ao conhecimento conceitual do absoluto, não há neles fundamento teórico para o aparecimento da teologia, entendida como interpretação racional ou especulativa de revelações divinas. Eis por que, aparentando dar fundamentos racionais às imagens com que os crentes concebem a divindade e as relações dela com eles, o teólogo invoca a razão para, “depois de garantir por razões certas” sua interpretação do que foi revelado, encontrar “razões para tornar incerta” a razão, combatendo-a e condenando-a. Os teólogos, explica Espinosa, cuidaram em descobrir como extorquir dos Livros Sagrados suas próprias ficções e arbitrariedades e por isso “nada fazem com menor escrúpulo e maior temeridade do que a interpretação das Escrituras”. Não só isso. Se nesse labor algo os aflige, não é o temor de atribuir ao Espírito Santo algum erro e de se afastar do caminho da salvação, mas sim que outros os apanhem em erro e, desse modo, tenham sua autoridade calcada pelos pés dos adversários e sejam alvo de escárnio. Porque, se os homens fossem sinceros quando falam das Escrituras, outra seria sua regra de vida: suas mentes não andariam agitadas com tanta discórdia, não se combateriam uns aos outros com tanto ódio, nem seriam arrastados por um tão cego e temerário desejo de interpretar as Escrituras e de inventar coisas novas na religião.[7]
Recorrendo à razão ou luz natural quando dela carece para impor o que interpreta e expulsando a razão quando esta lhe mostra a falsidade da interpretação, ou quando já obteve a aceitação de seu ponto de vista, a atitude teológica em face da razão desenha o lugar próprio da teologia: esta é um sistema de imagens com pretensão ao conceito com o escopo de obter, por um lado, o reconhecimento da autoridade do teólogo (e não da verdade intrínseca de sua interpretação) e, por outro, a submissão dos que o escutam, tanto maior se for conseguida por consentimento interior. O teólogo visa à obtenção do desejo de obedecer e de servir. Dessa maneira, torna-se clara a diferença entre filosofia e teologia. A filosofia é saber. A teologia, não-saber, uma prática de origem religiosa destinada a criar e conservar autoridades pelo incentivo ao desejo de obediência. Toda teologia é teologia política.
Inútil para a fé — pois esta se reduz a conteúdos muito simples e a poucos preceitos de justiça e caridade —, perigosa para a razão livre — que opera segundo sua necessidade interna autônoma —, danosa para a política — que trabalha os conflitos sociais em vista da paz, da segurança e da liberdade dos cidadãos —, a teologia não é apenas diferente da filosofia, mas a ela se opõe. Por isso, escreve Espinosa, “nenhum comércio e nenhum parentesco pode haver entre filosofia e teologia, pois seus fundamentos e seus objetivos são inteiramente diferentes”.
Como se observa, Espinosa não diz que a religião é um imaginário arcaico que a razão expulsa, nem diz que a superstição é um defeito mental que a ciência anula. Não se trata de excluir a religião nem de incluí-la na marcha da razão na história, e sim trata-se de examinar criticamente o principal efeito da religião monoteísta revelada, qual seja, a teologia política. Espinosa indaga como e por que há superstição, como e por que a religião domina os espíritos e quais são os fundamentos do poder teológico-político, pois, se tais fundamentos não forem destruídos, a política jamais conseguirá se realizar como ação propriamente humana em condições determinadas.
CONTIGÊNCIA, TEOLOGIA POLÍTICA E BARBÁRIE
Ao iniciarmos nosso percurso, enfatizamos que a contingência, a insegurança, a incerteza e a violência são as marcas da condição pós-moderna ou da barbárie neoliberal e do decisionismo da “razão de Estado”, e que são elas responsáveis pela despolitização (sob a hegemonia da ideologia da competência e do encolhimento do espaço público) e pelo ressurgimento dos fundamentalismos religiosos, não somente na esfera moral, mas também na esfera da ação política.
Se acompanharmos a exposição espinosana sobre a origem da superstição e da teologia política, podemos destacar alguns aspectos que nos auxiliam a retomar nossa análise inicial.
A experiência da contingência, gerando incerteza e insegurança, alimenta o medo, e este gera superstição; a finitude humana e a essência passional ou desejante dos humanos os colocam na dependência de forças externas que não dominam e que podem dominá-los; para conjurar a contingência e a finitude, assegurar a realização dos desejos, diminuir o caráter efêmero dos objetos desejados e estabilizar a instabilidade da existência, os humanos confiam em sistemas imaginários de ordenação do mundo: presságios, deuses, religiões e reis, isto é, confiam em forças e poderes transcendentes. Assim, para não ficar ao sabor das vicissitudes da fortuna, aceitam ficar à mercê de poderes cuja forma, conteúdo e ação lhes parecem portadores de segurança, desde que obedecidos diretamente ou desde que tenham seus representantes obedecidos. A religião racionaliza (em sentido psicanalítico) o medo e a esperança; a submissão ao poder político como poder de uma vontade soberana secreta, situada acima das vontades individuais dos governados, racionaliza o permitido e o proibido. Essa dupla racionalização é mais potente quando a religião é monoteísta, revelada e destinada a um povo que se julga eleito pelo deus. A potência dessa racionalização político-religiosa será ainda maior se alguns peritos ou especialistas reivindicarem a competência exclusiva e o poder para interpretar as revelações (portanto, as vontades divinas), decidindo quanto ao conteúdo do bem e do mal, do justo e do injusto, do verdadeiro e do falso, do permitido e do proibido, do possível e do impossível, além de decidir quanto a quem tem o direito ao poder político e quanto às formas legais da obediência civil.
Essa dominação é religiosa e política — é teologia política. Aquele que a exerce, como especialista competente, avoca para si o conhecimento das vontades divinas e domina os corpos e os espíritos dos fiéis, governantes e governados — é o teólogo político. O poder político, na medida em que provém de revelações divinas, é de tipo teocrático, isto é, o comando, em última instância, é do próprio deus, imaginado antropocentricamente e antropomorficamente como um super-homem, pessoa transcendente dotada de vontade onipotente, entendimento onisciente, com funções de legislador, monarca e juiz do universo.
Para Espinosa, tratava-se, de um lado, de compreender as necessidades a que a religião responde e, de outro, de demolir aquilo que provém dela como efeito político, isto é, a teologia política. Em termos espinosanos, demolir os fundamentos do poder teológico-político significa:
a) compreender a causa da superstição, isto é, o medo e a esperança produzidos pelo sentimento da contingência do mundo, das coisas e dos acontecimentos, e sua consequência necessária, isto é, a religião como resposta à incerteza e à insegurança, isto é, como crença numa vontade superior que governa os homens e todas as coisas;
b) compreender como surgem as religiões reveladas, para fixar formas e conteúdos da superstição, a fim de estabilizá-la e usá-la como instrumento de ordenação do mundo e de coesão social e política;
c) realizar a crítica da teologia sob três aspectos principais: 1. mostrando que é inútil para a fé, pois os Livros Sagrados não contêm verdades teóricas ou especulativas sobre Deus, o homem e o mundo, mas preceitos práticos muito simples — adorar a Deus e amar o próximo —, que podem ser compreendidos por todos. O Antigo Testamento é o documento histórico e político de um Estado particular determinado, o Estado hebraico fundado por Moisés, não podendo servir de modelo e regra para Estados não hebraicos. Por sua vez, o Novo Testamento é uma mensagem de salvação individual cujo conteúdo também é bastante simples, qual seja, Jesus é o Messias que redimiu os homens do pecado original e os conduzirá à glória da vida eterna, se amarem uns aos outros como Jesus os amou; 2. criticando a suposição de que há um saber especulativo e técnico possuído por especialistas em interpretação dos textos religiosos, mostrando que conhecer a Sagrada Escritura é conhecer a língua e a história dos hebreus, e, portanto, que a interpretação dos livros sagrados é uma questão de filologia e história e não de teologia; 3. mostrando que a particularidade histórico-política narrada pelo documento sagrado não permite que a política teocrática, que o anima, seja tomada como paradigma universal da política, pois é apenas a maneira como um povo determinado, em condições históricas determinadas, fundou ao mesmo tempo seu Estado e sua religião, sem que sua experiência possa ou deva ser generalizada para todos os homens em todos os tempos e lugares; por conseguinte, toda tentativa teológica de manter a teocracia como forma política ordenada por Deus é fraude e engodo;
d) examinar e demolir o fundamento do poder teológico-político, qual seja, a imagem antropomórfica de um deus imaginado como pessoa transcendente, dotado de vontade onipotente e intelecto onisciente, criador, legislador, monarca e juiz do universo. Na parte I de sua obra magna, a Ética, Espinosa oferece a explicação da gênese imaginária do antropomorfismo e do antropocentrismo religioso e teológico e, simultaneamente, realiza sua destruição, demonstrando que o ser absolutamente infinito, isto é, Deus, não é uma pessoa transcendente cujas vontades se manifestam na criação contingente de todas as coisas e na revelação religiosa, mas é a substância absolutamente infinita cuja essência e cuja potência são imanentes ao universo inteiro, o qual se ordena em conexões necessárias e determinadas, nele nada havendo de contingente. Em outras palavras, somente a compreensão da necessidade inscrita na potência e na essência do Absoluto pode fundamentar a crítica da transcendência do ser e do poder absolutos e da contingência de suas ações voluntárias, e somente essa crítica filosófico-política pode desmantelar os alicerces supostamente especulativos do poder teológico-político;
e) encontrar os fundamentos da política na condição humana ou nos “homens tais como realmente são” e não tais como os chefes religiosos, os sacerdotes e os teólogos gostariam que eles fossem; ou seja, a política não é uma ciência normativa que depende da religiosidade do homem, para o qual o deus teria enviado mandamentos e a definição do bem e do mal, com a qual se construiria a imagem do bom governante virtuoso, que recebe mandato divino para dirigir os demais. A política é atividade humana imanente ao social, que é instituído pelas paixões e ações dos homens em condições determinadas;
f) uma vez que a origem do poder político é imanente às ações dos homens e que o sujeito político soberano é a potência da massa (multitudinis potentia), e que esta decide agir em comum mas não pensar em comum, o poder teológico-político é duplamente violento: em primeiro lugar, porque pretende roubar dos homens a origem de suas ações sociais e políticas, colocando-as como cumprimento a mandamentos transcendentes de uma vontade divina incompreensível ou secreta, fundamento da “razão de Estado”; em segundo, porque as leis divinas reveladas, postas como leis políticas ou civis, impedem o exercício da liberdade, pois não regulam apenas usos e costumes, mas também a linguagem e o pensamento, procurando dominar não só os corpos, mas também os espíritos;
g) na medida em que o poder teológico-político instrumentaliza a crença religiosa para assegurar obediência e servidão voluntária, fazendo com que os homens julguem honroso derramar seu sangue e o dos outros para satisfazer à ambição de uns poucos, esse poder é exercício do terror. É barbárie.
Notas
[1] Josep Ramoneda. Depois da paixão política. São Paulo: Editora Senac, 2000, pp. 22-3.
[2] Walter Benjamin. “O conceito de história”. In: Walter Benjamin. Obras escolhidas. Magia e técnica. Arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 225.
[3] David Harvey. A condição pós-moderna. São Paulo, Loyola, 1992.
[4] Ibidem, p. 263.
[5] Espinosa. Tratactus theologico-politicus. Prefácio, ed. Gebhardt. Heidelberg: Carl Winters Verlag, 1925, t. III, p. 5; Tratado teológico-político. Trad. Diogo Pires Aurélio. Lisboa: Imprensa Nacional, p. 111.
[6] Ibidem.
[7] Ibidem, cap. VII, Gebahardt, t. III, p. 115; Pires Aurélio, p. 207.