1990

Laços do desejo

por Marilena Chaui

Resumo

Com a Philosophia naturalis do século XVII, o desejo deixa de ser uma força cega relacionada aos astros para se tornar desiderium, decisão de tomar o destino nas mãos, vontade consciente nascida da deliberação. Para Aristóteles, desejo era movimento e imitação (mímesis) da imobilidade divina. Ele não podia ser objeto de ciência, apenas da educação e da retórica (transformar o desejo em virtude). Os estoicos o viam como uma doença da alma que só podia ser vencida pela impassibilidade, posição que o cristianismo aprofunda, associando o desejo ao pecado. Reagindo a essas tradições, a Renascença reafirma o desejo como realização alquímica da divindade em nós. Ao mesmo tempo, ele se torna um objeto de estudo, como de resto toda a Natureza (que é preciso atormentar e violentar para que nos deixe ver suas formas, disse Roger Bacon). O desejo é agora movimento mensurável que não pertence mais às esferas da moral e da retórica. Ele é passível de um saber matemático. “Tratarei dos desejos humanos como se tratasse de linhas, superfícies ou volumes”, escreve Espinosa. Para os filósofos do seu tempo, essa visão é sobretudo mecanicista. Mas Espinosa vai mais longe. Ele alia desejo e razão, critica a ideia do homem como “império dentro de um império”, isto é, poder independente e rival da Natureza. A alma é ideia do corpo e compreender o desejo é a ação da alma. Na modernidade, o que era força cósmica se interioriza (é o chamado “desencantamento do mundo”), mas também se formam novos laços do desejo.

 


I

Desencantamento do Mundo: nessa expressão condensa-se aquilo que conhecemos como a modernidade, ideias e práticas desenvolvidas na Europa a partir do século XVII, sob os imperativos da racionalização de todas as esferas do real determinada pela Philosophia Naturalis, sistema de representações que interpreta a realidade física e humana com os conceitos postos pela mecânica clássica e pela metafísica da distinção substancial entre a extensão e o pensamento. Ainda que, hoje, aquela metafísica e sobretudo aquela mecânica tenham perdido a soberania, que a ideia de unidade do saber tenha desaparecido, que as chamadas ciências da cultura tenham marcado sua autonomia face às ciências da natureza, que as interrogações sobre o sentido da história e sobre o imaginário social e político tenham determinado fronteiras diferenciadoras naquilo que um filósofo designou como ordem física, vital e humana, ainda assim, permanece o traço fundante da modernidade, qual seja, a admissão de que a realidade não encerra mistérios, que está prometida ao sujeito do conhecimento como inteligibilidade plena e ao sujeito da técnica como operacionalidade plena, vitória da razão contra o irracional que não cessa de rondá-la e ameaçá-la.

Uma comparação pode, aqui, servir de auxílio.

Na abertura do Leviatã, Hobbes escreve:

Do mesmo modo que em tantas outras coisas, a Natureza (arte mediante a qual Deus fez e governa o mundo) é imitada pela Arte dos homens também nisto: que lhe é possível fazer um animal artificial. Pois vendo que a vida não é mais do que movimento dos membros, cujo início ocorre em alguma parte principal interna, por que não poderíamos dizer que todos os autômatos (máquinas que se movem a si mesmas por meio de molas, tal como o relógio) possuem vida artificial? Pois o que é o coração, senão uma mola; os nervos, senão outras tantas cordas; e as juntas, senão outras tantas rodas, imprimindo o movimento ao corpo inteiro, tal como foi projetado pelo Artífice? E a Arte vai mais longe ainda, imitando aquela criatura racional, a mais excelente obra da Natureza, o Homem. Porque pela Arte é criado aquele grande Leviatã que se chama Estado, ou Cidade (civitas, em latim), que não é senão um homem artificial [… ] e no qual a soberania é uma alma artificial, pois dá vida e movimento ao corpo inteiro; os magistrados e outros funcionários judiciários ou executivos, juntas artificiais; a recompensa e o castigo […] são os nervos, que fazem o mesmo no corpo natural; a riqueza e a propriedade de todos os membros individuais são a força;[…] a concórdia é a saúde; a sedição, a doença; a guerra civil é a morte. Por último, os pactos e convenções […] assemelham-se àquele Fiat, ao “Façamos o homem”, proferido por Deus na Criação.[1]

Não é casual a referência hobbesiana à Natureza como arte divina e à Arte como imitação da Natureza e potência para criar não só coisas artificiais, mas ainda o animal artificial. O natural — o corpo humano — é descrito como mecanismo artificial — o relógio —, enquanto o artifício — o corpo político — é descrito como mecanismo natural — o corpo humano. Essas descrições espelhadas possuem três objetivos determinados e decisivos para a modernidade hobbesiana. Em primeiro lugar, toda a realidade é posta como artefato, uma vez que a Natureza é obra de arte divina, de sorte que a expressão aristotélica “a arte imita a natureza”, traduz-se, agora, para “a arte (humana) imita a arte (divina)”: tudo é artifício mecânico. Em segundo lugar, essa passagem ao artefato incide diretamente sobre a teoria da ciência. Com efeito, Hobbes afirma, desde o De Corpore, que o modelo da ciência verdadeira é a geometria, que nada mais faz senão deduzir as consequências internas e necessárias de suas próprias operações. Só há ciência propriamente dita quando, à maneira do geômetra, conhecemos a gênese e a produção interna do objeto. Ora, só conhecemos a gênese daquilo que nós próprios produzimos e, portanto, só há ciência dos corpos e ações humanos ou dos corpos que o homem produz (linguagem, matemática, psicologia, ética e política). Há ciência apenas daquilo de que somos artífices (não há ciência metafísica nem, rigorosamente falando, física). Em terceiro lugar, naquilo que produzimos somos deuses porque a divindade é demiúrgica. A razão, como poder do artificio, é soberana.

Nada pode contrastar mais com o texto de Hobbes do que o de Yehudah Abravanel, Leão Hebreu, nos Diálogos do amor. Compondo uma síntese do pensamento platônico-neoplatônico e aristotélico e uma súmula do que a literatura transformará em teoria do amor cortês, Leão Hebreu mantém a tradição do macro e microcosmo, do homem como “pequeno mundo” que espelha o universo e é por ele espelhado:

Digo-te que o Céu, pai de todas as coisas geráveis, move-se num movimento contínuo e circular sobre o todo do globo da matéria primeira, ao mover-se e remexer todas as suas partes germina todos os gêneros, espécies e indivíduos do mundo inferior da geração; assim como, movendo-se o macho sobre a fêmea, e movimentando-se nela, procria filhos […]. A Terra é o corpo da matéria primeira, receptáculo de todas as influências de seu macho, que é o Céu. A Água é a umidade que a nutre. O Ar é o espírito que a penetra. O Fogo é o calor natural que a tempera e vivifica […]. Todo o corpo do Céu produz com seu movimento o esperma, assim como o todo do corpo humano produz o seu. E do mesmo modo que o corpo humano é composto de membros homogêneos, quer dizer, não organizados, como ossos, veias, panículos e cartilagens, além da carne, assim o corpo do Oitavo Céu é composto de estrelas fixas de natureza diversa, além da substância do corpo diáfano que penetra entre elas […]. A geração do esperma do homem depende, em primeiro lugar, do coração que dá o calor, forma do esperma; em segundo lugar, do cérebro, que dá o úmido, matéria do esperma (…); em terceiro, do fígado, que tempera o esperma […]; em quarto, do baço que engrossa o esperma […]; em quinto, dos rins que o tornam pungente, quente e estimulante […]; em sexto, dos testículos, onde o esperma adquire perfeição e compleição gerativa (…). Sétimo e último, do pênis que lança o esperma […]. É assim que, no Céu, os sete planetas concorrem para a geração do esperma do mundo (…). O Sol é o coração do Céu […] a Lua é o cérebro […] Júpiter, o fígado […] Saturno é o baço do Céu […] Marte, o fel e os rins (…) Vênus, os testículos […] Por último, Mercúrio é o pênis do Céu.[2]

Como todo renascentista, Yehudah Abravanel opera com a semelhança como eixo organizador do pensamento, isto é, das palavras e das coisas, de sorte que o espelhamento erótico dos corpos do mundo e do homem determina três direções do conhecimento, antagônicas às delineadas no texto de Hobbes. Em primeiro lugar, Leão Hebreu considera animados todos os seres, tanto os insensíveis quanto os sensíveis e os racionais, não porque sejam ”molas”, “rodas” e “cordas” de um mecanismo universal, mas porque são habitados pela Alma do Mundo que os orienta “numa reta e infalível cognição” que se chama, nos insensíveis, desejo natural ou inclinação, nos sensíveis, desejo sensitivo ou apetite e, nos racionais, desejo racional ou vontade. O mundo, como o homem, habitado por uma alma desejante e amorosa, é vínculo de coisas “que não se amam em vão umas às outras” porque são partes de um “ser íntegro e perfeito”. Em segundo lugar, o conhecimento, ato intelectivo próprio apenas dos racionais, é movimento ascencional de purificação do desejo, subindo do amor sensual ao amor intelectual, produzido pela cópula do intelecto agente (divino) com o intelecto paciente (humano) que arrebata este último para o “ato copulativo do íntimo e coeso conhecimento divino”. Em terceiro lugar, finalmente, o Artífice divino e o artífice humano se distinguem porque o primeiro é propriamente criador, tirando o mundo do nada, enquanto o segundo é fabricador, imitando o primeiro através da “arte de fazer vínculos”, isto é, dos laços secretos dos desejos das coisas, postos em movimento pela magia naturalis .

Sem dúvida, o desencantamento do mundo sofreu pequenas interrupções, no correr dos últimos séculos, com a emergência periódica dos irracionalismos: o romantismo exacerbado, o niilismo, o nazifascismo e, no momento, o pós-modernismo. Todavia, sob a poeira dos ventos irracionalistas e sob a necessidade urgente de repensar a própria ideia da razão,[3] permaneceu intacta a confiança moderna na racionalidade das coisas e do mundo.

É muito possível que o desejo, cuja mística parece tomar conta da ideologia contemporânea, seja uma noção privilegiada para captarmos o advento do mundo desencantado, particularmente quando acompanhamos sua mutação, passando de conceito metafísico a conceito psicológico. De interpretante das estruturas e acontecimentos cósmico-teológicos, o desejo passou a significante das operações e significações inconscientes da psique humana. O desejo — eros platônico, mímesis aristotélica, simpatia-antipatia universais renascentista, Lust-Begierde dos mistérios teosóficos böhmeanos[4] — deixou de ser o motor e o móvel do universo para recolher-se no interior da alma, simples paixão humana. É verdade que, para os primeiros filósofos modernos — Bacon, Descartes, Hobbes, Espinosa, Leibniz — as paixões da alma ainda eram parte das operações comuns à Natureza inteira, mas com eles já está assinalada a separação metafísica do em-si e do para-si, preparando a passagem do desejo de condição e suporte do cosmo a objeto de uma ciência particular (a psicologia) e das clínicas (psiquiatria e psicanálise). O desencantamento do mundo tem como pressuposto essa decisiva mutação do desejo que, de misteriosa potência cósmico-teológica, transmuta-se em simples potência da alma cujo enigma cabe à razão decifrar inteiramente.

II

A palavra desejo tem bela origem. Deriva-se do verbo desidero que, por sua vez, deriva-se do substantivo sidus (mais usado no plural, sidera), significando a figura formada por um conjunto de estrelas, isto é, as constelações. Porque se diz dos astros, sidera é empregado como palavra de louvor — o alto — e, na teologia astral ou astrologia, é usado para indicar a influência dos astros sobre o destino humano, donde sideratus, siderado: atingido ou fulminado por um astro. De sidera, vem considerare — examinar com cuidado, respeito e veneração — e desiderare — cessar de olhar (os astros), deixar de ver (os astros).

Pertencente ao campo das significações da teologia astral ou astrologia, desiderium insere-se na trama dos intermediários entre Deus e o mundo dos entes materiais (corpos e almas habitantes de corpos). Os intermediários siderais, eternos e etéreos, exalam diáfanos envoltórios com que protegem nossa alma, dando-lhe um corpo astral que a preserva da destruição quando penetra na brutalidade da matéria, no momento da geração e do nascimento. Pelo corpo astral, nosso destino está inscrito e escrito nas estrelas e considerare é consultar o alto para nele encontrar o sentido e guia seguro de nossas vidas. Desiderare, ao contrário, é estar despojado dessa referência, abandonar o alto ou ser por ele abandonado. Cessando de olhar para os astros, desiderium é a decisão de tomar nosso destino em nossas próprias mãos, e o desejo chama-se, então, vontade consciente nascida da deliberação, aquilo que os gregos chamavam bóulesis. Deixando de ver os astros, porém, desiderium significa uma perda, privação do saber sobre o destino, queda na roda da fortuna incerta. O desejo chama-se, então, carência, vazio que tende para fora de si em busca de preenchimento, aquilo que os gregos chamavam hormê. (É esse sentido de carência e privação que encontramos na curiosa expressão latina, inscrita no final das obras inacabadas: Reliqua desderantur, falta o restante). Essa ambiguidade do desejo, que pode ser decisão ou carência, transparece quando consultamos os dicionários vernáculos, ondé se sucedem os sentidos de desejar: querer, ter vontade, ambicionar, apetecer, ansiar, anelar, aspirar, cobiçar, atração sexual. A oscilação dos significados aparece na diferença sutil de duas palavras, em português: desejante e desejoso/desejosa.

Essa mesma ambiguidade, no Cancioneiro geral de Garcia de Rezende, exprime-se na tensão entre cuydar e sospirar que atravessa as cantigas de amor e de amigo e preside a construção do amor cortês. Quando é o cuydar (cuidar é cogitare, pensar), que tem sua “morada na mente”, o desejo é o pensar que desce do alto da mente para suprir as privações do amor. Quando é o sospirar (de suspirare, respirar e exalar profundamente e que Tito Lívio empregou para falar do desejo ardente), “movimento cordial”, o desejo é o anelar que sobe do coração, ansiando pela vida que lhe falta. Nessa tensão, a Renascença fundirá pouco a pouco desejo e amor — “o amor é desejo de união com o amado e todo desejo é amor e todo o amor é desejo”, escreve Leão Hebreu[5] marcando a diferença entre o sospirar e o cuydar com selo de Marcílio Ficino, isto é, com a diferença entre amor ferinus, desejo sensual para sempre carente e insatisfeito, e amor divinus, desejo intelectual destinado à bem-aventurança da plenitude:

Tão pungitivo poderia ser o desejo e tão íntima a contemplação, que desprendesse completamente e retirasse a alma do corpo, enquanto os espíritos se desligam, devido à sua forte e apertada união, de tal forma que a alma, prendendo-se ternamente no desejado e contemplando o objeto, poderia em breve tempo deixar o corpo de todo exânime […] Por isso os sábios declaram que os bem-aventurados morrem beijando a divindade [morte per bocha di Dio], arrebatados pela amorosa contemplação e união divina.[6]

Se, como amor, o desejo se alça à plenitude, como desejo o amor é cada vez mais sospirar: lamento, ânsia, nostalgia e vem depositar-se nessa palavra que apenas a língua portuguesa teve o engenho e a arte de inventar, saudade. Pensando em português, Espinosa escreveu no terceiro livro da Ética:

Desiderium é o desejo ou apetite de possuir alguma coisa cuja lembrança foi conservada e, ao mesmo tempo, está entravada pela lembrança de outras coisas que excluem a existência da desejada […] Aquele que se recorda de uma coisa com que se deleitou deseja possuí-la nas mesmas circunstâncias em que na primeira vez com ela se deleitou […] se aquele que ama descobrir que alguma dessas circunstâncias falta, ficará triste, pois imagina algo que exclui a existência da coisa amada. Ora, como deseja por amor essa coisa ou essa circunstância, imaginá-la faltando entristece. Essa tristeza, enquanto referida à ausência do que amamos, chama-se desiderium (aqui, rigorosamente, saudade).[7]

O laço que prende o desejo à ausência tornou-se gradualmente a definição do próprio desejo. Não é apenas em Espinosa que encontramos desiderium como amor do que falta. Hobbes escreve:

Do que os homens desejam se diz também que amam, e que odeiam aquelas coisas pelas quais sentem aversão. De modo que desejo e amor são a mesma coisa, salvo que por desejo sempre se quer significar a ausência do objeto e quando se fala em amor, geralmente se quer indicar a presença do mesmo.[8]

A marca do desejo como falta, ausência e carência reaparece na Fenomenologia do espírito quando Hegel faz a exposição da figura da consciência de si como Begierde, o desejo enquanto afirmação abstrata de si pela negação imediata do que é outro, isto é, o desejo da vida que passa a consumir e a destruir as coisas exteriores para sua própria preservação, a consciência desejando afirmar-se pela supressão da exterioridade imediata que a sustenta. Desejo que, em seu percurso imanente necessário, deixa de ser desejo das coisas naturais e torna-se desejo de humanidade, de reconhecimento de si por um outro que é também consciência de si, de sorte que a efetuação do desejo passa pelo desejo de suprimir a outra consciência submetendo-a à nossa, de tomar posse da consciência alheia para obrigá-la a nos reconhecer como humanos, de tal maneira que o desejo de cada um só possa efetivar-se pela mediação de uma perda, isto é, quando o outro perde a liberdade de desejar por si mesmo, desejando apenas que nosso desejo seja satisfeito. O desejo de reconhecimento culmina na luta mortal entre as consciências, na dialética do senhor e do escravo como supressão de nossa carência pela destruição da humanidade do outro que deverá, retornando à dialética da vida e do trabalho, refazer a humanidade e a liberdade pelo esvaziamento da ilusão de liberdade do senhor.

É também como carência, privação, ausência e falta que o desejo faz sua aparição na psicanálise. Quando o corpo surge na percepção como corpo próprio e corpo cognoscente,

nó de significações viventes e não como lei de um certo número de termos covariantes […] sistema de potências motrizes e de potências perceptivas […] conjunto de significações que ruma para o equilíbrio […] potência expressiva indefinidamente aberta pela qual o homem se transcende rumo a um comportamento novo ou rumo a outrem ou rumo ao seu próprio pensamento através de seu corpo e de sua fala […] excesso de nossa existência sobre o ser natural.[9]

a afetividade profunda que chamamos sexualidade põe em cena uma potência significante que é humana porque relação simbólica, isto é, relação com o ausente.

Quando Freud elabora a teoria do desejo, a partir da interpretação dos sonhos, e enlaça desejo e memória, quase à maneira de Espinosa afirma que a ligação mnésica estabelecida com uma certa percepção faz com que procuremos restabelecer a situação primeira da satisfação “e esse movimento chama-se desejo”. Indissociavelmente ligado aos traços da memória, o desejo busca realizar-se pela reprodução alucinatória das percepções antigas nas percepções presentes que se tornam, pela via da substituição, sinais precários de sua satisfação. O obscuro objeto do desejo não é, pois, algo real como um objeto natural, mas um sistema de signos que forma o fantasma. Nascido de uma perda irreparável do objeto proibido pela censura (ou pela Lei, instância simbólica), o desejo é a busca indefinidamente repetida dessa perda que não cessa de ser presentificada por outros objetos, sob aspectos aparentemente irreconhecíveis, procurando burlar a censura imposta ao desejante e ao desejado, poder de que dispõe graças à potência significante do corpo. Por isso mesmo, o desejo não se confunde com a necessidade ou com o apetite vital, sempre dirigidos a algo presente, destinados a ser suprimidos pelo consumo imediato do que lhes traz satisfação. A relação com a memória é relação com o tempo e o desejo se constitui como temporalidade, aptidão do sujeito para protelar indefinidamente a satisfação, desligando-se do dado presente, encontrando mediações que o remetem ao ausente e abrindo-se para o que conhecemos como imaginário e simbólico.

Seja como desejo de reconhecimento, seja como desejo de plenitude e repouso, o desejo institui o campo das relações intersubjetivas, os laços de amor e ódio e só se efetua pela mediação de uma outra subjetividade. Forma de nossa relação originária com o outro, o desejo é relação peculiar porque, afinal, não desejamos propriamente o outro, mas desejamos ser para ele objeto de desejo. Desejamos ser desejados, donde a célebre definição do desejo: o desejo é desejo do desejo do outro.

Sob o signo da carência e da falta, a modernidade, decisão racional de abandonar as ilusões dos antigos mistérios, não cessa de repor o desejo com os traços do Eros da genealogia desenhada pela fala de Diotima, no Banquete de Platão.

Filho de Póros, o Expediente astuto, e de Pênia, a Penúria, Eros “nesta condição ficou”, narra Diotima. Esquálido, descalço, sem lar e sem teto, pedinte e endurecido, Eros transita num mundo de privação e despojamento, onde o pariu sua mãe, Pênia, carente de beleza, “desejo de grávida”. Nem mortal nem imortal, Eros no mesmo dia germina e vive, desfalece e morre para renascer a seguir. Insidioso e alerta, corajoso e decidido, Eros, como seu pai, é “caçador terrível” cuja astúcia maior consiste em converter em amante ao amado, fazendo-o desejar seu desejo.

Aquilo que a modernidade chama de desejo — desejar o desejo do outro — o mundo encantado traduzia num símbolo: o fogo,

que converte em amante a coisa amada, o mais ativo de todos os elementos porque tem o poder de converter todos os outros, simples ou complexos, nele mesmo.[10]

Aquilo que a modernidade chama de imaginário — o desejo como substituição e sublimação de seu objeto, como mediação indefinida que protela a satisfação e a deposita sem cessar no que não pode realizá-la — no mundo encantado exprimia-se num oxímoro: a amarga doçura do amor ou a amiga inimizade do desejo, a impossibilidade de, ao fim e ao cabo, determinar seu objeto.

Assim era o desejo no mundo encantado:

Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;
É um não querer mais que bem querer.
É um solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;
É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.
Mas como causar pode o seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Ei-lo, agora, na versão do mundo desencantado:

Há tantos desejos quantas espécies de amor e ódio, porém os mais consideráveis e os mais fortes são os que nascem do agrado e do horror […] O agrado foi particularmente instituído pela Natureza para representar o gozo do que agrada como o maior de todos os bens pertencentes ao homem e que o faz desejar ardentemente esse gozo […] e o principal agrado e gozo é o proveniente das perfeições que imaginamos numa pessoa que julgamos capaz de tornar-se um outro nós mesmos, pois, com a diferença do sexo, que a Natureza estabelece nos homens e nos animais destituídos de razão, estabeleceu também certas impressões no cérebro que fazem com que, em certa idade e em certo tempo, nos consideremos como que defeituosos e como se não fôssemos senão a metade de um todo do qual uma outra pessoa deve constituir a outra metade e a aquisição dessa metade é representada confusamente pela Natureza como o maior de todos os bens imagináveis [… ] isso determina a alma a sentir por essa pessoa todo o pendor que a Natureza lhe dá para procurar o bem e essa inclinação ou desejo recebe comumente o nome de amor, que produz os mais estranhos efeitos e serve de principal matéria aos fazedores de romances e aos poetas.[11]

III

Quando procuramos, nos primeiros filósofos modernos, a palavra que traduzimos por desejo, descobrimos que não empregam desiderium e sim appetitus, tendo como referência os vocábulos gregos oréxis e hormê.

Oréxis, ação de tender para algo ou alguém, donde apetite e desejo, vem de orégô, tender, estender, dar, oferecer, estender as mãos para implorar e, na voz média, orégomai, significa estender-se, alongar-se com as mãos, tentar pegar, tocar com as mãos, visar e procurar atingir alguém para feri-lo (assim são as flechas de Eros-Cupido), lançar-se, expandir-se de alegria, aspirar (à verdade, à glória, à riqueza), puxar para si alguma coisa, donde, desejar. Parente de oréktikos (que tem a propriedade de tender para alguma coisa e, por isso, a de excitar o desejo, a cobiça) e de oréktós (tendido, alongado, desejado), oréxis é tendência e tensão, excitação e expansão, oferenda e súplica, o agarrar e o atingir um alvo. Nela, o movimento parece vir do interior, suscitado por algo exterior que ecoa no íntimo daquele que tende, se estende e estende as mãos, se alonga e alonga as mãos, se expande e alcança o alvo que o moveu. Por coincidir com a mobilidade interna, os estoicos definiram a oréxis como esforço natural de autoconservação dos seres, capaz, nos homens, de fazer-se consciente e aptidão racional para estar conforme à Natureza, desejando convir a ela e com ela.

Hormê, assalto, ataque, elã instintivo, ardor, zelo, impulso rumo a um fim, ímpeto violento das ondas e dos animais selvagens, deriva de hormaô, empurrar fortemente, exalar um sopro (suspirar), excitar, premeditar, mover com violência e ardor, iniciar uma guerra (literalmente: pôr uma guerra em movimento), preparar-se para se pôr em movimento, e surge em expressões como a chama que brilha, o germe que escapa do invólucro, o rio que brota da fonte, o ruído que se expande. Próxima de hormainô (empurrar com força e ardor, agitar o espírito, ansiar) e de hormétikós (veemente, ardente, impetuoso), hormê traz ao desejo as imagens da luta, do conflito e do combate (não é assim que é sempre descrito pelos moralistas?), da veemência ardente (não será identificado ao fogo que “arde sem se ver”?), do incontrolável como o rio brotando da fonte e o germe escapando do envoltório (não é sempre o “mar bravio e revolto” dos retóricos?). Para os estoicos, a hormê é instinto cego, oposto à vontade racional, capaz de violentá-la colocando-a contra a Natureza e contra sua própria natureza. Diferentemente de oréxis, na hormê o impulso e a excitação parecem vir inteiramente de fora encontrando nela, porém, tanto um poder ofensivo quanto uma inclinação que supõem a existência de algo na natureza do desejante que o torna apto a receber o movimento externo vindo do desejado, inclinando-se a ele, dando-lhe ímpeto e fazendo-o prosseguir rumo ao fim. Essa relação com a exterioridade — do móvel e do fim — determinada por algo presente na interioridade do movido, coloca a hormê como mescla de passividade e atividade, características do desejo em Platão e Aristóteles.

Appetitus, como observa Hobbes, traduz hormê. Mas também traduz oréxis, adquirindo, assim, uma ambiguidade inexistente na língua grega. Deriva-se de appeto que, por seu turno, vem de peto: dirigir-se para, tentativa para atingir algum lugar ou alguma coisa, acompanhado da ideia de violência física ou psíquica e, enfraquecendo-se, significa petição, solicitação, demanda (como oréxis, é estender as mãos para implorar). Os três sentidos — atacar, dirigir-se e solicitar — encontram-se em appeto: agredir, atacar, tentar agarrar, procurar deitar a mão, acometer e, por extensão, cobiçar, ter inclinação para, desejar. Da mesma família, nascem: expeto (chegar, cair sobre, desejar ardentemente), impeto (lançar-se sobre, atacar) e impetus (choque, assalto, impulso, ímpeto). Apetecer é esforço para chegar a algum lugar ou a alguma coisa, mas é também necessidade natural, isto é, fome e sede. Entre o ataque e a demanda, a atividade e a passividade, a necessidade e a falta, appetitus é apetite, avidez, agressão, paixão e desejo.

Tendência, impulso, tensão, inclinação, aspiração, ardor, expansão e agitação, oréxis , hormê e appetitus, indissociáveis das imagens de combate, conflito, privação, carência e posse, prendem o desejo num laço que jamais será desatado: o do movimento. Será na mudança profunda sofrida por este conceito, quando houver o desencantamento do mundo com a mecânica moderna, que poderemos apanhar a mutação do desejo. Continuará a ser movimento, porém o movimento não continuará a ser o que fora. Para seguir a trilha onde se prendeu o desejo nos laços do movimento e, com eles, foi atado à metafísica e, partindo dela, aos três campos em que será tematizado, desde a Antiguidade — ética, retórica e medicina — sigamos os passos de Aristóteles.

“Como haverá movimento, se não houver causa motriz em ato?”, indaga Aristóteles no livro Lambda da Metafísica. Não é a madeira bruta que se move a si mesma para fazer-se leito, mas é movida pela arte do carpinteiro. Movimento é o que é próprio da matéria, isto é, do indeterminado à procura da determinação. Pura carência, a matéria entra em movimento na busca de uma forma que lhe dê ser e sentido. Movimento, porém, se diz de muitas maneiras: kínesis é toda alteração qualitativa, quantitativa, espacial, temporal dos entes sublunares, assim como se chama movimento a geração e corrupção desses seres. Movimento é mudança e muda a matéria, o indeterminado, inacabado e imperfeito, o não chegar nunca à plena identidade consigo mesmo, à perfeição. O perfeito é imóvel porque já não carece de mudança para ser aquilo que é. O imperfeito é móvel porque, através da mudança, busca sua própria essência. O simples é imóvel. O composto, móvel. Os sublunares, isto é, os compostos do quente, úmido, seco e frio, possuem a potencialidade para o movimento, ou seja, para a mudança, mas só podem passar da potência à atualização se houver o ato do motor que os mova. Sem a causa geratriz, os seres não nascem, ainda que a terra tenha a potência para gerá-los, sem a causa artesanal, a mesa não atualizará o leito que contém em potência, o bronze não atualizará o escudo, nem a vinha, o vinho. Todavia, quem atualiza o próprio motor? Que ato imóvel ou imutável deu origem ao movimento do mundo? Seria admissível a tese de Platão, no Timeu, de que o princípio do movimento é a Alma do Mundo automotriz (to autó eautó kinoun)? Admitir a tese da imanência da causa do movimento não seria o mesmo que tentar imaginar um navio movido do interior, sem as ondas e sem os ventos, isto é, sempre imóvel? Para que haja geração, alteração e corrupção dos seres é preciso uma causa sempre atuante e externa. A essa exigência, a teologia astral oferece uma primeira resposta: o movimento circular, contínuo e eterno do céu age sobre os quatro elementos sublunares, fazendo-os iniciar o movimento. Todavia, se os astros, feitos do quinto elemento eterno, o éter incorruptível, estão em movimento, quem os moveu e os move? Onde se encontra a causa primeira e eterna, ato puro dos movimentos? Conhecemos a resposta de Aristóteles: o Primeiro Motor Imóvel, princípio (archê) exterior e transcendente ao cosmos. No entanto, a resposta suscita nova e maior dificuldade: como um motor externo ao mundo poderia agir no mundo? Como o perfeito poderia descer ao imperfeito?

Há, pois, também alguma coisa que o move [o Primeiro Céu] e, visto que aquilo que é movido e move é um intermediário [méson], deve haver um termo extremo que move sem ser movido [ô on kinoúmenon kinei], eterno, substância, ato puro. É exatamente assim que movem o Desejável [tò orexton] e o Inteligível [tò noetón]. Movem sem ser movidos. Com efeito, o objeto do desejo [epythymetón] é o bem aparente e o objeto da vontade racional [bouletón proton] é o Bem [tò on kalón] […]  Que a causa final possa residir entre os imóveis é o que demonstra a distinção de seus sentidos. A causa final é o ser para o qual ela é um fim e é também o próprio fim; neste último sentido, o fim pode existir nos imóveis, mas não no primeiro sentido. A causa final assim considerada move como o objeto do amor [erómenon] e todas as outras coisas movem porque são elas próprias movidas.[12]

O Primeiro Motor Imóvel, ato puro transcendente, tem em comum com o desejável e com o amável o poder de mover (comover, emocionar) sem ser movido e o poder peculiar de mover a distância, sem imiscuir-se no movimento que suscita. O mundo inferior e o mundo superior, o sublunar e o celeste, tendem para ele através do inesgotável movimento dos astros e das estações, dos ciclos das gerações e corrupções, das ações humanas (práxis) e das artes fabricadoras, inventadas pelo trabalho do homem (poíesis). O plenamente acabado, subsistente em si e por si, eternamente no esplendor de sua perfeição, é o Aristóteles chama de fim — tò téleion. Os seres tendem para ele por causa de sua perfeição e acabamento, isto é, de sua imobilidade. A mobilidade universal desejante relaciona-se com o télos através do próprio movimento e o desejo é imitação da imobilidade — mimesis. Desejo de imobilidade, o movimento é carência, privação da perfeição. O desejo de não mais mover-se move os seres. Desejável — perfeito e distante —, fim move o desejoso — imperfeito e carente. O movimento é o meio que o imperfeito cria para achegar-se ao imutável. O desejo move o mundo, ânsia da matéria indeterminada em busca de sua forma acabada e para sempre inalcançável.

Imperfeição e carência imitam a perfeição e a plenitude pela mediação do movimento. Assim, o movimento circular do céu, contínuo e eterno, imita a imobilidade do Primeiro Motor; o ciclo regular das estações imita o movimento circular das esferas celestes; o movimento da geração dos seres vivos imita a regularidade das estações; a natureza (physis) e as ações humanas (praxis) imitam o Bem; a arte (poíesis) imita a Natureza; e a poesia, as ações dos homens.

A imitação aristotélica não é uma relação descendente do modelo à cópia, como era a imitação platônica, mas uma relação ascendente pela qual o ser inferior se esforça para realizar, com os meios de que dispõe, um pouco da perfeição que percebe no termo superior e que este não pode fazer descer até ele. A imitação platônica requeria o poder do Demiurgo. A imitação aristotélica supõe, ao contrário, uma certa impotência do modelo e é essa impotência que a imitação compensa […] Imitar a Natureza não é duplicá-la inutilmente, mas suprir seus desfalecimentos, acabá-la nela mesma, nem mesmo humanizá-la, mas naturalizá-la (…) torná-la mais natural, isto é, esforçar-se para preencher a cisão que a separa de si mesma, de sua própria essência ou ideia.[13]

O desejável é o fim imóvel, perfeição, identidade consigo mesmo; o desejo, necessidade da mediação para o que está separado de si e do fim. O que busca a mediação desejante? O imediato, o que não carece de mediação, o Bem, que é, essencialmente, autarquia. A mímesis é instrumento da realização mediata, no mundo e no homem, daquilo que é imediato no Princípio. O desejo é força cósmica de origem teológica. Organiza os laços que fazem a terra, o fogo, o ar e a água produzirem todos os seres e suas mudanças.

A imitação refere-se muito menos à poíesis e muito mais à praxis; não chega a obras imitadoras de um modelo, mas esgota-se em seu próprio movimento […] a imitação aparece como substituição da unidade autárquica do divino […] Desse imenso esforço de substituição, pelo qual o mundo sublunar suplementa o desfalecimento de um Deus que não pode descer até ele, mas lhe oferece, pelo menos, o espetáculo de sua perfeição, o homem surge, agora, como o agente privilegiado.[14]

Ser de desejo, ser de mediações, o homem encontra nas mediações, isto é, em sua ação, o que nele há de divino. Porque deseja — carente, mediato, movente-movido, imitador —, o homem se diviniza, pois nasceu com a tendência — hormê, oréxis, bóulesis — para compreender e agir. Ou, como dizem as primeiras linhas da Metafísica, “todos os homens têm por natureza o desejo [hormê] de conhecer”, ou, como lemos no primeiro livro da Política, a finalidade (télos) da pólis é a autarquia e o bem viver e, por isso, “o homem é por natureza animal político [politikón zôon]” e, como repete Aristóteles na Ética a Eudemo e na Ética a Nicômaco, a amizade (philia) é a virtude que melhor imita a autarquia do Bem.

Dizer que o homem é o agente privilegiado do esforço de mediação e “o substituto mais ativo do divino”[15], incide diretamente sobre o principal substituto de que disporá Aristóteles para a impossibilidade de uma ciência demonstrativa cujo objeto fosse o contingente.

A ciência, saber do necessário, isto é, do que é sempre idêntico a si mesmo, ou conhecimento apodítico, exige a estabilidade do objeto, sendo por isso incompatível com o movimento incessante das coisas e do pensamento, isto é, com a contingência inscrita na natureza das coisas e do homem. Contingente é o que muda de maneira inesperada e imprevisível e até contrária a si mesmo, o que pode acontecer tanto quanto não acontecer, é o que poderia ser de outra maneira. A ciência, que se ocupa exclusivamente com o necessário, isto é, com aquilo que jamais pode ser de outra maneira, não poderia ocupar-se com a contingência senão sob pena de destruir-se ou de destruí-la, pois o contingente, tornando-se objeto de ciência, já não poderia ser de outra maneira e desapareceria como contingente. O movimento não pode ser objeto de ciência, pois não há um saber necessário para o que não cessa de mudar. O máximo possível é oferecer ao movimento um substituto que permita alguma ciência do mutável. Na física, o substituto da imobilidade é a regularidade do movimento, o que Aristóteles chama de: o frequente. Há, porém, contingências irredutíveis e para as quais não há ciência possível. Para isso de que não pode haver ciência, o homem encontrou um substituto: a dialética, discurso sobre o possível, o provável e o verossímil, sobre o que pode tornar-se contrário e oposto àquilo que é.

Enquanto as essências simples e imutáveis, objetos da intuição, são imediatamente idênticas a si mesmas, as essências complexas e mutáveis estão separadas e cindidas de si mesmas. Para chegar à unidade e à identidade, sempre postergadas, carecem de mediação, do “trabalho de intermediários laboriosos”, isto é, a demonstração (na ciência) e a dialética. A primeira é mediação apenas para nós, pois não é exigida pelo objeto, que é sempre imóvel e idêntico a si mesmo, e sim exigida pela mobilidade de nosso pensamento; a segunda, porém, é exigida pela própria coisa cindida e móvel, separada da identidade de sua essência. Esse lugar especial ocupado pela dialética faz com que seja a referência obrigatória daqueles discursos e daquelas práticas que lidam com um tipo particular de contingente, isto é, com as disposições acidentais que individualizam a espécie humana e, entre elas, uma privilegiada no que respeita ao desejo: o pathos, a paixão, disposição passageira e extremamente móvel que afeta o corpo e a alma do homem. Para lidar com essas disposições acidentais, existem dois tipos de discursos (logoi) — a ética e a retórica — e dois tipos de artes (technai) — a retórica e a medicina. Não há ciência do desejo enquanto pathos. Sobre ele há apenas opinião certa e intervenção certeira. Passamos, assim, da metafísica a discursos e práticas sobre o desejo humano. (Aqui, é preciso lembrar que, do ponto de vista do discurso, Aristóteles desenvolve uma “ontologia proposicional”[16] onde o ser é posto como sujeito da proposição e, obedecidos os princípios de identidade e de não-contradição, recebe a multiplicidade dos predicados, distribuídos em várias modalidades, como, por exemplo, o necessário e o contingente, e em várias categorias, como, por exemplo, a ação e a paixão. Na perspectiva do discurso, o pathos é um predicado (acidental) do sujeito.)

Diferentemente do pathos, o éthos é disposição natural, aquilo que, na Poética, Aristóteles diz constituir a semelhança de si consigo mesmo, a constância, ou, como a tradição consagrou, o caráter de alguém, que varia de pessoa a pessoa segundo sua constituição ou temperamento, isto é, segundo nela se componham os constituintes do corpo e da alma, identificados pela medicina antiga aos quatro elementos (quente, frio, seco, úmido) e aos quatro humores (sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra). É aquilo que, em português, chamamos de índole e os latinos, ingenium. Há quatro temperamentos: sanguíneo, fleumático, colérico e melancólico; e suas doenças ou excessos: irritável, apático, irascível, triste. A cada temperamento corresponde um elemento astral e sublunar: Júpiter e o ar para o sanguíneo; Marte e o fogo para o colérico; Lua e a água para o fleumático; Saturno e a terra para o melancólico. Platão falava em três almas, cada qual com uma sede: alma concupiscente, no fígado; irascível, no coração; racional, no cérebro. Aristóteles definia as almas por funções e também lhes dando órgãos: vegetativa, motriz, sensitiva e racional, e atribuía a cada uma delas funções auxiliares de movimento: atrativa, repulsiva e expulsiva. A medicina antiga é constituída por uma anatomia onde as partes são tidas por instrumentos ou funções corporais (órganon) e o corpo é o órganon da alma, adaptando suas funções às faculdades da alma; uma fisiologia guiada pelas ideias de movimento (kinesis), natureza própria de cada função (physis), causalidade e finalidade, cujos conceitos básicos são os de elemento e humor dos quais resulta a constituição natural (krásis) do indivíduo; uma patologia que considera a doença como contra-Natureza (pára physin), distingue entre nosos, a doença crônica, e Mhos, a doença passageira, e diagnostica pelos sintomas (symptomata) que anunciam ou manifestam a doença, sendo sinais de visibilidade da doença para guiar o médico; uma terapêutica que define o médico como ministro da Natureza, baseada no conhecimento dos processos da doença, cura, convalescência, crise, dos órgãos afetados, do conhecimento integral da constituição do paciente e que distingue entre as causas naturais da doença (a constituição do paciente) e as “não naturais” (ambientais, alimentares, estilo de vida) entre as quais estarão os sonhos e os movimentos da alma, isto é, desejos e paixões. Assim, o desejo mio é uma doença, mas uma causa de doença e, justamente, colocado entre aquelas causas sobre as quais o médico pode atuar enquanto ministro da Natureza. A medicina, contudo, não faz nem pode fazer uma nosologia e uma nosografia do desejo, nem mesmo, rigorosamente, uma patologia: esta encontra-se a cargo da ética e da retórica.

Como sujeito da proposição, o éthos recebe o pathos como um de seus predicados possíveis. Sendo por natureza (phýsei), o éthos é movimento natural finalizado cujo télos é o Bem e cujo meio é a virtude, “lugar da identidade do sujeito que, por intermédio da ação virtuosa, atualiza suas disposições, as exerce e as pratica”.[17]A ética é discurso para educação do éthos como práxis, para que realize sua finalidade natural. Educação que transforma a oréxis e a hormê, de impulsos irrefletidos, em tendência racional e refletida, bóulesis. Educação indispensável porque o éthos só pode fazer deliberadamente o que a Natureza faz espontaneamente, pois o desejo pode ameaçar a identidade do caráter, sob os imperativos contrários do páthos.

Somos desejo natural — é nosso éthos sermos desejantes e desejosos como tudo o que existe no mundo sublunar dos quatro elementos —, mas também temos desejos acidentais, sofremos passivamente a contingência, os acidentes de nossas vidas, e, por isso, somos seres naturalmente submetidos aos acidentes passionais. O páthos é um predicado variável de nosso éthos que nos faz ora tristes, ora alegres, ora benevolentes, ora vingativos, ora generosos, ora avarentos, ora perdulários, ora sensuais, ora frígidos. Nossa índole natural pode tornar-se desejo contrário a si mesmo, sob o impacto das paixões.

O páthos é precisamente a voz da contingência, da qualidade que se irá atribuir ao sujeito, mas que ele não possui por natureza, por essência (…) Lugar de uma diferença a ultrapassar na e pela identidade do sujeito, o pathos é, ao mesmo tempo, tudo o que o sujeito é e tudo o que ele não é (…) Physis e páthos se opõem, pois a naturea é um princípio ativo de devir, fim interno ao sujeito que o faz tornar-se em ato o que ele era em potência e que assim se torna pela mediação do acidente, do páthos (…) contingente, ele abre uma alternativa para a escolha deliberada (…) tornando-se incontornável, exige a ação, pois a paixão é o obstáculo a que a ação reage. Donde a relação ética estar forçosamente ligada à paixão (…) O páthos, acidente, contingente, disposição passageira, tornando-se paixão, exprime a natureza humana, a liberdade e a aposta ética, isto é, a ação que transforma o desejo de simples preferência em virtude.[18]

Ora, se a ética faz intervir a razão para dirigir o desejo através da virtude, alterando a direção, a velocidade e a finalidade de seu movimento para que encontre sua destinação natural, há um outro discurso que não pretende educar o desejo — oferecer-lhe a mediação virtuosa ou o justo meio termo entre extremos opostos — mas pretende movê-lo, comovendo-o enquanto pathos. O discurso que toma as paixões e o desejo como meio e como fim é a retórica, arte de encontrar os meios para persuadir.

Contingente, combate, conflito, contrariedade e diferença no interior do indivíduo e entre os indivíduos, o desejo não é apenas móvel, mas oscila, por exemplo, entre a fixidez da disposição melancólica e inconstância da disposição colérica. Por isso mesmo é reversível, sempre podendo ser contrariado ou invertido, forçado a seguir outro curso e outro rumo, levado a outros fins. Sobre essa multiplicidade instável e vária, atuam a ética, para educá-lo e transformá-lo em vontade refletida, e a retórica, para persuadir o ouvinte (indivíduo ou multidão reunida) a desejar emitir um juízo correto sobre um fato passado, tomar uma decisão correta sobre um acontecimento futuro, louvar ou vituperar o que o orador lhe apresenta como belo ou feio. A retórica desperta e adormece desejos, comovendo a alma do ouvinte, tocando no pathos.

A retórica aristotélica procura matizar e conciliar duas tradições gregas: a psicagogia pitagórica e gorgeana, de um lado, e a dialética platônica, de outro. A primeira opera com a peithô (a doce persuasão) e a apathê (a sedução) para enfeitiçar a alma do ouvinte, encantá-lo com palavras que induzam ao prazer e expulsem a dor, pois

assim como alguns remédios expulsam do corpo alguns humores e outros expulsam outros, uns acalmam a doença e outros a vida, assim também as palavras. Umas afligem, outras alegram, umas espantam, outras medicam e encantam a alma.[19]

A dialética platônica, discurso do verdadeiro e do justo, ergue-se contra a psicagogia condenando-a porque feitiço e mentira, adulação e contrafação da medicina, veneno e máscara. Aristóteles, para quem a dialética não se destina a ser ciência, mas a oferecer um substituto para o discurso apodítico, define a retórica como arte do discernimento (dialética) e dos meios de persuasão (psicagogia), equilibrando o éthos do orador e o páthos do ouvinte. Mas a presença da tradição psicagógica tem ainda outro efeito, o de criar um laço que ata o desejo à medicina da alma, Aristóteles admitindo, com a medicina antiga, a existência de uma “tendência natural” de certos humores à doença, particularmente a bílis negra (melainês kolês), “mistura instável” do frio e do quente, que forma o éthos dos frios e dos melancólicos. São estes últimos os que estão particularmente dispostos por natureza à mania, aquela loucura que a Renascença chamou de furor e que era inseparável do amor e do desejo.

A ética procura educar os humores e a retórica, persuadi-los. Nos dois casos, movê-los na boa direção. Ora, no campo da medicina, a palavra que designa o desejo não é mais oréxis nem hormê e sim epithymia. Aqui, tocamos o fundo do indivíduo, o núcleo de seu ser como ser animado, pois thymós, sopro, é o ânimo, princípio da vida, do sentir, do pensar e do querer, tendo como órgão e como sede o coração. Epithymia foi a palavra empregada por Aristóteles na Metafísica, como vimos, ao se referir ao Desejável.

Thymós, o sentir a si mesmo e a emoção (literalmente, mover-se para fora de si), tem suas doenças, a dysthymia — desânimo, diminuição da força do desejo — e a athymia — perda do desejo de viver, desejo de morrer —; tem sua saúde, a euthymia — alegria que solta o coração no desejo de viver, aumentando a vida —, e é a maneira pela qual, vivente móvel e movente, “o indivíduo apreende o seu ser no mundo, sente-se ser e viver na alegria e na tristeza”.[20] O desejo, como a metafísica demonstrara e a medicina mostra, é o fundo secreto da vida e da individualidade; é a alma. Ora, se, para Aristóteles, perder o desejo é adoecer, para os estóicos, desejar é estar doente.

Na abertura do terceiro livro das Tusculanas, Cícero lamenta o estado em que se encontra o tratamento da alma (Cícero e os latinos empregam anima para traduzir psychê, princípio vital feminino submetido a animas, que traduz thymós. O animus é princípio vital masculino, sopro, com sede no coração onde nascem as affectiones , desejos e paixões. Animus, porém, exatamente como thymós , é também princípio do pensamento e da faculdade de julgar, a mens ou inteligência. É ainda, como thymós , princípio do querer, da vontade consciente, a voluntas. Como se observa, animus é o que, na linguagem do cristianismo, falada por nós, passou a designar a alma, o espírito. Por isso, usaremos indiferentemente ânimo e alma, reservando, porém, o primeiro para o que se refere propriamente ao desejo (porque, em português, tende a ser usado com o sentido de índole, intenção, vontade, coragem, força, resolução, intenção) e reservaremos alma para a inteligência (porque, em português, além de ser usada como princípio vital e de organização do corpo, é sobretudo empregada como conjunto das faculdades psíquicas, intelectuais e morais de um indivíduo, embora também apareça como sede dos sentimentos, dos afetos e das paixões). Nas Tusculanas , Cícero emprega apenas animus e mens, e usa expressões como medicina animi, medicina mentis, cultura animi.):

Como explicar, Brutus, que, compostos de alma [animo] e corpo, possuamos, para tratar das doenças do corpo, uma arte cuja utilidade reconhecemos e atribuímos aos deuses imortais sua invenção, enquanto a medicina da alma [medicina animi] não foi sentida como uma carência [desiderata] antes de ser inventada, nem cultivada depois de sua invenção, não obtendo estima e aprovação de muita gente e sendo, antes, suspeita e odiosa à maioria? Seria porque julgamos com a alma [animo] sobre a doença e a dor do corpo, mas o corpo não nos faz sentir as da alma [animi]? Disso resulta que a alma [animus] é chamada a julgar seu estado justamente quando aquilo com que julga [a mente] está doente.[21]

Seriam as doenças do corpo piores do que as da alma? Pode-se curar o corpo e não se acredita que para a alma haja remédio algum? Ora, as doenças da alma são muito mais graves do que as do corpo e as deste são odiosas porque estendem seus efeitos sobre aquela para atormentá-la:

Uma alma [animus] doente sempre erra, não sabe sofrer nem resignar-se, jamais cessa de desejar.[22]

Advindas do destempero e da discórdia entre os humores, duas são as mais graves doenças da alma: a aflição crônica (aegritudo) e o desejo (cupiditas). São elas as afecções (affectiones) passionais que atacam o appetitus, a tendência natural à autoconservação. Morbus, a doença, lembra Cícero, em grego se diz páthê, e as Tusculanas propõem a tradução: perturbatio. Aflição e desejo são as perturbações que roubam a saúde da alma, saúde que os estoicos chamavam de apatheia, impassibilidade e indiferença ao sofrimento e à dor.

O vocabulário de Cícero é sugestivo. Perturbatio é agitação violenta e desordenada, vinda de turbo, agitar desordenadamente, mover com violência; affectio, derivando-se de afficio e de facio, remete a factio, facção, sedição, guerra interna entre partidos opostos. As paixões, perturbações e afecções do ânimo, escreve Cícero, são sediciosas e tornam a alma inimiga de si mesma. A doença da alma, cindindo-a e separando-a de si mesma, colocando-a na luta contra si, é movimento, mas de um tipo particular, aquele que Aristóteles chamara de movimento violento — o que um ser realiza forçado pelo exterior e contrariando sua natureza — para distingui-lo do movimento natural que um ser realiza porque é de sua natureza realizá-lo. O desejo, paixão e doença do ânimo, contraria a natureza do agente, rebaixa-o a mero paciente, rouba-lhe a autarquia imperturbável, a tranquillitas, que é virtude e ideal do sábio. A cupiditas (desejo ávido) é doença do appetitus (inclinação natural a autoconservar-se).

Para o estoicismo grego, oréxis e hormê são tendências naturais que indicam o acordo do homem com a Natureza, mas que somente a razão, através do hábito virtuoso, pode transformar em disposição consciente de concordar com a Natureza. O desejo, paixão excessiva, é o que desvia a tendência natural, perturbando-a porque julga os objetos a que tendemos naturalmente. Esse juízo é opinião ou phantasia, representação subjetiva que encobre o objeto e muda o curso do movimento natural, dispondo a alma contra si mesma e contra a Natureza. Esta, totalidade orgânica e causa eficiente interna e finalidade imanente, é artesã que deposita em cada ser uma centelha de si mesma para que cada um possa viver em conveniência com ela. O desejo, lemos nas Tusculanas, é fruto dos costumes (mores) e nos faz adoecer porque perverte ou até apaga a centelha natural (lumen naturale) da virtude. O apetite, “arte inata”, deve ser acrescentado de uma “arte refletida”, a vontade, que exclui o desejo, pois este é heterônomo, faz do agente paciente que tem fora de si a causa de sua ação. A Natureza é autônoma, dá a si mesma suas leis e seus fins (não os recebe de fora, como julgaram Platão e Aristóteles) e a razão é arte que a imita, ensinando à tendência natural cooperar com aphysis e aprender com a vontade a querer essa cooperação. Cooperar com o destino, eis a virtude do sábio. O desejo é rebelião contra o destino e contra a Natureza.

O desejo, cupiditas, prosseguem os estóicos romanos, é perda do poder de si e sobre si, perda da faculdade de julgar, ou melhor, doença do juízo. Aquele que deixa de ser sui juris, isto é, de estar sob seu próprio direito ou lei, fica subjugado a um poder alheio, a uma força alheia, torna-se alienus juris e essa alienação da mente é dementia, loucura. Para curá-la, restaurando o poder (o imperium) da razão, existe apenas uma medicina, a medicina mentis, sem aprovação e estima de muitos, “suspeita e odiosa à maioria”, isto é, a filosofia.

Nas Tusculanas, a referência à medicina tem como objetivo fornecer resposta a duas perguntas clássicas do estoicismo. É o desejo natural? É favorável à virtude? Ambas são respondidas negativamente. O desejo, por ser cisão e perturbação da alma, é desmedido e “aquilo que é excessivo não pode ser natural”, pois a Natureza, sempre sábia, é medida e proporção, concórdia consigo mesma. Não sendo natural, o desejo é mera opinião, juízo fantasioso sobre o bem e o mal e por isso mesmo não pode ser favorável à virtude, pois, sendo falsa opinião e desmedido, é contrário à razão. A virtude, império da reta razão sobre o desejo e as paixões, é vontade do viver bem. O desejo é vício, combate entre a reta razão e a fantasia.

Todavia, pouquíssimos são filósofos. Raros os sábios. Se a virtude está ausente da maioria, turba perturbada e turbulenta, que fazer com os que não conseguem curar-se do desejo? Para auxiliá-los contra o vício, a ética torna-se moral — arte para regular e normalizar hábitos e costumes das gentes, tão poderosos quanto as leis e a própria Natureza — e a ela cabe criar uma medicina segunda, ou menor do que a filosofia. Enquanto esta última trabalha para abolir o desejo, a outra opera no sentido de simplesmente moderá-lo, oferecendo-lhe objetos de satisfação menos efêmeros e capazes de dar-lhe algum repouso. A medicina moderadora é aquela que, operando com as palavras, age sobre a opinião, movendo o ânimo do ouvinte. Chama-se oratória e o médico, orador. “Semper oratorum eloquentiae moderatrix fuit auditorum prudentia”, escreve Quintiliano. A eloquência visa à natureza, à índole do ouvinte — seu ingenium, determinado pelos humores — através de seu ânimo — sua cupiditas — por meio de suas opiniões e para alcançar três fins: movere (comover), docere (ensinar, ou seja, demover dos preconceitos) e delectare (deleitar, ou seja, promover o agrado). Recuperando a medicina da alma da sofística grega, isto é, a psicagogia de Górgeas e Isócrates, a retórica romana persuade sobre o bem e o mal fazendo apelo ao belo e ao horrendo, com os quais trata de incitare animus.

Está aberta a via que o cristianismo percorrerá. O desejo, cupiditas, que se torna sinônimo de animus, concupiscência, concupiscentia (denotando, assim, um modo de ser, mais do que uma disposição passageira), é doença que desnatura a natureza original do homem e contraria a vontade de Deus. Não só doença, mas vício, o desejo se faz pecado e habita em nós. Surge como potência desagregadora do homem e desordenadora da Natureza, agente do Mal. O desejo é pecado original e origem do pecado.

Prosseguindo na trilha iniciada por Isócrates, o cristianismo trabalha com uma retórica dupla, a partir da distinção entre convencer e persuadir. Porque é consciente, o indivíduo é apto a falar consigo mesmo. A convicção é discussão interior em que, no solilóquio, vencemos o combate travado no ânimo pelas forças do pecado e alcançamos o arrependimento, único consolo do pecador que aprendeu a mortificação do desejo. Todavia, se para o indivíduo solitário a convicção basta para a morte do desejo, quando se trata da assembleia — a eklésia — faz-se necessária a persuasão. O médico das almas, capaz de vituperar o vício e religar o humano e o divino, recorrendo para isso ao mistério da Palavra sagrada, inventa um novo gênero literário, o sermão, e institui seu autor, o pregador.

Se tanto a fé na terra se conservasse quanto no céu sua mercê nos espera […] ó mulher, não sabes que, afinal, Eva és tu mesma? Ainda vive em nossos tempos a sentença de Deus a respeito do teu sexo: necessário é que vivas na condição de culpada. És porta do diabo, aquela que tocou a árvore proibida. És quem primeiro fugiu à lei divina, quem persuadiu aquele que o diabo não conseguira agredir (…) Para maior ignomínia das mulheres, os anjos que sobre elas tombaram do céu contam-se entre os condenados à morte, mestres perversos que ensinaram a perversão, o desejo de agradar segundo a carne […] A verdade é que, nos homens por culpa das mulheres, e nas mulheres por culpa dos homens, se gerou por falha da Natureza o desejo de agradar (…) Sigamos, pois, o apóstolo que nos avisa a usarmos deste mundo sem abuso (…) que nos ensina que até as esposas devem ser tidas como se não se tivessem (…) e muitos dão a si mesmos a condição de eunucos por causa do reino de Deus […] Alguns proíbem-se desejar até mesmo coisas lícitas, abstendo-se de vinho e carne […]. Estamos no momento em que chegaram ao fim os limites dos séculos; destinados por Deus antes da criação do mundo para o extremo final dos tempos, somos instruídos pelo Senhor como que para castigar, e ouso dizer, para castrar o mundo. Somos inteiramente circuncidados, tanto no espírito como na carne, porque no espírito e na carne fizemos a circuncisão dos desejos.[23]

Palavras do apologeta Tertuliano que desafiariam o correr dos séculos. Compreendemos, então, porque, no século XVII, aquele que seria tido por seus contemporâneos como “Satã encarnado a ser vergastado até à morte”, Espinosa, escrevesse no prefácio ao terceiro livro da Ética:

A maioria dos que escreveram sobre os afetos e a maneira de viver dos homens parecem ter tratado, não de coisas naturais que seguem as leis comuns da Natureza, mas de coisas que estão fora da Natureza. Mais ainda, parecem conceber o homem como um império num império. Acreditam, com efeito, que o homem perturba a ordem natural, mais do que a segue, que tem sobre seus atos uma potência absoluta e que tira apenas de si sua determinação. Procuram, portanto, a causa da impotência e da inconstância humana não sei em que vício da natureza humana e, por esse motivo, lamentam-na, riem-se dela, desprezam-na ou, o que acontece mais frequentemente, detestam-na; e aquele que mais eloquente ou mais agudamente souber censurar a impotência da mente humana é tido por divino?[24]

Também não será casual que, buscando romper com a tradição, Descartes apresentasse o Tratado das paixões da alma declarando:

meu intuito não foi explicar as paixões como orador, nem mesmo como filósofo moral, mas como físico.[25]

Antes, porém, que essa ruptura viesse a consagrar-se, a retórica, dirigida pela moral, havia-se tornado medicina animi, operando no interior de três tradições: a platônica, de ascese do desejo; a aristotélica (e a epicurista), de educação do desejo; e a estóica (e cristã), de abolição do desejo, no sábio (e no santo), ou de sua moderação, para o vulgo (ou para o pecador). Essas tradições, além de cercadas pelas indagações acima apontadas (é o desejo natural ou não? é favorável à virtude ou não?), estão orientadas por uma discussão que se tornará nuclear na Renascença e será herdada pelos primeiros filósofos modernos. Trata-se da retomada da oposição entre o necessário e o contingente ou da tentativa para separar e, portanto, determinar o que está em nosso poder para governar o desejo e o que escapa de nosso poder porque submetido ao poderio da Fortuna.

O desejo, porque pathos, está preso no laço da contingência, do provável, do possível. Seja por originar-se de uma disposição natural, seja por decorrer de opiniões e costumes, seja por ser tendência voluntária, o desejo está enlaçado às particularidades da vida de cada indivíduo, de sua geração e educação. Por ser mescla ambígua de atividade (decisão deliberada) e de passividade (ímpeto da carência), coloca-nos sob o poderio das circunstâncias e dos acontecimentos, a incerta e caprichosa Fortuna. Por isso, a passagem do desejo-paixão ao desejo-ação, articula-se, em Aristóteles, à ideia de escolha deliberada; nos epicuristas, à de engenho para substituir as representações da dor pelas do prazer; e, nos estoicos, à de substituição do desejo pela vontade racional de concordar com o todo da Natureza. Essa passagem da passividade desejosa à atividade desejante é sempre descrita como passagem da submissão ao que não está em nosso poder àquilo que está inteiramente sob nosso domínio. Na tradição que prevalecerá sobre as demais, a estóica, a Fortuna será dita senhora das coisas exteriores e das circunstâncias que afetam nosso corpo, mas sem poder sobre o espírito do sábio que, em todas as circunstâncias, consulta apenas a razão, não se deixa corromper pelos costumes e aprendeu a despojar-se de todo desejo — instala-se a oposição entre desejo e virtude pela oposição entre Fortuna e vontade guiada pela reta razão.

Ora, para que o sábio possa liberar-se da Fortuna e seguir os desígnios da Providência, precisa distinguir os sinais da primeira e os signos da segunda. Para essa distinção, o estoicismo desenvolveu uma teoria da divinatio, leitura e interpretação dos signos providenciais escritos no mundo dos acontecimentos — astros e coisas terrenas. Com isso, a divinatio repunha a teologia astral e, com ela, a diferença entre considerare e desiderare. O desiderium tornava-se, assim, tanto o risco de uma perda irreparável para aquele que, consultando os astros, não pudesse vê-los, quanto o risco de não conseguir a harmonia natural para aquele que decidisse abandonar a interpretação dos signos siderais. O cristianismo, aderindo à moral estóica, mas repudiando como idolatria a astrologia e os augúrios, passou a distinguir entre a Providência geral de Deus (que opera por decretos universais), a Providência divina particular (que opera por milagres e profecias) e a Fortuna, contingência ou acidente, cujo perigo aumenta à medida que o desejo é concebido como efeito da liberdade humana, sempre contingente. Encontrou, porém, na metafísica neoplatônica um substituto aceitável para a divinatio estóica, passando da astrologia à angelogia. Os anjos não são estrelas, mas intermediários que usam os astros para fazer chegar até nós as mensagens da Providência particular de Deus. Desiderium, abandono dos sinais angélicos ou perda das mensagens divinas, torna-se pecado do orgulho.

Assim, se o desejo, enquanto cupiditas, era o pecado da concupiscência, como desiderium torna-se o pecado da soberba. Mais do que isso, a cupiditas surge como consequência do desiderium. A pergunta que atormenta o cristão desejoso-desejante sobre o que está e o que não está em seu poder sofre, então, pequeno deslocamento: aquele que julga estar apenas sob seu próprio poder, seguindo somente seu próprio desejo (desiderium e cupiditas), obedece à sua natureza desnaturada, submete-se aos caprichos do Mal e transgride a vontade racional da Providência. Opondo o homem a Deus e à Natureza, e entregando-o a si mesmo e ao demônio, senhor da Fortuna, o desejo é insensatez orgulhosa.

No entanto, quando a Renascença, através do neoplatonismo, recuperar a teologia astral e, através do aristotelismo, repuser a metafísica do desejável como motor imóvel do mundo, e inserir, estoicamente, o homem no todo da Natureza como microcosmo que espelha o macrocosmo, o laço que prendia o desejo à Fortuna voltará a ser atado, mas para afirmar que o movimento desejante só em aparência é transgressão do divino porque, em essência, é a realização da divindade em nós.

Inserido no todo da Natureza, definido como microcosmo e posto pela teologia astral sob o governo dos astros, o homem e seus desejos suscitam a interrogação renascentista. Como o desejo, motor do macro e microcosmo, pode concordar consigo mesmo? Como as forças que movem o universo e o governam podemfavorecer ou prejudicar as forças que movem e governam o homem, isto é, como a Fortuna pode auxiliar ou destruir os humanos? Deve o homem manter-se na reverência do considerare? E, inversamente, como as forças que movem e governam o homem podem concordar ou rivalizar com aquelas que movem o mundo, isto é, como a virtude pode cooperar com o mundo ou dominá-lo? Deve o homem ousar a irreverência do desiderare? Está em jogo nessa interrogação a autonomia do homem na rede dos acontecimentos cósmicos, definida pelo estoicismo e apropriada pelo cristianismo como desejo de cooperar com o destino, isto é, com a Divina Providência, e que sofrerá uma primeira e decisiva contestação na obra de Maquiavel quando este fizer da virtú o poder viril para dobrar a insolência da feminina Fortuna, nome que, acovardados, damos à adversidade. Na mesma direção, Bacon, que, no Valerius Terminus, denomina Deus o Doador e Arquiteto das Formas, no De Augmentis, retomando uma expressão contida no subtítulo dos Ensaios, designa o homem Faber Fortunae, arquiteto da Fortuna. Fascinado pelo adágio romano — Faber quisque fortunae suae, que traduz para “o molde da fortuna de um homem é ele próprio” — Bacon chega a propor sua reformulação para Faber quisque ingenium sui, “porque ensinaria aos homens a se inclinar para a correção de suas imperfeições que apenas querem disfarçar, e atingir as virtudes”.

O trabalho do arquiteto da Fortuna para modelar seu próprio destino modelando sua própria índole começa pela modelagem do desejo, para a qual é requerido o serviço da retórica:

O dever e ofício da retórica é aplicar a razão à imaginação para melhor mover a vontade (…) Se pudéssemos bem ordenar os afetos e torná-los sempre dóceis à razão, seriam inúteis todos os meios de persuasão e todos os caminhos para insinuar-se nos ânimos; bastaria apresentar a verdade nua e no estilo mais simples. Infelizmente, não é assim. Ao contrário, quantas dissenções são causadas pelos afetos, quantos tumultos e sedições excitam no ânimo. É o que dizem os versos conhecidos: video meliora probo que, deteriora sequor [vejo o melhor e o aprovo, mas sigo o pior ]. De sorte que a razão, deixada sozinha, seria logo arrastada pela servidão e feita cativa; mas a deusa persuasão impede a imaginação de esposar a causa das paixões e, por seu intermédio, arranjando uma aliança entre a imaginação e a razão, as coliga contra as paixões.[26]

Reencontramos aqui os lugares comuns antigos: a paixão como perturbação, sedição, tumulto, e como servidão da alma; a eloquência como pedagogia moral necessária, uma vez que a razão, que vê e aprova o melhor, não pode levar a imaginação a segui-lo nem impedi-la de tornar-se cativa do pior, alienus juris. Todavia, sob a aparência do antigo, a modernidade já começa a oferecer seus primeiros sinais. De fato, a retórica, fabricadora dos exemplaria de virtude, só é eficaz porque adaptada às condições individuais de tempo e lugar e das disposições do ouvinte, sendo por isso obrigada ao conhecimento da comp/exio ou constitutio ou ingenium do ouvinte a ser educado, conhecimento que lhe é oferecido pela medicina dos temperamentos e caracteres. E essa medicina já não concebe a Natureza à maneira antiga, nem à antiga define a ação do médico.

“Antes de mais nada, nisto como em tudo que concerne à prática, devemos avaliar o que está em nosso poder e o que não está, pois, num caso, pode-se fazer alterações e, noutro, somente fazer empregos. O agricultor nada pode sobre a natureza do solo nem sobre as estações do tempo. Assim também com o médico: nada pode sobre a constituição do doente nem sobre a variedade dos acidentes. No que toca à cultura do ânimo [cultura animi] e à cura de suas doenças três coisas devem ser consideradas: as características diferentes das disposições [characteres diversis dispositionum], as afecções [affectus] e os remédios (remedia). Do mesmo modo, no tratamento das doenças do corpo, três coisas devem ser consideradas: a compleição ou constituição do doente [complexio sive constitutio aegri], a doença [morbus] e o tratamento [curatio]. Dessas três coisas, somente a última está em nosso poder.[27]

Como no caso anterior, Bacon inicia com um antigo lugar-comum, estabelecendo a correspondência entre os termos da medicina corporal e os da anímica (à constituição correspondem os caracteres; à doença, os afetos; à cura, o tratamento) e deixando em nosso poder, à maneira antiga, apenas o auxílio à natureza do doente A correspondência entre as duas medicinas, porém, funda-se numa teoria nova das relações entre corpo e alma como aliança entre confederados, cada qual senhor de seu território e de suas leis, mas capazes de um pacto porque ambos estão submetidos à mesma lei natural do appetitus, inclinação à autoconservação. Todavia, a comparação entre as duas medicinas introduz um conceito que, já presente nas Tusculanas, receberá um sentido inteiramente novo: a cultura da alma, que orienta a comparação baconiana entre o médico e o agricultor e conduz à arte moral, apresentada por Bacon com o curioso nome de “geórgica da alma”. Para entendê-la precisamos regressar ao texto do De Augmentis que vínhamos citando, mas agora em sua versão inglesa, cujo teor é diverso do original latino:

Pontos da Natureza; pontos da Fortuna. Com o fundamento de uma e as condições da outra, nosso trabalho está preso e limitado. Nessas coisas, portanto, é-nos deixado somente operar por emprego. Vincenda est omnis Fortuna ferendo — a fortuna pode ser vencida e ultrapassada pelo sofrimento — mas também Vincenda est omnis Naturae ferendo — a Natureza pode ser vencida e ultrapassada pelo sofrimento. Não por um sofrimento embotado e negligente, mas por um sofrimento prudente e industrioso (wise and industrious suffering) que extrai e trama engenhosamente o uso e a vantagem daquilo que parece adverso e contrário.[28]

Aqui encontramos a inovação baconina que modifica o sentido dos lugares-comuns antigos que pareciam ter sido mantidos. Ao acrescentar ao dito antigo sobre a Fortuna um novo ditado sobre a Natureza, ao introduzir a ideia do “sofrimento industrioso e prudente” que vence Fortuna e Natureza, ao definir esse sofrimento como extração laboriosa e astuta do que Natureza e Fortuna nos oferecem como “adverso e contrário”, Bacon anuncia seu conceito chave, o da Natureza vexata, a Natureza atormentada, violentada pelo engenho humano e que orientará a ciência, a arte e a geórgica da alma como aumento imensurável do campo das coisas que estão em nosso poder.

Para conhecer, isto é, para conquistar o saber e a capacidade para operar sobre a Natureza, não basta conhecer-lhe a constituição (fixa e estática), mas é necessário desenvolver técnicas que permitam penetrar no âmago das suas formas, isto é, das regras de suas mutações internas e em seus movimentos secretos, tomá-la não como um ser plácido e inerte, mas vivo e tormentoso. No entanto, insiste Bacon, Nature is often hidden, e, se quisermos desocultá-la, precisamos provocá-la, violentá-la, atormentá-la para que nos deixe ver suas formas, pois é somente agindo sobre elas que poderemos comandá-la. A Natureza de que o homem é ministro, aquela que depois de obedecida se torna obediente, não é Natureza “natural”, mas trabalhada, alterada, vexata. Aqui, a herança médica antiga é substituída pela medicina alquímica e pelo procedimento indicado para restaurar a saúde dos corpos naturais e purificar os metais vis para deles fazer vir o metal perfeito, o ouro. A alquimia encarrega-se de separar (separare) e extrair (extrahere) o que está escondido e implicado nos corpos, procurando purificá-los (depurare), liberando-os de obstáculos, fazendo-os amadurecer, acelerando ou retardando seu movimento. Todavia, Bacon não é Paracelso. Ainda que fale em antipatias e simpatias, que conceba a appetitus como natural a todos os seres, que empregue, no caso da alma, expressões como expurgare, emendare, e, no caso do corpo, depurare, Bacon desenvolve uma concepção inteiramente artificialista da “separação”, cujo modelo é a dissectio, praticada pela anatomia, e cujo objeto é a Natureza atormentada. Artifício prudente e industrioso, a separação e a dissecção operam sobre as formas, tanto para transformá-las quanto para fazê-las gerar seres inesperados que a Natureza, deixada a si mesma, jamais engrendraria.

É nesse contexto que podemos compreender a geórgica da alma e o lugar que nela tem o desejo. Se é verdade que o objetivo da moral é a virtude, entendida como a vontade conduzida pela reta razão e seduzida pelos bens com que a persuade a retórica com seu exemplaria, e se é verdade que “os ferrões da vontade são as paixões e seus ministros são os órgãos e os movimentos voluntários”, também é verdade que a Natureza colocou em nós um “começo de inclinação” que pode ser dirigido segundo nosso engenho e arte, assim como plantou em nós “ervas boas e ervas más”, cabendo ao jardineiro da alma desenvolver uma arte para extirpar as últimas e cultivar as primeiras. A Natureza nos dá o apetite, mas nós nos damos desejos, criando uma segunda natureza que, por isso mesmo, está inteiramente em nosso poder. A Natura vexata, no caso do homem, surge quando, feita a travessia das constituições e dos caracteres, aportamos na região dos afetos que, sendo causados pelo costume e pelo hábito, estão sob nosso domínio. A geórgica da alma tem como objeto constituições e caracteres, impressos em nós pela Natureza, e suas doenças, os afetos, impostos a nós pela Fortuna; como objetivo, não um quadro geral e classificatório de exemplares universais abstratos (a cólera, a esperança, a crueldade) e sim casos individuais, delineados à maneira dos poetas e historiadores (o colérico, o esperançoso, o cruel), isto é, comportamentos momentâneos ou duradouros, causados pela conjunção da Natureza e da Fortuna; como finalidade, determinar as causas que estão em nosso poder porque sobre elas deveremos agir, tomando-as como “ingredientes dos remédios” para o tratamento da alma (educação, exercício, louvor, censura, imitação, emulação); e como método, uma “exata anatomia das constituições”, uma “viva pintura dos caracteres” e o abandono da posição aristotélica, segundo a qual o hábito e o costume não têm poder para alterar o natural. O erro de Aristóteles esteve em desconsiderar aqueles seres cuja natureza é suscetível de aumento ou diminuição e nos quais o hábito e o costume, violentando a placidez natural, são capazes de produzir alterações definitivas, criando uma segunda natureza. Hábito, o desejo precisa ser submetido à arte que depura, extirpa, libera, amadurece e fortifica seus próprios artifícios.

“A arte imita a Natureza” significa, agora, que a arte faz como a Natureza, fazendo por ela e mesmo contra ela aquilo que, sendo potencialidade natural, a Natureza não consegue por si mesma atualizar, senão quando violentada. Assim como a educação do desejo exige que seja desenvolvido pouco a pouco e vergado em sentido contrário, como o jardineiro verga a planta para forçá-la a crescer reta, e assim como o jardineiro da Nova Atlântida, atormentando a Natureza, desloca sementes para regiões mais adequadas onde a Natureza não as depositou, mas o homem as plantou para frutificar como jamais o fariam naturalmente, realiza enxertos que criam espécies novas e surpreendentes, assim também, o filósofo moral deslocará os objetos do desejo, criará novos hábitos e costumes e garantirá ao homem a condição de Faber Fortunae porque é Faber ingenii sui, arquiteto de seu caráter ou de sua natureza.

Aqui se esclarece o preceito baconiano de “aplicar a razão à imaginação”, tarefa da retórica na moral. Fruto da imaginação, o desejo não pode ser vencido pela razão: “Vejo o melhor e o aprovo, mas sigo o pior”, dizem os versos de Ovídio. No entanto, a razão pode persuadi-lo, oferecendo-lhe novos objetos de satisfação ou substituindo-o por outro. À razão, cabe a astúcia industriosa e prudente de tornar vantajoso o que parece contrário e adverso, calculando a força dos desejos, obrigando-os a combater entre si, atormentando-os para que o mais fraco seja vencido pelo mais forte, proposto pela inteligência à persuasão. A geórgica da alma modela o desejo, modelando a índole do indivíduo. Contrariamente ao que supunha o estóico, a reta razão, enquanto simples razão, não tem poder sobre o desejo, mas é poderosa na invenção das circunstâncias para dominá-lo e alterá-lo. Mais do que agarrar a ocasião, como fazia o médico antigo, o jardineiro da alma cria a ocasião, altera as circunstâncias e usa o desejo para vencer desejos.

O deslocamento do desejo para a região da Fortuna, do hábito e do costume, garante ao homem pleno poder sobre ele e a possibilidade de alterá-lo inteiramente, segundo as circunstâncias e a sedução das palavras, dos gestos e dos exemplos. A geórgica da alma cria, assim, uma segunda natureza que é, ao fim e ao cabo, nossa única natureza, artifício laborioso e imitação perfeita porque criadora do próprio modelo, a partir do “começo de inclinação”, escondido em nós pela Natureza. O desejo é natural por ter-se tornado inteiramente artificial.

IV

Desde Aristóteles, o desejo, definido essencialmente como movimento, determinou as formulações sobre a relação entre a Natureza e a Arte, a primeira tornando-se cada vez mais artesã e a segunda, cada vez mais natural. A Natura vexata baconiana corresponde, noutro contexto, ao ideal de divinização do homem, aspirado por Bruno:

Os deuses deram ao homem o dom do intelecto e das mãos e o criaram semelhante a eles ao dar-lhes faculdades acima dos animais que permitem operar não somente segundo as leis da Natureza, mas fora e além delas, podendo formar outras naturezas, outros recursos, outras ordens por meio de seu engenho, com aquela liberdade sem a qual não se assemelharia aos deuses nem seria um deus na Terra.[29]

Se o renascentista, para quem o mundo eram figuras e vozes, aspirava a criar novas formas e naturezas, para o filósofo moderno interessa a liberdade para criar e alterar movimentos. A realidade é feita de coisas, ideias e instrumentos. O moderno não é mais um simples mechanicus e sim machinator; mais do que artesão, que extrai da matéria o que ela lhe permite, é geômetra, algebrista e engenheiro,[30] concebendo movimentos novos, isto é, máquinas. Sob o imperativo da máquina, a separação entre Arte e Natureza é abolida: a máquina é natural e a Natureza, maquinismo. Já havíamos visto essa mutação quando, no início, mencionamos a abertura do Leviatã. Podemos observá-la também em funcionamento em Descartes:

Não há diferença alguma entre as máquinas que os artesãos constroem e os diversos corpos de que se compõe a Natureza, senão esta: que os efeitos das máquinas dependem apenas da ação dos tubos ou das molas e de outros instrumentos que, devendo possuir alguma proporção com as mãos daqueles que as constroem, são sempre suficientemente grandes para deixar aparecer suas figuras e movimentos, enquanto os tubos e as molas produzidos pelos efeitos naturais são, geralmente, bastante minúsculos para serem percebidos por nossos sentidos.[31]

A diferença entre a máquina artificial e a natural é apenas de grau e o homem pode construir autômatos, “máquinas móveis que o engenho humano pode produzir empregando nisso pouquíssimas peças”, se comparado ao corpo humano, ainda que (cuidado com o ateísmo!) “devamos considerar que o corpo, máquina feita pela mão de Deus, é incomensuravelmente melhor ordenada e contém movimentos mais admiráveis do que qualquer das que possam ser inventadas pelos homens”.

Da mesma maneira, na Monadologia, Leibniz escreve:

Assim, cada corpo orgânico de um vivente é uma espécie de máquina divina ou um autômato natural que ultrapassa infinitamente todos os autômatos artificiais. Porque uma máquina feita pela mão do homem não é máquina em todas as suas partes […] mas as máquinas da Natureza, isto é, os corpos vivos, são ainda máquinas em suas menores partes até o infinito. É isso que faz a diferença entre a Natureza e a Arte, isto é, entre a arte divina e a nossa.[32]

A nova máquina já nada deve às “outras naturezas e outras ordens” imaginadas pelos renascentistas, que tomavam a Natureza menos como maquinismo e mais como organismo animado, constituído de forças secretas, articuladas por obscuros desejos, e cujas partículas, agindo à distância, por amor e ódio, dispunham os germes para a germinação de novas vidas na pulsação do mundo. A oficina do moderno machinator não é a Natureza como sylva sylvarum, mas como orologium, relógio, peça mecânica exemplar. Rodas, molas, cordas, juntas, escreve Hobbes. Tubos e molas, continua Descartes. Sob o paradigma do relógio, é o novo conceito do movimento que faz sua aparição e é com ele que Descartes elabora a teoria dos corpos animados como animais-máquinas e Hobbes, a teoria do conatus, esforço originário de autoconservação dos seres. No Leviatã, lemos:

Há nos animais dois tipos de movimentos que lhe são peculiares. Um deles chama-se vital; começa com a geração e continua sem interrupção durante toda a vida. Deste tipo são a circulação do sangue, o pulso, a respiração, a digestão, a nutrição, a excreção, etc. Para estes movimentos não é necessária a ajuda da imaginação. O outro tipo é o dos movimentos animais também chamados movimentos voluntários, como andar, falar, mover qualquer dos membros da maneira como é, primeiro, imaginada pela mente. A sensação é o movimento provocado nos órgãos dos sentidos e partes inferiores do corpo do homem pela ação das coisas que vemos, ouvimos etc. e a imaginação é apenas o resíduo desse mesmo movimento que permanece depois da sensação (…) a imaginação é a primeira origem dos movimentos voluntários […] esses pequenos indícios do movimento, no interior do corpo humano, antes de se manifestarem no andar, na fala, na luta e outras ações visíveis, chamam-se esforço [conatus]. Esse esforço, enquanto vai na direçao de algo que o causa, chama-se apetite ou desejo, sendo este último um nome mais geral e o primeiro costuma limitar-se a significar desejo de alimento, particularmente a fome e a sede. Quando o esforço vai na direção de evitar alguma coisa, chama-se aversão. As palavras apetite e aversão vêm do latim e ambas designam movimentos, um de aproximação e outro de afastamento. Também os gregos tinham palavras para exprimir o mesmo, hormê e aphormê.[33]

O conatus (esforço), movimento interno ao corpo, é movimento infinitesimal e invisível dos espíritos animais, isto é, daqueles corpos “tão sutis que não atuam sobre os sentidos”, como lemos em A natureza humana. É impulso voluntário de aproximação ou de afastamento do objeto externo que o suscita tendo como origem a presença de imagens sensoriais retidas em nós e que constituem a imaginação. Um primeiro movimento, a sensação, dirigido dos sentidos ao cérebro, continua como movimento para a retenção das imagens e, dirigindo-se do cérebro ao coração, causa um desejo determinado. O movimento interno se inicia como desejo indeterminado e termina como desejo determinado.

Espinosa radicaliza a posição hobbesiana, fazendo do conatus a essência atual de um ser:

Todo ente se esforça, tanto quanto estiver em seu poder, para perseverar em seu ser […] O esforço pelo qual todo ente se esforça para perseverar em seu ser não é senão a essência atual desse ente […] A alma [mens], seja enquanto tem ideias claras e distintas, seja enquanto tem ideias confusas, esforça-se para perseverar em seu ser por uma duração indefinida e tem consciência de seu esforço (…) esse esforço, enquanto referido apenas à alma, chama-se vontade; mas quando se refere simultaneamente à alma e ao corpo, chama-se apetite (appetitus). O apetite é a própria essência do homem (…) entre o apetite e o desejo [cupiditas] não há qualquer diferença, senão a de que o desejo é aplicado aos homens quando têm consciência de seus apetites e, por conseguinte, pode ser assim definido: o desejo [cupiditas] é o apetite [appetitus] de que se tem consciência.[34]

O conatus é a essência atual de um ente. O desejo, apetite de que temos consciência, é a essência atual do homem. O desejo é, pois, conatus, movimento infinitesimal de autoconservação na existência. O desejo é o poder para existir e persistir na existência. É a pulsação de nosso ser entre os seres que nos afetam e são por nós afetados.

O desejo, sempre o soubemos, esteve enlaçado ao movimento. Entretanto, antigamente, o movimento era desejo; agora, o desejo é movimento. E o movimento já não é a kínesis, não é um processo, mas um estado do corpo; não é, em si mesmo, qualitativo, mas uma propriedade mensurável dos corpos, isto é, uma quantidade que determina qualidades na matéria, tais como a forma, a figura e a grandeza. O movimento, agora, é aquele cujas leis foram trazidas por Galileu e Descartes, deslocamento no espaço, ou, como o define Hobbes, “acidente universal dos corpos […] o contínuo abandono de um lugar e a aquisição de um outro”. Enquanto o movimento aristotélico e escolástico carecia de uma causa (eficiente, material, formal e final), o movimento moderno é a causa e se mantém a si mesmo indefinidamente em linha reta no espaço homogêneo que lhe oferece a geometria. Definido como causa eficiente e efeito dos deslocamentos espaciais, é apenas movimento retilíneo uniforme ou uniformemente acelerado, do qual todos os outros são variantes ou derivados.

À medida que se desenvolve a nova Philosophia Naturalis, nada resta no movimento que permita concebê-lo como qualidade diferenciadora dos seres: movimento celeste circular perfeito, movimento retilíneo sublunar imperfeito, movimento natural, movimento violento, tornam-se expressões sem sentido; já nada resta que permita imaginá-lo como ato finalizado de uma inteligência desejante presente nas coisas, nem como simpatia-antipatia, amor e ódio universais. Concebido sob os imperativos das ideias enquanto representações, isto é, como conceitos produzidos pelo sujeito do conhecimento, discriminadores que operam com a identidade e a diferença intrínsecas dos seres enquanto objetos de conhecimento, o movimento, propriedade do objeto corporal, é representação de uma relação quantitativa no espaço geométrico, homogêneo e reversível, obedece ao princípio de inércia e, portanto, tenderá a manter-se indefinidamente até que seja interrompido por um outro, contrário, ou por um obstáculo em repouso. É geométrico: movimento do ponto que traça uma reta, da reta que traça um círculo; acrescido do tempo ou da velocidade, é físico e descrito pela cinemática (como o será o conatus cartesiano); acrescido, ainda, da força ou da intensidade, é analisado pela dinâmica (como o serão os conatus hobbesiano e espinosano).

O princípio de inércia ou da conservação indefinida do movimento é o fundamento do conceito de conatus como esforço infinitesimal realizado por um corpo para manter-se em seu estado e tal esforço definirá, doravante, o homem como um ser que opera para autoconservar-se na existência. O desejo, movimento de autoconservação de que temos consciência, é um fenômeno físico-mecânico que repercute na alma como consciência do esforço de autoconservação na existência. Pensado mecanicamente, torna-se objeto da fisiologia (análise dos movimentos vitais e animais do corpo) e da psicologia (análise da sensação, da imaginação e da vontade da alma). Somos “máquinas desejantes”, para usar a expressão cunhada por Gilles Deleuze.

O conatus é uma força centrífuga (Descartes), isto é, tendência a afastar-se indefinidamente do centro de origem do movimento, e uma reação à pressão centrípeta (Hobbes, Espinosa) que afeta externamente um corpo. Sua função é restabelecer o equilíbrio corporal quando rompido pelas forças externas. Ultrapassando a simples identificação com o princípio de inércia, proposta da física cartesiana, o conatus, nas filosofias hobbesiana e espinosana, é também esforço para desvencilhar-se de um obstáculo externo. Em outras palavras, com Hobbes e Espinosa, o desejo se realiza num contexto de forças em conflito, num meio ou ambiente de antagonismos e sua função é restabelecer o equilíbrio do desejante o que, aliás, significa repor novos antagonismos. Relação intercorporal, o conatus, enquanto desejo, é relação intersubjetiva. Por ser movimento consciente que se realiza num meio ambiente, o desejo será definido pelos primeiros filósofos como tendência à autoconservação que leva o homem a agir de maneira determinada. É o vínculo entre desejo e ação que transforma o primeiro no principal objeto da ética e da política.

O fato de que as representações da mecânica tenham-se tornado o parâmetro para o estudo do movimento corporal e anímico acarreta algumas consequências de grande envergadura para o conceito de desejo.

Em primeiro lugar, tendo a metafísica moderna estabelecido a distinção ontológica entre corpo e alma (seja porque os considere como substâncias distintas, à maneira de Descartes e de Leibniz, seja porque os considere modificações diferentes de uma mesma substância, como Espinosa, seja porque considere impossível a existência de substâncias espirituais e admita apenas as corporais, como é o caso de Hobbes), torna-se problemático falar em movimento da alma, uma vez que o movimento é uma determinação essencial dos corpos, uma propriedade da matéria que não pode ser predicada ao espírito. E, no entanto, o corpo apetece e a alma deseja. Três soluções são possíveis. A primeira delas, adotada por Hobbes, consiste em considerar a alma um nome para operações mentais do cérebro e, portanto, capaz de movimento. A segunda, adotada por Espinosa, consiste em considerar o desejo como consciência dos movimentos corporais na alma que, embora também seja definida como conatus, não realiza movimentos e sim encadeia pensamentos e desejos. A terceira, enfim, adotada por Descartes e Leibniz, ainda que por razões diferentes em cada um deles, consiste em distinguir o movimento corporal e o anímico, atribuindo a este último algo que fora rigorosamente excluído do movimento corporal, isto é, a finalidade. Em outras palavras, na alma, o desejo é movimento dirigido por e para um fim externo, distinguindo-se dos movimentos corporais que, sendo mecânicos, não são finalizados, embora, para Descartes, se tornem finalizados quando dirigidos pela vontade que deseja a verdade e o bem. Escreve Leibniz:

A alma segue suas próprias leis e o corpo, as suas; e ambos se encontram em virtude da harmonia preestabelecida entre todas as substâncias […] As almas agem segundo as leis das causas finais por apetiçâo, fins e meios. Os corpos agem segundo as leis das causas eficientes ou dos movimentos. E os dois reinos, o das causas eficientes e o das causas finais, são harmônicos entre si […] Se Descartes tivesse sabido disso teria caído em minha teoria da harmonia preestabelecida.[35]

Em segundo lugar, e como consequência da distinção ontológica, surge o problema de saber se os movimentos do corpo podem causar efeitos na alma, problema posto a todos os modernos, inexoravelmente, pelo desejo. Sendo substancialmente distintos (ou modalmente, no caso espinosano), como corpo e alma podem interagir, se o princípio de causalidade exige que causa e efeito sejam de mesma natureza? Em Hobbes, o problema encontra solução imediata, uma vez que o filósofo exclui a ideia da alma como substância espiritual presente num corpo material; há apenas o corpo e a consciência do que nele se passa, consciência que não é senão sistema de movimentos cerebrais, sanguíneos e nervosos. Espinosa e Leibniz, por razões metafísicas diferentes, solucionam a questão concebendo as relações entre corpo e alma como expressivas, isto é, o corpo e a alma não agem causalmente um sobre o outro, mas cada qual exprim apetite corporal. 
Em Descartes, a solução cria novos e insolúveis problemas porque decide manter relações causais entre corpo e alma. Independentemente das novas dificuldades criadas, a solução carte e, à sua maneira, que se passa no outro e o desejo é expressão anímica do siana parte da introdução da ideia de uma terceira substância, o composto substancial alma-corpo, que é a “minha natureza”, isto é, o ser humano. Esse composto revela que a alma, diferentemente do que pensara Platão e a tradição platônica, não está no corpo como o piloto em seu navio, mas está substancialmente unida a ele; e, diferentemente de Aristóteles e da tradição aris-totélica, a alma não é um conjunto de faculdades vitais (nutritivas, vegetativas, motrizes) espalhadas pelo corpo e princípio de individuação da matéria, mas é una, indivisível e simples, sediada num espaço imaterial na região do cérebro (a glândula pineal) de onde irradia movimentos para o corpo, e é princípio exclusivamente pensante, isto é, volitivo e intelectual. A prova da existência do composto substancial, da íntima união do corpo e da alma, é justamente o desejo, ou melhor, o sentimento, fundo obscuro que jamais chegará à condição de ideia clara e distinta. O movimento dos espíritos animais no corpo leva até à alma informações que a fazem desejar coisas, julgando-as conforme a afetem do ponto de vista do bom e do mau; esse juízo move os espíritos animais no corpo, determinando-o a executar “os movimentos que lhe servem para essas coisas”.

Seja qual for a solução encontrada, um ponto será comum a todos os filósofos do início da modernidade: o laço prendendo o desejo à imaginação. Com efeito, o campo privilegiado das relações entre alma e corpo é aquele onde ambos operam com o mesmo referencial e esse campo é o das imagens, produzidas no corpo pela ação dos objetos exteriores sobre os órgãos dos sentidos, os nervos, o sangue e o cérebro. A imaginação (sensação, percepção, memória, fantasia e linguagem) é esse lugar enigmático onde transcorrem a passividade (do corpo e da alma, receptores da ação externa) e a atividade (do corpo e da alma, fabricadores das imagens internas). É na e pela imaginação que o desejo — appetitus e cupiditas — realiza seus movimentos, prendendo a alma ao seu corpo e o corpo à sua alma. Enlaçado nas imagens, o desejo enlaça nosso ser à exterioridade (coisas, corpos, os outros), carregando-a para nossa interioridade (sentimentos, emoções) e, simultaneamente, enlaça o interior ao exterior, impregnando este último com os afetos, fazendo todos os seres surgirem como desejáveis ou indesejáveis, amáveis ou odiosos, fontes de alegria, tristeza, desprezo, ambição, inveja, esperança ou medo.

A presença da imaginação como teia e trama que prende o desejo é o corolário da geometria e da física do conatus, isto é, da naturalização do appetitus e da cupiditas. Dizer que os modernos naturalizam o desejo não é dizer que constatam, empiricamente, o fato bruto de que a natureza humana é desejosa e desejante. A naturalidade do desejo é metafísica: decorre necessariamente da demonstração de que ele é efeito determinado de causas determinadas que o produzem em conformidade com as leis universais e a ordem necessária da Natureza. Ao inseri-lo numa teoria da imaginação, os primeiros modernos o situavam numa teoria geral dos movimentos corporais, isto é, da sensibilidade corpórea em suas relações determinadas com a afetividade anímica, também dotada de leis próprias.

Em terceiro lugar, independentemente do sucesso ou do fracasso da empreitada, todos os filósofos do início da modernidade estão convencidos da possibilidade da elaboração de uma ciência do páthos, rigorosa, demonstrativa, de preferência de estilo matemático. Pela primeira vez, desde Aristóteles, rompe-se a ideia de uma contingência inalcançável pelo saber e são superadas as duas consequências dessa suposição, isto é, a moral secundada pela retórica e a definição, que data dos estóicos, da filosofia como ars vivendi e medicina mentis que ensina a governar, moderar e persuadir o desejo. O desencantamento do mundo é a convicção de que o desejo, e todo páthos, pode elevar-se à condição de objeto de um saber matemático dedutivo, tornar-se ideia clara e distinta (para nós, ainda que permaneça obscuro em si), demonstrado por ciências fundadas na evidência racional (seja partindo de intuições intelectuais, seja chegando a elas pelo caminho da gênese geométrica do objeto) e que tais conhecimentos não são apenas especulativos, mas práticos, destinados, no caso de Descartes, a fazer do homem “senhor e possuidor da Natureza” e, no caso de Hobbes e Espinosa, a fundar uma nova política que permita passar da barbárie à vida civil (em Hobbes, pela limitação que o direito civil impõe ao conatus , definido como desejo crescente de mais poder; em Espinosa, pela capacidade do direito civil para geometrizar as proporções de direito e poder concretizando o desejo natural de governar e não ser governado). Nos três casos, ciências que garantam ao homem ampliar o campo das coisas que estão em seu poder e fazer-se governante da Fortuna, mesmo porque esta já não se encontra escrita e inscrita nos astros, mas nas circunstâncias que nós mesmos criamos ou naquelas que podemos conhecer inteiramente, aprendendo a ler a escrita matemática do grande livro da Natureza. No caso do desejo, o conceito de conatus abre o campo da geometria e da dinâmica dos afetos e um texto de Espinosa nos ajudará a perceber a mutação conceitual em curso na modernidade:

Ninguém, que eu saiba, determinou a natureza e a força dos afetos nem, inversamente, o que pode a alma [mens] para moderá-los (…) quanto àqueles que preferem detestar ou ridicularizar os afetos e ações dos homens, em vez de conhecê-los, a esses parecerá estranho que eu proponha tratar o que julgam ser vícios e inépcias da natureza humana à maneira dos geômetras e que queira demonstrar por um raciocínio rigoroso o que não cessam de proclamar contrário à razão, vão, absurdo e digno de horror. Mas eis como raciocino. Nada acontece na Natureza que possa ser lhe atribuído como vício. Com efeito, a Natureza é sempre a mesma; sua virtude e sua potência de agir são unas e por toda parte sempre as mesmas e, da mesma maneira, também o caminho correto para conhecer a natureza das coisas, quaisquer que sejam, deve ser sempre uno e o mesmo (…). Tratarei da natureza e da força dos afetos e da potência da alma sobre eles com o mesmo método com que tratei de Deus e da alma, e considerarei as ações e desejos humanos como se tratasse de linhas, superfícies ou volumes.[36]

Assim como linhas, superfícies e volumes são efeitos de movimento, assim também os afetos. A dinâmica do conatus toma o movimento como uma causa, rigorosamente definida como tal, uma vez que é responsável pela gênese dos corpos e de seus efeitos e, apreendendo-o segundo a exigência galilaica de tomá-lo não como passagem entre dois pontos em repouso, mas como continuidade e transição, permite uma ciência do desejo de estilo matemático, cujos pressupostos são: a causa do movimento é outro movimento; o começo de um movimento já é movimento; um corpo é efeito de movimentos e causa de outros e toda variação qualitativa — no caso, a variação afetiva causada pelo desejo — é uma variação de quantidades, velocidades e direções de movimento, ou, como exige Espinosa, de relações de proporção entre movimento e repouso.
Completemos o texto espinosano acima citado com duas passagens do filósofo no Tratado político para alcançarmos a quarta consequência do parâmetro mecânico nas teorias modernas do desejo:

Os filósofos concebem os afetos que em nós travam combate como se fossem vícios em que os homens caem por sua própria culpa; por isso habituaram-se a ridicularizá-los, deplorá-los, reprová-los e, quando querem parecer mais santos, detestá-los. Crêem, assim, que procedem divinamente e que atingem o cume da sabedoria, prodigalizando toda sorte de louvores a uma natureza humana que em parte alguma existe, e machucando com seus discursos [dictis] aquela que realmente existe. Concebem os homens não como são, mas como gostariam que fossem (…). Para contribuir nesse estudo com o mesmo espírito de liberdade da matemática, cuidei para não rir, chorar, não lamentar nem detestar as ações humanas, mas delas adquirir conhecimento verdadeiro. Considerei as emoções [comotiones] não como vícios, mas como propriedades da natureza humana, maneiras de ser que lhe pertencem como pertencem à natureza do ar o calor, o frio, a tempestade, a trovoada e todos os meteoros.[37]

Não louvar nem machucar os afetos.

Não rir, não chorar, não lamentar nem detestar, mas compreender. Essa passagem famosa assinala a ruptura do discurso moderno com a mais poderosa tradição da filosofia moral: o tratamento das paixões ora como vícios merecedores de vituperação, ora como virtudes idealizadas pelo louvor dos moralistas. Em outras palavras, rompe-se o laço que prendia o desejo à retórica. Compreender, escreve Espinosa. Opondo o conhecer ao movere, docere et delectare, naturalizando as emoções e oferecendo à gênese do desejo numa natureza humana “tal como é e não como gostariam que fosse”, Espinosa desata os laços que, desde Aristóteles, haviam prendido o desejo à retórica, ao discurso (dictum) dos moralistas e pregadores. Não se trata mais de discorrer sobre o desejo para incitare animus e dobrá-lo a paradigmas e valores. Trata-se de conhecê-lo, determinando suas leis.

Essa ruptura possui três causas evidentes. Por um lado, a retórica havia substituído a impossível ciência do páthos, tornada possível agora. Por outro lado, a retórica ficara impregnada com a versão cristianizada do estoicismo, oferecendo ao teólogo e ao pregador farta matéria para condenar o desejo como contrário à Natureza, à razão e à virtude e, agora, a nova ciência permite naturalizá-lo como nunca pudera sê-lo antes, senão na metafísica aristotélica da mimesis e, ainda assim, no caso do homem, permanecera fora do campo do conhecimento teórico. A naturalização, ainda que o mantenha como luta e conflito “que arrasta um homem em direções contrárias”, como escreve Espinosa, afasta o desejo daquilo que o tornara inalcançável pela teoria e o lançara no campo da dialética e da retórica. Definido, sobretudo na tradição estóica, como perturbação sediciosa que põe a alma contra si mesma e contra a Natureza, o desejo era contradição viva. No entanto, desde a Grécia, a filosofia (com exceção de Heráclito) declarara a inexistência da contradição nas coisas e nas ideias: “o que se contradiz é nada; nada se contradiz”. O real e o inteligível, isto é, o verdadeiro, são regidos pela identidade e pela não-contradição, uma vez que o embate interno entre um positivo e o seu negativo próprio destrói um ser. É real e inteligível, é verdadeiro, apenas o movimento que não faz um ser passar em seu contrário negador. Quando, portanto, o estoicismo definiu o desejo como perturbação contraditória, instalando a contradição no interior da alma, fez dele algo impossível para a teoria, isto é, irreal e impensável. Não podendo ser fato nem ideia, o desejo, tornou-se, como vimos, mera opinião e, nessa qualidade, objeto da dialética e da retórica. A metafísica moderna mantém a expulsão do contraditório (somente com Hegel a contradição recuperará dignidade filosófica), porém naturaliza o desejo — não é opinião, mas movimento consciente — e desloca o conflito, retirando-o do interior da própria alma para fazê-lo operar seja entre a alma e o corpo (Descartes), seja entre a força centrífuga do corpo e a centrípeta do ambiente (Hobbes), seja entre as forças contrárias de desejos opostos na alma e não da alma (Espinosa). Assim, a retórica pode ser afastada porque desapareceu o pressuposto que a fazia operar — a contradição das opiniões da mente.

Por fim, a recusa da retórica não se limita apenas ao discurso ético, mas alcança todos os discursos da filosofia natural e da metafísica, na medida em que a noção de representação, isto é, de conceitos produzidos pela atividade intelectual do sujeito do conhecimento, destinados a marcar as ideias e as coisas com o sinal da diferença e da identidade intrínseca, afasta o discurso retórico, tido com incompatível com o novo saber:

Discursar sobre a natureza das coisas por meio de metáforas e alegorias nada mais é do que divertir-se e jogar com palavras vazias porque esses esquemas não exprimem a natureza das coisas, mas apenas suas semelhanças e aparências (…). Todas as teorias, na filosofia, expressas somente com termos metafóricos, não são verdades reais, porém meros produtos da imaginação.[38]

Já não se trata de “aplicar a razão à imaginação por meio da deusa persuasão”, mas de permitir que a razão afaste a imaginação conhecendo a natureza das coisas tais como são realmente e não como pareçam ser pelas relações de se melhança que mantenham com outras, de sorte que “metáforas e alegorias” não mais podem levar ao conhecimento do desejo, nem do que pode a alma humana para moderá-lo. A persuasão, quando for aplicada, é aquela oferecida por Pascal para “o acordo entre os discursos e a inconstância de nossos caprichos”:

Essa arte, que chamo arte de persuadir, e que é apenas e propriamente a condução de provas metódicas perfeitas, consiste em três partes essenciais: definir os termos de que nos queremos servir por meio de definições claras; propor princípios ou axiomas evidentes para provar a coisa de que se trata; substituir mentalmente, na demonstração, as definições no lugar dos definidos.[39]

Assim, uma passagem de Hobbes, que conserva a aparência do discurso retórico, já não pode ser lida retoricamente nem como texto de filosofia moral, senão sob pena de perder seu significado filósofo novo:

Não existe fim último [finis ultmus] nem sumo bem [summum bonum] de que se fala nos livros dos antigos filósofos morais. E ao homem é impossível viver quando seus desejos chegam ao fim, tal quando seus sentidos e imaginação ficam paralisados. A felicidade é um contínuo progresso do desejo, de um objeto para outro, não sendo a obtenção do primeiro senão o caminho para a obtenção do segundo. Sendo a causa disso que o objeto do desejo humano não é gozar apenas uma só vez, mas garantir para sempre os caminhos de seu desejo futuro (…). Assinalo, assim, em primeiro lugar, como tendência geral de todos os homens, um perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder, que cessa apenas com a morte.[40]

Essa passagem, que poderia ser lida como retórica do epicurista e como agudeza do psicólogo moral, afirma simplesmente que a “felicidade como progresso contínuo do desejo” e o desejo como “perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder” são efeitos naturais e necessários da física geométrica do conatus, isto é, do princípio de inércia, que define o movimento como continuidade indefinida até que seja interrompido por um outro, contrário, ou por algum obstáculo externo em repouso e da dinâmica das forças centrífugas mais fortes que as centrípetas da pressão ambiental. Sendo o conatus movimento de auto-conservação na existência e expansão de sua força na ausência de obstáculo externo mais poderoso que ele, e o desejo, expressão consciente desse esforço, seu término será a morte. Eis porque a definição hobbesiana do direito natural como “liberdade para usar seu próprio poder” e da liberdade como “ausência de impedimentos externos” derivam-se diretamente do desejo.

Enfim, a quinta consequência do parâmetro mecânico para o novo saber aparece quando lemos os tratados e discursos éticos modernos e observamos neles a ausência de um referencial que jamais abandonou o pensamento dos antigos, medievais e renascentistas, qual seja, as classificações das constituições, caracteres e temperamentos, oferecidos pela arte médica, a partir das teorias dos quatro elementos e dos quatro humores. Paixões e virtudes deixam de ser descritas e deduzidas desse referencial. Não que os modernos não falem em melancólicos, maníacos, sanguíneos ou fleumáticos, mas o uso desses termos já não os refere ao caráter ou à índole como disposição natural fixa sobre a qual se desenham os comportamentos e os desejos. A razão disso está na mudança da medicina humoral, sob o impacto da anatomia e da fisiologia, inteiramente mecânicas. Se, como vimos na geórgica da alma, nada podíamos fazer quanto ao caráter e temperamento, dados naturais irredutíveis, mas tudo podíamos quanto ao desejo, porque nascido de circunstâncias sob nosso poder, agora, acrescenta-se à possibilidade de alterar o desejo e criar desejos novos agindo sobre a máquina do corpo, também a de alterar o caráter e o temperamento, alterando os movimentos corporais. A nova medicina, ao nascer, tinha tais pretensões.

Descartes por exemplo, que mantém estreita relação entre a medicina e a moral e considera a primeira instrumento para “tornar os homens mais hábeis e prudentes”, tenta elaborar uma ciência médica que fundamente uma moral também científica, [O filósofo fracassará em seu intento em decorrência do conceito da natureza humana como composto substancial cuja realidade decorre do sentimento (sentimos a união de nosso corpo e nossa alma), do instinto à conservação vivenciado através dos afetos que são, em si mesmos, obscuros e incapazes de se oferecer como conceitos claros e distintos. No caso do saber teórico, a ciência é uma evidência e uma certeza intelectuais que dão à nossa vontade segurança para julgar e chegar ao verdadeiro; no caso da medicina e da moral, não há essa evidência nem essa certeza e só podem dar à nossa vontade firmeza para julgar. Não se referindo ao verdadeiro, mas ao útil, o desejo conduzido pela vontade firme tem como critério o princípio do melhor possível, mas não o absolutamente melhor. Eis porque Descartes, que esperava que a razão pudesse exercer o absoluto controle sobre o desejo, acaba admitindo que a razão pode apenas determinar os fins melhores (aqueles que nos mantêm senhores de nosso desejo, isto é, que indicam e separam o que está e o que não está em nosso poder) e os meios para alcançá-los (técnicas para auxiliar o desejo na consecução de seus fins). Em resumo, Descartes é forçado a separar ciência e sabedoria (prudência moral); na primeira, o pior dos males é julgar sem ter plena certeza, enquanto na segunda, o pior dos males é a irresolução do desejo, o não agir por falta de certeza.] baseando a medicina e o estudo das paixões da alma numa fisiologia onde o corpo é tomado como sistema térmico, dotado de um foco de calor (o coração), um misturador (o fígado) e um condensador (os pulmões) e cujo modelo de funcionamento é o das bombas, com seus tubos e molas. As emoções da alma são explicadas a partir dos movimentos dos espíritos animais no sangue, no cérebro e nos nervos, agitando a sede material da alma, a glândula pineal, que, dependendo da velocidade e da direção de tais movimentos, produz uma paixão determinada. Descartes ainda conserva a ideia de influência do temperamento (ou disposição natural) sobre o desejo, porém acrescenta a influência dos órgãos e descreve a variação passional menos pelo caráter (pois este é formado pela combinação do temperamento com as circunstâncias) e muito mais pelas variações fisiológicas dos movimentos dos espíritos animais no sangue, nervos, coração e cérebro, pelo papel do engenho (agudeza intelectual) e do hábito (a segunda natureza criada pelo engenho). Como observa Lívio Teixeira,[41] se houver presença da medicina na moral cartesiana não é como patologia (o desejo é natural) nem como terapêutica, mas como substrato da psicofisiologia que permite uma psicoterapia na qual a razão, para dominar os afetos, pode calcular sobre o desejo (à maneira epicurista), pode tentar educá-lo (à maneira aristotélica) ou dobrá-lo à virtude (à maneira estóica). Diremos que, mais do que uma psicoterapia do desejo, Descartes propõe uma técnica calculadora e pedagógica, desenvolvida pelo engenho. Este tem aqui papel fundamental porque está apto para alterar as disposições naturais e esse papel lhe é dado graças à mecânica. Com efeito, na Dióptrica, Descartes distingue no movimento o aspecto quantitativo e o escalar, isto é, o qualitativo, determinado por sua direção. No Tratado das paixões, as alterações do desejo decorrem do poder do engenho para mudar a direção do movimento dos espíritos animais e, com isso, mudar as disposições do corpo, os hábitos e as representações. Assim, os desejos naturais — como a atração sexual, o agrado em consumir ou possuir o que nos conserva — podem ser inteiramente alterados por desejos adquiridos pela aplicação das técnicas engenhosas que mudam a direção dos movimentos corporais.

O hábito, artifício que vence a Natureza e dobra a Fortuna, passa a operar de maneira a conformar-se com a dinâmica e a geometria do desejo. Assim, por exemplo, Espinosa, que, na abertura do terceiro livro da Ética, escrevera que ninguém, até o momento, havia demonstrado o que pode a razão para moderar o desejo, demonstrará que ela, simplesmente enquanto razão, nada pode sobr o desejo porque a força de uma paixão jamais é vencida pela razão e sim por outra paixão mais forte e contrária. O hábito moderador não é ação racional voluntária sobre o desejo, como supusera o estoico e mesmo Descartes, mas aptidão para manter as circunstâncias que reforcem o desejo de autoconservação e para excluir aquelas, contrárias, que o enfraqueçam. Essa aptidão possui maiores possibilidades de sucesso quando não for guiada apenas pela imaginação, mas também pela razão. E aqui encontramos a grande inovação espinosana: a razão só disporá dessa capacidade moderadora se for vivida por nós sob a forma de um desejo. Assim, em lugar do desejo tornar-se racional, como toda a tradição filosófica prometera, é a razão que precisa tornar-se desejante para ser racional. Apenas quando uma ideia racional for vivida como desejo será mais forte do que o desejo passional e poderá vencê-lo em movimento contrário à paixão mais fraca.

À medida que a modernidade avança, nem mesmo a referência de tipo cartesiano à medicina é mantida no discurso ético. Isto não significa que o desejo deixou de ser medicalizado, pois muita doença “mental” ou “nervosa” será atribuída à perversidade do desejo. A leitura da História da loucura na época clássica, de Foucault, mostra que o desejo foi apropriado pelo saber médico-hospitalar e submetido ao encarceramento. Entretanto, no campo do discurso ético, que aqui nos interessa, embora o desejo possa ser encarado como risco de perda da razão e como devendo ser governado por ela, o antigo referencial médico já não vigora. Aliás, é o contrário que vigora: o discurso médico se apropria do discurso ético para diagnosticar as doenças do desejo como perversão da vontade ou má-vontade.

Talvez um dos momentos exemplares na ruptura com a referência à tradição médica hipocrática e galênica encontre-se no quarto livro da Ética, de Espinosa. Depois de, no segundo livro, haver deduzido a teoria do indivíduo corporal, a partir das relações proporcionais de movimento e repouso dos componentes do corpo e da sua individuação quando os componentes agem conjuntamente como uma causa única, passando à condição de constituintes desse corpo; e depois de, no terceiro livro, haver definido a essência do homem como desejo, a partir do conatus e da teoria da relação entre alma e corpo (a alma sendo definida como ideia atual de seu corpo atual, isto é, consciência do corpo e consciência de si), no quarto livro o filósofo demonstra que as paixões são a causa da inconstância dos afetos, de sua luta em nosso interior e de nossas contradições com os outros, de sorte que o desejo nos constitui originariamente como seres de conflito, seja interior seja intersubjetivo. O centro da demonstração espinosana encontra-se na descrição e interpretação da variabilidade incessante do desejo, determinada pela maneira variável como somos afetados por outros corpos e como os afetamos. A imaginação, pois é dela que se trata quando falamos no corpo e na relação entre alma e corpo, faz com que um mesmo objeto, dependendo do modo como nos afete, seja causa de diferentes desejos e até mesmo de desejos opostos; assim como diferentes objetos, dependendo das circunstâncias em que nos afetem, são capazes de produzir o mesmo desejo; e, finalmente, dependendo da maneira e das circunstâncias em que afetemos outros sujeitos, neles produziremos diferentes desejos ou os mesmos desejos. A rede intrincada de desejos múltiplos e contrários não depende do temperamento nem do caráter, mas das disposições atuais de nosso corpo e, portanto, dos movimentos que o constituem como indivíduo absolutamente singular. Tanto é assim que Espinosa, rompendo com a tradição classifi-catória dos tipos de paixões e desejos, dependente da antiga classificação dos temperamentos e caracteres, afirma haver muito mais desejos e paixões do que possuímos nomes para designá-los.

A modernidade desata, pois, os laços que prendiam o desejo à astrologia — não há diferença de natureza entre o céu e a terra e nossa fortuna não está nos astros, mas em nosso poder sobre as circunstâncias que criamos ou enfrentamos; à retórica — metáforas, alegorias, exemplos, perorações, exortações, topos e tropos do comover, ensinar e deleitar são obstáculos ao conhecimento da verdadeira natureza do desejo e não carecemos desses substitutos porque há ciência do pathos; à filosofia como “arte de viver e morrer” e medicina da alma, isto é, como discurso normativo da moral — a ética é discurso dedutivo e demonstrativo das causas e formas da passividade e da atividade anímicas e o desejo é natural, não opinião valorativa; à medicina dos temperamentos e caracteres — o desejo é efeito, na consciência, de movimentos mecânicos conhecidos pela física e pela fisiologia e paixão de uma individualidade singular que não é apenas uma variante de uma tipologia de caracteres; e à metafísica aristotélica ou neoplatônica que o punham como força cósmica universal — o desejo é manifestação consciente do esforço individual de autoconservação na existência e, por ser consciente, é próprio do homem, que compartilha com os animais a tendência ao movimento para autopreservação, chamada apetite.

Compreendemos, então, porque Espinosa, no prefácio ao terceiro livro da Ética, escrevesse que “ninguém, até hoje, determinou a natureza e a origem dos afetos, nem o que pode a alma para moderá-los” e que Descartes abrisse o Tratado das paixões da alma declarando:

Nada há em que melhor apareça quão defeituosas são as ciências que recebemos dos antigos do que naquilo que escreveram sobre as paixões; pois, embora seja esta uma matéria cujo conhecimento foi sempre muito procurado, e ainda que não pareça ser das mais difíceis, porquanto cada qual, sentindo-as em si próprio, não necessita tomar alhures qualquer observação para lhes descobrir a natureza, todavia o que os antigos ensinaram é tão pouco, e na maior parte tão pouco crível, que não posso alimentar qualquer esperança de me aproximar da verdade, senão distanciando-me dos caminhos que trilharam. Eis porque serei obrigado a escrever aqui como se tratasse de uma matéria que antes de mim ninguém houvesse tocado.[42]

No entanto, o “ninguém até hoje” de Espinosa é mais radical do que o “antes de mim ninguém” de Descartes. Espinosa realiza os propósitos de seus contemporâneos indo além deles e, na maioria das vezes, contra eles.

A relação entre a alma e o corpo, vimos, enlaça o desejo à imaginação e a relação entre julgar e agir o enlaça à razão ética, à recta ratio. Ora, imaginação e razão tendem a ser antagônicas e a primeira, a ser obstáculo para a segunda. As imagens, produtos corporais da sensação e da percepção, são vivências subjetivas, obscuras, parciais e abstratas, enquanto as ideias são objetivas, claras, distintas, evidentes e universais. O imaginário obscurece o racional e se coloca como intervalo irracional a ser suprimido ou controlado pela racionalidade das representações intelectuais. No entanto, se assim deve ser no caso do conhecimento, o mesmo não parece possível no caso do desejo, ainda que a ética se erga como operação da recta ratio e exija que a razão teórica dite as normas da vida afetiva e da ação. Eis porque duas soluções foram propostas pela tradição. A primeira pretende que a razão atue sobre a imaginação desejosa através de um substituto, a persuasão. A segunda distingue o desejo, tendência corporal que arrasta a alma, e a vontade, atividade anímica treinada pelo intelecto, que impõe ao corpo seus ditames racionais. Tanto num caso como noutro, a ética se torna moral normativa que oferece à persuasão ou à vontade, regras, normas, paradigmas da ação virtuosa que operam como causas finais, de sorte que a razão, impondo fins externos ao desejo, tenha o império sobre ele, agindo à distância ou indiretamente sobre a imaginação. Assim, porque o pressuposto teórico é o de que o desejo opera segundo fins, a razão, não podendo agir diretamente sobre ele, determina-lhe e lhe impõe finalidades racionais. É tarefa da vontade dirigir o desejo para os fins dispostos pela razão.

Ora, escreve Espinosa no prefácio ao quinto livro da Ética, os estoicos já haviam sido obrigados pela experiência a reconhecer que a razão e a vontade não conseguem o império absoluto sobre as paixões e foram forçados a desenvolver uma teoria sobre o costume como substituto do poderio racional ou mediador entre razão e imaginação. Por seu turno, Descartes, adotando a posição do estoicismo tardio, julgou ser possível à vontade exercer pleno poder sobre o desejo porque concebeu a formação engenhosa dos hábitos a partir da união substancial do corpo e da alma, numa obscura relação causal entre movimento e vontade, graças à atividade da glândula pineal no cérebro:

Visto que a uma vontade qualquer podemos ligar um movimento qualquer da glândula e, por consequência, dos espíritos animais, e que a determinação da vontade depende só de nosso poder, então, se determinássemos nossa vontade por juízos certos e firmes e os ligássemos aos movimentos das paixões que queremos ter, adquiriríamos sobre elas um império absoluto. Tal é o parecer desse homem ilustríssimo, parecer que eu dificilmente acreditaria proviesse de um homem tão ilustre, se fosse menos sutil. Por certo não posso admirar-me suficientemente que um filósofo […] admita hipótese mais oculta que todas as qualidades ocultas. Que entende ele, por favor, por união da alma e do corpo? Que conceito claro e distinto tem ele de um pensamento estreitissimamente unido a uma parcelazinha de matéria? […] Por certo não há nenhuma relação entre vontade e movimento e, consequentemente, nenhuma resultante da potência da alma com as do corpo.[43]

A crítica espinosana incide, em primeiro lugar, sobre a suposição de que haja império racional sobre o desejo; em segundo lugar, sobre o conceito de união substancial da alma e do corpo, formando uma terceira substância composta, o homem; em terceiro lugar, sobre o resultado das duas primeiras suposições, isto é, a passagem do desejo à vontade e desta à ação da alma sobre o corpo que deve, então, permanecer passivo. Essa crítica pressupõe o abandono, por Espinosa, da imagem do desejo movido por fins externos e do antagonismo entre imaginação e razão como luta entre o corpo e a alma, ou entre a concupiscência e a vontade.

Vimos que Espinosa recusa a imagem do homem que, pela paixão e pelo desejo, perturbaria a ordem natural. O desejo não é juízo, opinião desnaturada, hábito artificioso, mas “essência atual de um homem determinado”, seguindo necessariamente as leis naturais, em toda parte e sempre unas e as mesmas. A chave da crítica espinosana encontra-se na desmontagem da hipótese do homem como imperium in imperio, isto é, imaginado como um poder independente, rival e contrário a outro poder, a Natureza. Imperium é a força para fundar um poder definindo suas leis, seu campo de vigência e a autoridade para governá-lo absolutamente através delas. Dizer que o homem é um império num império significaria dizer que a potência humana é poderio para dar-se e conservar leis, definir seu campo de governo absoluto à margem da Natureza e até contra ela, poderio que, desde Bacon, estendia-se também à Fortuna — imperium in imperio, o homem teria poder absoluto sobre si, tendo poder sobre a necessidade e a contingência. O pressuposto desse poderio é a definição do homem como substância diferente e separada da Natureza, ainda que por seu corpo esteja acorrentado à necessidade natural e às vicissitudes da sorte. Por isso mesmo, a independência ou liberdade humana tenderá a ser concebida como domínio sobre o corpo (e os corpos), através da razão e da vontade.

A filosofia espinosana, contudo, demonstra que há uma única substância infinitamente infinita, Natureza Naturante e Natureza Naturada, da qual o homem é modo ou modificação finita e que “a substância não constitui o ser do homem “. A finitude humana, imanente à infinitude substancial, significa que “somos partes da Natureza e é impossível que não o sejamos” e, seguindo necessariamente as leis universais da Natureza, “somos uma parte cuja potência é infinitamente menor do que a potência das outras partes” e por elas podemos ser subjugados (a imaginação lhes dá o nome de Fortuna, quando as julga contingentes, e de Natureza, quando as julga necessárias ou fatais). A passividade não é acidente nem culpa humana, pois é nossa condição finita de parte da Natureza; a atividade não é ruptura com a ordem natural, mas aptidão para deter o aumento do poderio das forças externas pelo aumento da potência de agir interna ao corpo e à alma. O desejo não nos põe contra a Natureza nem fora dela: simplesmente determina a maneira como nela nos inserimos para sermos passivamente sua parte ou para, ativamente, nela tomarmos parte.

O pressuposto do império num império não é apenas a imagem da potência humana como poder rival da Natureza e da Fortuna, mas ainda a imagem da potência da razão (da vontade) sobre a imaginação como poderio da alma sobre o corpo. Quando Espinosa ironiza a composição substancial cartesiana, indagando o que poderia ser a união da alma e do corpo ou do pensamento com uma “parcelazinha da matéria”, conclui pela impossibilidade de determinar os movimentos corporais pela vontade e esta por aqueles. “Nem a alma pode determinar corpo ao movimento nem o corpo pode determinar a alma ao pensamento” demonstra o terceiro livro da Ética.

Nosso corpo, modificação finita da Extensão infinita, é um indivíduo complexo apto a ser afetado por outros corpos de múltiplas e variadas maneiras e de afetá-los de múltiplas e variadas maneiras. Passivo ao ser afetado e ativo ao afetar, a passividade e a atividade do corpo não são dadas por suas relações com a alma, mas por aquelas que mantém com os outros corpos, nas quais pode fortalecer-se ou enfraquecer-se até à destruição. Rede intrincada de proporções de movimento e repouso, esforço para conservar-se na existência, sistema de relações internas e externas, o corpo é potência imaginante, isto é, de produção de imagens pelas afecções que sofre e causa nas relações com os demais corpos. Nossa alma, modificação finita do Pensamento infinito, é ideia de seu corpo e de si, é potência para encadear as afecções corporais que nela se exprimem como afetos e é potência para encadear ideias formadas por ela mesma enquanto potência pensante. Afetiva na relação com o corpo, a alma é reflexiva na relação consigo mesma. Passiva quando forma as ideias a partir das imagens e ativa quando forma as ideias a partir da reflexão, passividade e atividade não decorrem de suas relações com o corpo, mas consigo mesma. Na paixão, a alma atribui imaginariamente ao exterior as ideias e os afetos que a habitam; na ação, sabe ser a causa interna de seus afetos e ideias. A alma, consciência atual de seu corpo atual, conhece tudo o que nele se passa, porém nem sempre alcança o conhecimento verdadeiro do que nele acontece quando o apreende através da imaginação, pois imaginar, força do corpo, é fraqueza da alma.

A relação originária entre corpo e alma é imaginativa: a alma conhece seu corpo pelas imagens por ele formadas em suas relações de afecção com os demais corpos e conhece os corpos exteriores pelo modo como afetam o seu; conhece-se a si mesma pelo sistema afetivo que as afecções corporais criam na imaginação. Numa palavra, conhece mediações imaginativas e não realidades. Se o corpo é tanto mais forte quanto mais imagina, isto é, quanto mais é apto a manter inúmeras e variadas relações com os demais corpos, sem ser por eles destruído, em contrapartida, a alma, confundindo imagens com ideias, se enfraquece porque sua potência própria é pensar, formar e encadear ideias segundo suas articulações internas e necessárias. A razão não se opõe à imaginação: é diferente dela. O engano da tradição racionalista esteve em não perceber essa diferença, tomá-la como oposição e conflito e exigir da razão o império sobre a imaginação.
Porque ontologicamente diversos, cada qual dotado de leis próprias e de potências e aptidões próprias, corpo e alma não agem um sobre o outro; mas por serem modos da mesma substância infinita, exprimem-se mutuamente. Eis porque quando um deles for passivo o outro também o será e, ao contrário, quando um deles for ativo o outro também o será. Espinosa rompe, assim, com a antiga tradição que fazia da passividade corporal um efeito da ação da alma e da passividade anímica um efeito da ação do corpo. Somos passivos ou ativos de corpo e alma, por inteiro. Compreendemos, então, porque a alma não tem império sobre o corpo, visto que as leis que regem o segundo não podem ser ditadas pela primeira, pois uma potência estranha não tem poder para determinar as operações de uma outra. O poder da razão, se ela o tiver, não será sobre o corpo, mas sobre si mesma, isto é, será o poder da alma sobre suas ideias e seus afetos. Rompe-se a tradição que concebia a relação entre a alma e o corpo como hierarquia do superior sobre o inferior.

A inovação espinosana não está apenas no fato de conceber o homem como modificação finita do infinito que nele se exprime, nem em estabelecer a igualdade de poderes do corpo e da alma, porém em conceber o modo finito com determinações que nele imprime o infinito. Em outras palavras, em tomar o homem como efeito finito de uma causa imanente infinita que, por ser imanente, nele não só se exprime, mas lhe imprime sua marca: ser uma potência causal. Ser causa, eis o ser do homem.

Visto que não existem causas finais — pois a finalidade é resultado imaginário do desconhecimento da verdadeira causalidade —, somos causas eficientes. Todavia, há maneiras diversas de ser causa. Somos causa inadequada, ou passivos, lê-se no terceiro livro da Ética, quando algo acontece em nós sem que dependa inteiramente de nosso ser, mas da potência de causas externas que nos comandam de fora. Somos causa adequada, ou ativos, quando algo acontece em nós e fora de nós dependendo apenas de nosso ser e por ele explicando-se inteiramente. Ser causa inadequada é encontrar fora de si a razão de nosso desejo; ser causa adequada é encontrar na força interna do corpo e da alma a razão plena de nosso desejo. Eis porque o desejo é definido por Espinosa como causa eficiente que pode ser determinada do exterior, na paixão, e do interior, na ação. No entanto, e isso é essencial, quer causa inadequada quer causa adequada, o desejo é sempre conatus, esforço de perseveração da existência. Isto significa, em primeiro lugar, que o desejo nos exprime tanto na passividade quanto na atividade e, como consequência, em segundo lugar, que a passagem da paixão à ação não é passagem do desejo à vontade, nem supressão do desejo pela razão, mas mudança qualitativa do próprio desejo, passando de causa inadequada a adequada. Por isso a Ética demonstra que os mesmos desejos que experimentamos quando passivos podemos experimentar quando ativos. É essa demonstração enigmática que nos cabe examinar.
Definir o desejo como causa eficiente acarreta a desmontagem, pela primeira vez desde a Grécia, do imaginário finalista que o aprisionara nos fins postos pela razão para educá-lo, persuadi-lo e governá-lo, dando à retórica o papel pedagógico, à moral o poder normativo e à reta razão a força para imperar sobre a paixão. A filosofia espinosana demonstra que os fins são abstrações criadas pela imaginação para suprir a falta do verdadeiro conhecimento das causas da ação e da paixão:

A causa a que chamam final não é senão o próprio desejo humano enquanto considerado princípio ou causa primeira de alguma coisa […] o desejo singular é, na realidade, uma causa eficiente (…) os homens são conscientes de seus desejos, apetites e ações, mas ignorantes quanto às causas porque são determinados a desejar ou apetecer alguma coisa.[44]

Não desejamos nem fazemos coisas porque as julgamos boas, belas, justas ou verdadeiras, mas porque as desejamos e as fazemos assim as julgamos. O juízo não determina o desejo, é determinado por ele. Porém, porque a imaginação ignora a causalidade eficiente desejante, tende a inverter a relação desejo-desejado, institui o segundo como desejável em si e o constitui como fim externo e anterior ao ato singular de desejar. Esquecendo ou ignorando a singularidade de cada desejo e que cada desejo inventa seu objeto, a imaginação generaliza o singular desejado, universaliza-o abstratamente e o coloca fora de nós como valor, regra, norma e paradigma externo que opera coercitivamente sobre a multiplicidade dos desejos. Ora, ser passivo é ter fora si a causa do afeto ou do desejo e, assim, o que a tradição chamou de reta razão e vontade não é senão a maneira imaginária de nos condenar à passividade e à heteronomia. Projeção fantástica da causa dese-jante na finalidade desejada, a reta razão moral é uma das mais poderosas figuras da alienação e da autoridade, só podendo imaginar a singularidade desejante como transgressão e desvio da norma, doença, vício, pecado e culpa.

Que é, pois, o desejo?

O desejo — cupiditas — é a própria essência do homem enquanto concebida como determinada a fazer algo por uma afecção nela encontrada [… ] Portanto, pelo nome de desejo entendo todos os esforços, impulsos, apetites e volições do homem que variam segundo a disposição variável de um mesmo homem e não raro são de tal maneira opostos entre si que o homem é puxado em sentidos contrários e não sabe para onde voltar-se.[45]

Alfa e ômega da essência humana, o desejo é o que nos faz agir e abarca a totalidade da vida afetiva, não se distinguindo do apetite, do impulso ou da volição. Alargando o conceito de disposição natural, sem prendê-lo às classificações da medicina humoral, Espinosa marca o desejo com o selo da mais profunda singularidade, não só por defini-lo como causa eficiente, mas também por fazê-lo depender de “uma afecção determinada” que o torna extremamente variável e sem conteúdo prefixado. Nele e com ele é tecida a irredutível individualidade de nossas vidas. Somos desejo e nossos desejos são nós. Dependendo das afecções atuais do corpo e seus afetos na alma, na paixão o desejo é determinado pelas causas externas, delas depende e com elas varia, faz-se contrário a si mesmo e nos arrasta ao desamparo. A tradição pediria, então, que Espinosa completasse sua definição oferecendo o papel imperial e moderador da razão. Mas Espinosa não é dócil à tradição e percorrerá caminho insólito.

Força do corpo e fraqueza da alma, a imaginação pode levar-nos a confundir imagens e ideias, operação corporal e operação intelectual. Nessa confusão vive a paixão e nela se enreda o desejo. Que diferença há, na alma, entre imaginar e pensar? Imaginar é construir ideias com imagens, mediadores trazidos pelo corpo em suas relações com os outros corpos. A imagem nada nos ensina sobre a natureza de nosso corpo, dos outros corpos, de nossa alma e das outras almas, pois sua função não é ensinar e conhecer, mas representar relações. A imagem é como um véu interposto entre nós e nós mesmos, cenário que leva a alma a exercer sua espontânea aptidão de encadeamentos sem, contudo, dispor das razões do que encadeia, fabricando cadeias imaginárias de causas, efeitos e finalidades abstratas com que supre a carência de pensamentos. Por isso os desejos imaginários nos arrastam em sentidos opostos e nos deixam desamparados, amando e odiando as mesmas coisas, afirmando-as e negando-as ao mesmo tempo. Ocultando-nos de nós mesmos, o véu das imagens induz à inversão do desejante: cremos que o desejado/indesejado é a causa do desejo/aversão que vivenciamos. Não só estamos possuídos pela exterioridade, mas nela depositamos nosso ser e nossa vida, arriscados à perda iminente e contínua, ameaçados pela frustração e pela insaciável carência. Acercamo-nos perigosamente do grau zero de realidade, enfraquecidos de corpo e alma.

Se pensar é a potência da alma, ou como escreve Espinosa, sua virtude própria, não pensar é estar despojado de força própria, enfraquecido pela carência de pensamento. Porém, é exatamente essa carência que dá início ao trabalho do pensamento.

Uma paixão, demonstra Espinosa, nunca é vencida por uma razão, mas apenas por outra mais forte e contrária. Uma paixão forte só é vencida por uma ação mais forte e contrária, e o afeto nascido de uma ação é mais forte do que aquele nascido de uma paixão. Se o trabalho do pensamento for experimentado por nós como ação e como afeto, será mais forte do que o afeto de uma forte paixão carente de pensamento. Ora, conhecer sendo a virtude própria da alma, exercer a razão é, para a alma, agir e essa ação, que Espinosa denomina amor intelectual, é o mais forte dos afetos ativos. Se desejar saber for sentido por nós como alegria e amor intelectual e se ignorar for por nós experimentado como fraqueza e tristeza, a razão iniciará seu percurso no interior do desejo. Levantar o véu das imagens rumo às ideias é o ato inaugural com que a alma se torna capaz de compreender que o desejo tem nos outros (humanos e coisas) apenas a ocasião, mas como causa nosso esforço para perseverar na existência e que, portanto, o desejo se origina em nós e parte de nós rumo aos outros e às coisas. Esse conhecimento é liberação. Não deixamos de desejar: simplesmente, sabemos porque desejamos. Assim, a passagem da paixão desejosa à ação desejante começa quando a alma se torna apta a interpretar por si mesma o sentido de nossos desejos, suas causas e seus efeitos, sabendo, doravante, que somos nós a causa desejante que institui o desejado. Compreender o desejo e sua origem, eis a ação da alma. Por isso Espinosa dissera que os mesmos desejos que experimentamos quando passivos podemos experimentar quando ativos. Assim, em lugar de pretender agir sobre o corpo, dominá-lo ou coibi-lo, a alma ativa esforça-se para conhecê-lo e para conhecer-se, referindo o desejo às suas causas internas. Tornando-se capaz de reflexão, torna-se capaz de interpretar seus afetos e de conviver com a plenitude imaginante de seu corpo.

A razão não nos corta do mundo nem nos separa de nosso corpo. Como ação intelectual, é simplesmente uma maneira melhor e mais feliz de estar no mundo, ter um corpo e ser uma alma:

Ninguém pode desejar ser feliz, agir bem e viver bem que não deseje, ao mesmo tempo, ser, agir e viver, isto é, existir em ato.

O que é evidente por si e pela definição do desejo, pois o desejo de viver feliz, isto é, de ser, agir e viver é a própria essência do homem ou o conatus pelo qual cada um se esforça para conservar seu ser.[46]

* * *

Ao examinarmos o desatar dos antigos laços do desejo, no século XVII, não pretendemos dizer que a antiga metafísica desaparecera — Henry More e os platônicos de Cambridge mantiveram a tradição neoplatônica, enquanto o Theophrastus redivivus conservou a aristotélica. Ou que a astrologia, a magia natural, a matemática mística e o hermetismo houvessem acabado — as obras de Bëhme, Fludd e Kircher, o Colégio Invisível de Hartlib, Dury e Comênio, os escritos milenaristas de Newton mostram o contrário. Nem que a medicina dos humores e constituições já não existisse — o livro de Burton sobre a melancolia revela a firme presença da tradição hipocrática e a galênica. Nem que houvessem desaparecido a retórica e os moralistas — os tratados de Huet e Gracián, os sermões e as cartas de Vieira são tão constitutivos da modernidade quanto os filósofos que acompanhamos até aqui.

O que pretendemos assinalar, seguindo a trilha do desencantamento do mundo, foi a tendência de pensamento, a rede conceitual que iria tornar-se hegemônica na Europa ocidental e que passaria a definir o que entendemos por modernidade. Se o desejo é paradigmático dessa mutação é porque, com ele, vemos a passagem de um pensamento que começava lá nas coisas e terminava em nós a um pensamento que começa em nós e, através de nós, chega até as coisas. Em outras palavras, a interiorização do desejo, deixando de ser força cósmica, organizadora do mundo, para fazer-se consciência do apetite humano, expõe o surgimento daquilo que, mais tarde, viria a chamar-se subjetividade.

Notas

[1] Hobbes, Leviathan, introdução. Ed. MacPherson. Harmondsworth, Penguin Books, 1968, p. 81; São Paulo, Abril Cultural, 1974, p. 9.

[2] Yehudah Abravanel (Leone Ebreo), I dialoghi d’amore,II. Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1983, pp. 72-4.

[3] A razão de que falaremos neste texto é aquela elaborada no correr dos séculos XVII e XVIII e que sofrerá uma primeira mudança radical com a filosofia do idealismo alemão, a partir de Kant, e nova mudança profunda a partir da análise da “crise da consciência europeia”, com a fenomenologia husserliana e que, hoje, dispersa nos “jogos de linguagem”, inspirados em Wittgenstein, alimenta, contra si mesma, as variantes do pós-modernismo. A razão de que falaremos aqui é razão teórica aplicada à práxis, e não razão pura prática.

[4] Veja-se sobre a Natur-Begierde, o desejo como estrutura, fundação e finalidade do mundo-Deus em Bëhme, J. F. Marquet, “Désir et imagination chez Jacob Boehme”, in Jacob Boehme. Paris, Vrin, 1979.

[5] Yehudah Abravanel, op. cit. ,III, p. 186.

[6] Idem, p. 159.

[7] Espinosa, Ethica, III, def. 32, prop. 36. Ed. Gebhardt, II, pp. 199 e 167.

[8] Hobbes, Leviathan, I, 6. Penguin, p. 118; Abril, p. 36.

[9] Merleau-Ponty, Phénoménologie de la perception. Paris, Gallimard, 1945, pp. 177, 179, 228.

[10] Giordano Bruno, Degli eroici furore, I. Paris, Les Belles Lettres, 1954, p. 141. Trata-se de um topos cuja origem é atribuída a Petrarca em Triumphus Cupidinis: “[…] so in qual guisa/ 1 ‘amante ne 1 ‘amato si transforme”. Em Camões: “Transforma-se o amador na coisa amada/ por virtude do muito imaginar;/ não tenho, logo, mais que desejar,/ pois em mim tenho a parte desejada”. O desejo como fogo será materializado na Natur-Begierde de Biihme e o fogo será a Arché purificadora, central no tratamento do desejo das coisas, feito na magia natural e sobretudo na alquimia de Paracelso. O fogo de que se trata aqui não é apenas o fogo empírico da chama, nem é um símbolo abstrato, mas elemento material e espiritual constituinte do mundo. O desejo não é “simbolizado ” pelo fogo, mas é manifestação concreta do fogo elementar. É dessa maneira que ele aparece no soneto de Camões que citaremos logo a seguir (“Amor é fogo que arde sem se ver”) como está presente, por exemplo, num soneto de Bruno e noutro, de Quevedo:

Io che porto d ‘amor l’alto vesillo,
Gelato hó spene, et gli desir cuocenti:
A’ un tempo tremo, aggiacio, ardo et sfavillo,
Son muto, et colmo il ciel de strada ardenti,
Dar cor scintill’, et da gl ‘occhi acqua stub;
Et vivo et muoio, et fóris at lamenti:
Son vive l’acqui, et l’incendio non more,
Ch’á gl’occhi hó Tethi, et hó Vulcan al cuore.
Altr ‘amo, odio me stesso,
Ma s’io m ‘impium, altri si cangia in sasso;
Poggi’altr’al ciel, s’io mi ripogno al basso;
Sempr’altri fugge, s’io seguir non cesso;

S’io chiamo, non risponde:
Et quant’io cero piu, piu mi s’asconde.
Es hielo abrasador, es fuego hielado,
es herida que duele y no se siente,
es un sofiado bien, un mal presente,
es un breve descanso muy cansado;
es un descuido que nos da cuidado,
un cobarde con nombre de valiente,
un andar solitario entre la gente,
un amar solamente ser amado;
es liberdad encarcelada,
que dura hasta el postrero parasismo;
enfermedad que crece si es curada.
Este es el nifio Amor, éste és su abismo.
! Mirad cual amistad tenderá con nada
el que en todo es contrário de si mismo!

[11] Descartes, Tratado das paixões da alma, art. 88-90. São Paulo, Difel, 1962, pp. 342-4. Pode-se imaginar que Descartes teria em mente o correspondente francês de Bernadim Ribeiro: “E como meus cuidados me começassem de entrar pela lembrança do tempo que foi, senhorearam-se elles de mi e já não pude soffrer a de minha casa, e desejei ir-me para lugar solitário, onde desabafasse em sospiros”. Livro das saudades de Bernardim Ribeiro — História de menina e moça. São Paulo, Companhia Graphico-Editora Monteiro Lobato, s/d, p. 11. Ou a cantiga de amigo do Cancioneiro geral de Garcia de Rezende: “Vossa pouca fé, senhora/ e vossa grande crueldade/ me matam sem piedade/ cada dia, cada hora./ Porque se alguma firmeza/ tivésseis no coração,/ não me daríeis paixão,/ nem sempre mal, e tristeza./ Mas o não credes, senhora,/ que vos quero de verdade/ vos faz mudar a vontade/ cada dia, e cada hora”.

[12] Aristóteles, Metafísica, Lambda, 7, 1072a 20-30, 1072b.

[13] Pierre Aubenque, Le problème de l’être chez Aristote. Paris, Presses Universitaires de France, 1966, pp. 498-9.

[14] Idem, p. 501.

[15] Idem, p. 502.

[16] M. Meyer, “Aristote ou la réthorique des passions”, in Réthorique des passions — Aristote. Marselha, Rivages, 1989, p. 150.

[17] Idem, p. 147.

[18] Idem, pp. 147-148.

[19] Górgeas, “Elogio de Helena”, in Fragmentos. México, Biblioteca Scriptorum Graeco-rum et Romanorum, 1980, p. 14.

[20] J. Pigeaud, “Aristote — l’homme de génie et la mélancolie”, in L’homme de génie et la mélancolie. Marselha, Rivages, 1989, p. 31.

[21] Cícero, Tusculanae Disputationes, III, I, 1.

[22] Idem, III, V, 2.

[23] Tertuliano, A moda feminina. Lisboa, Verbo, 1974, pp. 37-8 e 67. Na abertura da segunda parte da obra (pp. 53 e 55), Tertuliano escreve: “A salvação, tanto para as mulheres como para os homens, tem como condição primeira a prática da castidade. Sendo todos nós o templo de Deus, e depois em nós introduzido e consagrado o Espírito Santo, a castidade é a guardiã e a superiora desse templo, a qual não permitirá que nada de impuro e de profano se introduza, não vá Deus que nele tem morada abandonar ofendido a sua habitação conspurcada […] Sabei que o querer da castidade perfeita — a castidade cristã — é não somente serdes desejadas, como serdes aborrecidas”.

[24] Espinosa, Ethica, III, prefácio. Ed. Gebhardt, II, p. 137.

[25] Descartes, Lettres . Ed. Adam-Tannery, XI, p. 326.

[26] Bacon, De Augmentis , VI, in The works of Francis Bacon. Ed. Sppeding, Ellis and Heath. Londres, 1862-1876, reprint, IV, pp. 409 e 411.

[27] Idem, II, p. 732.

[28] Idem, III, pp. 433-4.

[29] Bruno, op. cit., p. 143.

[30] Paolo Rossi, Os filósofos e as máquinas. São Paulo, Companhia das Letras, 1989.

[31] Descartes, Traité de l’homme. Ed. Adam-Tannery, IX, pp. 120 e 131.

[32] Leibniz, La monadologie, 64, in Oeuvres philosophiques de Leibniz, I. Ed. Janet. Paris, Alcan, 1901, p. 717.

[33] Hobbes, op. cit., I, 6, p. 118; p. 36.

[34] Espinosa, op. cit., III, prop. 6, 7, 9, escólio 9.

[35] Leibniz, op. cit., 78, 79, 80, p. 719, 720.

[36] Espinosa, op. cit., III, prefácio, p. 137.

[37] Espinosa, Tratactus Politicus ,I, 1. Ed. Gebhardt, III, p. 273.

[38] Samuel Parker, A free and impartial censure of the platonic philosophy, cit. em Barbara J. Shapiro, Probability and certainty seventeenth-century England. Princeton, Princeton University Press, 1983, p. 238.

[39] Pascal, De l’art de persuader, in Oeuvres completes. Ed. Lafuma. Paris, Seuil, 1963, p. 356.

[40] Hobbes, op. cit.,I,11, p. 160; p. 64.

[41] Lívio Teixeira, Ensaio sobre a moral de Descartes. São Paulo, Boletim da Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, no 204, 1955.

[42] Descartes, Tratado das paixões da alma, art. 1. Op. cit., p. 295.

[43] Espinosa, Ethica, V, prefácio. op. cit., p. 278.

[44] Idem, IV, prefácio, p. 206.

[45] Idem, III, “Affectuum definitiones”, def. 1, p. 190.

[46] Idem, IV, prop. 21, p. 225.

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