Impasses da ética naturalista: Gide e o homoerotismo
Resumo
Ao defender o modo de vida homoerótico por meio de argumentos naturalistas, André Gide acabou contribuindo, mesmo que sem querer, para a ideologia da figura do homossexual. Enobrecendo o homoerotismo, impondo a volúpia à reprodução enquanto princípio básico da evolução natural e social, continuou preso às noções preconceituosas de normas e desvios naturais.
O direito à escolha do estilo erótico de vida, no sistema de Gide, continuou sendo custodiado por fatores externos à liberdade política.
Tentando naturalizar o “homossexualismo”, Gide fortaleceu o preconceito que define indivíduos homoeroticamente inclinados como uma espécie à parte de homens. O exemplo de Gide, apesar de restrito ao sexual, ilustra a tendência a fazer dos próprios valores e ideais, em qualquer esfera da prática social, norma natural para a condenação do diferente.
Começo por uma definição suficiente para meus propósitos. Por ética naturalista entendo toda ética que busca na natureza os fundamentos da vida moral. O naturalismo é uma variante do fundacionalismo ético, ou seja, do pensamento segundo o qual nossas convicções morais, para serem verdadeiras, devem partir de “proposições básicas, epistemicamente privilegiadas, que conferem justificação a todas as proposições empíricas, aceitas pelo sujeito moral”.[1] Mais simplesmente, para o fundacionalismo as decisões éticas podem ser fundadas ou demonstradas com base em argumentos racionais, independentes de crenças particulares e contingentes. No naturalismo, tais fundamentos encontram-se nos imperativos da vida biológica ou, de modo mais geral, na natureza. A boa vida, nessa concepção, é a resultante da adequação das regras éticas às leis naturais. O imoral ou amoral é o antinatural. Ética, portanto, sem desperdício ou possibilidade de equívoco.
A esse ponto de vista opõe-se um outro, que Larmore resume como se segue:
[…] jamais somos desprovidos de crenças. E nossas crenças não têm nenhuma necessidade de justificação. A questão da justificação só se apresenta quando temos uma razão positiva para acreditar que algumas delas são falsas. Mas, mesmo quando reexaminamos estas crenças, nossa avaliação crítica perfila-se sobre o fundo de outras crenças.[2]
Dito de outro modo, a justificação de nossas crenças não é uma questão de adequação de seus discursos ou enunciados à natureza das coisas; aos dados elementares do espírito ou da sensação; às regras lógicas da razão, ou às exigências internas da estrutura da linguagem: é uma questão de prática social ou contexto conversacional.[3]A essa ética, podemos chamar de historicista. A ética naturalista, então, visa descobrir o fundamento trans-histórico e universal capaz de justificar a necessidade das mesmas obrigações morais para todos os indivíduos. O desejo que a anima, para retomar a dicotomia proposta por Rorty,[4] é o desejo de objetividade. O historicismo ético, ao contrário, é animado pelo desejo da solidariedade. Abrindo mão da intenção fundacionalista, o historicismo entende que qualquer exame crítico de um corpo de crenças pressupõe a validade de outras crenças que fornecem o padrão de avaliação das ideias criticadas. Em vez de recorrer ao que transcende incondicionalmente a reflexão moral, reconhece seu pertencimento e sua solidariedade a uma dada comunidade e a uma dada tradição. Não pretende “descobrir” o “naturalmente dado” que deve obrigar todos os indivíduos a aceitar uma mesma moral, mas perceber o que os distingue uns dos outros e o que se pode fazer para ajudá-los a mais bem conviver com a pluralidade da condição humana. Ao objetivismo naturalista importa a fundação de si; ao historicismo, os diversos modos de afirmação de si.
É contra este pano de fundo que penso contrastar o esforço intelectual de Gide, na defesa da “condição homossexual”. Preciso, entretanto, que só usarei o termo homossexual citando o pensamento de Gide ou de autores que, como ele, acreditam na isenção valorativa e descritiva da palavra, o que não é o meu caso. Acho que a palavra homossexual está inevitavelmente comprometida com a ideologia médica que lhe deu origem e, por conseguinte, saturada de preconceitos. A meu ver, o chamado homossexualismo ou a homossexualidade é apenas um episódio na história das práticas homoeróticas, muito mais amplas, diversificadas e culturalmente avaliadas do que o termo oitocentista dá a entender. Por acreditar nisso, prefiro falar deliberadamente de homoerotismo, embora sem a pretensão de canonizar o termo, que pode ser trocado por qualquer outro, contanto que, na troca, não venha a perder o sentido.
Esta ressalva introduz a matéria do estudo. Ao contrário de um Freud, que, não obstante o uso de noções datadas, viu na multiplicidade das morais sexuais uma expressão da contingência do desejo ou de sua contrapartida egoica, o narcisismo das pequenas diferenças; à diferença, ainda, de um Foucault, que fragmentou o campo do sexo, mostrando a ilusão de sua pretensa homogeneidade,[5] Gide quis fazer do homoerotismo uma obrigação natural. Mais que isso, reduziu a multiplicidade homoerótica ao homossexualismo, dando-lhe uma essência nominal e uma realidade objetiva inexistentes antes da medicalização e da moralização burguesa do sexo, nos finais do século XIX e começos do século XX. Tomando como um dado esses construtos culturais, elaborou uma teoria que acreditava livre de preconceitos, porquanto ancorada na moral natural. Enganou-se, e seu engano, creio, mostra pelo menos duas coisas. Mostra, em primeiro lugar, o que de longa data é afirmado pela psicanálise: não existe outro objeto do desejo a não ser as metáforas do objeto desde sempre e para sempre perdido. Isto é, a coisa nada mais é que sua falta. Mostra, em segundo lugar, que no fundamento do ideal de tolerância, ou, o que dá no mesmo, do direito à diferença, nada pode ser achado além do desejo narcísico de reafirmação de uma tradição de ideais que se quer manter.
Gide, contudo, não pensava assim. Era um intelectual honesto, um artista virtuoso e, num certo sentido, radical. Por isso, sonhou em alcançar o umbigo do limbo e de lá trazer o código Ur da verdadeira moralidade sexual. Não conseguiu. No entanto, deixou-nos como recompensa um belo retrato moral e intelectual de sua época, o que por si merece respeito e admiração.
Um homem de seu tempo
André Gide nasceu na França em 1869. Data e lugar, aqui, não são indiferentes ao percurso do pensador. Nascer na França, em 1869, significava nascer no ano em que Karoly Benkert, médico húngaro, inventou a palavra homossexual. Esse neologismo macarrônico, como assinalou Boswell, veio posteriormente a condensar todo o imaginário ocidental e oitocentista tecido em torno do homoerotismo. Gide não escapou de sua teia como, aliás, a maioria de todos nós. Nascer na França, por outro lado, significava nascer sob a proteção do código napoleônico. Isto quer dizer não estar sujeito a punições pelo crime de homossexualismo, como os ingleses, sob a Emenda Labouchère, ou os alemães, sob o parágrafo 175 do código penal alemão. Por essa razão, Gide pôde escrever e publicar livremente o que pensava sobre o homoerotismo sem arriscar-se à cadeia ou a perseguições jurídico-policiais. Mas, por isso mesmo, deixou-se, talvez, envolver com mais facilidade na trama do mito da homossexualidade e de sua origem natural.
Na França, depois da revolução, a liberdade sexual deixou de ser vista como um problema de Estado. O código napoleônico ratificou a ideia de que o poder público nada tinha a ver com a vida privada do cidadão. No entanto, como seria de esperar, ser livre jurídico-politicamente não podia significar ir de encontro à ordem social burguesa. A retórica dos direitos individuais tinha limites. Uma coisa era a revolução, com suas palavras de ordem política e suas fantasias intelectuais; outra coisa era a burguesia, com seus interesses de raça, classe e suas aspirações imperialistas e nacionais. A liberdade política tinha de encontrar um freio, sob pena de minar a rede de poderes que mantinha de pé o edifício burguês. Descobriu-se, então, que a liberdade só era realmente livre quando obedecia à liberdade moral, cujo solo era a necessidade natural. Donde o relevo dado ao instinto e à evolução. As noções de instinto e evolução sexuais foram para as liberdades morais o que o progressismo e o transformismo foram para as liberdades sociais. Forneceram as justificativas para o controle dos sexos e corpos sem, aparentemente, ferir as leis das virtudes cívicas. Com o instinto e a evolução passou-se a saber, cientificamente, o que devia ser a normalidade moral, fronteira natural da liberdade política. A natureza não errava; simplesmente seguia sua tendência para a evolução. Portanto, o que fugisse a essa tendência era desvio, arcaísmo ou regressão.
Disso para as teorias da degenerescência ou das anomalias instintivas o passo foi tranquilo. O imoral era o anormal, e o anormal era um degenerado ou um anômalo. Anômalo que, logo em seguida, tornou-se o perverso, termo que, uma vez criado, veio adjetivar ou substantivar todo sujeito com inclinações homoeróticas. O que outrora era crime, agora era um misto de vício e doença; doença dos espíritos viciosos ou espírito vicioso de doentes mentais degenerados ou portadores de aberrações instintivas.
Gide herdou esse legado, que procurou reverter em favor de suas inclinações sexuais. Em 1911 começou a escrever Corydon, pequeno romance de tese, no qual pretendia criticar cientificamente os preconceitos contra o homoerotismo, provando que a pederastia era a forma mais adequada de a moral sexual inscrever‑se na natureza.[6] Por escrúpulo e receio de reprovação social o livro só foi publicamente editado em 1920. Nesse meio tempo, Gide amadureceu seus argumentos, que, diga-se de passagem, continuaram os mesmos, após a publicação do trabalho. Corydon, ao lado do Journal, é o único texto em que o homoerotismo é explicitamente defendido com base em doutrinas científicas. Do ponto de vista da forma, organiza-se como um diálogo em que o médico Corydon procura persuadir o adversário de que sua opinião é científica enquanto a dele, adversário, nasce do senso comum. No final compete ao leitor decidir a quem cabe a vitória argumentativa.
De início, Gide leva seu interlocutor imaginário a desconfiar da naturalidade de seu modo usual de pensar. O artifício usado para esse fim é o argumento de autoridade. Por intermédio de Pascal, Montaigne e La Rochefoucauld diz que tudo o que sabemos sobre o instinto sexual ou sobre a natureza do amor e do sexo é produto de nossos hábitos e costumes. Em função desses hábitos, aprendemos, no presente histórico, a desejar a heterossexualidade e a repudiar a homossexualidade:
Pense que, em nossa sociedade, em nossos costumes, tudo predestina um sexo ao outro; tudo ensina a heterossexualidade, tudo convida a ela, tudo a provoca: teatro, livros, jornais, exemplo dos mais velhos, jogos de salão, de rua. Se com tudo isto não nos tornamos amoureux, é que fomos mal educados, grita-se.[7]
Ora, esse hábito heterossexual, afirma Corydon, era uma contrafação do verdadeiro rumo da natureza. Contrafação que, entretanto, era facilmente desmontável, quando se analisava a fragilidade das ideias que a sustentavam. Por exemplo, a ideia de “instinto de reprodução”. Gide diz que a noção de instinto sexual como sinônimo de instinto de reprodução é uma falsa ideia. Não existe na natureza algo que “precipita irresistivelmente um sexo para o outro” ou que age como uma “força imperativa categórica”, à semelhança de um “mecanismo infalível”.[8]Todas essas noções são “ídolos” que os antiteístas puseram no lugar de Deus. O homem, quanto mais se eleva na escala animal, mais se afasta do determinismo instintivo. O que o orienta, em matéria de sexo, não é o instinto de reprodução, é a volúpia. “Não é a fecundação que o animal busca, é simplesmente a volúpia. Ele busca a volúpia e encontra, por acaso, a fecundação”.[9]
À primeira vista, a afirmação parece ter certa sonoridade psicanalítica. O princípio da volúpia poderia evocar o princípio do prazer, noção criada por Freud para emancipar o sexual da coerção instintiva. Mas o parentesco é superficial. A volúpia, como a usa Gide, estava mais próxima da volúpia positivista, termo empregado pela medicina psiquiátrica para explicar a fisiologia do amor. Enquanto, para Freud, o princípio do prazer era uma mera figuração da contingência e da indeterminação instintiva do desejo sexual, para Gide, a volúpia era o que fazia do homoerotismo uma meta previsível da natureza. Dito de outra forma, era a condição sine qua non do homoerotismo natural. A tese era a seguinte: Corydon, recorrendo a Lester Ward, “economista-biologista” americano e criador da “teoria ginecocêntrica”, dizia que, “nas ordens inferiores, o excesso de machos em relação às fêmeas era um fato natural”.[10]. Isto é, o macho era um luxo biológico. Poucos machos bastavam para o trabalho da reprodução. Essa mesma opinião era defendida por Perrier, um discípulo de Bergson, para quem o “sexo feminino era o sexo da previdência fisiológica” enquanto o masculino era o do “dispêndio luxuoso mas improdutivo”.[11] Além do mais, a prodigalidade do macho manifestava-se não só no número mas também na disponibilidade para a volúpia. Conclusão, o grande problema da natureza não era o que fazer para manter-se ou perpetuar-se — problema da reprodução —, mas como lidar com o excesso de machos e de sua disposição para o coito — problema da volúpia.
Tendo em conta os postulados evolucionistas constantemente afirmados no estudo, a saída plausível seria o controle discriminado da população dos machos. Mas isso não resolvia o dilema moral de Gide. A boa solução seria aquela que impusesse logicamente a necessidade das práticas homoeróticas. Sendo assim, não houve outra saída. O corolário da “teoria ginecocêntrica” era o de que na maioria das espécies, inclusive na espécie humana, os machos eram mais bonitos e, portanto, sentiam-se mais atraídos uns pelos outros que pelas fêmeas. Desse modo, as fêmeas, vendo-se livres da volúpia, podiam dedicar-se com tranquilidade à criação dos filhotes. Precavido, Corydon adverte o interlocutor de que ele se engana, vendo aí a defesa do uranismo por um uranista. A supremacia da beleza masculina havia sido constatada por cientistas e pensadores que, em absoluto, não eram homossexuais.
Goethe, por exemplo, dizia que a existência da “aberração” homoerótica devia-se ao fato de que, do “ponto de vista da regra puramente estética, o corpo do homem era muito mais bonito, muito mais perfeito e muito mais bem-acabado que o corpo da mulher”.[12] Stevenson, um naturalista, notara que, entre os polinésios, “a beleza dos jovens ultrapassa de muito a das mulheres”.[13] Por último, Darwin, quando no Taiti, escreveu: “Confesso que as mulheres me decepcionaram um pouco. Elas estão longe de serem tão belas quanto os homens”.[14]
Assentada a base natural, o raciocínio invertia-se. Agora era a cultura, no que tinha de melhor, que vinha demonstrar a cientificidade da especulação naturalista. A Grécia, mostrava Gide, realizara plenamente a intenção da natureza. Plutarco, por exemplo, séculos antes dele, já tinha observado que as mulheres, para se fazerem atraentes, precisavam de unguentos, pinturas, filtros e enfeites, enquanto os homens eram naturalmente belos. De outro ângulo, era visível que a grandeza da mulher na tragédia e na epopeia só existiu graças à pederastia. Sem a pederastia a mulher teria sido exposta ao adultério ou chamada à prostituição, pela volúpia do macho. A pederastia preservou o status de mãe-esposa da mulher grega, fazendo com que o excesso da volúpia masculina fosse despendido entre os homens. Diretamente, pelas relações sexuais, ou indiretamente, pelos jogos, competições, guerras e demais atividades exclusivas de sociedade de homens. Desprezando todo o contexto da erótica grega, em especial a questão dos amores masculinos, Gide lutava para enobrecer o homoerotismo, impondo a volúpia à reprodução, enquanto princípio básico da evolução natural e social. Não percebeu que, virando pelo avesso o naturalismo, continuava preso às noções preconceituosas de norma e desvio naturais. Insistindo em buscar fora da história a caução moral para suas preferências sexuais, concedeu ao inimigo o que pensou subtrair-lhe. O direito à escolha do estilo erótico de vida, no sistema de Gide, continuou sendo custodiado por fatores externos à liberdade política. A tolerância não era reclamada em nome dos direitos individuais, era uma concessão benfazeja das leis naturais. Sem suspeitar, o artista punha sua arte contra a vida, quando talvez bastasse pensar na vida como uma obra de arte, para liberá-la do tacão da necessidade.
A ética gidiana: entre o ser e o tornar-se
Para nossa sensibilidade atual Corydon envelheceu. Mas, se os argumentos de Gide, hoje, parecem-nos desusados, cômicos ou pueris, na época estavam amparados por um formidável dispositivo racional. A Gide não faltaram nem conhecimento, nem erudição, nem capacidade para refletir sobre os próprios limites da razão científica. Em certas páginas, Corydon parece fazer eco às modernas ideias de Kuhn, sobre a presença de paradigmas na orientação da produção científica. Assim, vemos Gide negar a unidade metodológica da ciência ou descrever a prática cotidiana do cientista como se segue:
O grande homem de ciência é tão raro quanto qualquer outro homem de gênio. Os meio sábios são numerosos o bastante para aceitar uma teoria de tradição, que os guia ou desencaminha, e para tudo “observar” segundo ela. Tudo, durante muito tempo, confirmou o horror que a Natureza tinha do vazio; sim, todas as observações. Tudo, durante muito tempo, confirmou a existência de duas eletricidades diferentes e que eram atraídas por uma espécie de instinto quase sexual. Tudo, no presente, confirma ainda esta teoria do instinto sexual.[15]
Outras passagens curiosamente se aproximam das atuais posições neopragmáticas, no que diz respeito ao valor e à função das teorias científicas. Corydon diz em um trecho:
É preciso reconhecer, de início, que é muito difícil supor que uma observação possa ser efeito do acaso, e que caia num cérebro como uma resposta fortuita a uma questão que o cérebro não teria formulado […] As respostas que a Natureza gritou ou murmurou-me, peço que se as verifiquem. Só quero reter uma coisa: tendo interrogado a natureza com uma preocupação diferente ela me respondeu de maneira diferente.[16]
Ou ainda:
Quero dizer que a importância de um novo sistema proposto, de uma nova explicação de certos fenômenos não se mede de modo algum unicamente por sua exatidão mas também e sobretudo pelo élan que ela fornece ao espírito por novas descobertas, novas constatações (mesmo que estas neguem a dita teoria), novas rotas que ela abre, pelos impedimentos que ela levanta, as armas que ela fornece.[17]
Como, diante disso, compreender a ingenuidade do cientificismo de Gide? Penso que três ordens de motivos influenciaram sua pretensão em derivar normas morais de leis naturais. A primeira, mais evidente, radica-se no clima cultural da época. Gide viveu num tempo mergulhado na esperança positivista em uma humanidade livre por obra da ciência. Nesse sentido, era um espírito crédulo. Ainda em 1930, lendo Moby Dick, comentava:
Melville fala dos cachalotes fêmeas presididos por um único macho… e quanto aos machos excluídos, e que não terão acesso ao gineceu, que farão eles? O que se tornarão? Esta questão, tão simples, é possível que eu seja o primeiro a colocá-la? É possível que eu seja o único? É possível que só se responda a ela por meio de risos; ou não se responda absolutamente.[18]
Sua confiança na natureza ou numa explicação natural do direito social ao homoerotismo jamais arrefeceu. Embora sabendo que a natureza dá respostas diversas às questões diversas, continuava desejando tê-la como aliada, na luta contra o preconceito. No fundo, respeitava o que a maioria pensava. Basta, para tanto, comparar Corydon com a rebeldia de Vautrin, anti-herói de Balzac. Livre da hegemonia ideológica do instintivismo e do evolucionismo, Balzac, algumas décadas antes, fizera de Vautrin o protótipo do rebelde romântico. Em sua paixão por Rastignac, Calvi e sobretudo por Lucien de Rubempré, Vautrin ridicularizava a comédia burguesa, sem prestar contas a nenhum dos seus totens. Queria o máximo de liberdade e autenticidade e, para isso, dispensava o auxílio de qualquer força natural ou convenção social.
Gide, não. Desejava a todo custo ingressar na sociedade dos outros, dos que supunha conforme à lei. E, não podendo, quis transformar essa sociedade fazendo sua revolução naturalista-antropológica. Assim, Corydon diz: “o outlaw que sou pode aceitar ser posto no índex, abominado pelas leis humanas, pelos costumes de seu tempo e de seu país; mas nunca de viver à margem da natureza”.[19] Bem dito, mas meia verdade. Pois a única natureza que lhe interessava era a natureza que lhe permitisse ser aceito e não abominado pelas leis humanas. Natureza que, aliás, forneceu o jargão legitimador da prática social excludente que o vitimava e infelicitava. Persistindo em cultuá-la e em fazê-la responsável pela superioridade cultural da vida homoerótica, Gide, à revelia de suas intenções, ajudou a consolidar o mito de que o “homossexual” é um tipo natural e como tal possui um “perfil psicológico” singular e intransferível.
A segunda ordem, creio eu, vem de seu ideal estético. Gide propôs-se, enquanto escritor, a seguir a regra da máxima objetividade e precisão. Detestava a desmedida e o preciosismo, fosse de sentimentos ou palavras. Certa vez indignou-se quando um crítico disse que seus escritos eram “pleins de Parmes et clair de lunes”. Em outra ocasião, respondeu à acusação de “coqueteria no arranjo das frases” dizendo:
Nada é mais falso. Eu só amo o estrito e o nu. Quando comecei a escrever as Nourritures, compreendi que o assunto mesmo de meu livro era banir dele toda metáfora. Não existe um único movimento de minha frase que não responda a uma necessidade de meu espírito; o mais frequentemente é apenas uma necessidade de ordem.[20]
Quando dialogava consigo, podia admitir que “o determinismo ao qual nosso espírito e nosso corpo parecem não poder escapar responde a causas tão diversas, tão múltiplas e tão tênues que parece infantil procurar desmembrá-las e, mais ainda, reduzi‑las”.[21] Porém, quando escrevia, negava-se a aceitar o caos, a improbabilidade e a imprecisão. Dizia que “não existe pior inimigo do pensamento que o demônio da analogia”; ou, então, perguntava: “o que pode existir de mais cansativo que a mania de certos literatos que não podem ver um objeto sem pensar, logo em seguida, em um outro?”.[22] Seu ideal pode ser resumido na seguinte frase: “Todos os nossos escritores de hoje, falo dos melhores, são preciosos. Espero adquirir cada vez mais pobreza. No desnudamento, a salvação”.[23]
Essa estética do despojamento sintonizava-se seguramente com o espírito do burguês protestante. Como quer que seja, parece ter invadido sua ética sexual, tornando-se parâmetro para justificação de seus desejos homoeróticos. Nada mais objetivo e nu que uma ética sexual natural. Nela, nada de metáforas ou indecisões; ambivalências ou deslizamentos. Dela deveriam desaparecer toda a volubilidade dos desejos humanos e toda a arbitrariedade das práticas socioculturais. Na natureza, o que não pode ser, não é; o que deve ser, é. Um homoerotismo natural seria aquele em que o sentimento e a descrição do sentimento, o desejo e sua expressão coincidiriam com a essência da coisa, sem restos ou ambiguidade. Talvez, por isso, Freud o incomodasse tanto e fosse por ele chamado de “imbecil de gênio”.[24] Diante da ética‑estética do nu, o mundo alucinado dos fantasmas, dos desejos ou das imagens plurais do sujeito parecia a Gide desordenado, supérfluo e precioso. Seu propósito era ultrapassar a metáfora e alcançar o sexual antes de a linguagem inventá-lo. Freud, em oposição, só entendia o sexo mediado por metáforas.
Enfim, a terceira ordem de motivos deve-se, a nosso ver, à tradição religiosa de Gide. A consciência cristã protestante e o forte apego à moralidade materna de sua infância nunca o deixaram verdadeiramente em paz com suas inclinações homoeróticas.
Em 1911, no seu Journal, dizia temer que alguns vissem em Corydon apenas a marca de uma obsessão doentia ou de uma impossibilidade de afastar o espírito de um assunto perturbador.[25] Pelo contrário, afirmava ele, “a dificuldade vem precisamente de que devo reatualizar artificialmente um problema ao qual, de minha parte, dei uma solução prática. De modo que, para dizer a verdade, ele não me atormenta mais”.[26] A verdade, no entanto, é que, ainda em 1916, Gide debatia-se com o problema que acreditava, em 1911, ter solucionado praticamente. Naquele momento, escrevia: “Senhor, Vós o sabeis, eu renuncio a ter razão contra quem quer que seja. Ah! Senhor, desatai os elos que me retêm. Libertai-me do peso apavorante deste corpo. Ah! que eu viva um pouco; que eu respire! Arrancai-me do mal. Não me deixeis sufocar”.[27] Perseguido pela consciência do mal e do pecado, jamais pôde suportar a imagem de transgressão associada ao homoerotismo. Não por acaso, suas primeiras experiências homoeróticas só vieram a ocorrer na África do Norte, como sabemos por meio de Se o grão não morre e de O imoralista.[28] Entre as dunas e oásis da Tunísia ele parece ter conseguido fugir da atmosfera caseira de sua França religiosa. Em meio ao calor, a peles escuras, danças do ventre e absinto pôde entregar-se à paixão homoerótica, sem recear o dedo de Deus que, ali, parecia repousar de sua eterna vigilância. Mas, de volta à Europa, novamente as dúvidas, o remorso e a autopunição.
A descoberta da natureza foi uma solução de compromisso; uma trégua no conflito. Se o homoerotismo era um fato natural, o respeito à lei de Deus estava garantido, já que, para Gide, a natureza nunca foi, de fato, dessacralizada. Ela era apenas uma manifestação da grandeza de Deus. Em 1921, falando a propósito da evolução, dizia: “Compreendo que Deus é o ponto culminante e não o ponto de partida de toda a Criação. O que em nada impediria, aliás, a Criação inteira de ser sua obra. Mas Ele só se realiza depois de nós. Toda evolução deve culminar em Deus”.[29] E, porque a natureza deveria cumprir os desígnios divinos, Gide tinha de localizar-se nela de modo a não contrariar suas sagradas finalidades. Mesmo sendo responsável pela presença do homoerotismo entre os homens, a natureza, refletindo a sabedoria de Deus, sabia separar o joio do trigo. Buscando aplacar a consciência da infração, Gide quis ver a marca do perdão mesmo quando entregue à volúpia. Os homossexuais, segundo ele, não eram todos iguais. Existiam aqueles conforme à natureza e aqueles contra a natureza. Entre 1918 e 1919, Gide escreve:
Chamo pederasta aquele que, como a palavra indica, sente-se atraído por jovens. Chamo sodomita […] aquele cujo desejo dirige-se a homens feitos. Chamo invertido aquele que, na comédia do amor, assume o papel de mulher e deseja ser possuído. Estas três espécies de homossexuais não são de forma alguma claramente diferenciadas; existem deslizamentos possíveis de uma à outra; mas, com frequência, a diferença entre eles é tal que experimentam, uns pelos outros, uma profunda repulsa, repulsa acompanhada por uma reprovação que em nada fica a dever àquela que os heterossexuais sentem pelos três. Os pederastas, entre os quais me incluo (por que não posso dizer isto simplesmente, sem que logo vocês pretendam ver em minha confissão fanfarronada), são muito mais raros e os sodomitas muito mais numerosos do que de início pude crer […] Quanto aos invertidos, que frequentei muito pouco, sempre me pareceu que eles apenas mereciam a reprovação de deformação moral e intelectual e cair sob os ataques […] comumente dirigidos a todos os homossexuais.[30]
Essa opinião havia sido, com nuances, emitida por Corydon:
[…] a homossexualidade, assim como a heterossexualidade, tem seus degenerados, seus viciosos e seus doentes; como médico pude isolar, junto com outros confrades, muitos casos tristes, desoladores e duvidosos; pouparei, deles, meus leitores: uma vez mais, meu livro tratará do uranismo bien portant, ou, como você dizia há pouco, da pederastia normal.[31]
A pederastia normal, ou seja, a preferência homoerótica de Gide, era responsável pela cultura da gloriosa Grécia ou pelo apogeu da beleza masculina na escultura renascentista. Já os outros, os “invertidos”, eram degenerados, maníacos ou doentes.[32] Pouco importa que Gide temperasse a acusação feita a eles, afirmando que eram um fruto da oposição entre costumes sociais e apetites naturais. O importante é que sua “pederastia normal” brotava da natureza como a água da fonte, enquanto o homoerotismo alheio era uma aberração natural e social.
É verdade; entre os médicos, psiquiatras e sexologistas do século XIX, essa mesma hierarquia do estigma, no domínio das práticas homoeróticas, foi moeda corrente. Mas em Gide era signo de sua vontade de transfigurar o mal e o vício, mesmo à custa da fabricação de uma outra categoria de malditos. A benevolência divina tinha um preço, a danação do diferente. A natureza por ele inventada previa o lugar do puro e do pecador. Em outros termos, de um lado esta natureza falava a língua da economia, da biologia, da história e da antropologia; de outro, em contraponto, repetia o decálogo e os sete pecados capitais. O burguês cultivado, liberal e vítima do preconceito defendia o princípio da volúpia; a criança protestante, frágil e amedrontada buscava um remédio leigo para a alma atormentada.
Qual dos dois era o verdadeiro Gide? Deixemos de lado o jargão da autenticidade. Depois de Freud, sabemos que somos apenas um feixe de crenças e desejos. E, para evitar a acusação de advogar em causa própria, ou em defesa da corporação de praticantes da disciplina que exerço, repito com Genet: “Somos todos vítimas de posters”. O Gide conformista, delegado das ideologias do século xix, pretendia objetivar a natureza do erotismo humano, recorrendo à posse autoatribuída do conhecimento das leis da natureza. Como muitos espíritos atuais, temia aceitar a mortalidade dos vocabulários que, em cada época, apresentam-se como o fim das interrogações e da conversação da humanidade. Esse Gide, como tantos outros, antes e agora, queria exorcizar o fantasma da futilidade das instituições humanas. Queria encontrar um critério a-histórico que, revelado à razão pela intuição, permitisse aos homens afirmar in petto o que Rorty denunciou alto e bom som: mesmo que os persas tivessem exterminado os gregos; mesmo que os romanos tivessem eliminado o cristianismo; mesmo que a Restauração tivesse apagado os traços da revolução; mesmo que a Inglaterra tivesse esmagado a Revolução Americana; mesmo que Freud tivesse morrido em lugar de Fleischel; mesmo que Galileu tivesse sido queimado pela Inquisição; mesmo que Newton e Marx tivessem morrido prematuramente, ainda assim, um dia os homens futuros descobririam os valores e crenças da cultura ocidental, e construiriam um mundo à nossa imagem e semelhança.[33]
Esse medo narcísico de que nossa comunidade não tenha, a exemplo dos crentes, o direito à ressurreição, faz-nos temer a morte e acreditar que tudo aquilo que respeitamos e queremos conservar só é respeitável e desejável porque assim está escrito nas estrelas ou no coração de cada um. Esse medo, que Freud tão bem diagnosticou em “O futuro de uma ilusão”, “O mal-estar da cultura”, “Moisés e a religião monoteísta” etc., diz-nos que Deus ou a natureza falham mas não tardam. Portanto, se no princípio não era a “reprodução”, então era a volúpia; e, se não for a volúpia, então serão os códigos genéticos; as leis da economia; os invariantes psíquicos; as estruturas de parentesco e da linguagem; as permutações simbólicas; a afirmação da vida ou os padrões funcionais e disfuncionais de comportamentos adquiridos. A verdade fala por si e, querendo ou não os homens, sempre encontra seus verdadeiros intérpretes, apesar da estupidez dos que tentam emudecê-la.
O outro Gide, pelo contrário, falava do oratório que existe ao lado de todo laboratório, como, jocosamente, rimou Lenoble. Sem aceitar que pudesse ser pecado o que sentia, resolveu o impasse pelo caminho mais curto. Recriou uma filiação em que o que era pecado tornou-se graça. Assim como Proust criou o mito da raça de Sodoma, plena em sua origem, e, agora, votada à produção do belo e sublime, no caminho de volta à perfeição perdida, Gide também criou sua Idade de Ouro. No começo era a Grécia. Ali, os machos amavam uns aos outros; o casamento era santificado; a esposa-mãe idealizada e a infância, protegida. Os homens, todos viris, cultivavam o gosto pela cidadania, pela honra, pela bravura, pela coragem, pelo companheirismo e pela abnegação ascética. Desejo de Deus, ordem natural e mandamentos éticos eram indistintos. Depois veio a queda, o império do mal, e com eles a primazia do heterossexual. Contrariando a harmonia das coisas, inventou-se o “instinto de reprodução”, bisonho álibi da decadência moral. Mesmo assim, algo do Éden resistiu à desgraça. Por exemplo, dizia Gide, o código napoleônico e os costumes sexuais dos militares alemães. Segundo Corydon, se o código napoleônico evitava punir a pederastia, era porque Napoleão, sabiamente, quis proteger seus generais da infância e seus exércitos da derrota. E feliz era o país que, como a Alemanha, cultivava a pederastia em suas fileiras armadas. Um exército de amantes é imbatível. A sabedoria clássica intuíra isso, ou melhor, descobrira isso. Se assim não fosse, como explicar o sucesso de Esparta? E o que fazer dos exemplos de Agesilau, Epaminondas e, por fim, do exemplo mais que exemplo de Aquiles e Pétrocles? O Paraíso era homoerótico; quem duvidasse que olhasse o exemplo dos homens de Atenas, da vida animal ou dos militares franceses e alemães.
Essa imagem da decadência dos tempos modernos foi a mesma usada por Morel, psiquiatra francês, criador da teoria da degenerescência. Para explicar a degeneração sexual, Morel, com seu catolicismo conservador, também serviu-se da ideia de um Paraíso perdido, cujas sobras eram as aberrações mentais e sexuais que o século XIX presenciava. Gide, é claro, não reproduzia as teses de Morel, que não conhecia, ao que tudo indica. Reproduzia, isto sim, a ideologia que o manteve atado ao que Baldwin chamou “a prisão do macho”. À semelhança de Ulrichs, criador da imagem do uranista como “uma alma de mulher num corpo de homem”, Gide procurava convencer-se e convencer aos outros de que a verdadeira alma masculina era a alma do pederasta. Não pôde se dar conta do contrassenso ideológico implícito nessa ideia. O código moral que o discriminava definia a subjetividade masculina burguesa, entre outras coisas, como aquela que se opunha à forma abortada da masculinidade que era o homossexual. Querendo afirmar a masculinidade da pederastia, não só remava contra a maré, como engrossava a rasteira propaganda nacionalista e chauvinista que, na Europa, em especial na França, buscava desmoralizar o agressivo e belicoso Exército prussiano, pintando-o como covil de homossexuais. Pior que isso, comprando essa grosseira ideia feita, desconhecia que a suposta difusão do homoerotismo no Exército era um clichê manipulado pelo conservadorismo alemão, com vistas à defesa das instituições germânicas contra a “praga homossexual” que infestava a sociedade. Inadvertidamente, por submissão à ideologia da masculinidade, alinhava-se ao que de pior havia em matéria de repressão aos direitos individuais, e que redundou, tempos depois, na presença dos triângulos rosa, nos campos de concentração.
Porém, ao lado do Gide cientificista e do Gide protestante, havia o Gide artista. Este sim, podemos dizer, sabia sem saber ou sabia e não acreditou saber. Quando na maturidade, aos 58 anos, escreveu: “Je ne suis jamais, je deviens. Je deviens celui que je crois ou que vous croyez que je suis”, Gide superou seu tempo. Não nascemos e morremos sendo; todos, no curso da vida, nos tornamos. Tornamo-nos aquilo que as circunstâncias nos permitem ou aquilo que inventamos para modificar as circunstâncias. Porém, tanto as circunstâncias quanto o que as altera não são leis ou descobertas de leis que decretam o que a natureza humana verdadeiramente é sub specie aeternitatis. São coisas ou estado de coisas, eventos ou interpretações de eventos criados pelos homens, na interação com o mundo. Tudo isso, concordo, num certo sentido é trivial. Mas, sempre que esquecemos essa banalidade, passamos a querer que nossas convicções ou as crenças que aprovamos tornem-se uma obrigação de todos, inclusive daqueles que não pensam, não sentem e não vivem como nós.
Com este último Gide e não obstante ele próprio, entendo que não existe tal coisa como uma “identidade homossexual”, uma “essência natural do homossexualismo” ou uma “estrutura da homossexualidade”, se com essas expressões pensamos designar uma realidade objetiva que preexista às descrições e crenças contingentes que temos do assunto. Não penso, porém, substituir essas concepções por outra que diga qual a única ética sexual a ela adequada, porque dela decorrente. Esse foi o equívoco de Gide. Penso apenas em propor que: se descrevermos o homoerotismo como uma possibilidade a mais que têm os indivíduos de se realizarem afetiva e sexualmente; se descrevermos as práticas homoeróticas como um campo polimorfo e múltiplo, cujo enquadramento numa classe ou família natural deve-se apenas ao modo como catalogamos e valorizamos as condutas sexuais entre nós; se, enfim, desistirmos de ver o “homossexual” como uma realidade natural ou psíquica que antecede as formas de vida e os jogos de linguagem que o produziram, pois bem, se procedermos dessa maneira, poderemos mais facilmente continuar respeitando e cultivando outras crenças igualmente importantes para nossas vidas. Continuaremos cultivando, por exemplo, a crença de que o direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade são direitos inalienáveis de todos os indivíduos; continuaremos cultivando a crença de que, se a vida e a liberdade são um problema de todos e por todos deve ser discutido e resolvido, a busca da felicidade é problema de cada um; finalmente, continuaremos cultivando a crença de que a busca da felicidade não precisa justificar-se, exceto quando esbarra na dor e na humilhação do outro.
Uma vez mais, entretanto, proponho que acreditar nisso tudo não é o mesmo que afirmar que todos os sujeitos, em todos os mundos logicamente possíveis, levarão a sério tais ideais éticos. Mais importante que tentar saber se os androides da galáxia xpto serão obrigados por uma necessidade lógica ou estrutural a descobrir a verdade daquilo em que acreditamos, mais importante, penso, é estarmos dispostos a discutir suas ideias e, eventualmente, a aceitá-las se parecerem melhores que as nossas. Por enquanto, se mantemos nossas crenças e ideais, não é por achá-los fundados em princípios da razão cogente, mas porque, até o momento, nenhum outro candidato ou competidor apresentou credenciais suficientes para ocupar seu posto. Por tentar inventar uma verdade moral que fosse algo mais que as crenças que nos são úteis e que não exigem, no atual estado de conversação, razões suplementares para serem admitidas, Gide tropeçou na própria pretensão. Quanto mais tentava naturalizar o “homossexualismo”, mais reforçava o preconceito que define os indivíduos homoeroticamente inclinados como uma espécie à parte de homens ou sub-homens. Seu exemplo, apesar de restrito ao sexual, pode ilustrar a tendência que temos a fazer dos nossos valores e ideais, em qualquer esfera da prática social, norma natural para a condenação do diferente.
Enfim, para concluir, não pretendo justificar o que penso, postulando a ideia de uma cultura sem interditos, cuja regra fosse tudo permitir. Essa ficção não é só inconcebível; é falaciosa. Falaciosa porque formulada justamente para exigir critérios a-históricos que definam o bem e o mal. A hipótese de uma cultura permissiva, tal como podemos imaginá-la atualmente, carrega com ela a ameaça do horror. Ora, uma cultura tolerante não é aquela que tudo permite. Esta seria, no melhor dos casos, uma cultura impossível, como disse Philip Rieff; no pior dos casos, uma cultura do cinismo e da indiferença, sala de entrada da monstruosidade. Tolerante é a cultura que não aceita viver sem ideais, mas aceita de bom agrado rediscuti-los, em função de ganhos e vantagens práticas. Ganhos e vantagens estes que só fazem sentido quando apreciados do prisma do vocabulário que criou a própria ideia de tolerância, ou seja, do vocabulário da tradição democrática. Só com base nesse vocabulário é possível falar-se de uma ética da tolerância, e, portanto, a circularidade da justificação não é, aqui, ocultada, é exposta e assumida. Ser tolerante, a meu ver, não é agir, pensar e falar conforme ordena a essência da tolerância, ou a essência da ideia de tolerância ou do conceito de tolerância. É agir, pensar e falar de modo a evitar os exemplos de intolerância que conhecemos; intolerância racial, sexual, étnica, estética, religiosa, política, social etc. Assim, creio eu, aprendemos a reconhecer o que é tolerância e intolerância, e não lançando mão de critérios ou regras de correspondência que permitam, em qualquer tempo e lugar, aplicar corretamente tais conceitos, independentemente do uso que se faz deles.
Ser tolerante com respeito ao homoerotismo, como de resto com qualquer uma das chamadas minorias, não significa afirmar que toda conduta humana é tolerável e pode aspirar ao direito de cidade. Esse raciocínio é típico do terrorismo-conservador que, explícita ou sibilinamente, deixa entender que, se dizemos sim às práticas homoeróticas, por que dizer não, por exemplo, à violência sexual contra os mais fracos? Isso é falso porque parte da premissa de que não temos ideais. A prática homoerótica entre iguais que consentem em participar da experiência não é lesiva a nenhum de nossos credos e ideais; o abuso de força, ao contrário, anula automaticamente ou o direito à vida ou à liberdade ou à busca da felicidade de quem a ele é submetido. Isso não é bastante? Pois bem, aceito discutir algo melhor. Até lá, repito com Freud: a quem renunciou encontrar o ponto onde as trevas se separam da luz, resta apenas tentar aclarar as pequenas e vizinhas obscuridades.
Notas
[1] T. Triplett, “Rorty’s critique of foundationalisme”. In Philosophical Studies 52 (1987), p. 115.
[2] Charles Larmore, “Les limites de la réflexion en éthique”. In Lectures philosophiques — Éthique et philosophie politique. Ed. François Recanati. Paris, Édition Odile Jacob, 1988, p. 209.
[3] T. Triplett, op. cit., p. 115.
[4] Richard Rorty, “Solidarité ou objectivité”. In Critique 439 (dez. 1983), pp. 923-40.
[5] Michel Foucault, História da sexualidade II — O uso dos prazeres. Rio de Janeiro, Graal, 1984.
[6] André Gide, Corydon. Paris, Gallimard, 1987.
[7] Idem, ibidem, p. 41.
[8] Idem, ibidem, pp. 40-5.
[9] Idem, ibidem, p. 48.
[10] Idem, ibidem, p. 53.
[11] Idem, ibidem, pp. 58-9.
[12] Idem, ibidem, p. 104.
[13] Idem, ibidem, p. 97.
[14] Idem, ibidem.
[15] Idem, ibidem, p. 71.
[16] Idem, ibidem, p. 73.
[17] Idem, ibidem, p. 87.
[18] Idem, Journal (1899-1939). Paris, Gallimard, 1948, p. 997.
[19] Idem, Corydon, op. cit., p. 49.
[20] Idem, Corydon, op. cit., p. 49.
[21] Idem, ibidem, p. 813.
[22] Idem, ibidem, p. 822.
[23] Idem, ibidem, p. 823.
[24] Idem, ibidem, p. 785.
[25] Idem, ibidem, p. 340.
[26] Idem, ibidem.
[27] Idem, ibidem, p. 573.
[28] Idem, Se o grão não morre. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983; O imoralista. São Paulo, Círculo do Livro, s. d.
[29] Idem, Journal (1899-1939), p. 725.
[30] Idem, ibidem, pp. 671-2.
[31] Idem, Corydon, op. cit., p. 32.
[32] Idem, ibidem, p. 132.
[33] Richard Rorty, op. cit., p. 937.