2017

Liberdade: afastar as paixões da tristeza

por Marilena Chaui

Resumo

A filosofia no Ocidente tendeu, tradicionalmente, a separar corpo e espirito, bem como paixão e razão. Essa concepção é em muito tributária tanto de Platão – que fez a analogia da alma como capitão do navio que é o corpo –, quanto de Aristóteles, para quem o corpo é o órganon, instrumento da alma. Segundo esse pensamento hegemônico, o corpo seria uma prisão da alma. Espinosa propôs um sistema que ligava esses dois elementos, corpo e alma, sem submeter o primeiro ao segundo. Para tanto, o pensador trabalhou na interseção “do conhecimento perceptivo e do intelectual” em que “a mente é uma ideia do corpo”, sendo, portanto, afectada por ele. Quanto aos corpos, estes também seriam afectados entre si, interação desejável, uma vez que o corpo é mais forte na medida em que forem ricas suas relações com outros corpos. Dentro do conceito de Espinosa, a mente é constituída por uma ideia das afecções corporais mas também de uma consciência de si. Por outro lado, “a mente vive num conhecimento confuso de seu corpo e de si. Vive imaginariamente”, portanto, suas representações não são perfeitas. Quer dizer, a mente parte de noções verdadeiras, mas constrói ideias imaginativas. Espinosa se interroga sobre o ponto de partida dessa construção e surpreendentemente não começa pelas paixões, mas dos afetos que coíbem ou expandem a potência do corpo. Seriam três os afetos primários: a alegria, aumento da força de existir e de agir; a tristeza, diminuição da força de existir e de agir e o desejo, o sentimento que nos determina a existir e agir de uma maneira determinada, podendo ser alegre ou triste. Há, porém, dois grandes obstáculos na busca da felicidade: primeiro as causas exteriores, mais numerosas e mais fortes do que nós e que nos levam à passividade. Trata-se da alienação em Espinosa, “quando o indivíduo passivo-passional é servo de causas exteriores, está sob o poder de um outro, alienus.” Outro obstáculo encontra-se em nós mesmos, porque o nosso corpo é um sistema complexo de afecções, ”combinações infinitas de afetos alegres, tristes e desejantes”, de onde raramente experimentamos afetos exclusivamente alegres, por exemplo. Nesse caminho também nos enganamos frequentemente ao buscarmos afetos alegres em tristes e vice-versa. É preciso, pois, conhecer seus afetos para alegrar-se. Conhecê-los significa aumentar a potência de existir e agir. É preciso afastar causas externas imaginárias e descobrir causas reais dos desejos e apetites. Para Espinosa, o desejo que nasce da alegria é mais forte do que o desejo que nasce da tristeza. É a partir de sua obra que compreendemos que “uma ideia verdadeira, simplesmente por ser verdadeira, jamais vence uma paixão. Somente uma paixão vence outra paixão, se for mais forte e contrária a ela.”


A filosofia de Espinosa é uma ética da alegria, da felicidade, do contentamento intelectual e da liberdade individual e política. Na abertura de uma de suas primeiras obras, o Tratado da emenda do intelecto, o filósofo escreve:

[…] tendo eu visto que todas coisas de que me arreceava ou temia não continham em si nada de bom nem de mau senão enquanto o ânimo se deixava abalar por elas, decidi, enfim, indagar se existia algo que fosse um bem verdadeiro, comunicável e pelo qual unicamente, afastado tudo o mais, o ânimo fosse afetado; mais ainda, se existia algo que, uma vez encontrado e adquirido, me desse eternamente a fruição de uma alegria contínua e suprema[1].

O escopo de Espinosa é não apenas buscar os meios para adquirir a força de ânimo – pois somente deste depende a qualidade das coisas desejadas –, como ainda esforçar-se “para que muitos também a adquiram”, pois “faz parte de minha felicidade” compartilhar com outros o verdadeiro bem e “formar uma sociedade tal que a maioria possa chegar a ele facilmente”[2].

* * *

Espinosa parte de um conceito muito preciso, o de substância, isto é, de um ser que existe em si e por si mesmo, que é conhecido em si e por si mesmo e sem o qual nada existe nem pode ser conhecido. Toda substância é substância por ser causa de si mesma (causa de sua essência, de sua existência e da inteligibilidade de ambas) e, ao causar-se a si mesma, causa a existência e a essência de todos os seres do universo. Existente em si e por si, essência absolutamente complexa, a substância absolutamente infinita é potência absoluta de autoprodução e de produção de todas as coisas. Há, portanto, uma única e mesma substância absolutamente infinita constituindo o universo inteiro. Essa substância é Deus.

Ao causar-se a si mesmo, fazendo existir sua própria essência, Deus faz existir todas as coisas singulares que O exprimem porque são efeitos de Sua potência infinita. Em outras palavras, a existência da substância absolutamente infinita é, simultaneamente, a existência de tudo o que sua potência gera e produz: Deus é causa eficiente imanente de todos os seres que seguem necessariamente de sua essência absolutamente infinita, não se separa deles, e sim exprime-se neles, e eles O exprimem.

Há duas maneiras de ser e de existir: a da substância com seus infinitos atributos infinitos – o que existe em si e por si – e a dos efeitos imanentes à substância – o que existe em outro e por meio de outro. A esta segunda maneira de existir, Espinosa dá o nome de modos da substância. À substância e seus atributos, enquanto atividade infinita que produz a totalidade do real, Espinosa dá o nome de natureza naturante. À totalidade dos modos produzidos pelos atributos, designa com o nome de natureza naturada. Graças à causalidade imanente, a totalidade constituída pela natureza naturante e pela natureza naturada é a unidade eterna e infinita cujo nome é Deus. A imanência está concentrada na expressão célebre: “Deus sive Natura” – “Deus, ou seja, a Natureza”.

Porque a substância é a unidade causal infinitamente complexa produtora de si mesma e de todas as coisas, sua ação se realiza diferenciadamente, pois cada um de seus constituintes é uma ordem de realidade distinta das outras, e cada um deles em simultâneo com os outros produz efeitos próprios e exprime de maneira própria a ação comum do todo. Dessas infinitas ordens de realidade nós conhecemos duas: a extensão ou a ordem de realidade das coisas extensas, isto é, a natureza física, e o pensamento ou a ordem de realidade da natureza psíquica. A atividade da extensão infinita dá origem às leis da natureza física e aos corpos; a do pensamento infinito, às ideias e à sua ordem e concatenação. Assim, a ação dos constituintes da substância única produz regiões diferenciadas de realidade, campos diferenciados de entes singulares, mas essas regiões ou campos exprimem sempre o mesmo ser ou a mesma substância. Corpos e ideias são modos e, como tais, efeitos imanentes dos constituintes de uma só e mesma substância internamente diferenciada, e por isso um corpo e a ideia desse corpo são uma só e a mesma coisa que se exprime de duas maneiras.

O ser humano é um modo finito da substância absolutamente infinita ou uma expressão determinada da potência imanente de Deus. É um modo singular finito de dois constituintes da essência da substância absolutamente infinita – a extensão e o pensamento –, uma maneira de ser singular, constituída pela mesma unidade complexa que a de sua causa imanente, possuindo a mesma natureza que ela: pela ação do pensamento, é uma mente; pela ação da extensão, um corpo.

O corpo humano é uma singularidade extremamente complexa, constituída por uma diversidade e pluralidade de corpos duros, moles e fluidos relacionados entre si pelo equilíbrio de suas proporções de movimento e repouso. É uma unidade estruturada: não é um agregado de partes, mas unidade de conjunto e equilíbrio de ações internas interligadas de órgãos, é, portanto, um indivíduo. Sobretudo, é um indivíduo dinâmico. Em primeiro lugar, porque a extensão espinosana é uma energia universal ou atividade infinita, e, em segundo, porque o equilíbrio interno de cada corpo é obtido por mudanças internas contínuas e por relações externas contínuas, formando um sistema de ações e reações, que se transforma sem perder a identidade toda vez e sempre que for conservada a proporção de movimento e repouso entre seus constituintes. Isto significa que o corpo não é uma unidade isolada que entraria em relação com outras unidades isoladas, mas é um ser originariamente e essencialmente relacional: é constituído por relações internas entre os corpúsculos que formam suas partes e seus órgãos e pelas relações entre eles, assim como por relações externas com outros corpos ou por afecções, isto é, pela capacidade de afetar outros corpos e ser por eles afetado sem se destruir, regenerando-se, transformando-se e conservando-se graças às relações com outros. O corpo humano, sistema dinâmico complexo de movimentos internos e externos, não só está exposto à ação de todos os outros corpos exteriores que o rodeiam e dos quais precisa para conservar-se, regenerar-se e transformar-se, como ele próprio é necessário à conservação, regeneração e transformação de outros corpos. Um corpo humano é tanto mais forte, mais potente, mais apto à conservação, à regeneração e à transformação, quanto mais ricas e complexas forem suas relações com outros corpos, isto é, quanto mais amplo e complexo for o sistema das afecções corporais.

O que é a mente humana?

A tradição recebeu dois legados: o platônico, que define a alma como o piloto no navio, isto é, uma entidade alojada numa outra para comandá-la, mantendo-se à distância dessa outra que simplesmente lhe serve de morada temporária; e o legado aristotélico, que define o corpo como órganon, isto é, instrumento da alma, que dele se vale para agir no mundo e relacionar-se com as coisas. Espinosa subverte essa dupla tradição. Assim como o corpo é um modo finito que exprime a potência da extensão infinita de Deus, assim também a mente humana é um modo finito singular que exprime a potência do pensamento infinito de Deus. Extensão e pensamento são duas atividades simultâneas de uma única substância que se exprime de duas maneiras diferentes, ou seja, corpos e mentes. Isto significa que a comunicação entre corpo e mente está dada de princípio – ambos são expressões simultâneas de uma só e mesma substância – e, de outro lado, que a singularidade do ser humano como unidade de um corpo e de uma mente é imediata – a união não é algo que lhes acontece, mas aquilo que um corpo e uma mente são quando são corpo e mente humanos. Porque são efeitos simultâneos da ação de uma única substância, corpo e mente não estão, como sempre afirmara a tradição, numa relação hierárquica, em que a mente seria superior ao corpo. O ser humano, como a substância, da qual é um efeito imanente, é a unidade de duas ordens de realidade de potência igual e internamente articuladas e cuja unidade se exprime diferenciadamente pelas operações corporais e psíquicas.

A mente é uma potência pensante. Pensar é afirmar ou negar alguma coisa, afirmando ou negando sua ideia. É ter consciência de alguma coisa e ser consciente de alguma coisa. Isto significa que a mente, como potência pensante, está natural e essencialmente ligada aos objetos que cons-

tituem os conteúdos ou as significações de suas ideias, os seus ideados. É da natureza da mente estar internamente ligada a seu objeto porque ela não é senão atividade de pensá-lo. A mente é uma ideia (atividade pensante) que tem ou produz ideias (conteúdos ou significações pensados, os ideados). Se assim é, podemos avaliar a revolução espinosana ao definir e demonstrar que a mente é ideia de seu corpo.

O corpo constitui o objeto atual da mente, ou seja, é da natureza da

mente estar ligada internamente ao seu corpo porque ela é a atividade de pensá-lo e ele é o objeto pensado por ela. Todavia, a mente não é apenas a consciência de seu corpo e tudo quanto nele acontece, mas é também consciente de si, ou seja, é ideia de si mesma como ideia de seu corpo ou consciente de si ao ser consciente de seu corpo. Consciência significa: a mente humana reconhece seu corpo próprio no objeto que a constitui e nesse conhecimento reconhece a si mesma como ato de pensá-lo e de pensar-se.

Que significa dizer que a mente é ideia ou consciência de seu corpo? Ela não é ideia de uma máquina corporal observada de fora e sobre a qual formaria representações. Explica Espinosa: ela é ideia das afecções corporais. Em outras palavras, a mente é consciência dos movimentos, das mudanças, das ações e reações de seu corpo na relação com outros corpos, das mudanças no equilíbrio interno de seu corpo sob a ação das causas externas e internas. A mente é consciência da vida de seu corpo e consciência de ser consciente disso.

No entanto, não nos precipitemos. Dizer que a mente é ideia das afecções de seu corpo e que só é ideia de si por meio delas não significa, de maneira nenhuma, que por isso ela seria e teria imediatamente um conhecimento verdadeiro de seu corpo e de si mesma. Pelo contrário. Espinosa distingue entre ser cônscia de seu corpo e ser o conhecimento verdadeiro de seu corpo. A mente vive num conhecimento confuso de seu corpo e de si. Vive imaginariamente.

Afetando outros corpos e sendo por eles afetado de inúmeras maneiras, o corpo produz imagens de si (visuais, táteis, sonoras, olfativas, gustativas) a partir da maneira como é afetado pelos demais corpos e da maneira como os afeta. Imaginar exprime a primeira forma da intercorporeidade, aquela na qual a imagem do corpo e de sua vida é formada pela imagem que os demais corpos oferecem do nosso e que nosso corpo forma deles. Por nascer do sistema das afecções corporais, a imagem é instantânea e momentânea, volátil, fugaz e dispersa, não oferecendo a duração contínua da vida do próprio corpo, mas instantes fragmentados dela. A imagem é o campo da experiência vivida como relação imediata com o mundo. Consciente do corpo através dessas imagens, a mente o representa por meio delas, tendo por isso um conhecimento inadequado ou imaginativo dele, isto é, não o conhece tal como é em si mesmo, nem tal como é a sua vida própria, mas o pensa segundo imagens externas que ele recebe ou forma na relação intercorporal. A mente pensa seu corpo e a si mesma a partir da ação causal exercida sobre nosso corpo pelos outros corpos e pelo nosso sobre eles. Por esse motivo, na experiência imediata, ela também não possui uma ideia verdadeira dos corpos exteriores, pois os conhece segundo as imagens que seu corpo deles forma a partir das imagens que eles formaram dele, de sorte que há espelhamento dele neles e deles nele, e é isto o objeto atual que constitui o ser da mente.

Em si mesma, uma imagem nunca é falsa, pois exprime uma operação corporal necessária, determinada por causas anatômicas, fisiológicas e pelas leis naturais da física. Assim, por exemplo, é verdadeiro e necessário que sempre vemos os objetos distantes como menores do que realmente são. Presente ou passada, uma imagem é uma vivência corporal, uma experiência dos dados imediatos da percepção em conformidade com as leis físicas e fisiológicas que regem os acontecimentos perceptivos.

Todo o problema trazido pelas imagens decorre do fato de que ignoramos suas causas reais e verdadeiras: de fato, uma imagem nasce na ignorância de sua causa real e verdadeira e, por esse motivo, leva a mente a fabricar causas imaginárias para o que se passa em seu corpo, nos demais corpos e nela mesma, enredando-se num tecido de explicações ilusórias sobre si, sobre seu corpo e sobre o mundo porque explicações parciais, nascidas da ignorância das verdadeiras causas. A ideia imaginativa é o esforço da mente para associar, diferenciar, generalizar e relacionar fragmentos percebidos confusamente, criando conexões entre imagens para com elas orientar-se no mundo. A mente é consciente dessa vivência e a exprime numa ideia imaginativa.

A distinção entre a imagem corporal e a ideia mental levou a tradição a afirmar que a mente está impedida do conhecimento verdadeiro de seu corpo, de si e do mundo enquanto permanecer ligada ao corpo, onde se encontraria como encarcerada numa prisão. Muito pelo contrário, afirma Espinosa, trata-se de encontrar o ponto de intersecção entre o conhecimento perceptivo e o conhecimento intelectual, sem que este exclua aquele. Ou, como lemos na Parte II da Ética, imaginar (ou seja, perceber por meio de imagens) é uma potência do corpo todas as vezes em que sabemos que estamos imaginando – vejo o Sol menor do que a Terra, mas sei que essa percepção possui causas necessárias e que, de fato, astronomicamente, o Sol é maior do que Terra. A unidade do corpo e da mente que constituem um ser humano singular significa que o aumento da potência corporal é também aumento da potência psíquica ou intelectual:

Digo de maneira geral que quanto mais um corpo é mais apto do que outros para fazer ou padecer muitas coisas simultaneamente, tanto mais a sua mente é mais apta do que outras para perceber muitas coisas simultaneamente; e quanto mais as ações de um corpo dependem somente dele próprio, e quanto menos outros corpos concorrem com ele para agir, tanto mais apta é a sua mente para entender distintamente[3].

A aptidão corporal para a pluralidade simultânea de percepções é também aptidão mental ou psíquica para a pluralidade simultânea de ideias. A distinção espinosana não é feita entre a aptidão corporal (defeituosa ou falsa) e a psíquica (correta e verdadeira), e sim entre a potência do corpo quando o que nele se passa depende de causas externas e sua potência para ser por si mesmo a causa interna das afecções ou percepções; e, da mesma maneira, a distinção se estabelece entre a potência da mente quando depende de causas externas e sua potência quando depende exclusiva e inteiramente de sua força interna. Em outras palavras, um corpo e uma mente são menos potentes quando determinados por causas externas e muito mais potentes quando determinados internamente por sua própria força.

Assim, longe de afirmar, como faria a tradição, que o conhecimento verdadeiro depende de um afastamento da mente em relação ao corpo, Espinosa demonstra que, pelo contrário, será aprofundando essa relação que a mente realizará sua potência pensante. Para compreendermos como e por que isso acontece, Espinosa distingue entre duas maneiras fundamentais da relação do corpo e da mente com o mundo e entre si, conforme sejam determinados por causas externas ou sejam autodeterminados por causas internas. Essa distinção é denominada por Espinosa diferença entre a ordem comum da natureza e a ordem necessária da natureza. Quando a mente percebe segundo a ordem comum da natureza, é determinada do exterior, considera isto ou aquilo conforme o encontro acidental das coisas; quando conhece segundo a ordem necessária da natureza, ela considera simultaneamente várias coisas, conhece realmente as semelhanças que existem entre elas, as suas diferenças e as suas oposições. Espinosa afirma na Parte II da Ética: “todas as vezes, com efeito, que ela é interiormente disposta desta ou daquela maneira, então considera as coisas clara e distintamente[4]”.

A distinção entre a mente externamente determinada e internamente disposta é a chave para compreendermos a ideia espinosana de liberdade.

Para isso vamos nos acercar do lugar e da forma fundamental da relação entre a mente e o corpo, isto é, a vida afetiva.

* * *

Uma das originalidades da ética espinosana está no fato de que Espinosa não começa, como a maioria dos filósofos, definindo a paixão, mas os afetos, entre os quais alguns são paixões e outros, ações do corpo e da mente. Por essência e por natureza somos originariamente seres afetivos. As vivências corporais e psíquicas são afetos, e estes podem ser paixões ou ações.

Como expressões finitas da substância absolutamente infinita, nosso corpo e nossa mente são potências de existir e de agir, potências de autoconservação que Espinosa, seguindo a terminologia do século XVII, denomina conatus. Este é a potência interna de autoperseveração na existência que toda essência singular ou todo ser singular possui porque é expressão da potência infinita da substância. Os humanos, como os demais seres singulares, são conatus, com a peculiaridade de que somente os humanos são conscientes de ser uma potência ou um esforço de perseveração na existência. Sendo uma força interna para existir e conservar-se na existência, o conatus é uma força interna positiva ou afirmativa, intrinsecamente indestrutível, pois nenhum ser busca a autodestruição, e a morte é o que lhe vem do exterior, jamais do interior.

No corpo, o conatus se chama apetite, na mente, desejo, isto é, a per-

cepção ou consciência do apetite. Visto que somos conatus e que este é desejo, Espinosa afirma que a essência do ser humano é desejo.

Na vida corporal, uma afecção pode aumentar ou diminuir, favorecer ou prejudicar a potência do corpo. Tal afecção é o afeto. Visto que a mente é ideia de seu corpo e ideia dessa ideia (ou consciência de si), ela forma ideias dos afetos corporais, ou seja, experimenta psiquicamente os afetos, ou aquilo que aumenta ou diminui, favorece ou prejudica sua potência de pensar. Assim, por natureza, somos originariamente seres afetivos, e a relação originária da mente com seu corpo e de ambos com o mundo é a relação afetiva. Eis a definição espinosana do afeto: “Por afeto entendo as afecções do corpo pelas quais a potência de agir do próprio corpo é aumentada ou diminuída, favorecida ou coibida, e simultaneamente as ideias dessas afecções[5]”.

Nessa definição, dois aspectos merecem ser ressaltados: o primeiro é a afirmação de que o afeto é um aumento ou uma diminuição da potência do corpo; o segundo é o emprego do advérbio simultaneamente para se referir ao afeto na mente, ou seja, o que se passa no corpo simultaneamente se passa na mente. Assim, uma vez que esta é ideia de seu corpo e ideia dessa ideia (ou a consciência de si), e que os acontecimentos corporais e psíquicos são simultâneos, precisamos concluir que o que aumenta a potência de agir do corpo também aumenta a da mente, e o que diminui ou bloqueia a potência de agir do corpo também diminui ou bloqueia a da mente. Longe, portanto, de considerar que a expansão da potência corporal corresponderia a uma diminuição da potência psíquica (é isto, por exemplo, a ideia religiosa de pecado e vício) e que seria preciso a diminuição da potência do corpo para que a da mente aumentasse (donde a ideia religiosa de mortificação do corpo), Espinosa afirma o contrário: ambos aumentam e diminuem juntos em simultâneo.

O conatus é uma causa interna que produz efeitos necessários internos

e externos. Todavia, lembremos a distinção entre estar externamente determinado por outras coisas, pessoas e forças e estar internamente disposto em conformidade com as leis necessárias de nossa natureza ou de nossa essência.

Por que corpo e mente podem estar externamente determinados? Porque somos seres finitos rodeados de inúmeros outros, que são, como nós, potências de existir com as quais interagimos necessariamente. Isso significa, antes de tudo, que nosso conatus opera passivamente quando somos causas eficientes parciais dos efeitos que se produzem em nós e fora de nós porque a outra parte da causalidade é realizada por forças externas a nós – são os afetos enquanto paixões.

Em contrapartida, somos ativos ou agimos quando somos internamente causa eficiente total dos efeitos que se produzem em nós e fora de nós. Somos passivos quando somos causas parciais dos afetos – estes são paixões. Somos ativos quando somos causas eficientes totais dos afetos

– estes são ações.

Por esse motivo Espinosa introduz uma nova distinção: a distinção entre ser causa inadequada e ser causa adequada de ideias e afetos. Quando externamente determinados, o que se passa em nós depende de causas externas e por isso somos causa inadequada do que nos acontece. Ao contrário, quando o que nos acontece depende exclusivamente de nossa potência interna, somos a causa completa ou total do que sentimos, pensamos e fazemos. Ser causa inadequada é ser passivo; ser causa adequada é ser ativo.

Nosso ser é definido pela intensidade maior ou menor da força para existir, isto é, de nosso conatus – no caso do corpo, trata-se da força maior ou menor para afetar outros corpos e ser afetado por eles; no caso da mente, da força maior ou menor para pensar. A variação da intensidade da potência para existir depende da qualidade de nosso desejo e, portanto, da maneira como nos relacionamos com as forças externas, que são sempre muito mais numerosas e mais poderosas do que a nossa. O movimento do desejo aumenta ou diminui conforme a natureza do desejado, e conforme este seja ou não conseguido, havendo ou não satisfação. É neste ponto preciso que Espinosa introduz os conceitos que explicam a variação da intensidade da força vital do corpo e da mente ao definir os três afetos primários, dos quais nascem todos os outros: a alegria, ou o sentimento que temos do aumento de nossa força para existir e agir, ou da forte realização de nosso ser; a tristeza, ou o sentimento que temos da diminuição de nossa força para existir e agir, ou da fraca realização de nosso ser; e o desejo, ou o sentimento que nos determina a existir e agir de uma maneira determinada, podendo ser alegre ou triste. Todos os afetos são expressões determinadas dos três afetos originários.

Alegria e tristeza são operações nas quais passamos a uma perfeição maior ou menor, ou seja, pelas quais a potência de existir de um humano aumenta ou diminui. Em outras palavras, os afetos não são simples emoções, mas acontecimentos vitais e medidas da variação de nossa capacidade para existir e agir. Quando a alegria é acompanhada de uma causa externa, chama-se amor; quando a tristeza é acompanhada de uma causa externa, chama-se ódio; quando o desejo é alegre, chama-se contentamento; quando triste, frustração.

Acerquemo-nos da passividade afetiva.

Na vida imaginativa, os afetos são paixões. Estas, diz Espinosa, não são vícios nem pecados, nem desordem nem doença, mas efeitos necessários de sermos uma parte finita da natureza circundada por um número ilimitado de outras que, mais poderosas e mais numerosas que nós, exercem poder sobre nós. Em outras palavras, porque somos finitos e seres originariamente corporais, somos relação com tudo quanto nos rodeia, e isto que nos rodeia são também causas ou forças que atuam sobre nós. A passividade, isto é, o poderio de forças externas sobre nós, é natural e originária. Além disso, como vimos, a relação originária do corpo com o mundo é a imagem, e a da mente com o corpo e o mundo, a ideia imaginativa. A paixão ou a passividade natural possui, assim, três causas: a necessidade natural do apetite e do desejo de objetos para sua satisfação; a força das causas externas maior que a nossa; e a vida imaginária, que nos dirige cegamente ao mundo, esperando encontrar satisfação no consumo e apropriação das imagens das coisas, dos outros e de nós mesmos. Por isso, na paixão somos causa parcial de nossos apetites e de nossos desejos, isto é, somos apenas parcialmente causa do que sentimos, fazemos e desejamos, pois a causa mais forte e poderosa é a imagem das coisas, dos outros e de nós mesmos, portanto, a exterioridade causal é mais forte e mais poderosa que a interioridade causal corporal e psíquica. Escreve Espinosa: “Somos passivos, ou padecemos, na medida em que somos uma parte da Natureza que não pode se conceber a si mesma e sem as outras[6]”.

Qual a originalidade de Espinosa? A tradição filosófica define a paixão e a ação como termos reversíveis e recíprocos: a ação está referida ao termo do qual parte uma operação; a paixão, ao termo em que a operação incide. Eis por que se fala na paixão da alma como ação do corpo e na paixão do corpo como ação da alma. Assim, a um corpo ativo corresponderia uma alma passiva, e a uma alma ativa, um corpo passivo. A originalidade de Espinosa está em romper radicalmente com essa concepção.

Paixão e ação, explica ele, não são termos reversíveis, mas intrinsecamente distintos, e, visto que a mente é consciência de seu corpo e de si, ambos são passivos ou ativos conjuntamente ou em simultâneo. Assim, pela primeira vez, em toda a história da filosofia, corpo e mente são ativos ou passivos juntos e por inteiro, em igualdade de condições e sem relação hierárquica entre eles. Nem o corpo comanda a mente (na paixão) nem a mente comanda o corpo (na ação). A mente vale e pode o que vale e pode seu corpo. O corpo vale e pode o que vale e pode sua mente. Por isso mesmo Espinosa demonstra que uma ideia verdadeira, simplesmente por ser verdadeira, jamais vence uma paixão. Somente uma paixão vence outra paixão, se for mais forte e contrária a ela.

A distinção tradicional entre ação e paixão (ou entre um corpo ativo com uma alma passiva e uma alma ativa com um corpo passivo) levou a tradição filosófica a atribuir à liberdade da vontade a causa de ambas: na paixão, a vontade se submeteria aos apetites e impulsos, tornando-se viciosa; na ação, a vontade exerceria seu poder livre para dominar e comandar o corpo, quando é guiada pela razão para realizar fins racionalmente definidos como bons, tornando-se virtuosa. A tradição inventou a moral ascética e a moral dos fins e valores como paradigmas externos a serem voluntariamente obedecidos pelo agente. Novamente, Espinosa rompe com essa tradição: não há coisas boas ou más em si mesmas (bom e mau não são coisas nem correspondem a qualidades que existiriam nas próprias coisas); e bem e mal não são fins nem valores que a razão impõe à vontade livre para que seja virtuosa. Bom ou bem é tudo quanto aumente a força de nosso conatus; mau ou mal, tudo quanto a diminua. Por isso algo não é desejado por nós por ser bom, mas é bom porque o desejamos. Eis por que a ética de Espinosa não investiga coisas boas e más, e sim o que há de bom ou de mau nos afetos.

Os afetos são nossa maneira natural e originária de viver. Os afetos passivos ou paixões não são vícios, doenças, perturbações da alma. A naturalidade das paixões, porém, não significa que seus efeitos sejam necessariamente positivos, e por isso é preciso investigar o que nelas há de bom ou de mau. Espinosa demonstra que, na maioria das vezes, a paixão aumenta imaginariamente a intensidade de nossa potência e a diminui realmente. O aumento imaginário da força para existir e sua diminuição real é o que Espinosa chama de servidão humana.

A servidão não resulta dos afetos, mas dos afetos passivos ou das paixões. E não de todas elas em qualquer circunstância, mas da força de algumas delas sobre outras em certas circunstâncias. Passividade significa ser determinado a existir, desejar, pensar a partir das imagens exteriores que operam como causas de nossos apetites e desejos. A servidão é o momento em que a força interna do conatus, tendo-se tornado excessivamente enfraquecida sob a ação das forças externas, submete-se a elas imaginando submetê-las. Ilusão de força na fraqueza interior extrema, a servidão é deixar-se habitar pela exterioridade, deixar-se governar por ela e, mais do que isso, Espinosa a define literalmente como alienação: o indivíduo passivo-passional é servo de causas exteriores, está sob o poder de um outro, alienus. Não só não reconhecemos o poderio externo que nos domina, mas o desejamos e nos identificamos com ele. A marca da servidão é levar o desejo à forma-limite: a carência insaciável que busca interminavelmente a satisfação fora de si, num outro imaginário.

Entre seus vários efeitos, a servidão produz dois de consequências gigantescas: do lado do indivíduo, coloca-o em contradição consigo mesmo, levando-o a confundir exterior e interior, perdendo a referência de seu conatus e, justamente por isso, provocando sua própria destruição, como no caso do ciúme, da autoabjeção e do suicídio; do lado da vida intersubjetiva, torna cada um contrário a todos os outros, em luta contra todos os outros, temendo e odiando todos os outros, cada qual imaginando satisfazer seu desejo com a destruição do outro, percebido como obstáculo aos apetites e desejos de cada um e de todos os outros.

Espinosa demonstra que, em qualquer circunstância, seja na paixão, seja na ação, seja na alegria, seja na tristeza, nosso conatus sempre realiza uma mesma operação, qual seja, buscar relações com o que nos fortalece e desfazer os laços com o que nos enfraquece. Todo o trabalho do conatus consiste em conservar a proporção interna ao corpo, variando a intensidade dessa proporção conforme nossa vida nos faz seres cada vez mais complexos. A vida do corpo e da mente é uma intensa troca de relações internas e externas que conserva a individualidade como proporção dos constituintes, de sorte que essa troca aumenta com o aumento de nossas capacidades corporais e psíquicas no curso de nossa experiência. Assim, o conatus resiste à destruição e opera não só para a conservação, mas para o aumento das capacidades vitais de nosso corpo e de nossa mente.

Embora a busca do que nos fortalece e o afastamento do que nos enfraquece sejam uma lei natural que não sofre nenhuma exceção, isso não significa que, em todas as circunstâncias, saibamos efetivamente o que nos fortalece e o que nos enfraquece. Pelo contrário, é próprio da vida passional imaginativa enganar-se. Esse engano, porém, não é um defeito de nosso intelecto nem muito menos uma perversão de uma suposta vontade viciosa que se inclinaria inexoravelmente para o mal. O engano decorre das condições em que se encontra nosso corpo e, com ele, nossa mente, e esse engano produz um engano de comportamento e de intensificação do conatus. Na paixão, o afeto, como vimos, é determinado pela potência de causas externas. Por outro lado, sabemos que nosso corpo e nossa mente são sistemas de vivências afetivas. Ora, essa vivência é natural e inicialmente imaginativa e imaginária porque a ideia que temos de nosso corpo não nos vem dele, e sim da imagem que os outros corpos dele possuem e nos enviam como num espelho. Ao mesmo tempo, a vivência que temos dos outros corpos também não nos vem diretamente deles, mas de suas imagens formadas por nosso corpo. Isso significa que, dependendo das condições de nosso corpo, ele buscará outros cuja imagem pareça aumentar sua força vital, sem poder se dar conta de que eles a diminuirão em vez de aumentá-la; da mesma maneira, nosso corpo poderá afastar-se de outros que efetivamente o regeneram e fortalecem, imaginando-os como enfraquecedores e adversários. Por que esse engano é possível? Por que na busca da alegria vamos rumo à tristeza? Por dois motivos principais: em primeiro lugar, porque o equilíbrio dinâmico de nosso corpo precisa ser incessantemente refeito e conservado em decorrência do poder das forças exteriores sobre nós; em segundo, porque, em nossa mente, alegria e tristeza nunca aparecem em estado puro ou nuas, mas combinadas sob a forma de afetos variados. É assim que a alegria causada por um outro chama-se amor, e a tristeza causada por um outro chama-se ódio. A alegria pela expectativa de um bem futuro chama-se esperança, a tristeza pela expectativa de um mal futuro, medo.

Alegria, tristeza e desejo combinam-se em múltiplas formas dando origem a inumeráveis afetos, ainda que cada um dos três afetos originários forme um sistema com sua lógica própria. Em outras palavras, num sistema de alegria, as paixões tristes serão incorporadas de tal maneira que as forçaremos a operar como se pudessem aumentar nossa força vital, e, ao contrário, num sistema de tristeza, as paixões alegres serão incorporadas de tal maneira que as forçaremos a operar como se devessem diminuir nossa força vital, ainda que imaginemos estar assim aumentando-a. Exatamente porque afetos alegres, tristes e desejantes se entrecruzam e se entrelaçam de formas múltiplas e variadas, Espinosa afirma que não possuímos um número suficiente de palavras para exprimir todos os afetos possíveis, pois são combinações infinitas de afetos alegres, tristes e desejantes. Para alguns afetos tristes possuímos nomes, e Espinosa os nomeia: ódio, aversão, medo, ciúme, desespero, remorso, arrependimento, comiseração, autocomiseração, autoabjeção, humildade, modéstia, inveja, pudor. Espinosa nomeia também alguns dos desejos tristes: frustração, cólera, vingança, crueldade, temor, pusilanimidade, consternação. E nomeia também alguns afetos e desejos alegres: amor, generosidade, glória, esperança, gratidão, segurança, devoção, estima, misericórdia, benevolência, coragem, força de ânimo. No entanto, paixões e desejos tristes tendem a combinar-se com paixões e desejos alegres, formando a trama cerrada do mundo afetivo imaginário, faltando-nos nomes e palavras para nomear todos os afetos assim produzidos. Essa combinação incessante de alegrias, tristezas, desejos alegres e tristes indica que nosso ser é constituído por um sistema de forças de intensidades distintas, ou seja, nossa potência é perpassada pelo jogo interno de intensidades fortes (alegria e desejos alegres) e fracas (tristeza e desejos tristes), e é exatamente essa multiplicidade de intensidades que nos permite vencer afetos tristes por alegres, mas também oscilar incessantemente entre alegrias e tristezas.

Qual a causa dessa oscilação entre alegria e tristeza? Nosso corpo é um sistema complexo de afecções, seja as que se produzem nele pela ação de outros corpos, seja as que ele produz em outros corpos; vimos também que a mente percebe todas essas afecções e está apta a um grande número de ideias quanto mais complexa for a vivência corporal. No entanto, embora nosso corpo seja afetado de múltiplas e diferentes maneiras simultâneas pelos outros corpos, estes nunca o afetam por inteiro, e sim partes dele. Por isso mesmo é natural que um mesmo corpo exterior nos afete de maneira diferente conforme a parte de nosso corpo afetada por ele, assim como é natural que diferentes corpos exteriores possam nos afetar da mesma maneira, dependendo das partes do nosso que afetem. É justamente por isso que um mesmo corpo exterior pode afetar de alegria uma parte de nosso corpo e de tristeza outra, assim como diferentes corpos exteriores podem todos afetar de alegria nosso corpo, dependendo das partes que afetem, ou de tristeza, também conforme as partes de nosso corpo que afetem. E nosso corpo pode fazer o mesmo com os outros corpos. Isso explica a infinita variedade e combinação de afetos que vivenciamos, pois dependem das partes de nosso corpo afetadas por outros corpos e afetando diferentes partes deles. É também por isso que nosso conatus pode enganar-se ao buscar outros corpos, buscando como causa de alegria um corpo que, na realidade, pode ser causa de tristeza, e vice-versa. É ainda por essa razão que podemos nos tornar obsessivos: a obsessão é esquecermos o todo de nosso corpo para nos deleitarmos ou nos afligirmos com uma única parte dele, aquela fortemente afetada de alegria ou de tristeza. Assim, um afeto é bom quando afeta de alegria parte de nosso corpo e de nossa mente, e é mau quando nos faz esquecer o todo de nosso corpo e de nossa mente, levando ao enfraquecimento de ambos, porque uma única parte ou apenas algumas partes de nosso corpo e de nossa mente estão satisfeitos.

Como nas paixões se mesclam partes alegres e partes tristes, somos contrários a nós mesmos e contrários uns aos outros, e é essa contrariedade que incita nosso conatus a vencê-la em busca da concordância interna de nosso ser e da concordância com os outros.

Acerquemo-nos da atividade afetiva.

Espinosa indaga: como sair do imaginário passional sem sair dos afetos, pois estes definem nossa essência? Como passar da passividade à atividade ou da paixão à ação sem abandonar os afetos? Em suma, como nos tornarmos causa interna total dos efeitos daquilo que se passa em nós?

Essas indagações são fundamentais porque Espinosa demonstra na Parte IV da Ética que um afeto não é destruído, afastado ou modificado

quando dele temos ideia verdadeira, pois esta nada pode contra aquele. A destruição, o afastamento ou a mudança de um afeto se realiza pelo confronto com outro mais forte que ele e contrário a ele. É nesse sentido que as paixões tristes são mais fracas que as alegres e contrárias a elas, assim como os desejos tristes são mais fracos que os alegres e contrários a eles. A inovação trazida por Espinosa consiste em demonstrar que a passagem da paixão à ação se realiza, portanto, como lógica das forças afetivas ou como dinâmica afetiva, e não como comando intelectual sobre a vontade para que esta possa dominar os afetos.

* * *

A chave da ética espinosana encontra-se na afirmação de que a potência de existir e de autoconservar-se é o fundamento primeiro e único da virtude, palavra empregada por Espinosa não no sentido moral de valor e modelo a ser seguido, mas em seu sentido etimológico de força interna (em latim, virtus pertence à família de vis, força).

A virtude do corpo é ser afetado e poder afetar outros corpos de inúmeras maneiras simultâneas, pois, como vimos, o corpo é um indivíduo que se define tanto pelas relações internas de equilíbrio de seus órgãos quanto pelas relações de harmonia com os demais corpos, sendo por eles alimentado, revitalizado e fazendo o mesmo para eles.

A virtude da mente, seu conatus próprio, é pensar, e sua força interior

dependerá, portanto, de sua capacidade para interpretar as imagens de seu corpo e dos corpos exteriores, passando delas às ideias adequadas propriamente ditas, das quais ela é a única causa; em suma, passar da condição de causa inadequada à de causa adequada exige passarmos das ideias imaginativas às ideias verdadeiras, visto que, para nossa mente, conhecer é agir e agir é conhecer.

Como se dá a relação entre a razão e o afeto?

Um desejo só se encontra em nossa mente ao mesmo tempo que a ideia da coisa desejada. Na paixão, a coisa desejada surge na imagem de um fim externo; na ação, como ideia posta internamente por nosso próprio ato de desejar e, portanto, como algo de que nos reconhecemos como causa, interpretando o que se passa em nós e adquirindo a ideia verdadeira de nós mesmos e do desejado. E é no interior do próprio desejo que esse desenvolvimento intelectual ou essa mudança acontece.

Em outras palavras, a virtude é, por um lado, um movimento e um processo de interiorização da causalidade – ser causa interna dos apetites, dos desejos e das ideias – e, por outro, a instauração de nova relação com a exterioridade, quando esta deixa de ser sentida como ameaçadora ou como supressão de carências imaginárias. Isso significa que a possibilidade da ética encontra-se, portanto, na possibilidade de fortalecer o conatus para que se torne causa interna total dos apetites e imagens do corpo e dos desejos e ideias da mente. A originalidade de Espinosa está em considerar que essa possibilidade e esse processo são dados pelos próprios afetos, e não sem eles ou contra eles, ou, como explica o filósofo na Parte IV da Ética: “O verdadeiro conhecimento do bom e do mau, enquanto verdadeiro, não pode refrear nenhum afeto senão somente enquanto é considerado um afeto[7]”.

Em outras palavras, um conhecimento verdadeiro só pode agir sobre os afetos, passivos ou ativos, se ele próprio for um afeto. Somente uma razão desejante e alegre tem força sobre as paixões. É, pois, a dimensão afetiva das ideias ou do conhecimento o que lhes permite intervir no campo afetivo.

Ora, a ideia verdadeira do bom consiste em compreendê-lo como o que aumenta a potência de existir e agir, enquanto a ideia verdadeira do mau, em compreendê-lo como diminuição dessa potência. Dessa maneira, o conhecimento verdadeiro do bom e do mau nos afetos, por ser uma ação da mente (e não uma paixão), será mais forte do que a ignorância. Esse conhecimento verdadeiro nos ensina que a alegria e todos os afetos dela derivados, mesmo quando passiva, é o sentimento do aumento da força para existir. Em outras palavras, a força do conatus aumenta na alegria e nos desejos alegres e, inversamente, diminui na tristeza e nos desejos tristes. Por isso, explica Espinosa, o desejo que nasce da alegria é mais forte do que o desejo que nasce da tristeza.

Sabemos que uma paixão não é vencida por uma ideia verdadeira, mas por uma outra paixão contrária e mais forte. Espinosa nos mostra que a alegria e o desejo nascido da alegria (e, portanto, o desejo nascido de todos os afetos de alegria, como o amor, a amizade, a generosidade, o contentamento, a força de ânimo, a benevolência, a gratidão, a glória) são as paixões mais fortes. A vida ética começa, assim, no interior das paixões

pelo fortalecimento das mais fortes e enfraquecimento das mais fracas, isto é, de todas as formas da tristeza e dos desejos nascidos da tristeza (ódio, medo, ambição, orgulho, humildade, modéstia, ciúme, avareza, vingança, remorso, arrependimento, inveja). Uma tristeza intensa é uma paixão fraca; uma alegria intensa, uma paixão forte, pois fraco e forte se referem à qualidade do conatus ou da potência de ser e agir, enquanto a intensidade se refere ao grau dessa potência. Passar dos desejos tristes aos alegres é passar da fraqueza à força.

Como se dá o processo de passagem da passividade à atividade, da servidão à liberdade?

O processo liberador é iniciado no interior das paixões. À medida que as paixões tristes vão sendo afastadas e as alegres vão sendo reforçadas, a força de nossa potência de existir aumenta, de sorte que a alegria e o desejo dela nascido tendem, pouco a pouco, a diminuir nossa passividade e preparar-nos para a atividade.

O primeiro instante da atividade é sentido como um afeto decisivo: quando, para nossa mente, pensar e conhecer for sentido como o mais forte dos afetos, o mais forte desejo e a mais forte alegria, um salto qualitativo tem lugar, pois descobrimos a essência de nossa mente e sua virtude no instante mesmo em que a paixão de pensar nos lança para a ação de pensar, pois, escreve Espinosa, “quando a mente contempla a si própria e sua potência de agir, alegra-se”. É o momento em que descobrimos a diferença entre a potência imaginante do corpo e a potência pensante da mente e, simultaneamente, compreendemos que os pensamentos se encadeiam na mente exatamente como as imagens se encadeiam no corpo, mas que uma ideia difere de uma imagem porque é o conhecimento verdadeiro das causas das imagens e das ideias, conhecimento verdadeiro da essência do corpo e da mente, conhecimento verdadeiro da relação entre ambos e deles com o todo da natureza.

A mente internamente disposta separa um afeto de sua causa externa e o liga a outros pensamentos, encadeando-o segundo sua lógica e potência pensante, formando de todos os afetos um conceito claro e distinto, conceito ou ideia que é o próprio afeto. Em outras palavras, voltando-se para si e para seu corpo, a mente realiza uma reflexão na qual ela interpreta as afecções de seu corpo e seus próprios afetos, isto é, os compreende afetiva e intelectualmente. Por isso, na Parte V da Ética, dedicada à liberdade, Espinosa demonstra que “um afeto está tanto mais em nosso poder e a mente dele padece tanto menos quanto mais é por nós conhecido[8]”.

“Quem compreende clara e distintamente seus afetos, alegra-se”, escreve o filósofo. Compreender os afetos não significa simplesmente reconhecê-los como naturais e necessários, mas aumentar a potência de existir e de agir, graças exatamente a essa compreensão. Esse aumento – ou a alegria – tem como causa a própria mente quando internamente disposta, ou seja, quando pelas leis necessárias de sua natureza ela é causa interna, total e completa (causa adequada) de suas ideias e afetos.

Assim, a ética não é senão o movimento de reflexão, isto é, o movimento de interiorização no qual a mente interpreta seus afetos e os de seu corpo, afastando as causas externas imaginárias e descobrindo-se e a seu corpo como causas reais dos apetites e desejos. A possibilidade da ação reflexiva da mente encontra-se, portanto, na estrutura da própria afetividade: é o desejo da alegria que a impulsiona rumo ao conhecimento e à ação. Pensamos e agimos não contra os afetos, mas graças a eles.

Visto que a mente é consciência de seu corpo, quanto mais apto for seu corpo para a pluralidade e complexidade das afecções e dos afetos, quanto mais capaz da pluralidade simultânea de afecções ou percepções, mais ativa será a mente, que, finalmente, poderá compreender-se como ideia da ideia de seu corpo, isto é, como poder reflexivo que alcança pelo pensamento o sentido de si mesma, de seu corpo, do mundo e da natureza inteira. A reflexão como interiorização e interpretação das causas reais e do sentido verdadeiro da vida afetiva é, assim, uma liberação que nos faz chegar à liberdade.

Certamente, entre os aspectos mais surpreendentes e perturbadores da ética de Espinosa está a afirmação de que a liberdade não é o ato voluntário oposto à necessidade que rege a realidade inteira.

De fato, a tradição filosófica sempre distinguiu entre o necessário – o que opera em toda parte e em todo tempo sempre da mesma maneira e sem intervenção humana – e o possível – aquilo que pode existir dependendo da ação humana voluntária. Em outras palavras, sempre opôs o que opera por necessidade e o que age por vontade: a primeira determina o curso das coisas de maneira tal que exclui a possibilidade de escolha; a

segunda, ao contrário, é própria da ação humana como um poder para escolher entre alternativas possíveis.

Espinosa abandona e critica essa oposição, afirmando a identidade entre o necessário e o livre. Demonstra ele que, sendo nossa mente a consciência que temos de nosso corpo, aquele que tem um corpo apto à pluralidade de ações e afetos simultâneos tem também uma mente apta à pluralidade de ideias e afetos simultâneos, de maneira que a liberdade humana, deixando de identificar-se com o exercício do livre-arbítrio entendido como escolha voluntária entre alternativas possíveis, é nossa potência interna para a pluralidade simultânea de operações corporais, ideias e sentimentos quando dependem exclusivamente das leis necessárias de nossa natureza. Capacidade para o múltiplo simultâneo ou potência para o plura simul, a liberdade não se encontra na distância entre mim e mim mesma, distância que, usando a razão e a vontade, eu procuraria preencher com algo que não sou eu mesma, isto é, com o objeto de uma escolha ou com um fim. Ao contrário, a liberdade é a proximidade máxima de mim comigo mesma, a identidade do que sou e do que posso.

Dizemos que um ser é livre quando, pela necessidade interna de sua essência e de sua potência, nele se identifica sua maneira de existir, de ser e de agir. A liberdade não é um ato de escolha voluntária nem ausência de causa (ou uma ação sem causa), mas, como explica Espinosa:

Um humano é livre na exata medida em que tem o poder para existir e agir segundo as leis da natureza humana […], a liberdade não se confunde com a contingência. E porque a liberdade é uma virtude ou perfeição, tudo quanto no homem decorre da impotência não pode ser imputado à liberdade[9]. Assim, quando consideramos um ser humano como livre não podemos dizer que o é porque pode deixar de pensar ou porque possa preferir um mal a um bem […]. Portanto, aquele que existe e age por uma necessidade de sua própria natureza, age livremente[10].

A liberdade não é livre-arbítrio da vontade – seja esta divina ou humana –, mas a ação que segue necessariamente das leis da essência do agente, ou, em outras palavras, a liberdade não é a escolha entre alternativas externas possíveis, mas a autodeterminação do agente em conformidade com sua essência. Eis por que Espinosa introduz a enigmática expressão livre necessidade, com que indica que liberdade e necessidade não se opõem e que a primeira pressupõe a segunda.

Na paixão e na servidão, os humanos são contrários a si mesmos e contrários uns aos outros, cada qual cobiçando como o maior de todos os bens a posse de um outro humano, pois o desejo passional mais intenso não é o da posse de bens possuídos por outros, mas o desejo de apropriar-se do outro e tornar-se objeto do desejo do outro. O bem supremo da vida servil exclui os demais de sua fruição. Em contrapartida, na liberdade os humanos se descobrem como concordantes e, sobretudo, que sua força para existir e agir aumenta quando existem e agem em comum, de sorte que o bem supremo da vida afetiva e intelectual livres é justamente o que buscava o jovem Espinosa quando, na abertura do Tratado da emenda do intelecto, escreveu que buscava “um bem verdadeiro capaz de comunicar-se a todos”.

Notas

  1. B. Espinosa, Tratado da emenda do intelecto, § 1. Campinas: Unicamp, 2015.
  2. Ibidem.
  3. Idem, Ética, São Paulo: Edusp, 2016.
  4. Ibidem.
  5. Ibidem.
  6. Ibidem, Parte IV, Proposição 2.
  7. Ibidem, Parte IV.
  8. Ibidem, Parte V.
  9. Ou seja, o pecado não pode ser um ato de liberdade, pois é uma paixão e não uma ação.
  10. B. Espinosa, Tratado político, Capítulo II, §§ 7 e 11, Lisboa: Círculo de Leitores, 2008.

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