2011

Incerteza e descrença

por Luiz Alberto Oliveira

Resumo

A formulação do Princípio da Incerteza, por Werner Heisenberg, em 1927, representou para muitos filósofos da Ciência uma ruptura radical não somente com a cosmovisão “clássica”, baseada no mecanicismo Newtoniano, como ademais com todo e qualquer materialismo simplista. De fato, ao expressar a impossibilidade de um dado observador poder determinar  simultaneamente, e com precisão arbitrária, os valores efetivos de grandezas essenciais para a construção da noção clássica de trajetória de uma partícula, quais sejam, sua posição e quantidade de movimento, Heisenberg confere à Física Quântica então em construção uma relação complementar entre Epistemologia (o Princípio regendo a possibilidade de se conhecer a “realidade”) e Ontologia (a afirmação da “objetividade” da medida obtida) que não encontra paralelo na tradição Newtoniana. O paradoxo é claro: a intervenção experimental requerida para se conhecer, isto é, medir com precisão, um dado aspecto de um sistema microscópico necessariamente inviabiliza a determinação, com precisão comparável, de uma grandeza complementar. Mesmo o mais sofisticado dos aparatos experimentais não poderia extrair senão uma parcela limitada da informação necessária para determinar, à maneira clássica, a evolução do sistema. Ou seja: doravante, produzir conhecimento se torna indissociável de produzir ignorância.

Na perspectiva de Heisenberg, a vigência desta incerteza fundamental em nossa apreensão dos eventos em escala microscópica — manifesta pela previsibilidade limitada, tão-somente estatística, de que uma dada configuração, dentre uma variedade de potencialidades ou estados virtuais, atualize-se ao cabo da medição — acarreta um desdobramento da própria noção de “realidade”. Não há entidades com atributos continuamente estáveis e definidos no domínio quântico, o que implica aposentar-se o conceito de substância como o substrato básico de que são compostas as coisas do mundo (a veneranda doutrina do Hilemorfismo). Por aquém da realidade atual, efetiva, regras matemáticas governam o possível; o que chamamos de “mundo objetivo” seria então a expressão macroscópica de uma trama de relações microscópicas quânticas que não padecem, elas mesmas, de “objetividade”.

O paradoxo aqui se amplifica mais um grau: a convicção tradicional de que o “mundo real” seja essencialmente bem-determinado (partilhada por Einstein, de Broglie e Bohm, dentre outros importantes pioneiros) se converte em uma certeza, isto é, em uma crença de caráter metafísico (ou psicológico) que não é vindicada pela própria teoria quântica. A mais bem comprovada concepção já produzida pela Física, portanto, parece requerer a suspensão do mais antigo artigo-de-fé da Ciência: a de que há um mundo real lá fora. Ou será que…


O método já não pode separar-se de seu objeto.

Werner Heisenberg, A parte e o todo[1]

Uma observação de Paul Valéry, mais uma vez, orientou esta quarta etapa da série Mutações de reflexão sobre a contemporaneidade. Trata-se, segundo Valéry, de um problema que se apresenta ao pensamento: se vivemos num mundo em que os fatos imperam, onde estão, para onde foram, o que valem, as coisas vagas? As ideias, os afetos, as teorias, os princípios, as crenças — qual o estatuto desses modos especificamente humanos quando há o império esmagador dos acontecimentos brutos? O primeiro momento de um possível diagnóstico do estado atual deste problema havia sido a constatação da insuficiência das noções de Crise e de Fundamento diante da complexidade das questões contemporâneas, para dispor de diretrizes efetivas de exploração dos problemas de nossa época, teríamos de operar um deslocamento para os conceitos de Mutação e de Fundação. Esse deslocamento conceitual desdobrou-se, sucessivamente, no esboço de novas configurações de mundo, de novas variações da condição humana, de novas bases para a experiência do pensamento[2]. É no âmbito destas reflexões que passamos a considerar uma das espécies mais difíceis de “coisas vagas” (e, particularmente, seus modos de aparecimento, sua invenção): as crenças. O objetivo da presente contribuição será, assim, o de apresentar certos aspectos da produção e da atuação de crenças no contexto atual da Tecnociência.

Uma página de Jorge Luis Borges é sempre um bom começo. Tomemos então de um ensaio brevíssimo, intitulado Argumentum Ornithologicum, ou seja, “argumento dos pássaros”. O texto resume-se a um parágrafo e diz o seguinte:

Fecho os olhos e vejo uma revoada de pássaros. A visão dura um segundo ou talvez menos; não sei quantos pássaros vi. Era definido ou indefinido seu número? O problema intercala o da existência de Deus. Se Deus existe, o número é definido, porque Deus sabe quantos pássaros vi. Se Deus não existe, o número é indefinido, porque ninguém pôde fazer a conta. Nesse caso, vi menos de dez pássaros (digamos) e mais de um, contudo não vi nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três ou dois pássaros. Vi um número entre dez e um que não é nove, oito, sete, seis, cinco etc. Este número inteiro é inconcebível; logo, Deus existe[3].

Com soberba ironia, e em estilo característico, Borges está abordando um problema tradicional da história do pensamento: o das quantidades inexatas, dos limites imprecisos. Quantos pássaros estavam de fato ali? Na história da filosofia, esse tipo de dúvida irá remontar a Eubúlides de Mileto, o mais famoso expositor de uma classe de paradoxos envolvendo grandezas indeterminadas, em geral conhecidos por “paradoxos dos soritas” ou “paradoxos do pouco a pouco”. Soros em grego é “pilha” ou “monte”, e um paradoxo sorita tipicamente diz o seguinte: todos concordamos que um grão de areia não é um monte de areia; se acrescentamos um segundo grão, temos agora dois grãos, e todos também concordam que isso ainda não é um monte de areia. Ora, se o ato de acrescentar um grão não alterou a natureza do que está lá, então, de acordo com os preceitos da lógica aristotélica, por mais grãos que sejam acrescentados jamais obteremos um monte; mesmo que fossem incontáveis grãos, não teríamos um monte, porque acrescentar um grão de cada vez não pode mudar a natureza do que está lá. Ou podemos inverter a orientação do raciocínio: quantos cabelos é preciso perder para que alguém se torne careca? Tome-se uma bela cabeleira e tire-se um fio: a pessoa tornou-se careca? Não. Mas então, segundo a lógica aristotélica, todos os fios poderão ser retirados, um a um, e a pessoa jamais ficará careca — o que sabemos não corresponder exatamente à realidade…

Encontramos aqui uma série de questões que dizem respeito a um profundo descompasso entre a produção ou desconstrução concretas de um monte de alguma coisa — ação que, em nossa vivência cotidiana, é perfeitamente objetiva — e a construção lógica, racional, da transformação passo a passo de umas poucas unidades em um monte. Qual é, de fato, o limiar entre o punhado e a pilha? A postura clássica exige que haja um momento específico em que se defina a distinção entre o que é monte e o que não é — mas essa transfiguração corresponde a exatamente quantos grãos? E, porque o acréscimo do grão anterior não acarretou a mudança, nem o acréscimo seguinte terá qualquer importância? Nossa linguagem cotidiana é equívoca, incorpora uma ambiguidade que garante sua eficácia (pois lidamos sem dificuldade com montes, montões e montinhos), mas, quando tentamos expressar essa imprecisão tão prática aos rigores de uma construção lógica rigorosa, nos deparamos com essa dificuldade.

Outro exemplo do mesmo tipo de paradoxo é o do célebre barco de Teseu. Consta que os atenienses encontraram os despojos de um antigo barco e entenderam tratar-se da embarcação na qual Teseu, o herói tutelar da Ática, retornou de Creta depois de ter vencido o Minotauro. Ocorre que, pouco antes do porto do Pireu ser avistado, Teseu adormeceu, e o capitão esqueceu-se de içar uma vela branca, sinal de vitória combinado com o pai do herói, o rei Egeu. Acreditando que o filho tinha perecido ante o monstro, Egeu se atira dos penhascos e desaparece no mar, que doravante levará seu nome. Esta desventura trágica, constitutiva da história mítica de Atenas, motivou os cidadãos a instalar o antigo casco em uma praça, como monumento a Teseu. Mas o madeirame era muito velho e, com o tempo, começou, aqui e ali, a apodrecer. Os atenienses trataram de substituir as tábuas carcomidas, primeiro uma, depois outra, e à medida que os anos se passavam, mais e mais partes estragadas foram sendo trocadas, até que um dia já não havia nenhuma das peças de madeira originais. A pergunta é: ainda era o barco de Teseu? Alguém poderia crer que esta fosse uma questão meramente retórica ou especulativa; contudo, há poucos anos, um juiz na Inglaterra foi chamado a decidir uma disputa entre um vendedor de carros de época e um colecionador, que havia adquirido um exemplar de um determinado veículo e depois quis desfazer a compra alegando que diversas peças já não eram as originais. Depois de dois anos (!) de deliberação, o magistrado sentenciou que a venda deveria ser mantida, porque a substituição das peças tinha se sucedido “numa tal sequência e num tal ritmo que em nenhum momento a identidade fundamental do veículo” tinha sido perdida. Continuava sendo um carro vintage, ou seja, o barco ainda era o de Teseu.

A questão aqui, evidentemente, diz respeito a uma dicotomia, uma escolha excludente entre duas alternativas: ou ainda temos o barco de Teseu (e cabe então indagar acerca da desvinculação entre matéria e forma, entre a madeira que possivelmente coexistiu com Teseu, agora substituída, e isso que chamamos de seu barco) ou não o temos mais (e a interrogação agora é: em que preciso ponto da sequência de substituições de partes o barco deixou de ser o de Teseu? Na primeira? Na última?). Talvez um exemplo mais íntimo seja conveniente: cada um de nós, seres humanos, é constituído de aproximadamente cem trilhões de células humanas, isto é, cujos núcleos contêm DNA da espécie Homo sapiens; além disso, somos habitados por cerca de um quatrilhão (ou seja, dez vezes mais) de organismos microscópicos, especialmente bactérias. Cada humano adulto contém, assim, mais ou menos dois quilos de células não humanas, cuja presença e atividade são fundamentais para nosso metabolismo — em particular, na digestão dos alimentos. Cada indivíduo humano é portanto um ecossistema, e somos efetivamente humanos na medida das relações complexas que temos com esses outros organismos, isto é, na medida em que somos o habitat para esta fauna e flora microbiana, simultaneamente estrangeira e interna. Mas, como em todo ecossistema, a continuidade e o desenvolvimento dessa trama complexa de interrelações entre múltiplos componentes exige que fluxos de matéria, de atividade e de informação vindos do ambiente atravessem as bordas do sistema, participem temporariamente de sua dinâmica e, após uma variedade de processos, sejam devolvidos, recombinados, ao meio. O resultado deste remoinhar perdurável, porém interminável, de fluxos é que a cada sete anos, aproximadamente, todos os átomos de nosso corpo são trocados, quer dizer, a cada sete anos somos atomicamente outros[4]. Este fato tem consequências interessantes; é possível, por exemplo, estimar que cada pessoa hoje possui em torno de três átomos que já pertenceram a qualquer outro ser humano que já viveu… O que importa aqui, porém, é constatar que em sete anos ganhamos algumas rugas, perdemos alguns cabelos, mas nos reconhecemos como essencialmente os mesmos. Ou seja: somos, todos e cada um de nós, barcos de Teseu?

Compreendemos então que, ao abordar esse tipo de imprecisão dos limites, nos colocamos perante o problema da identidade. De fato, como atribuir identidade a algo que não possui um limite bem definido, cujas quantidades constituintes são inexatas? Se fazemos uso dos princípios da lógica clássica (ou das regras da álgebra booleana, o que dá no mesmo), esses problemas envolvendo a quantificação do inexato ou a inexatidão do quantitativo — pássaros de Borges, areias de Eubúlides — não possuem solução conhecida. Alguns estudiosos creem que seria necessário alterar as próprias regras lógicas para poder lidar com fronteiras imprecisas ou quantidades indeterminadas, isto é, abandonar as alternativas excludentes — monte ou não monte, careca ou não careca — de modo a admitir graus intermediários entre afirmação cabal e negação absoluta[5]. A pesquisa das chamadas lógicas fuzzy ou lógicas difusas é de fato uma das fronteiras nos estudos da Lógica e dos fundamentos da Matemática no século XXI. Há hoje em dia uma ampla variedade de possíveis tipos de aplicação (como em Inteligência Artificial, por exemplo) destas formas de articulação do raciocínio que são tão rigorosas quanto a tradição clássica, mas que se furtam às dicotomias ortodoxas e trabalham com valores de verdade parciais, aproximados e mesmo indefinidos[6].
De toda maneira, podemos construir uma linha tentativa de investigação sobre o problema da identidade quando da ocorrência de limites indistintos ou quantidades imprecisas a partir de um dos eixos fundadores do pensamento ocidental: a ontologia aristotélica. Aristóteles ensina que o mundo é uma coleção de coisas; mais rigorosamente, o mundo é uma coleção de indivíduos. Com efeito, num sentido prático, bem imediato, indivíduo é tudo aquilo que se pode apontar com o dedo e dizer: isto, aquilo, aquil’outro… Na linguagem do dia a dia, denominamos de “coisas” essas porções de presença cuja autonomia e continuidade (mesmo que sob transformação) permitem que sejam destacadas dos demais seres à sua volta e reconhecidas como entidades singulares. No sentido teórico, por outro lado, indivíduos são porções de Substância — termo de origem latina que usamos para indicar aquilo que subsistere, que existe por si mesmo, ou seja, que não requer nossa iniciativa ou atividade para existir. Na tradição aristotélica, a substância é uma associação entre uma matéria-prima e uma forma. Tomemos, como modelo, a cunhagem de moedas: seja uma placa metálica plana, lisa e sem marcas, e uma forma de um metal mais rijo em que está conformado um molde, uma efígie ou. um algarismo, por exemplo. A forma é então cravada repetidamente sobre a superfície da placa; nenhuma matéria é transferida da forma para o formado, apenas um diagrama, uma constelação de marcas é impressa, assimilada e mantida pelo suporte receptivo. Recortamos as áreas marcadas e dizemos moedas de um centavo, ou de cinco, ou de dez etc. Pela aplicação da forma, surgiu uma forma naquele material até então homogêneo, uniforme, indistinto. Assim é concebida a aparição das coleções de seres do mundo: são substâncias, matérias formalizadas — isto é, organizadas segundo princípios formais, que podem ser separadas pelo entendimento em diferentes gêneros de acordo com a forma comum que compartilhem; e individualizadas — isto é, que, pelas circunstâncias particulares de sua produção ou pelas vicissitudes de sua existência, se tornam distinguíveis umas das outras no seio do gênero ao qual pertencem. Semelhantes devido à forma comum (ou essência), diferenciadas devido a particularidades (ou acidentes), trata-se sempre de porções individuadas de substância.

Ora, então toda substância, ao apresentar-se como indivíduo, necessariamente exibirá duas propriedades. A primeira chamamos de unidade, e aqui o termo possui dois sentidos: unidade como união, coesão das partes, e unidade como elemento de contagem, isto é, como membro de uma coleção. Seja um dado objeto, uma mesa, digamos; é composta por uma combinação de partes, tampo, corpo, gavetas, pés, e essa associação tem consistência e durabilidade, ainda que esteja em transformação. Em virtude desta persistência coletiva, desta capacidade das partes de durar em uníssono, podemos indicá-la e dizer “isto”. Mas, se temos uma coleção de objetos, cada um deles é uma unidade no sentido de que conta como um. Uma mesa, duas mesas, três… Os indivíduos-coisas são, portanto, duplamente unos: unificados e unitários, unidos e uns. E a segunda propriedade que, a partir da unidade, os indivíduos gozam, chamamos exatamente de identidade. Quando, dentro de certa classe de indivíduos, podemos distingui-los uns dos outros não por variarem de natureza, mas por marcas específicas advindas dos acidentes em que se envolveram, passamos a dizer não apenas “isto”, mas “este”. Esta mesa aqui, aquela outra ali… Em resumo, todo indivíduo é um “isto”, mas cada um deles é um “este”. Unidade e identidade são, assim, atributos necessários para que se possa conceber o mundo à maneira de Aristóteles, como uma coleção de indivíduos ou coisas[7].

É exatamente o atributo da identidade, porém, que vem a ser problematizado quando se começa a examinar essas quantidades inexatas, esses limites imprecisos. Se por alguma razão não se puder atribuir identidade às coisas, se não se puder fazer a transição do “isto” genérico para o “este” particular, então o procedimento aristotélico de generalização-individualização não será aplicável, e o mundo não mais será uma coleção de coisas. Esta é a questão de fundo que é colocada pelos paradoxos da inexatidão e do deslimite; acrescenta-se um grão (depois de quantos?) ou retira-se uma tábua (em que ocasião?) e o punhado torna-se pilha ou a legenda se desprende do madeirame. Quando é que as coisas são (ou não são mais) coisas? Uma ilustração, colhida da longa e veneranda história do problema da definição das identidades, nos será útil neste ponto. Consideremos o período crucial em que é forjado o Ocidente moderno: o Renascimento. Sabemos bem que a nova visão de mundo renascentista, que terá Galileu como um de seus principais protagonistas, veio a substituir o cosmos medieval que encontramos magnificamente representado na obra de Dante; como esta substituição sucedeu?

De fato, recebemos desse grandíssimo autor a figura de um cosmos organicamente estruturado, demarcado por noções bem estabelecidas de duração e eternidade, e de limite e infinidade. Trata-se, antes de tudo, da justaposição de dois espaços ou domínios distintos, o material e o espiritual, cuja vinculação tem por fundamento ou princípio central a ideia de que todo e qualquer acontecimento subordina-se a uma ordem cósmica, global: a Grande Cadeia dos Seres[8]. Assim, os seres do mundo material acham-se organizados, segundo sua forma, numa escala vertical ascendente que começa com as pesadas rochas do reino mineral, passa pela imobilidade das plantas e árvores do reino vegetal; em seguida temos os animais, definidos segundo sua utilidade para o homem (recordemos que no sexto dia o Senhor fez os animais desfilarem aos pares perante Adão para que este os nomeasse e assim tivesse poder sobre suas naturezas); a meio-termo da Grande Cadeia encontra-se o Homem, que é um híbrido, pois possui simultaneamente corpo e alma. Enquanto corpo, tem a mesma densidade, a mesma gravidade, que os outros animais, mas em seu íntimo habita a chama límpida e levíssima da alma imortal. A partir do Homem, a linha vertical da Grande Cadeia é habitada pelos seres puramente espirituais: almas bem-aventuradas, anjos, querubins, arcanjos, tronos, potestades, dominações, até que, numa altitude rigorosamente inconcebível, esplende coruscante e obscura (pois misteriosa) a suprema Trindade.

Essa subordinação do local ao global, consubstanciada na Grande Cadeia dos Seres, é coetânea à geografia ou, mais exatamente, à cosmografia que nos é apresentada na Comédia: há a profundidade infernal, a superfície da Terra — onde ressalta o monte do Purgatório —, em seguida a sucessão de cascas cristalinas concêntricas (as órbitas) em que estão engastados os astros errantes ou planetas (inclusive o Sol e a Lua), culminando na abóbada das estrelas fixas. Envolvendo esse Orbe ou mundo físico finito, tão reminiscente do primeiro grande modelo da Física-Matemática, o cosmos geométrico de Ptolomeu, encontra-se a derradeira expressão da corporalidade, a camada denominada de Primum Mobile que recheia, se assim se pode dizer, a separação entre os domínios físico e espiritual e tem a função de realizar a causa inicial (o Primeiro Motor”) dos movimentos requerido por Aristóteles. Para além, estende-se indefinidamente o reino incorporal celestial, o Empíreo, habitado pelas entidades espirituais da tradição judaico-cristão[9].

Dois aspectos dessa composição de espaços são especialmente notáveis. Primeiramente, a assimetria vertical que manifesta a ordem cósmica global imposta pela Grande Cadeia dos Seres e que se vincula, no âmbito terrestre, ao peso (leve ou grave) das coisas. Além disso, há a existência de um locus físico privilegiado, o centro da Terra, em relação ao qual se distribuem as distâncias e se coordenam os movimentos; desta inomogeneidade do espaço físico resulta que a Terra, que repousa neste ponto focal, deve necessariamente ser imóvel. Daí também decorre a dupla natureza dos movimentos dos corpos: circular, espontânea, perpétua e perfeita, nas esferas supralunares em que se encontram os astros; linear, efêmera e aberrante, na esfera sublunar em que agem os homens. Na verdade, uma vez que nunca são duradouros, pois invariavelmente começam aqui e terminam ali, nem espontâneos, pois invariavelmente as coisas são obrigadas de “fora” a se deslocar, os movimentos sublunares são concebidos, nesta cosmovisão aristotélica, como mudanças análogas ao envelhecimento: tirar um corpo daqui e colocá-lo ali é submetê-lo a uma transformação, é realizar uma modificação semelhante ao envelhecer. Observemos que o conceito fundamental aqui é o de indivíduo; assim, o lugar que um corpo ocupa é, primordialmente, um atributo seu, enquanto entidade individualizada. O mundo material, assim, consiste no conjunto de todos os indivíduos, do que decorre a noção medieval do espaço físico como correspondendo ao conjunto dos lugares habitados pelos indivíduos. Numa tal concepção não há lugar para o vazio — se retiramos um corpo que está separando outros dois, seu “lugar” viaja com ele, e os corpos restantes terão de entrar em contato. Disso, então, resulta um mundo pleno, um mundo inteiramente denso, em que o vazio é impossível[10].

Há, além disso, Quatro Causas, ou Princípios Primeiros, que explicam o que são as coisas ou indivíduos, isto é, dão conta de sua origem, essência e razão de ser, que podem ser ilustradas pela famosa imagem das etapas de criação de uma estátua por um escultor, que Aristóteles nos legou e a posteridade não esqueceu. Temos primeiramente a causa material, uma base ou suporte, análoga a um bloco de mármore bruto sobre o qual nenhuma forma foi ainda inscrita, mas que tem a potência de receber incontáveis formas. A seguir, há a causa formal, que corresponde a uma planta ou diagrama de proporções concebidas na mente do artesão, na qual estão definidos os limites que serão impostos àquela matéria bruta. Há então a causa eficiente, identificada com o trabalho concreto do escultor ao desbastar a pedra e imprimir-lhe os contornos da forma desejada, e enfim a causa final, que é a finalidade ou objetivo da estátua pronta, ou seja, o uso a que se destina, cerimonial, estrutural, ornamental etc. Em suma, as Quatro Causas dizem o que uma coisa é — a causa material, por que é — a causa formal, como é — a causa eficiente, para que é — a causa final.

Ao ser aplicada ao problema da compreensão do movimento, a doutrina das Quatro Causas vai nos apresentar um quadro sumamente curioso. Fundamentalmente, têm importância primordial as causas formal (segundo a qual um corpo tende a cair para o solo ou ascender para o primeiro céu) e final (segundo a qual recuperar o repouso é a tendência de todo corpo que sofre um deslocamento). É a causa formal que vai fazer um corpo maciço, pesado, tender a dirigir-se à superfície da Terra; ou, ao contrário, se tem natureza leviana, aérea, como o fogo, tender a dirigir-se à órbita da Lua, ao céu. Já a causa final será responsável pelo destino último do movimento, que é sua extinção, ou seja, o repouso. Todo movimento é uma transformação, e todo ser resiste a esta transformação, portanto, quando se desloca um corpo, colocando-o em movimento, ele naturalmente busca fazer cessar esse movimento, e para isso dirige-se ao seu lugar natural de repouso. Quando se toma um corpo pesado, como uma pedra, e a largamos, o que se testemunha é que ela espontaneamente se dirige para o seu lugar natural, a superfície da Terra, e lá repousa em definitivo; sem uma nova interferência externa, ela não mais vai se animar. É essa combinação entre as causas formal e final que irá governar o comportamento dos corpos no domínio sublunar[11].

Em consequência, o Orbe material terá de ser finito, isto é, o espaço físico”, o conjunto de lugares habitados pelos indivíduos, terá necessariamente uma extensão medida, contida por bordas. Por quê? De acordo com o princípio da causa formal, quando um corpo é afastado do seu lugar natural de repouso espontâneo, ele tem avidez de retornar a esse lugar, de recuperar a naturalidade do repouso. Sabemos que, de quanto mais alto for largada uma pedra, maior será sua velocidade ao precipitar-se de volta ao chão, porque maior será sua avidez de recuperar seu lugar natural. Em resumo, quanto mais distante estiver um corpo de seu lugar natural, maior será sua avidez em recuperá-lo. Ora, se houvesse um corpo a uma distância arbitrariamente longa da Terra, ele buscaria a Terra com uma velocidade arbitrariamente grande — e nós não vemos corpos passarem por nós com tais velocidades colossais; logo, não há, não pode haver, corpos situados a distâncias desmesuradas. O mundo-Orbe é portanto finito e, como o espaço é cerrado, fechado.

Em segundo lugar, podemos distinguir no cosmos dantesco uma estrutura hierarquizada de temporalidades que reflete a organização espacial esboçada acima: duas eternidades — a dos bem-aventurados no Paraíso acima, a dos condenados no Inferno abaixo — circundam a brevidade da existência neste vale de lágrimas em que somos colocados durante um curto transcurso para que nossas almas sejam postas à prova. Particularmente fascinante, porém, é a dupla função exercida pela contribuição verdadeiramente original do medievo à doutrina cristã tradicional, o Purgatório. De fato, espacialmente trata-se de um monte a que as almas finadas devem ascender, aliviando-se pouco a pouco da carga (o peso) dos pecados cometidos, de modo a alcançar o topo — onde se encontra o Jardim do Éden perdido —, já purificadas da grosseira gravidade corporal e prontas para “saltar” para o Empíreo; mas paralelamente trata-se também de um dispositivo temporal de regressão, de uma “máquina do tempo” que permite à alma retornar à pureza do estado de ser primordial, anterior à Queda. Em resumo, dois espaços — o domínio espiritual envolvendo os reinos astral e terrestre, correspondendo a uma eternidade duplicada, a paradisíaca e a infernal — envolvendo as duas durações (inversas) da vida e da purgação. É, portanto, característica desta imagem tão majestosa a segregação muito nítida entre os reinos da matéria e do espírito, entre o Orbe e o Empíreo; não é possível à matéria habitar o Empíreo sem contrariar a Grande Cadeia, sem que se aproximem as formas (mais precisamente, as causas formais) de corpos e de almas que se encontram muito afastadas ao longo do eixo que leva das profundezas às alturas, do pesadume à levidade.

Não obstante o rigor lógico dessas argumentações, as características do espaço físico de Dante — finitude, cerramento, hierarquização — irão colocar desafios perturbadores para os pensadores medievais. Certos teorizadores muito audaciosos não se furtaram a fazer especulações do seguinte tipo: imaginemos que um anjo tenha um cajado e s aproxime da borda do Primum Mobile, ou seja, da última expressão da existência material; e então ele estenda o cajado, de modo a ultrapassar a fronteira entre a matéria e o Empíreo. O anjo pode realizar esse ato? Se puder fazêlo, o que era um “não lugar” passaria a ser um lugar, ou seja, um corpo material habitaria o reino dos entes celestiais, o que representaria, por princípio, uma violação da ordem cósmica implícita na Grande Cadeia dos Seres, preestabelecida desde a Criação. Seria difícil conceber como a Grande Cadeia poderia se manter inalterada, sem desarticular-se — isto é, sem que o Cosmos se desorganize por completo. Mas, caso isso lhe fosse impossível, então até os poderes sobrenaturais teriam medida, e até os milagres seriam obrigados a subordinar-se à Razão. A questão, como diria Borges, intercala a da onipotência de Deus: nem mesmo a vontade de Deus poderia contrariar a Lógica e fazer surgir um círculo quadrado; a onipotência de Deus deve subordinar-se a Sua onisciência. Mas será mesmo possível confinar a onipotência completa e perfeita de Deus? Não seria absurdo pretender circunscrever o absoluto? Um debate teológico de imensas consequências começou a ser travado, levando ora à consagração de santos, ora à degradação de hereges[12]

Questões deste tipo costumam hoje em dia ser ridicularizadas e são chamadas de “bizantinas”, porque os sábios de Bizâncio teriam se especializado em perder tempo com altercações infindáveis, que não levavam a conclusão alguma nem tinham qualquer significado prático. Na verdade, interrogações como “quantos anjos cabem na cabeça de um alfinete?” ou “pode um camelo passar pelo buraco de uma agulha?” constituíram esforços profundos de investigação racional acerca da natureza do espaço e da estrutura da matéria. Se um anjo tiver um mínimo de materialidade, por exemplo, certo número deles preencherá a cabeça do alfinete. Se, por outro lado, os anjos forem seres sem materialidade alguma, semelhantes a pontos geométricos, então somente um número infinito deles recobrirá a cabeça do alfinete. Este é, portanto, um problema que diz respeito não só à natureza dos anjos como também à própria natureza dos objetos físicos e sua relação com os objetos geométricos, e seus desdobramentos terão importantes implicações no futuro.

Um momento decisivo nessa contenda foi protagonizado no século XV por Nicolau Krebs, o cardeal de Cusa, autor do célebre tratado A douta ignorância e uma das personalidades mais notáveis de sua época. Ao abordar o problema da fronteira entre Matéria e Empíreo, oferecerá uma resposta original, recusando a ocorrência de um limite bem definido que separasse com nitidez os domínios material e etéreo e argumentando, ao invés, que essa borda última não poderia ser precisamente fixada — sob pena de o pálido entendimento humano pretender abarcar a grandeza incomensurável da Divindade. Mas se a dicotomia tradicional entre matéria e espírito é abandonada em favor de um limite flutuante e indistinto, se não há um contorno nítido distinguindo o Orbe do Céu, o Cosmos deve ser intérmino e torna-se, assim, semelhante à revoada dos indefinidos pássaros de Borges. Cusa exprime essa ideia extraordinária através de uma imagem igualmente assombrosa: os anjos, diz ele, residem entre as estrelas[13].

É possível verificar, examinando a história do pensamento, que por vezes certas noções surgidas no âmbito de uma dada prática podem acabar se revelando como indícios ou prenúncios de avanços que ocorrerão posteriormente, no âmbito de um tipo de afazer muito diferente. A Arte costuma desempenhar esse papel pioneiro — e assim foi no Renascimento. Com efeito, a imensa revolução no entendimento sobre a natureza iniciada no século XVI — e para a qual a contribuição de Cusa foi decisiva — teve como prelúdio o espantoso surto de construção das magníficas catedrais góticas que acometeu a sofrida Europa dos séculos XII e XIII. Numa época marcada pela Peste Negra, pela Guerra dos Cem Anos e por todo tipo de desgraças correlatas, cerca de um quarto (!) dos escassos recursos econômicos de toda a Europa Ocidental no período foi investido em mais de quarenta destas expressões incomparáveis de devoção encarnada em pedra. As catedrais góticas incorporavam inúmeras inovações técnicas e artísticas, dentre elas, talvez a mais surpreendente tenha sido a mudança da cor de seus tetos.

Recordemos que os antigos templos gregos e romanos não se destinavam a que a população cultuasse as divindades em seu interior. Os atenienses, por exemplo, reuniam-se à volta da Acrópole, nas festividades em honra de Palas Atena, a protetora da cidade, mas só os sacerdotes e altos dignitários ingressavam no recinto sagrado do Partenon e lá celebravam os devidos rituais. Os romanos mantiveram a tradição. os templos não eram espaços de aglomeração popular — bem ao contrário de outro tipo de construção, as termas ou banhos públicos, que eram edifícios concebidos para a coabitação do povo. Quando, no mandato de Nero, os cristãos começaram a ser perseguidos, passaram a reunir-se em catacumbas, em subterrâneos, em espaços cobertos, em suma; ao voltarem a circular livremente — a caminho de, sob Constantino, o cristianismo tornar-se a religião oficial do Império —, continuaram a praticar o culto coletivamente, e entre paredes. Mas as edificações que tomaram por modelo para a construção das igrejas e basílicas, onde se dava a ecclesia ou assembleia dos fiéis, não foram os templos pagãos, e sim os banhos. Tipicamente, o banho romano consistia de uma nave central retangular completada por uma parede em forma de meia abóbada, que era usada para fazer o calor circular dentro das termas, e que passou a abrigar o altar sacro, para o qual todos os olhares convergiam. À medida que se procurou ampliar as dimensões do edifício, para acolher em comunhão os numerosos fiéis, ressurgiu o antigo pesadelo dos construtores: estruturas maiores também são mais pesadas; como impedir uma cobertura aumentada de desabar sob o próprio peso? Ocorreu então, por volta do final do século XI, uma invenção decisiva: o arcobotante, uma espécie de suporte lateral que redistribui as cargas e tensões e permite a paredes comparativamente finas suportar, sem ceder, o peso de um teto de grande extensão e largura. O arcobotante possibilitou que os templos cristãos modelados a partir do desenho das termas públicas alcançassem as grandes dimensões das catedrais góticas. E outra inovação importante foi o uso intensivo do vidro, já então produzido em abundância, e que também servia para aliviar o peso sobre as fundações. A associação entre paredes altas e longas e teto muito extenso, configurando uma nave volumosa, muito impressionante, e um grande número de vitrais e janelas envidraçadas dispostas ao longo do corpo da nave, transformou esses novos templos em autênticas máquinas de luz. Impossível ingressar naquela atmosfera intensamente luminosa, preenchida por cânticos maviosos, e presenciar a solenidade dos ritos sem ser transportado para fora de si, para além do quotidiano comezinho; impossível não se ter um vislumbre do elevado, do eterno, do celestial[14].

Na tradição medieval cristã, como vimos, o Céu que importava era o espiritual, o domínio etéreo incomensuravelmente além das luzes que salpicavam a abóbada das estrelas fixas e habitação exclusiva de entidades angelicais e almas bem-aventuradas. Esta separação entre o céu astronômico e o Céu celestial exprimia a distinção entre os domínios material e espiritual consubstanciada na Grande Cadeia dos Seres, e manifestava-se com nitidez na cor dourada dos tetos das igrejas, conforme ao predomínio do simbólico sobre o concreto que caracterizou a maior parte da arte medieval. Em virtude, porém, do contato com o Oriente intensificado pelo conflito das Cruzadas e, em particular, do intercâmbio continuado com a grandiosa civilização mourisca, o Ocidente medieval foi pouco a pouco readquirindo a posse de sua herança greco-romana. Graças às traduções árabes e andaluzes de antigos textos em latim, grego e hebraico, ideias e técnicas da Antiguidade lentamente voltaram a se difundir, inquietando a imaginação de pensadores, artistas e artesãos. Um dos primeiros e mais importantes índices deste deslocamento titânico foi exatamente a naturalização do céu, manifesta quando a cor do teto das catedrais góticas migrou da glória sobrenatural do dourado para a amplidão pacificadora do azul, significando que as fronteiras entre os orbes natural e sobrenatural estavam se tornando fluidas, ambíguas, imprecisas.

Eis que então Nicolau de Cusa dá voz clara a essa intuição, ao sugerir que as estrelas são a moradia dos anjos. Depois de séculos, o céu simbólico e o céu observável voltariam a coincidir; as luzes cintilantes da noite seriam, doravante, o horizonte tanto para o olhar sensível quanto para o espiritual. Logo a seguir, Tommaso di Campanella e, principalmente, Giordano Bruno ousaram cantar as glórias de um cosmos intérmino, indeterminado, ilimitado, infinito. Apenas infinitos mundos, proclama Bruno, estão à altura da glória infinita de Deus! Principiava assim o poderoso movimento de revalorização do mundo natural (e, por conseguinte, do conhecimento empírico) que desembocaria na revolução renascentista e no extraordinário Cosmos moderno. Autêntica refundação do pensamento do Ocidente sobre a Natureza, sua característica essencial foi o destronamento da herança aristotélica em favor de uma concepção platônica, de índole matemática, que encontramos resumida na célebre sentença de Galileu Galilei, que os séculos seguintes não esquecerão: “Deus escreveu o Livro da Natureza em linguagem matemática; trata-se doravante, para o Entendimento, de decifrar essa linguagem”[15].

A passagem decisiva se dá com uma série de notáveis experimentos concebidos e descritos por Galileu (embora, para muitos autores, alguns deles nunca tenham sido realizados de fato), perfeitamente análogos aos Gedankenexperimente (experimentos conjecturais) que Einstein tanto apreciava, e que acabam por fazer Galileu concluir que os corpos tendem a manter o movimento que neles foi impresso, até que um outro agente intervenha obrigando sua alteração (o que é a essência do Princípio da Inércia, que Descartes pouco depois irá formalizar e Newton adotará como fundamento da moderna Mecânica). Seja, por exemplo, uma esfera lisa, que deixamos escorregar num plano inclinado. O que se verifica? Que a esfera adquire velocidade na descida, alcança o piso, anda um pouco — e para. Suponhamos, diz Galileu, que o piso seja bem encerado. Nesse caso, observaríamos a esfera, largada da mesma altura, atingir uma distância bem maior. E se estivéssemos em um daqueles magníficos palácios florentinos, com um assoalho de mármore perfeito, e exaustivamente encerado, a esfera iria mais longe ainda. Nesse momento, Galileu realiza um salto cognitivo, exibe uma ousadia conceitual raras vezes igualada, e sugere: se o piso fosse um plano perfeitamente liso, um plano geométrico ideal, o corpo a que fosse emprestada essa velocidade jamais cessaria seu movimento, ele se moveria perpetuamente.

Mas nesse caso o movimento não seria governado por sua extinção: ambos, repouso e movimento, tenderiam a se manter. Desaparece a diferença de natureza entre repouso e movimento, e portanto a regência da causa final: o repouso é somente um caso particular de movimento, o movimento com velocidade nula. Ora, com isso torna-se possível conceber um movimento retilíneo de extensão e duração indefinidas, ou seja, um corpo colocado em movimento retilíneo e uniforme poderia se mover continuamente, durante um período em princípio arbitrariamente longo, até sofrer uma interrupção. Desaparece assim, em princípio, a distinção de natureza entre movimentos celestes e terrestres, e logo entre os mundos sub e supralunar: à repetição cíclica dos astros vêm agora se somar os movimentos inerciais indefinidamente duráveis; movimentos celestes e terrestres podem ambos ser perpétuos. Mas se um corpo se move interminavelmente em linha reta, não há distâncias preestabelecidas que não possa alcançar; deixa de haver fronteiras inatingíveis e invioláveis entre os domínios terrestre e celeste, e é necessário que o espaço físico tenha uma extensão correspondentemente interminável. Rompem-se as bordas do mundo fechado de Dante, e entra em cena o Universo infinito que será o triunfo de Newton[16].

Vemos bem o cataclismo de que advém a Modernidade: o mundo fechado em que os reinos espiritual e material mutamente se demarcavam e se ajustavam de forma tão bem definida se vê agora acossado por infinitudes. De fato, um movimento infindavelmente prolongado requer uma duração igualmente infindável, e assim a eternidade do Empíreo (em sua dupla versão de castigo ou ventura perpétuos) é deslocada por um novo tipo de eternidade, a da duração infinita. Tudo o que resta ao mundo é o tempo da transformação, a redenção alcançada ao cabo do Purgatório se converte na expectativa de realização da essência humana pela História. Por outro lado, se o espaço físico se prolonga infindavelmente, então o espaço espiritual é empurrado para depois do infinito. Com o território etéreo que era seu lugar natural tornando-se infinitamente, logo inconcebivelmente, distante, o único domínio que restará aos seres espirituais será nossa própria interioridade, somente dentro de nós pôde subsistir ainda a separação absoluta entre corpo e alma. Transformada por Descartes em distinção entre res cogitans res extensa, entre sujeito e objeto, essa fissura perdurará como condição de possibilidade do sujeito moderno[17].

Esta nova subjetividade, porém, dará continuidade ao mesmo problema de (in)definição de limites que antes acometia o Cosmos, sob a guisa da bem conhecida dicotomia cartesiana: se somos corpo — res extensa — e também somos pensamento — res cogitans —, onde e como se dá o encontro entre estas substâncias díspares? Como é possível que testemunhemos pelos sentidos, isto é, pelo corpo, os fatos e acontecimentos concretos do mundo e essas percepções se convertam em representações, isto é, em entidades do pensamento, sobre as quais a razão irá operar para realizar a produção de conhecimento? Como sucede essa miraculosa transubstanciação entre a imagem enquanto afecção sensível no corpo e a imagem enquanto ideia no pensamento, que não possui corporeidade alguma? O próprio Descartes teve de contentar-se em driblar a questão de fundo, postulando que haveria um órgão (que arriscou identificar à glândula pineal) que destilaria, sabe-se lá como, as representações. A incongruência entre Orbe e Empíreo, transformada em dicotomia corpo-pensamento, transfere-se para dentro de nós, ao mesmo tempo que passamos a coexistir com esse conceito terrível, o infinito. Nós homens éramos habituados a projetar nossa própria finitude num mundo também contido, limitado, finito, e no entanto tivemos de passar a conceber as bases da existência material em termos de extensões e durações infinitas. Desde então, nossa perplexidade é a mesma que acometeu Pascal: se o espaço é infinito, a rigor não há um onde, pois todo local é equivalente a qualquer outro. Se o tempo é infinito, a rigor não há um quando, pois toda ocasião é equivalente a qualquer outra. Qual é, então, nossa identidade? Quem, afinal, somos nós?

Já no século XX, o problema da indefinição dos limites e a correspondente crise da categoria de identidade irão alcançar um novo e ainda mais surpreendente patamar, determinado por avanços de grande alcance nas próprias ciências naturais. Para podermos contextualizar apropriadamente este salto conceitual, cabe recordar que até o século XVII a atividade de investigação dos fenômenos da Natureza era entendida como um tipo particular de afazer filósofico, a Filosofia Natural. Quando o exame das razões e das causas que governam o mundo dos acontecimentos materiais passou a ser regrado pelo método empírico-teorético inaugurado por Galileu, esse ramo da Filosofia adquiriu uma autonomia crescente, e eventualmente seus praticantes reivindicaram descolar seu saber das demais disciplinas filosóficas. Assim, em 1833, o polimata britânico William Whewell propõe que os estudiosos de Filosofia Natural, realizadores da scientia ou conhecimento bem fundado dos fenômenos da natureza, fossem doravante denominados de cientistas. Progressivamente, uma cisão entre o antigo tronco e o novo ramo se estabeleceu, Bertrand Russell observa que com Descartes, Pascal e Leibniz se extingue a longa estirpe dos filósofos, dos criadores de sistemas de pensamento, que deram contribuições fundamentais para as ciências naturais. A partir daí, diz Russell, teria ocorrido uma dissociação crescente e cada vez mais profunda entre ciência e filosofia, de tal maneira que os filósofos pouco mais tiveram a dizer aos cientistas naturais — supondo, é claro, que estes estivessem dispostos a escutar[18]. As extraordinárias inovações técnicas, industriais e econômicas decorrentes da grande revolução científica sucedida nas primeiras décadas do século passado levaram essa dissociação ao paroxismo: instalou-se nas gerações de cientistas do pós-guerra a convicção de que a Ciência poderia, e até mesmo deveria, ser praticada prescindindo-se por completo da tradição filosófica.

Deixando de lado o quanto há de presunção, paroquialismo e vaidade nessa postura, pode-se reconhecer que mesmo os cientistas mais convencidos da independência da Ciência com respeito à Filosofia partilham, na rotina de seus laboratórios, de uma espécie de ontologia efetiva, isto é, uma convicção fundamental de índole metafísica (ou, mais precisamente, metacientífica), que serve de fulcro para sua atividade enquanto praticantes do conhecimento. Trata-se da noção de que a Ciência é um meio de investigar a realidade; dito de outra maneira, de que existe um mundo “lá fora” para ser examinado. Sem essa afirmação primeira da existência de um mundo objetivo, ou seja, se não partisse de uma premissa ontológica — muitas vezes ingenuamente desconhecida — que postula a existência autônoma de um objeto do conhecimento, um praticante, mesmo que seja um cientificista reducionista fundamentalista, não encontraria justificativa para a aplicação, repetidamente bem-sucedida, do método científico. É possível optar, como é costume da maioria da comunidade, por deixar de lado a reflexão sobre os meios, os modos e as condições pelas quais a prática de conhecimento da Ciência pode ser desempenhada — e essa reflexão será inevitavelmente, constitucionalmente, filosófica — e focalizar com exclusividade a praxis teorética ou experimental ela mesma; mas sem esse ponto de partida fundamental, sem essa ontologia efetiva — que podemos chamar de “materialismo realista simples”[19] não seria possível proclamar a “objetividade” do empreendimento científico. Contudo, numa ironia digna de um soberbo romancista, os avanços decisivos sucedidos no começo do século XX na descrição dos estratos mais básicos do mundo natural irão resultar na necessidade de se criticar e problematizar, de modo extremamente profundo, essa convicção básica, esta crença dos cientistas, acerca de alguma coisa lá fora”. O que será questionado, porém, não é o “lá fora”, e sim, surpreendentemente, o “alguma coisa”.

Este processo principiou com um dos mais extraordinários desenvolvimentos de toda a história do pensamento: a descoberta de que no plano constitutivo fundamental, microscópico, a matéria é duplamente atomizada, quer dizer, consiste de não apenas um, mas dois tipos de átomo. É bem conhecido que no século VI a.C. pensadores como Leucipo de Mileto e Demócrito de Abdera se opuseram às doutrinas filosóficas de Platão, por entender que essas doutrinas estavam ainda demasiado carregadas de tradição religiosa, faziam ainda demasiado apelo a alegorias míticas. Procuraram, como alternativa, construir uma base de compreensão da natureza dos seres que fosse estritamente material — e racional. Uma das objeções que faziam ao pensamento de Platão, em particular, era o apelo sistemático às figuras geométricas como modelos para se conceber os objetos reais. Ora, figuras geométricas podem ser seccionadas indefinidamente; uma divisão interminável de um segmento de reta, por exemplo, é uma operação perfeitamente realizável — no campo da conjectura ou do pensamento. Mas a divisão indefinidamente prolongada de corpos maciços, reais, é uma noção inteiramente diferente e, para os gregos antigos, muito problemática. A Mitologia exibe um sem-número de descrições muito vívidas dos castigos que esperavam, no Inferno, aqueles que transgrediam os ditames divinos, e muitas delas constam precisamente de punições infindavelmente repetidas — Prometeu, as Danaides, Tântalo… O exemplo mais famoso é o de Sísifo, o mais astuto dos homens, que pretendeu enganar até o soturno Hades, o senhor da morte, e que como castigo foi condenado a perpetuamente empurrar uma rocha montanha acima apenas para vê-la retornar quando alcança o cume[20] . Compelido a repetir interminavelmente esse feito inútil, este desditoso herói acabou por receber uma das mais belas páginas da filosofia do século XX, quando Albert Camus compara a sucessão infinita de gestos absurdos a que Sísifo está condenado à nossa própria condição humana[21]. Em resumo, uma sequência inacabável de ações banais era, para os Antigos, algo próximo do intolerável.

Ora, diziam esses pensadores materialistas, a analogia que Platão faz entre corpos reais e figuras geométricas sofre da mesma insensatez: uma série indefinidamente extensa de secções, se pode ser exercida conjecturalmente sobre linhas, superfícies ou volumes, torna-se absurda quando se intenta realizá-la na prática, sobre corpos concretos. Deverá haver, outrossim, um momento da série em que a divisão terá de cessar, ou seja, uma unidade elementar de materialidade que não seria mais separável. Designam este substrato elementar último pelo termo a-tomo, não divisível. Mas a contrapartida lógica necessária para que tais átomos possam estar dissociados uns dos outros, após a derradeira divisão, é que entre eles haja um intervalo, uma separação, que evidentemente não poderia ser, ela mesmo, material. O conceito de átomo não pode ser pensado sem a categoria associada de vazio. Todos os corpos, todos os seres, todo o real, em suma, consistiria de combinações destas unidades elementares de substância separadas umas das outras pelo vazio.

Como é comum na história do pensamento, essa concepção experimentou grandes vicissitudes em seus 25 séculos de existência. Depois de reformulada por Epicuro, no século III a.C., que a depurou de algum excessivo dogmatismo, veio a alcançar um auge com o célebre poema filosófico de Lucrécio, Sobre a Natureza, na Roma do século I[22]. Em seguida à queda do Império, porém, submerge da memória do Ocidente para reassomar apenas no Renascimento (consta que boa parte das chamas que consumiram Bruno, em 1508, destinavam-se de fato a incinerar seu incipiente neoatomismo; e que a prisão domiciliar a que Galileu foi sujeito no fim da vida não visava punir seu heliocentrismo, já excessivamente público, e sim evitar que viesse a manifestar alguma simpatia que porventura cultivasse em segredo por uma doutrina tão francamente materialista)[23]. Foram os trabalhos em química quantitativa de Lavoisier e Dalton, no século XVIII, que acabaram por reabilitar a teoria atomista, ao sugerirem que os diferentes tipos de substâncias químicas devem suas, propriedades às partes microscópicas, ou átomos, de que são constituídos, ou seja, ao átomo de hidrogênio que corresponde à substância hidrogênio, ao átomo do oxigênio etc. Lavoisier interessou-se pelo problema do cheiro das coisas. O enxofre, por exemplo, em estado puro é inodoro, mas quando é queimado — e hoje sabemos que queimar o enxofre é combiná-lo com o oxigênio do ar — o resultado é um aroma bastante desagradável. A conclusão de Lavoisier foi a de que uma pequena parte, uma partícula, do corpo se combina com uma pequena parte, uma partícula, do ar. Esta mistura de pequenas partes é que atingiria nosso nariz e nos faria sentir o suave perfume da flor de resedá ou o penetrante odor do queijo Limburgo. Mas se as coisas têm pequenas partes, também teriam as menores partes — e esta foi a ideia que Dalton empregou para dar conta das razões de massa precisas com que as diferentes substâncias químicas reagiam umas com as outras[24].

Renomados cientistas, contudo, mantiveram-se fiéis à crítica demolidora que já na Antiguidade se dirigia à escola atomista: como fundar o entendimento sobre o mundo natural em entidades que são, por definição, invisíveis e impalpáveis? Esta era a posição de Ernst Mach e de Wilhelm Ostwald, por exemplo, já em fins do século XIX. Contudo, já em 1827 o naturalista inglês Robert Brown havia feito uma observação muito curiosa: examinando no microscópio uma gotícula d’água em que havia dissolvido grânulos de pólen seco de flores, observou que os grânulos realizavam movimentos erráticos, sem razão aparente. Ora, a espontaneidade do movimento é característica dos seres animados, e Brown imaginou se o pólen seco ainda estaria, de alguma forma, vivo. Ao refazer a experiência com outros materiais microgranulados, porém, verificou que o mesmo comportamento se repetia, mesmo se fossem usados fragmentos moídos da Esfinge do Egito! As causas do chamado movimento browniano permaneceram misteriosas até que, no anno mirabili de 1905, Albert Einstein lançou mão da ideia de átomo para elucidá-las. Uma vez que, devido à homogeneidade da gotícula, não haveria uma direção preferencial ao longo da qual seus átomos devessem se mover, eles se agitariam erraticamente, em todas as direções, a resultante média dos impactos sofridos por um dado grânulo, assim, devia se anular. Eventualmente, contudo, o conjunto dos impactos num dos lados do grânulo sobrepujava os do lado oposto, impulsionando-o numa dada direção, como esse desbalanço ocorria aleatoriamente, a cada vez os grânulos eram impulsionados numa direção diferente. Essa abordagem brilhante permitiu a Jean Perrin, poucos anos depois, realizar uma experiência célebre que calou até os críticos mais empedernidos, Ostwald inclusive; finalmente, depois de 25 séculos, a ideia de átomo fora verificada. Einstein recebeu o Prêmio Nobel de Física de 1921 (e Perrin, o de 1926); não foram suas famosas Teorias da Relatividade, portanto, que lhe granjearam o prêmio, e sim sua contribuição decisiva para que fosse demonstrada de modo definitivo a existência concreta de unidades materiais elementares, similares às que Demócrito havia chamado de átomos, e que hoje em dia denominamos de partículas elementares[25].

Deixando de lado estes aspectos históricos, é importante ressaltar o imenso significado de tal demonstração. Quando propuseram a Richard Feynman, Prêmio Nobel de Física de 1965 (e escolhido como “o homem mais sabido do mundo”)[26], a pergunta sobre qual ideia deveria ser transmitida às gerações futuras para permitir a reconstrução de nossa cultura, caso uma catástrofe (como uma guerra atômica em larga escala) destruísse a atual civilização, Feynman respondeu incontinente: a de que o mundo é composto de unidades elementares de materialidade. Para avaliar a solidez e abrangência desta afirmação, podemos uma vez mais nos aproveitar de Borges, agora recordando A Biblioteca de Babel: “A Biblioteca (que alguns chamam de Universo)…[27]. De pronto, precisamos perguntar: é possível que uma biblioteca seja uma metáfora adequada para o universo físico? Mas o que é uma biblioteca, o que é a Literatura? Antes de mais nada, concretamente, séries de letras do alfabeto. Letras se compõem e formam fonemas; fonemas se juntam e formam palavras; palavras se encadeiam e formam frases, frases se sequenciam e formam parágrafos, parágrafos se sucedem e formam capítulos, capítulos se integram e formam tomos, que se somam e formam livros, que se distribuem nas estantes das bibliotecas. Uma biblioteca, então, pode ser compreendida como uma sucessão integrada e hierarquizada de componentes elementares. Ora, podemos dizer que o mundo natural, abrangendo desde a micro até a astroescala, consiste exatamente de uma sucessão de integrações de componentes básicos, ou seja, conhecemos hoje um alfabeto de dezesseis letras — seis chamadas quarks, seis chamadas léptons, e quatro “colas”, as forças. Todos as substâncias que já examinamos consistem de arranjos destas dezesseis letras: os quarks se compõem formando protons e nêutrons, que se juntam formando os núcleos atômicos, que se associam com elétrons (léptons) dando lugar aos átomos dos elementos químicos, do hidrogênio ao urânio, que por sua vez se encadeiam em moléculas, que combinam formando os corpos, que se associam para fazer astros, planetas e estrelas, que integram as galáxias, que fazem parte dos aglomerados de galáxias, de que consta enfim o próprio Universo. Vemos então que, no que diz respeito à consistência atomizada das substâncias, a imagem da biblioteca de fato constitui uma metáfora concisa e eficaz para descrevermos a natureza tal qual a conhecemos hoje. As atuais famílias de partículas são, portanto, as sofisticadas decorrências da corroboração da ideia primitiva de átomo[28].

Não foi essa, contudo, a única figura de átomo que o século XX nos legou. Motivado por uma inconsistência entre as teorias clássicas sobre a estrutura da matéria e a natureza da luz, Max Planck realiza em 1900 uma descoberta sob todos os títulos extraordinária: a de que no mundo microfísico vigora não somente a atomização dos corpos, mas também uma segunda atomização, a de suas atividades, isto é, matéria energia (a grandeza que mede os movimentos dos corpos) são ambos constituídos por unidades inteiras, seja de corporeidade (partículas materiais), seja de atividade (os quanta de ação). Ora, se não é especialmente difícil conceber-se pacotes unitários de materialidade, a ideia de pacotes unitários de atividade, ou seja, de movimento, simplesmente não tem precedentes. A exploração das consequências deste conceito inédito acarretará uma profunda renovação das próprias bases de nossa descrição dos fenômenos em escala microscópica e, por conseguinte, de todo o mundo natural.

Planck foi levado a esta concepção perturbadora pelo estudo de um problema identificado, em fins do século XIX, na relação entre a matéria e a luz, que foi batizado com o portentoso nome de Catástrofe Ultravioleta da Radiação do Corpo Negro[29]Sabemos que, ao ser aquecido, um corpo emite luz, ou, mais exatamente, emite diversos tipos de radiação eletromagnética, dentre os quais a particular gama de frequências (ou cores) que chamamos de luz visível. Reciprocamente, ao se incidir luz sobre um corpo, este absorverá certas frequências, aquecendo-se, e refletirá outras, as plantas são verdes, por exemplo, por absorverem todas as cores exceto o verde. Um corpo negro, idealmente, deveria assim absorver todas as cores, sem refletir nenhuma; em laboratório, é possível criar reproduções aproximadas desta idealização, que serão úteis exatamente no estudo da relação entre a luz e a matéria. Ora, as teorias de que se dispunha nessa ocasião acerca da estrutura da matéria e da natureza da luz faziam prever que quando luz de certa cor incidisse sobre um corpo negro, este seria aquecido a certa temperatura. Essa teoria fazia boas previsões para baixas temperaturas, quando as cores absorvidas eram vermelho ou laranja. Mas, quando as cores incidentes iam do azul e do violeta para o ultravioleta (que não é perceptível para nossa visão desarmada), a discrepância entre a temperatura esperada e a medida era dramática, ou seja, a temperatura observada do corpo negro era catastroficamente diferente da prevista para a cor ultravioleta. Foi posto em xeque, então, o entendimento vigente até aí da relação da luz com a estrutura da matéria.

Em um dos mais interessantes e instrutivos processos de descoberta da história da ciência, Planck encontrou a solução do problema após nada menos que 13 anos de dedicação. Pacientemente, foi substituindo cada um dos operadores que compareciam na receita clássica para determinar a cor da luz emitida por um corpo a uma dada temperatura, procurando, por tentativa e erro, encontrar a combinação de ingredientes que fizesse corresponder previsão e observação. Enfim, já próximo de exaurir seu catálogo de fórmulas, ele recorreu a uma expressão aparentemente estapafúrdia, e… deu certo! Graças a este processo exaustivo de eliminação, em que não houve inspiração ou intuição física que guiasse suas expectativas sobre o que deveria ocorrer, Planck encontrou a expressão saneadora, uma modificação da relação entre a luz e a estrutura da matéria que resolvia o problema. Contudo, como o próprio Planck rapidamente se deu conta, o conceito a que essa expressão salvadora correspondia era estranho, tão estranho que ninguém jamais o havia elaborado, imaginado ou mesmo suspeitado; simplesmente, não tinha precursores…

A razão para esse ineditismo é que, em nossa experiência cotidiana, quando queremos colocar alguma coisa em movimento, imprimimos uma força sobre ela, da intensidade que quisermos (ou pudermos); isto é, através de nossa ação, cedemos movimento ao corpo, em medida em princípio arbitrária. Mas a solução que Planck encontrou correspondia a um tipo de ação inteiramente diferente: um bloco indivisível de atividade, ou seja, uma unidade elementar de movimento. Quando os átomos de matéria interagissem no mundo microscópico, trocariam entre si não quantidades arbitrárias de movimento, e sim “átomos” ou pacotes unitários de ação (que Planck chamou de quantum, no plural quanta). Mas ao ocorrerem por meio de trocas de “grãos” inteiros de atividade, as interações dos átomos se tornam brutais, disruptivas, como se eles saltassem diretamente de um estado de movimento para o outro, sem realizar os valores intermediários. Essa é uma noção que a experiência sensível jamais nos proporcionou; o mundo microscópico dos quanta resulta ser completamente diferente do que percebemos de nosso mundo clássico. “Ninguém compreende a Física Quântica!”, exclama Feynman (um de seus grandes desenvolvedores); de fato, embora seja a mais bem verificada teoria já elaborada sobre o mundo físico, seus preceitos parecem saídos das páginas da Alice, de Carroll[30].
Grandezas quantizadas, isto é, que se apresentam num espectro prefixado de valores inteiros, nada têm de extravagante e lidamos perfeitamente bem com elas. O exemplo mais notório é o dinheiro: temos moedas de 1,5,10, 2550 e 100 centavos, e de nenhum outro valor. Se quisermos pagar 37 centavos a alguém, por exemplo, teremos que obter este número a partir de uma combinação das moedas disponíveis; e quando o pagamento é recebido, a pessoa torna-se 37 centavos mais rica, instantaneamente, de uma só vez, e não gradualmente, primeiro um centavo, depois outro, e assim por diante. Estas noções são corriqueiras e nos parecem completamente razoáveis — até que, seguindo Planck, imaginemos aplicá-las a corpos em movimento. Se o movimento de um automóvel fosse quantizado segundo um espectro de valores análogo ao das moedas, ao acelerarmos ele passaria de 10 km por hora para 25 km por hora, instantaneamente, de uma só vez, isto é, sem passar por 11, 12 etc. km por hora! Nenhum de nós, quiçá abençoadamente, jamais testemunhou um corpo se comportar dessa maneira. Não admira os quanta de ação não tivessem nunca sido intuídos, ou concebidos, ou delirados; nosso cérebro mamífero, tão bem adaptado para apreender movimentos contínuos, nunca havia sido apresentado a esse tipo de acontecimento descontínuo — que, no entanto, será doravante a regra para a exploração dos fenômenos microfísicos. Graças à aplicação dessa regra, foi possível verificar que cada elemento químico emite e absorve luz apenas em certas frequências, ou seja, cada um possui uma “assinatura” eletromagnética única, o que permitiu comprovar que o Sol e as demais estrelas são compostas pelos mesmos elementos químicos encontrados na Terra[31]. Contudo, como Planck compreendeu e advertiu, a introdução da noção de quantum de ação irá implicar uma transformação profunda e perturbadora do estatuto da observação empírica e, por conseguinte, do próprio modo tradicional de produzir conhecimento.

Principiemos por considerar a destituição do procedimento clássico do conhecimento por representação. Segundo Descartes, os acontecimentos se fazem presentes duplamente: uma primeira vez na extensão, ou seja, no plano dos fatos, dos corpos e seus movimentos; através de nossos sentidos, nos apercebemos destes fatos. Em seguida essa imagem sensível se transformaem uma imagem mental, sobre a qual a razão irá operar para termos conhecimento positivo sobre o mundo. Portanto, o acontecimento se faz presente uma primeira vez enquanto fato no mundo, e uma segunda vez enquanto ideia no pensamento. A condição para a existência de conhecimento verdadeiro, consubstanciado em ideias claras e distintas, é portanto a adequação entre a imagem sensível e a imagem mental, isto é, a fidelidade entre a coisa que se presenta e sua representação, de modo que a razão possa desvelar a essência do acontecimento. Essa é, em resumo, a construção do conhecimento pela via da representação que nos foi legada pelo racionalismo cartesiano.

Ora, qual é a exigência fundamental para que esse procedimento possa funcionar? É a de que os estímulos perceptivos recebidos do mundo não sejam contaminados por aspectos espúrios, ilusões e enganos que impeçam a formação de ideias claras e distintas. À noite, na treva da floresta, vejo monstros ameaçadores movendo-se à minha volta; com a luz do dia, constato que era apenas o vento agitando os ramos das árvores. Mas, para lograr tal apreensão adequada dos fatos, é necessário antes de tudo que se possa observar o acontecimento visado sem que esse exame altere significativamente o desenrolar do acontecimento. Podemos, por exemplo, determinar a localização de uma parede em uma sala às escuras disparando uma bazuca; com o impacto, saberíamos onde a parede está — ou estava. Mas também podemos lançar bolas de gude em diferentes ângulos e registrar os ecos dos impactos, de modo a figurar a posição da parede. Ou podemos ainda simplesmente acender a lâmpada; a luz se refletirá na parede e alcançará nossos olhos, e saberemos onde a parede está, sem que nenhuma de suas propriedades pareça ser modificada. Trata-se sempre de obter informação sobre um dado objeto por meio de uma sondagem, de uma interação controlada com o objeto, sem que essa interação transforme ou altere significativamente o próprio objeto. Em suma, se queremos conhecer as propriedades de alguma coisa, devemos interagir com ela, por exemplo, por meio de uma sonda, um corpo-teste; estudamos o desvio sofrido por este objeto-sonda e deduzimos daí as propriedades desejadas. Em princípio, pode-se suavizar essa sondagem ou intervenção o quanto se quiser, e assim ter conhecimento sobre o objeto corno se ele estivesse imperturbado, sem interação; como se não se estivesse perguntando[32].

Começamos agora a discernir a amplitude do problema: quando se introduz a ideia de quantum de ação, a sondagem mais suave, a menor intervenção que se poderá fazer será ceder ao objeto examinado, no mínimo, um quantum, um pacote de atividade. Não há, por definição, frações desta unidade mínima. Então, o que se vai conhecer não será mais o objeto como que intocado, mas o objeto modificado por ter absorvido, no mínimo, um pacote de atividade. Conhecer, portanto, torna-se inseparável de transformar. O observador deixa de poder ser, mesmo em princípio, um contemplador, e adquire inevitavelmente o papel de um interventor — ou, ainda melhor, de um participador. Assim, a própria natureza do ato de produzir conhecimento se altera em função da aparição deste segundo tipo de átomo. Repetindo: uma vez que a perturbação mínima que se pode exercer sobre um dado sistema é fazer incidir sobre ele um quantum de ação, o próprio processo de conhecimento (a medição de propriedades desse sistema) envolverá uma intervenção inevitável e indeterminável, uma vez que altera justo o que sé quer conhecer[33]. A razão é clara: para determinarmos a posição de um átomo (circunscrevê-lo a uma “caixa”com um dado volume, em nosso laboratório), lançamos sobre ele um raio de luz, digamos, e observamos seu desvio. Mas ao interagir com o átomo e ser desviada, a luz transferiu para o átomo, no mínimo dos mínimos, um quantum de ação; este procedimento irá necessariamente modificar o estado de movimento em que o átomo se encontrava, fazendo-o saltar para um patamar um quantum mais elevado. A conclusão é a de que, ao interagirmos com o objeto para determinar um de seus atributos — sua localização, por exemplo inevitavelmente alteraremos outra propriedade — seu movimento, por exemplo —, que devido exatamente a esta intervenção será alterada de um modo que não podemos especificar, uma vez que foi nossa própria pergunta que modificou o estado original do sistema. Para todos os fins práticos, se determinamos certa propriedade (isto é, temos grande certeza sobre seu valor), então obrigatoriamente indeterminamos uma propriedade complementar (isto é, temos grande incerteza sobre seu valor). Ou seja: doravante, produzir conhecimento se torna indissociável de produzir ignorância.

Esta nova regra para a exploração do mundo microfísico foi consubstanciada no célebre Princípio da Incerteza, formulado por Werner Heisenberg, em 1927[34]. Para muitos filósofos da Ciência, a vigência deste Princípio representou uma ruptura radical não somente com a cosmovisão “clássica”, baseada no mecanicismo newtoniano, como ademais com todo e qualquer materialismo simplista. De fato, ao expressar a impossibilidade de um dado observador poder determinar simultaneamente, e com precisão arbitrária, os valores efetivos de grandezas essenciais para a obtenção da noção clássica de trajetória de uma partícula, quais sejam, sua posição e quantidade de movimento, Heisenberg confere à Física Quântica então em construção uma relação complementar entre Epistemologia (o Princípio regendo a possibilidade de se conhecer a realidade”) e Ontologia (a afirmação da “objetividade” da medida obtida) que não encontra paralelo na tradição newtoniana[35].

O paradoxo é nítido: se a intervenção experimental requerida para se conhecer, isto é, medir com precisão, um dado aspecto de um sistema microscópico necessariamente inviabiliza a determinação, com precisão comparável, de uma grandeza complementar, vemos surgir na instância fundamental dos micro-objetos uma indefinição essencial, equivalente a uma aleatoriedade básica, que vigoraria em todos os eventos em escala microscópica. Por outro lado, se mesmo o mais sofisticado aparato experimental imaginável não puder extrair senão uma parcela limitada da informação necessária para determinar, à maneira clássica, a evolução do sistema, nosso poder de previsão sobre o micromundo será sempre limitado; na verdade, tudo o que poderemos estabelecer são as chances de que uma dada configuração, dentre uma variedade de estados possíveis, seja encontrada ao cabo de cada medição. A casualidade microscópica, bem como a consequente previsibilidade limitada, tão somente estatística, de nossa apreensão do micromundo, devem doravante ser encaradas como “fatos da natureza”, na medida em que constituem características essenciais e incontornáveis de nosso conhecimento da natureza, conforme o Princípio da Incerteza. A consequência será devastadora: os micro-objetos não são indivíduos, suas formas são inerentemente mutáveis e ambíguas; as “coisas”, portanto, não são feitas de “coisas”[36].

Um exemplo, oferecido por David Mermin, nos ajudará aqui[37]. Façamos a pergunta: a Lua está lá quando ninguém está olhando? Quando fechamos os olhos, a Lua sumiu, quando os reabrimos, ali está ela no céu; ela continuou lá quando não a estávamos vendo? Ora, somente o mais desvairado solipsista afirmaria que a aparição da Lua no céu dependeria de sua mirada para ela; para todos os demais, a existência continua da Lua não depende de nenhum modo de estar sendo avistada ou não. Contudo, se a Lua fosse quântica (isto é, se estivéssemos examinando um objeto em escala atômica), ela só estaria “lá” quando estivéssemos olhando, ou seja, ao cabo de um processo de medição que produzisse, como resultado, um valor para sua posição, dentro de uma certa precisão, em conformidade com o Princípio da Incerteza. Quando não estivéssemos olhando, ou seja, medindo, não poderíamos afirmar que a “Lua quântica” estava “lá” — porque “lá” não seria bem definido! Isto significa que, no âmbito da descrição quântica, não há uma realidade prêt-à-porter, composta por objetos com propriedades previamente estabelecidas (e.g., indivíduos) e independentes de nossos atos de observação. Ou seja: costumamos supor, por hábito, que antes de realizarmos o processo de medição o átomo, tal como a Lua clássica, se encontra em algum lugar — desconhecido para nós, mas decerto único e, mais ainda, bem definido. Ora, tudo o que nossa observação revela, tudo o que pode revelar, são valores imprecisos das propriedades do átomo, como sua posição e movimento; se um deles é muito bem conhecido, o outro o será muito mal, reciprocamente. Por que então deveríamos conferir ao átomo atributos duradouros e bem definidos mesmo antes de empreendermos nossa sondagem? O que seria isso, senão uma mera crença?

Frisemos bem: o Princípio da Incerteza é uma diretriz epistemológica, e não uma regra ontológica; não regula os seres da Natureza, e sim o nosso conhecimento possível acerca desses seres. Contudo, para podermos especular sobre objetos estáveis, com propriedades contínuas e independentes de nossos procedimentos de medição, precisaríamos dispor de um princípio superior que nos prescrevesse quando o Princípio da Incerteza deve ser aplicado ou não. Imaginemos que só podemos enxergar as coisas à nossa volta por meio de óculos; se as lentes estiverem embaçadas, veremos somente objetos indistintos, com contornos difusos, mesmo que esses objetos possuam formas fixas e exatas. Consideremos em seguida o caso contrário, isto é, as lentes de nossos óculos são cristalinas, perfeitamente transparentes, mas estamos cercados por objetos de contornos fluidos, de bordas vagas. Se, ao fim e ao cabo, o que invariavelmente enxergamos são formas indefinidas, como poderíamos distinguir as duas situações? Ora, não há na Física contemporânea essa norma suprema que garanta a autonomia existencial plena aos objetos microscópicos, similar à das pedras, montanhas e Luas. Bem ao invés, sob a vigência do Princípio da Incerteza, tudo se passa como se os objetos microfísicos não possuíssem atributos contínuos e independentes da observação[38]. Nesse caso, é lícito concluir que o observador, muito além de um mero contemplador, torna-se agora um coprodutor dos acontecimentos e, por consequência, da própria “realidade”. A célebre dualidade onda-corpúsculo é a mais notória expressão deste novo ponto de vista: dependendo do aparato experimental escolhido, um átomo manifestará ora as propriedades de um objeto localizado (padrão corpuscular), ora a de um objeto extenso (padrão ondulatório). A pequena parte (ou partícula) de um corpo não é mais somente um pequeno corpo (ou corpúsculo), pode apresentar-se também como um ente plurilocalizado, distribuído ao longo de toda uma região, como uma onda. Uma entidade que exiba tal ambiguidade existencial, tal multiplicidade de formas díspares, incompossíveis, mas inseparáveis, coexistentes, será para a tradição aristotélica nada mais que um monstro, uma esfinge ou quimera; um ser que estivesse ao mesmo tempo em muitos lugares, e tivesse em si partes de muitos outros seres[39].

Recordemos por um instante a augusta formulação da Ontologia clássica: o Real é o que existe (o que não existe não é real); o que existe é a Substância (matéria impregnada de forma); a Substância se apresenta individuada, isto é, sob a guisa das classes de indivíduos; todo Indivíduo exibe unidade e identidade. Mas se os objetos quânticos não possuem unidade (de forma) nem identidade (contínua), a rigor não podem ser definidos como indivíduos; se não são indivíduos, não são substanciais; se não são modos da Substância, não existem, se não existem, não são reais. Vemos bem onde o paradoxo dos limites indefinidos irá residir doravante: no plano fundamental da constituição das matérias. Na perspectiva de Heisenberg, porém, a vigência de uma incerteza fundamental em nossa apreensão dos eventos em escala microscópica, manifesta pela previsibilidade limitada decorrente do Princípio da Incerteza, corresponderá a um desdobramento da própria noção de “realidade”. Se não há entidades com atributos continuamente estáveis e definidos no domínio quântico, isso implica a aposentadoria do próprio conceito de substância como o substrato básico de que são compostas as coisas do mundo — ou seja, o destronamento definitivo da veneranda doutrina do Hilemorfismo[40]. Por aquém da realidade atual, efetiva, diz Heisenberg, regras matemáticas governam o possível; o que chamamos de “mundo objetivo” seria, então, a expressão macroscópica de uma trama de relações microscópicas quânticas que não padecem, elas mesmas, de “objetividade”[41]. A noção de Real deverá, assim, desdobrar-se em duas modalidades: uma Realidade efetiva e uma Pré-Realidade potencial. As substâncias individualizadas que comporiam a instância última da existência material tornam-se não mais que uma fração ou parcela de uma Totalidade ampliada, espessada; precisam ser complementadas por potencialidades de ser, por virtualidades, ou, se assim quisermos, “coisas vagas”.

Podemos talvez comparar o estatuto existencial dos objetos quânticos, na visão de Heisenberg, aos resultados de sucessivos golpes de dados. Imaginemos um dado rolando; enquanto não verificamos qual face acabou voltada para cima, tudo se passa como se as seis faces pudessem ser o resultado da jogada. Enquanto não se comprova qual dos números foi efetivamente sorteado, é como se as seis faces gozassem do mesmo grau de potencialidade de vir a ser. Quando, todavia, o resultado é apresentado, é como se as outras possibilidades, que até este momento eram candidatas competitivas, igualmente viáveis de ser realizadas, nunca tivessem existido. Mas eis que tomamos do dado e o jogamos outra vez; incrivelmente, restauram-se integralmente as potencialidades de cada face. O acaso não se atenua, nem se desgasta; infatigável, retorna sempre em completa plenitude. Novamente rolamos o dado, novamente as seis faces têm equipotência de ser. A modalidade de existência do dado seria assim dupla: múltipla e virtual enquanto o dado rola, unívoca e presente quando o sorteio é completado[42].

Vamos agora transferir essa imagem para o comportamento real dos átomos: uma vez que, para todos os fins práticos, eles não possuem forma duradoura e bem definida, podemos compará-los a leques de potencialidades, a feixes de formas possíveis. É tudo o que deles se pode dizer enquanto não se realiza uma medida; podemos estimar somente as chances, as probabilidades, de um dos estados possíveis vir a manifestar-se ao fim da observação. Ao realizarmos a medição, suscitamos — como no caso do sorteio do dado — a concretização de uma dessas potencialidades. As demais, é como se nunca tivessem existido — mas retornam logo a seguir, quando fazemos uma outra observação. Assim, a modalidade de existência dos próprios objetos microfísicos seria também duplicada: teríamos uma “realidade efetiva”, a dos objetos coisificados, individuados por uma medição, mas também um “real potencial”, correspondente às profundezas da multiplicidade, ao reino das potencialidades de vir a ser.

Sem a profundeza oceânica das potencialidades, afirma Heisenberg, o mundo das coisas, este nosso mundo, não pode subsistir.[43]

O paradoxo aqui se amplifica mais um grau: a convicção tradicional de que o “mundo real seja essencialmente bem determinado se reduz a mera certeza, isto é, uma crença de caráter metafísico (ou psicológico) que, para Heisenberg, não é vindicada pela própria teoria quântica. Todavia, importantes pioneiros e desenvolvedores da Física Quântica, como Einstein, De Broglie e Bohm, nunca aceitaram abrir mão de uma ontologia estritamente realista, e procuraram meios de circunscrever a validade das noções indeterministas ou adaptá-las a um quadro de fundo clássico.[44] É preciso, contudo, repetir: até hoje, a Física Quântica foi invariavelmente aprovada em todos os testes experimentais; trata-se, sem dúvida, da mais bem comprovada concepção já produzida pela Física[45]. Com não pequena ironia, a incerteza parece ser agora a mais confiável das certezas…

Se, para nosso senso comum forjado e sancionado por milênios de vivências de fatos em escala humana, isto é, macroscópica, os preceitos quânticos que regem o substrato microfísico soam extravagantes ou mesmo bizarros, de uma perspectiva mais ampla, a disparidade entre os diferentes planos da existência material que, segundo Heisenberg, esses preceitos introduzem acarreta pelo menos três consequências sumamente interessantes: contrariar toda a corrente principal da tradição filosófica do Ocidente ao restituir aos enunciados paradoxais a capacidade de atuar como produtores de inteligibilidade, e não somente como indutores de enganos; abolir o reducionismo simplista que pretendia subsumir o conhecimento do todo à análise das partes; e, pelo caráter intrinsecamente aleatório que cada evento microscópico manifestaria, conferir-lhes a qualidade de autênticos começos. Pássaros inúmeros de Borges, horizontes deslizantes de Cusa, partículas incertas de Heisenberg, vagas coisas de Valéry: não parece um mau material para se fazer um sonho — ou um mundo.

Notas

  1. Werner Heisenberg, A parte e o todo, Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. 
  2. Vide os três volumes anteriores da série “Mutações”, organizada por Adauto Novaes. 
  3. Jorge Luis Borges, O fazedor, São Paulo: Difel, 1984. 
  4. Bill Bryson, A Short History of Nearly Everything, Londres: Doubleday, 2003. 
  5. Kees van Deemter, Not Exactly, Nova York: Oxford University Press, 2010. 
  6. Newton da Costa, O conhecimento científico, São Paulo: Discurso Editorial, 1999. 
  7. Henri Atlan, Entre o cristal e a fumaça, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991. 
  8. Arthur O. Lovejoy, The Great Chain of Being, Cambridge: Harvard University Press, 1964. 
  9. Margaret Wertheim, Uma história do espaço — de Dante à internet, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. 
  10. Samuel Sambursky, The Physical World of the Greeks, Londres: Routledge, 1960. 
  11. Edwin A. Burtt, As bases metafísicas da ciência moderna, Brasilia: Ed. UnB, 1991. 
  12. Alexandre Koyré, Estudos de história do pensamento filosófico, Rio de Janeiro: Forense Universitária/Ed. UnB, 1991. 
  13. Alexandre Koyré, Estudos de história do pensamento científico, Rio de Janeiro: Forense Universitária/Ed. UnB, 1982. 
  14. Daniel Boorstin, Os criadores, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995. 
  15. Arthur Koestler, O homem e o universo, São Paulo: Ibrasa, 1989. 
  16. Alexandre Koyré, Do mundo fechado ao universo infinito, São Paulo: Forense Universitária/Edusp, 1979. 
  17. Geneviève Rodis-Lewis, Descartes, Rio de Janeiro: Record, 0996. 
  18. Bertrand Russell, História da filosofia ocidental, Rio de Janeiro: Cia. Editora Nacional, 1977. 
  19. Manuel de Landa, Intensive Science and Virtual Philosophy, Londres: Continuum, 2002. 
  20. Robert Graves, The Greek Myths, Londres: Penguin, 1960. 
  21. Albert Camus, O mito de Sísifo, Rio de Janeiro: Guanabara, 1969. 
  22. Epicuro-Lucrécio-Cícero-Sêneca-Marco-Aurélio, São Paulo: Abril Cultural, 1985 (Col. Os Pensadores). 
  23. Pietro Redondi, Galileu herético, São Paulo: Companhia das Letras, 1991. 
  24. Jean Rosmorduc, Uma história da física e da química, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. 
  25. Abraham Pais, Sutil é o Senhor, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. 
  26. Numa votação realizada pela revista Omni em 1985. 
  27. Numa votação realizada pela revista Omni em 1985. 
  28. Hubert Reeves, A hora do deslumbramento, São Paulo: Martins Fontes, 1986. 
  29. Banesh Hoffman, The Strange Story of the Quantum, Nova York: Dover, 1959. 
  30. Robert Gilmore, Alice no país dos quanta, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. 
  31. Timothy Ferris, O despertar na Via Láctea, Rio de Janeiro: Campus, 1990. 
  32. Edward Speyer, Seis caminhos a partir de Newton, Rio de Janeiro: Campus, 1995. 
  33. Tony Hey e Patrick Walters, The Quantum Universe, Cambridge University Press, 1992. 
  34. Werner Heisenberg, A imagem da natureza na física moderna, Lisboa: Livros do Brasil, s.d. 
  35. Niels Bohr, Física atômica e conhecimento humano, Rio de Janeiro: Contraponto, 1995. 
  36. Luiz Alberto Oliveira, Caos, acaso, tempo. In: A. Novaes (org.), A crise da razão, São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 
  37. P C. W Davies e J. R. Brown (eds.), The Ghost in the Atom, Cambridge: Cambridge University Press, 1995. 
  38. Werner Heisenberg, Problemas da física moderna, São Paulo: Perspectiva, 1969. 
  39. John Gribbin, À procura do gato de Schrödinger, Lisboa: Presença, s.d. 
  40. Gilbert Simondon, L’Individu et sa gènese physico-biologique, Grenoble: Millon, 1995. 
  41. David Deutsch, A essência da realidade, São Paulo: Mahon, 2000. 
  42. Paul Davies, Outros mundos, Lisboa: Edições 70, 1987. 
  43. Werner Heisenberg, Aparte e o todo, Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. 
  44. Nick Herbert, A realidade quântica, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989. 
  45. Anton Zeilinger, A face oculta da natureza, São Paulo: Globo, 2005. 

    Tags

  • Albert Eistein
  • atomismo
  • átomos
  • autonomia
  • causa eficiente
  • causa final
  • causa formal
  • causa material
  • ciências naturais
  • corpo
  • cosmos
  • cosmovisão
  • cosmovisão aristotélica
  • Dalton
  • Descartes
  • Deusm natureza
  • Doutrina das quatro causas
  • envelhecimento
  • Epicuro
  • espaço absoluto
  • filosofia
  • filosofia natural
  • física quântica
  • generalização
  • Grande cadeia dos seres
  • Heisenberg
  • hilemorfismo
  • homem
  • identidade
  • individualização
  • indivíduo
  • indivíduos
  • Lavoisier
  • Lucrécio
  • matéria
  • materialidade
  • materialismo
  • Max Planck
  • mecanismo newtoniano
  • mitologia
  • mundo
  • Nicolau Krebs
  • objetividade
  • ontologia
  • partícula
  • pensamento
  • princípio da incerteza
  • quanta
  • quantum
  • química
  • Renascimento
  • sonho
  • subjetividade
  • substância
  • tecnociência
  • terra
  • universo