1988

Masculino/Feminino: o olhar da sedução

por Maria Rita Kehl

Resumo

A sedução é um jogo entre dois olhares. O sedutor não se revela, mas revela alguma coisa sobre o seduzido. Desejo de conquista e escravidão, perigo e abandono. Esse jogo começa na infância, na descoberta do espelho, na imagem idealizada do desejo alheio. Passagem que a Psicanálise descreve entre o Ego ideal (do Outro) e o Ideal do Ego (do sujeito), do narcisismo primário à libido sexual. É nesse momento que se constitui nos afetos um núcleo perverso que seguirá pela vida afora, isto é: renega-se uma castração, uma carência, um fetiche ocupa o lugar da falta. Jogo de perdas e conquistas em que os signos são sempre móveis e o absoluto, como no Romantismo dos séculos XVIII e XIX, é projeção ideal, é mistério (“Ah, se eu pudesse entender o que dizem os teus olhos!”). Na passagem do imaginário ao simbólico sempre surge um medo novo e a tentação de um retorno aos códigos totalitários (narcisistas). Isso ocorre para ambos os sexos, mas a coreografia masculina é mais ingênua, a feminina, mais tortuosa (pois a mulher aprende a enganar ou a se vingar com seus enfeites/fetiches), o que faz da sedução um jogo de aproximação-e-esquiva. O seduzido perde, mas sai da experiência mais consciente de sua vulnerabilidade, enquanto para o sedutor a única chance é a depressão. Que saída o amor oferece aos apaixonados? Talvez a liberdade de brincar com as angústias da infância e de encenar a própria sedução (“E se trocássemos de lugar? Se fôssemos dois homens ou duas mulheres? E se eu te fizer sofrer?…”), brincadeira que é quase de verdade.


1.

O que se diz de imediato sobre a sedução é que é um jogo. Caçada silenciosa entre dois olhares; captura numa rede perigosa de palavras. Jogo arriscado e fascinante — angústia e gozo — onde o vencedor não sabe o que fazer de seu troféu e o perdedor só sabe que perdeu seu rumo: um jogo cuja única possibilidade de empate se chama amor.

Jogo que pretendo abordar do ponto de vista do aparente perdedor — o seduzido — já que é ele quem nos deixa registro sobre sua experiência. É o seduzido que se expressa — na poesia, na literatura, nos consultórios de psicanálise. É o seduzido que tenta compreender a transformação que se deu nele ao mesmo tempo que tenta entender o poder do olhar sedutor. O que significava Odete para Swann? De que encanto o seduzido é presa, ele não sabe dizer. O sedutor é o que não se revela. Mas revela alguma coisa — o quê? — sobre o seduzido.

“Ai ioiô… eu nasci pra sofrer/ fui olhar pra você, meus olhinhos fechou.! E quando os olhos eu abri/ quis gritar, quis fugir/ mas você, eu não sei por quê/ você me chamou” …[1] Que o seduzido está fascinado por alguma espécie de perigo, é certo. O risco mais óbvio seria o do abandono — “seduzido(a) e abandonado(a)”: não é assim que se diz? Mas ainda falta saber por que o abandono parece se inscrever sempre na experiência da sedução — e em que lugar tão ermo o seduzido é deixado, que lugar tão inóspito é este em que ele sente como se estivesse sendo deixado para morrer.

A experiência da sedução é diferente da do apaixonamento — embora uma contenha a outra, e vice-versa! E bem mais diferente da experiência do amor que conta com a reciprocidade, com a entrega mútua onde dois caminham juntos por terrenos mais ou menos (mais no menos!) conhecidos. O seduzido não sabe onde pisa — e pensa que o sedutor sabe. Antecipa prazer e dor, pois, ao mesmo tempo que espera o gozo prometido pelo sedutor, já sabe que se aproxima uma catástrofe. O seduzido é alguém que perde o rumo e tem que se guiar, nas brumas de uma infância revisitada, pela bússola do olhar sedutor.

Não se pode dizer que o seduzido ame o sedutor — ele é seu prisioneiro. Talvez odeie mais do que ame — “mas não deixo de querer conquistar / uma coisa qualquer em você! que será?”.[2] A Conquista do sedutor é a esperança de libertação do seduzido, já que o sedutor parece possuir a chave dos enigmas que o aprisionam: o que você vê em mim que eu não vejo? O que você sabe de mim que eu não sei? O que você deseja em mim que eu não domino, ao mesmo tempo que o seu olhar me diz que eu não possuo? Que dom seu olhar tem o poder de criar em mim para o seu desejo?

Escravidão da sedução: eu só possuo o dom para o seu desejo enquanto você o vê em mim. Sou seu escravo — ou não sou nada. E o poeta seduzido suplica: “Oh minha amada que olhos osteus/ quem dera um dia, quisesse Deus/ eu visse um dia o olhar mendigo/ da poesia nos olhos teus”[3] — sabendo que o olhar mendigo da poesia é o seu próprio; implorando a algum deus a graça de ver este olhar pedinte no rosto da amada, pois quem pede se revela: revela a carência. Se o olhar da amada mendigasse, deixaria de ser inacessível, indecifrável, “cais noturnos cheios de adeus”.[4] O poeta conhece o naufrágio da sedução.

2. ESPELHO – MÃE

Pois quando eu te vejo eu desejo o seu desejo.[5]

O olhar seduzido é perplexo. Procura recobrar o domínio de si mesmo. Algum dia este olhar foi o olhar do bebê que se flagrou pela primeira vez diante de um espelho. Reconheceu a própria imagem; entendeu e desentendeu que “aquele” outro, externo a ele e ao mesmo tempo ele mesmo, pudesse ser tão perfeito, simétrico e ordenado, tão bem delimitado em relação ao mundo externo. Imagem dele mesmo contrária a toda sua experiência até então, de caos e desorganização internos, de possuir um corpo fragmentado de difícil manejo, fundido e confundido com o mundo ao seu redor.

Diante da própria imagem o bebê tentou realizar a síntese entre o corpo perfeito que vê e o corpo desorganizado que experimenta. Síntese que demorou a realizar e realizou de forma precária, inconstante, voltando a ocupar a criança e o adulto pelo resto da vida a cada vez que um “espelho” de fora lhe informa: “eu te vejo assim” — e então toca outra vez a integrar o revelado (de fora) com o vivido (de dentro), toca a tentar outra vez alcançar a imagem idealizada pelo desejo alheio.

Dessa imagem a criança recebe duas informações simultâneas: a de sua diferenciação em relação ao mundo externo, cisão entre mundos interno e externo, antecipação da castração; e ao mesmo tempo uma confirmação externa da perfeição narcisista que o constitui como falo de sua mãe, objeto de perfeita satisfação dos desejos maternos: visão estruturante do Ego Ideal. O Ego Ideal seria o ego do desejo materno: imago alienante e estruturante. Alienante porque não corresponde à experiência: é um eu-fora-de-mim que eu quero ser mas não confirma o eu-dentro-de-mim. Estruturante pelo mesmo motivo: minhas tentativas de ser “aquela” (imagem) é que vão me constituir como sujei-to(a). Ao me apresentar com uma perfeição imaginária, a imagem do espelho inaugura o começo de um longo percurso (tão longo quanto a vida) de tentativas de corresponder àquela perfeição. Lacan: “A ruptura do círculo que liga o mundo interno ao mundo externo engendra a quadratura inesgotável das reafirmações do ego”.[6]

Da ruptura entre mundo interno e externo surge a necessidade do conhecimento que, para Lacan, nunca vai se libertar de um componente paranóico: alguém (a mãe do bebê, é claro) já sabia sobre mim algo que eu só vim saber agora — que eu sou esta imagem do espelho. O poder que a mãe, e depois todos os outros, detém sobre o bebê — e depois sobre o adulto — é o de saber dele a partir de fora, poder dizer sobre ele coisas que ele desconhece, ver nele o que ele não vê. Desejar nele o que ele não sabe o que é. Possuir o código para decifrá-lo. Preciso me apropriar deste mundo do qual “outros” já se apropriaram antes de mim. Preciso me apropriar deste mundo para saber de mim mesmo e conquistar poder — sobre mim, sobre os outros. Conhecer para me dominar, conhecer para rivalizar: todo saber humano é mediado em parte pelo desejo do Outro (o outro com maiúscula, ou seja, o detentor do código que eu não detenho: o outro da paranóia). Todo saber se funda na necessidade de ser amado e no medo de ser dominado pelos outros.

Revelação: o espelho, até para quem nunca teve espelho, é o próprio olhar da mãe. Que me diz: você é esta I você é esta para o meu desejo / eu te vejo e te quero assim. É este o código que ela detém: o das insígnias do seu desejo, as do Ego Ideal, lugar de máxima valoração narcisista para o bebê. Enquanto a mãe detém o código, a dependência em relação a ela é completa. O código é dela, pois quando a mãe diz (com a boca ou os olhos): “você é meu lindinho(a), você é meu xodó”, o bebê, tão passivo e ignorante quanto o seduzido, não tem a menor ideia do que ela quer dizer; mas até então — até que se veja “de fora” no espelho, separado do mundo externo — não sente necessidade de entender; pois ele e ela ainda são um só…

A entrada de terceiros na relação dual filho-mãe vem libertar a criança da prisão do espelho, a prisão do Ego Ideal. Rompendo a unidade entre mãe e filho, os tais terceiros (que chamaremos num primeiro momento de pai, e depois serão muitas, muitas outras pessoas) informam à criança que o Ego Ideal é construção impossível: por mais que ela se aperfeiçoe, não deterá o desejo de sua mãe. Ele é móvel: a criança é castrada, já que a mãe também é. Não se completam, ainda que num primeiro momento, no imaginário da mãe e do bebê, tenha parecido que sim.[7] O pai separa a dupla narcisista, deixa a criança diante de sua carência — mas em compensação permite que ela diversifique suas identificações. O pai, os terceiros quebram o espelho. Sua chegada é sempre recebida com hostilidade; é ameaça constante ao narcisismo, ao equilíbrio das relações conheci das. Mas cada novo contato enriquece o sujeito de novas identificações: a imagem idealizada e alienante do Ego Ideal vai se preenchendo dos atributos internos das identificações, traços de todas as afeições vividas pela criança: “eu gosto do que ele(a) me dá, quero aprender como é, quero ter isso para dar também”… A identificação alienante e paranóica com o desejo do Outro na relação dual — a mãe totalitária do imaginário da criança — pode ir sendo substituída por traços de identificações diversos com outras pessoas queridas — e quando um não depende exclusivamente do amor de outro um, descobre o princípio da liberdade.

Na origem da liberdade está a passagem da libido do narcisismo primário para a libido sexual. A libido concentrada na unidade imaginária mãe-bebê (ou seja, concentrada sobre o próprio bebê, que sente a mãe como extensão de si mesmo) começa a se dirigir a outros objetos. A chegada do príncipe (seja ele quem for) com seu beijo amoroso de estrangeiro desperta a Bela Adormecida de seu sono narcisista: liberta-a de sua redoma uterina, de sua completude mortal, para a vida e o amor. O príncipe do bebê é uma função paterna. Ele quebra o espelho. Ele beija o bebê e a mãe: seu desejo os separa. Ele se deixa odiar pelo pequeno Adormecido furioso por ter sido despertado do sonho onde pensava possuir a mãe — mas oferece à criança um novo objeto para o seu amor. O fim do estágio do espelho é o momento inaugural da passagem pelo Édipo: da nossa primeira e mais dramática desilusão amorosa.

3. O CEGO QUE NÃO QUER VER

É assim mesmo que eu quero ser olhado![8]

Assim se inaugura nossa vida afetiva e se implanta dentro de cada um de nós uma das modalidades do olhar seduzido: o olhar de Narciso perplexo e maravilhado com a própria imagem de perfeição, imagem do desejo materno.

Quando escrevo: relação dual… sujeição ao desejo do Outro… dependência completa — o Outro detém o código que me diz, etc., estou descrevendo situações familiares a todos. É da primeira infância que trazemos a “lembrança” desse doce aprisionamento, prazeroso e sufocante? O registro, indelével no inconsciente, vem das primeiras vivências do bebê; mas não a lembrança consciente. É de outras vezes, de relações revividas que temos lembrança. (Nosso tema é sedução…)

A entrada de terceiros rompe a unidade mãe-filho(a) do primeiro tempo do Édipo. É a descoberta da castração materna. Terceiros, castração — dois aspectos do mesmo fenômeno. Freud estruturou sua teoria do Édipo sobre a satisfação da pulsão sexual: ele diz que a criança descobre a castração materna ao constatar a ausência de pênis na mãe. Lacan estruturou “seu” Édipo sobre a satisfação do narcisismo, o que amplia (mas não invalida) a abordagem freudiana: ele diz que é a descoberta do desejo da mãe pelo pai — o tal “terceiro” — que evidencia a castração materna para a criança.[9] O que deixa nosso crescimento em grande parte à mercê do inconsciente de nossas mães — que lástima. E dos pais, idem. Veremos.

Ausência de pênis, desejo pelo pai: nas duas abordagens o narcisismo infantil é abalado quando a criança deixa de ser objeto de completude da mãe fálica para ser um dos objetos de amor da mãe castrada. A imagem perfeita do espelho, o Ego Ideal com que a criança pensava se identificar se transforma daí em diante em construção inatingível, muito distante das possibilidades reais do pequeno ser que luta, protesta, mas nunca mais consegue restaurar sua identificação com ele. Ou consegue em momentos especiais, precariamente… nosso tema é sedução.

O colapso narcisista sofrido neste momento abre a possibilidade — ou melhor, a absoluta necessidade — de construção do Ideal de Ego: conquista das insígnias que formam a identidade do sujeito (e aqui, sujeito se contrapõe dramaticamente a objeto). Deixar de ser objeto absoluto do desejo materno tem seu preço — nossa própria castração —, mas em compensação nos oferece a primeira e fundamental oportunidade de individuação (a segunda, a preço ainda mais alto, é no divã do analista).

Mas nada disso é fácil, como nenhuma tarefa da vida psíquica é. Oprimido ainda por viver no plano das, representações imaginárias, onde tudo é um — o falo é absoluto, é o pênis, se não pertence à mãe pertence ao pai e portanto não à criança incapaz de
simbolizar o falo e a castração, o que só será possível com o acesso ao plano das representações simbólicas, a criança reage contra o que acaba de constatar. A castração materna lhe parece muito ameaçadora e ela luta com as armas que tem, contra todas as evidências. Luta com armas da infância: a fantasia onipotente, munida da energia inesgotável do desejo.

Neste momento se constitui o núcleo perverso, da mesma forma que na vivência da unidade narcísica filho-mãe se constitui o núcleo psicótico de cada ser humano. Se diz que todas as crianças são perversas — o que é o mesmo que dizer que as crianças não concentram a libido em torno da genitalidade, o lugar da diferenciação entre os sexos. Se a diferenciação sexual “não importa” (aspas obrigatórias) à criança, ela é sexualmente polivalente (ou polimorfa): ela pode ser tudo, ela não quer limite algum. A diferença é o limite. Ela só “não importa” à criança entre aspas: o pequeno perverso a renega.

Perversão/renegação da diferença/ difusão da libido /gozo não genital: o fenômeno é um só. Se a criança renega a castração materna, é que já deu por ela; senão, ela ignora. Renegar é: saber e não querer saber. Saber e ignorar. Perceber e esquecer o percebido. Um processo ativo — ignorar, simplesmente, é passivo. Se a criança constata a incompletude materna e reage contra ela — contra sua própria incompletude precisa
ativamente colocar alguma coisa no lugar da falta percebida para poder “esquecê-la”. Esta “alguma coisa” é o fetiche, objeto do desejo perverso — não só dos que se dizem especificamente “fetichistas”.[10] Objeto imaginário investido de energia libidinal, que procura dar conta de duas correntes psíquicas antagônicas: a que percebe a falta — pois o fetiche, estando no lugar do pênis materno, já afirma por si só a ausência e a que não quer saber, refazendo o falo materno com algum representante imaginário.

Uma vez constituído o núcleo da perversão, também a experiência da “solução” fetichista pode se repetir na vida de qualquer um. Todos estamos sujeitos à tentação do fetiche contra a angústia de castração — e conhecemos o prazer que advém do alívio dessa angústia. Daí a força sedutora dessa tentação; num certo lugar da psique, somos todos fetichistas.

A liberdade humana é limitada, ou pelo menos delimitada, por fatos que antecedem a própria existência individual. Por exemplo, nossa sobrevivência física depende dos cuidados de pai e mãe (ou seus representantes). Nossa vida psíquica, o que é muito mais grave, depende do inconsciente das pessoas que cuidam de nós: como podemos nos defender contra esse tipo de perigo?

É preciso que a mãe se reconheça carente para que a criança inclua o pai; é preciso que o pai também se reconheça assim, para que a criança finalmente aceda à castração simbólica. O pai onipotente (que se crê auto-suficiente, não admite carência, não ama) substitui a mãe fálica sem permitir que a criança simbolize a castração. Neste caso, o máximo que ela consegue é passar da mãe para o pai a atribuição de detentor absoluto do código, vivendo sempre entre a impotência (momentos de perda de identificação com os atributos do Ego Ideal, o ego do desejo totalitário da mãe ou pai fálicos) e a onipotência (momentos de identificação, idem, ibidem).

O desejo da mãe pelo pai (ou qualquer outro “terceiro”) faz do pai falo da mãe aos olhos enciumados da criança que acabou de perder seus privilégios. É o momento em que o pênis se instaura como falo universal do imaginário infantil. A quem diz que esta é uma afirmação machista, responderia que o critério de atribuição de valor fálico para a criança é o desejo da mãe desejada por ela. Os olhos do pequeno ciumento se voltam para onde se volta o desejo da mãe. É pelo desejo de uma mulher que o pênis (masculino…) conquista o papel de falo universal da infância. Eu disse: da infância.

Se o pai não corresponde à fantasia fálica da criança, só então ela começa a perceber a castração como dado da condição humana: começa a entender que o falo é uma conquista relativa. Que não pertence à mãe, nem ao pai (nem a ela!), não é o pênis ou qualquer substituto dele — mas toda qualidade humana ou conquistada pelo homem pode ser investida de valor fálico dependendo das necessidades e carências das pessoas, da cultura que nos cerca. Quem manda no falo é o desejo. O desejo que é filho da ausência, da falta, da malfadada castração. Mas quem manda no desejo é o falo — não estamos sossegados em lugar nenhum. Justamente por causa dessa gangorra incessante entre desejo e o falo não existe atributo que possa se constituir como falo absoluto, ou permanente. O falo se perde e se conquista, sobe e desce de cotação o tempo todo na bolsa de valores do desejo humano.

Tudo isso a humanidade sabe, ou intui, muito antes da invenção da psicanálise como método de investigação da mente. O Romantismo dos séculos XVIII e XIX, em sua afirmação exasperada da busca do absoluto, da unidade e do infinito, reconhece ao mesmo tempo o caráter sem fim dessa busca: “Pois unos não nos devemos tornar, porque então o esforço para atingirmos a unidade cessaria”…[11] A nostalgia romântica é condição humana, saudade do absoluto perdido ao qual só se retorna na morte. “Para o interior vai o misterioso caminho. Em nós, ou em nenhum lugar, está a eternidade com seus mundos, o passado e o futuro.”[12] Em nós, mas num lugar perdido inacessível, está o fim do caminho que leva de volta ao absoluto. Em nós e, ao mesmo tempo, em lugar nenhum.

Neste sentido a castração é simbólica: no terreno simbólico os signos são móveis e o absoluto é projeção ideal, inatingível. No terreno das representações simbólicas nada é — tudo significa. Significado e significante se superpõem provisoriamente e podem sempre se descolar, produzir outros símbolos em outras associações. No terreno simbólico estamos permanentemente inseguros (tanto que o narcisismo, sempre que pode, nos conduz de volta ao plano do imaginário) e, ao mesmo tempo, a salvo. Inseguros porque o que parece estabelecido se desfaz continuamente, devemos continuamente re-entender a desordem dos mundos. Re-interpretar, reorganizar, para perder as certezas outra vez mais adiante. Mas salvos da opressão do(s) código(s) totalitário(s). Só no plano simbólico a criança pode se libertar da necessidade (impossível) de corresponder ao Ego Ideal, dominado pelas insígnias do desejo materno, e ir conquistando os atributos do Ideal de Ego, insígnias da identidade do sujeito (em parte, fundamentadas na identidade sexual — mas só em parte) que ele enriquece e reconquista pela vida afora a cada nova relação de afeto, a cada nova identificação.

Dessa passagem do imaginário ao simbólico levamos um certo medo do novo, do que é mutante, das certezas relativas desta vida — e um certo fascínio pelo abrigo “seguro” dos códigos totalitários onde o narcisismo que “pensa que sabe” não se vê continuamente questionado pelas evidências de que tudo o que é também pode não ser, depende… Totalitarismo e narcisismo: associação existente não só no inconsciente do dominador, mas também no do que se deixa dominar.

4. O IOIÔ DE IAIÁ, A IAIÁ DE IOIÔ

Meu senhor do Bonfim pode até se zangar se ele um dia souber que você é que é o ioiô de iaiá[13]

A chamada “condição humana” é mais ou menos a mesma para ambos os sexos — mais uma vez, somos todos castrados —, mas o destino, parceiro da natureza, separa os caminhos dos homens e das mulheres. Masculino/feminino: duas modalidades de falo, duas modalidades de castração. Menino e menina aprendem e inventam diferentes malabarismos na passagem tortuosa e apertada pelo Édipo da qual, diga-se de passagem, ninguém se sai tão bem quanto o ideal do modelo teórico psicanalítico. Só que a menina é obrigada a fazer um movimento a mais que seu irmão sortudo.[14]

Esquematicamente, a coreografia do menino é mais simples. Ele passa por: falo materno/castração/renúncia ao desejo da mãe/identificação com o pai (que pode ser fálica ou saudavelmente potente). O resultado dessa corrida de obstáculos, se bem-sucedida, é a possibilidade de o menino, identificado com o pai e “ciente” (não necessariamente consciente) da castração, amar outras mulheres pela vida e ser amado por elas.

A gincana feminina é um pouco mais exigente em suas provas.[15] Ela começa igual: falo materno/castração/renúncia ao desejo da mãe /identificação com o pai (desejado pela mãe) — mas nesse ponto ela escorrega e tem que refazer a prova. O pênis é o falo universal da infância. O pai tem um — ela não. A identificação com ele (a fase fálica da vida das meninas) se inviabiliza nesse ponto e a garota, ressentida com a mãe traidora que a concebeu companheira de sua castração, reinicia a prova, agora competindo pelo amor do pai. Mas o pai “é” da mãe e esta prova está perdida a priori. Mais ressentida ainda, a pequena competidora para se sair bem precisa (agora como seu irmão fez em relação à mãe) renunciar ao desejo paterno, identificar-se com a mãe — rival mais odiada do que o pai para o menino, já que a traiu duas vezes! — e apostar na chance de conquistar o amor de outros homens (o pênis, o amor sexual — já que o amor sublimado do pai ela pode receber) a partir de sua condição de castrada. Chances que lhe parecem pequenas! Mergulhada ainda no mundo do imaginário onde a equação falo-pênis predomina, ela não vê como o detentor de um atributo tão poderoso possa vir a precisar do amor de alguém que ostenta uma falta tão evidente.

Neste momento os campos de interesse de meninos e meninas se separam. Os meninos, apoiados pela própria anatomia, prosseguem em suas afirmações fálicas. Identificados com o pai, cuja incompletude não querem admitir, meninos pós-edipianos se tornam verdadeiros fetichistas-mirins. Minha primeira hipótese neste trabalho é de que meninos teriam mais fácil acesso a soluções perversas na tentativa de renegar ou a castração materna ou a paterna, e com isto a sua própria, por serem naturalmente dotados do símbolo fálico da infância — que para eles não é símbolo, é falo. O menino refaz ativamente a equação pênis-falo em interesse próprio. Sua companhia predileta é a de outros meninos. A amizade se funda na identificação entre “privilegiados” (imaginários), e a. bonita cumplicidade masculina que se forma neste momento é também uma cumplicidade entre mentirosos. Os meninos mentem uns para os outros, sim, pois precisam esconder todo o sinal de fraqueza e incompletude para manter o pacto onipotente entre machos. Mentem entre si mas não se traem diante das meninas. É para elas que o jogo é jogado, ainda não para atraí-las: o que os meninos evitam fobicamente neste momento é qualquer evidência de que pertençam à raça das meninas. O jogo é jogado para afastá-las — as pobres castradas.

A vida da mulher continua sendo mais trabalhosa — talvez por isso se diga que as meninas “amadurecem mais cedo” que os meninos. Elas se desiludem mais cedo naquilo em que os meninos permanecem ingênuos: é sobre esta ingenuidade masculina ativamente mantida até o fim da infância que recai mais tarde a vingança das meninas desprezadas — chegaremos lá. Neste momento a pequena pós-edipiana está às voltas com a reconstituição de seu narcisismo duas vezes ferido — e se o menino tem acesso facilitado à solução perversa que renega a castração, a menina só pode compensar a sua tentando recuperar a última fase da vida em que foi feliz: a do narcisismo primário, a da unidade narcísica com a mãe — mesmo que a “mãe” agora seja o pai ou outro amor qualquer![16] A contradição da condição feminina, desde a infância, é que a pequena convalescente de passagem pelo Édipo já não tem como renegar a castração nem como refazer a unidade narcísica com a mãe, da qual já se tornou rival. Não tendo como reconstituir psicotica-mente o narcisismo primário — sorte dela![17] —, a menina se vê diante da tarefa impossível de refazer seu narcisismo justamente lá onde mais se evidencia a falta: ou seja, no amor. No amor, onde a mulher sempre parecerá mais exigente que o homem; no amor, de onde a mulher sempre parece esperar mais. Ela espera obter o “seu” falo de volta no amor heterossexual.

Pobres de nós. Poderia ser mais fácil para uma garota a saída homossexual. De fato, quando o pai não “conquista” a menina, sempre existe a possibilidade aberta de refazer uma dupla narcisista com alguém igual a ela e aí sim, triunfante, desfazer para sempre em sua vida a equação pênis-falo, constituindo como fonte de gozo uma espécie de pacto-na-falta, que levado _ao limite faz da evidência da falta um estranho atributo fálico.[18] Mas a menina cuja paixão pelo pai, recentemente frustrada, interdita a saída homossexual, vai deslocar o amor até então dedicado ao pai proibido justamente em direção a algum pequeno príncipe perverso que só deseja evitar intimidades com ela! Pois assim como o amor é onde a menina vai buscar refazer seu espelho estilhaçado — seja tentando refazer a relação dual/ narcísica, seja buscando na relação amorosa e no desejo do outro a confirmação das insígnias que ela reuniu para construir seu Ideal de Ego —, este papel para o menino é atribuído à amizade com outros meninos.

Minha segunda hipótese é de que o amor para a mulher tem um papel fundante não equivalente ao papel do amor para o homem. O amor para a mulher tem um papel equivalente ao que tem a amizade para os homens. Que desse total desencontro de interesses se originem mais tarde relações até estáveis e no mínimo intensas é mistério que só as profundezas da diferenciação sexual podem explicar.

Só mais tarde, reassegurado em suas insígnias fálicas, o menino se vê diante de uma nova perspectiva de sofrimento: ele está prestes a se apaixonar de novo. Ele estranha que não se sinta tão completo quanto “deveria”. Seus primeiros impulsos sexuais, vividos como confirmação triunfante de potência, logo lhe evidenciam justamente o que ele até então se apoiara no pênis para recusar: sua insuficiência. Cada nova ereção, malgré lui lhe aponta em direção àquela que nunca lhe pareceu digna de seu amor. O menino afinal se apaixona, se apaixona a mando do desejo — mas sente essa paixão como derrota, como perda de poder. Tenta escondê-la dos “outros” — os que ainda se julgam auto-suficientes  tenta restringir sua carência ao terreno um pouco mais seguro da carência sexual. Seu truques— quando ele consegue, e muitos deles conseguem — será fazer do desejo confirmação fálica, e não confirmação da carência. Seu truque será fazer do pênis órgão de potência apenas, sinalização positiva do que o menino pensa ter em excesso, em vez de sinal negativo daquilo que lhe falta. Seu truque será separar o desejo do amor — e enquanto ele puder dizer: “desejo todas fazer da mulher peça intercambiável a serviço do falo, estará protegido outra vez da castração.[19]

Mas, que azar (ou não): ele agora tem pela frente uma parceira escolada. Durante esse tempo todo, ele julgava que a menina não aprendia nada com o ressentimento? Eis a sua ingenuidade. Julgar-se absolutamente fálico protegido pela “turma do Bolinha julgar a mulher totalmente castrada e incapaz de vingança — eis a espantosa ingenuidade masculina da qual toda mulher saberá tirar partido, mais dia, menos dia. Pois se em suas incursões perversas o garoto inventou truques para dissociar desejo e amor, em sua convalescença narcisista a garota também aprendeu algo. Agora ela ainda espera que a cura definitiva venha do amor, mas reprime o desejo. É assim que ela revaloriza seu corpo, seu órgão vazio: negando qualquer necessidade de contato, de preenchimento. É assim que ela nega poder ao pênis, ao falo da infância: renunciando a ele! A defesa do homem é desejar sem amar, a da mulher é amar sem desejar: continua sendo espantoso que nos encontremos!

5. O OLHAR DA SEDUÇÃO

Kalu, Kalu / tira o verde desses olhos de riba d’eu…[20]

Seria engano também pensar que a menina não aprendeu nada com sua rival histórica. Observando a mãe ela aprendeu a enganar. Ela sabe que o pai dedica amor e desejo a uma tão castrada quanto ela — e pensa que o pai não sabe (às vezes, não sabe mesmo!). Ela não admite que o pai fálico se deixe encantar e seduzir por um ser incompleto — portanto, a mãe o tapeia. Ela o tapeia com seu penteado, enfeites, batom, tecidos, perfume. Ela tapeia o pai com os truques da feminilidade — são esses truques que a menina aprende observando a rival, a mesma rival que há pouco lhe fez ver as evidências de sua castração. Claro que ela vai usá-los também para vingar-se!

Aqui se diferencia a amizade do menino com o pai da amizade da menina com a mãe. Menino e pai são cúmplices na mentira que mantém a equação pênis-falo: eles não trairão em defesa própria. Menina e mãe são cúmplices nos jogos de esconde-esconde da feminilidade, cuja estranha função é esconder justamente o que não está lá. Os meninos mentem sim, mas mentem sobre um atributo que possuem, já as meninas mentem sobre o que não possuem: a base dessa cumplicidade é bem mais frágil. Elas podem trair uma a outra em causa própria. Cada uma delas sempre mantém a esperança secreta de enganar melhor (que a mãe, em primeiro lugar) nesse jogo que faz do charme, da sensualidade, do próprio corpo bem escondido e bem revelado o fetiche da mulher. Fetiche com que ela concorre com outras mulheres para enganar um bobo fetichista. É quando o menino, recém-reingresso na genitalidade (a estreia foi no Édipo, lembrem-se), está preste a se conformar com o amor de uma castrada, que a menina pré-adolescente lhe aparece como reedição, revista e melhorada, da mãe fálica a que ele foi forçado a renunciar. E e que se pensava esperto, cai. É a vez da menina se vingar. Ela já sabe agora que se quiser proteger seu narcisismo, se quiser se proteger do desprezo, dessa vez, tem que “renu ciar a ser em troca de parecer”.[21] Assim, às custas do próprio desejo, ela derruba o anti-ídolo fálico do pedestal para desdenhá-lo, suplicante a seus pés. A indiferença feminina é um truque. Ela faz o menino pagar seus pecados, mas o preço mais alto ainda é ela quem paga: o preço da renúncia ao prazer sexual.

Deste ponto em diante, a sorte está lançada. Meninos e meninas já dominam seus truques, em estilos diferentes, para de alguma forma defender o narcisismo e iludir a castração. Deste ponto em diante homem e mulher seguirão se encontrando e se desencontrando pela vida, procurando um no outro o que lhes falta mas sempre temendo ver, espelhada na diferença, a extensão dessa falta. O amor e o desejo seguirão dominando a vida psíquica com sentimentos ambivalentes de esperança e dor, angústia e alegria, impulsionados pelas correntes contrárias que fundam o núcleo de perversão: a que sabe e a que não quer saber; a que busca contato e a que evita, ou interpõe entre as duas superfícies que procuram se fundir os filtros protetores da fantasia. Se temem o contato é porque de alguma forma o amor fere. Se mesmo assim continuam buscando contato, é que o amor também cura.

Deste ponto em diante estamos tratando de homem e mulher que dominam os truques da sedução. Se vão seduzir para o amor ou fazer da sedução eterno jogo histérico de aproximação-e-esquiva, de evitação do amor, só a história pessoal e intransferível da vida de cada um vai dizer. A sedução não é igual à conquista amorosa. A sedução para o amor é promessa que pretende se cumprir: o amoroso quer se dar. A sedução pura e simples é promessa destinada a frustrar: o sedutor promete uma espécie de volta à infância feliz, promete refazer o narcisismo ferido do outro — mas pra isso ele começa lembrando sua presa como dói a ferida. Só depois ele “mente” que pode fazer voltar o tempo até o paraíso perdido, quando ainda não havia perdas nem rupturas. Pra isso o sedutor em primeiro lugar tem que mentir a si mesmo — e depois sobre si mesmo. Ele tem que se manter defendido, narcisista, para então se oferecer como representante deste paraíso: ao lado dele(a) não existe castração.

O homem procura mentir que deseja, mas não ama; em último caso, ainda procura manter a independência do desejo diante do amor. “Eu amo uma, mas desejo todas” — é assim que ele se protege da carência e mantém fálico seu órgão sexual, representante do que ele possui em excesso, a energia do desejo, e não do que lhe falta. O homem sedutor escolhe a mulher como aquela que merece ser brindada com seu falo — ele a faz acreditar que é melhor que todas. Para isto, como bom dom Juan, o sedutor precisa de currículo. Para que possa dizer: “eu tive essas todas, se quiser posso ter outras tantas — mas minha lista parou em você”.[22]

Mas ele se arrisca pouco. Antes de oferecer à mulher o brinde do seu desejo, ele a desnuda com olhar de experiente: “eu sei o que você quer”, e assim reabre a ferida conhecida da mulher, como se pudesse ver o que ela tenta esconder. A frase seguinte seria “eu tenho o que você quer”; a que qualquer mulher responderia com o clássico ar de ofendida (“cafajeste”!) se o sedutor não mentisse um pouco além. Porque depois de ferir o narcisismo da sua eleita ele oferece, além do falo (quem disse que o sedutor escolado não conhece, de sua parte, os truques da indiferença feminina?), o teatro de seu próprio colapso narcisista ante as prendas e dotes da amada. A velha piada do “você é a nora que a mamãe pediu a Deus” é mais que uma piada. Entre a “mamãe” e a eleita há uma lista de preteridas; o sedutor, que acabou de nivelar esta mulher a todas as mulheres — todas castradas, isso ele sabe e diz que sabe —, agora a promove acima de todas: depois da mamãe só existe ela, as “outras” são todas iguais.

É assim que a sedução masculina (re)constitui uma narcisista. Se ela não é fálica, ele é: e ao escolher esta, entre todas as outras ele refaz, no imaginário da mulher, a possibilidade de restauração da antiga unidade com a antiga mãe fálica. Por absurdo que pareça, no inconsciente feminino o sedutor também ocupa o lugar de outra mulher, a mãe da primeira infância, a mãe do espelho, a que dizia ao bebê: eu sei quem você é, você é esta, a mais linda, você é esta para o meu desejo. A mulher seduzida é recapturada em seu antigo espelho. Ela é passiva, já não fala mais por si: é o sedutor quem lhe diz muito mais do que ela sabe sobre si, como se ele dissesse: você é o Ego Ideal do meu desejo.

Ao mesmo tempo (ainda no imaginário), não mais no papel de mãe e sim enquanto macho (pai), ele a faz triunfar sobre as outras, viver por um momento a glória de conseguir, aos olhos dele, aquilo que ela passou toda a vida tentando: enganar melhor e ser, portanto, eleita.

E ainda assim a mulher seduzida vive seus dias de glória angustiada. Ela sente a iminência da perda o tempo todo — por quê? Porque está apaixonada. Parece-lhe impossível mentir por mais tempo, esconder por mais tempo do exigente dom Juan a carência, a falta que vai transformá-la em “mais uma” da lista. Ela já foi ferida uma vez e não pode evitar que ele saiba, mais cedo ou mais tarde, no momento em que ela se entregar. Ela vive seus dias contados, no fio da navalha: entre o controle e o gozo. Se souber “se controlar” ainda tem uma chance — mas se escolher o gozo (e quem resiste?), a entrega, se aceitar finalmente o convite para a volta à infância que o outro oferece, “sabe” que está na iminência de (re)viver a perda e o abandono. De ter que depois refazer o caminho de volta ao encontro da sua identidade verdadeira, desnorteada pela segunda vez (ou pela vigésima?) pela confusão que o sedutor promoveu entre o Ego Ideal e o Ideal de Ego. À mulher seduzida — e abandonada — só resta o difícil caminho de recuperar o conhecimento de si mesma, que o sedutor lhe roubou.

Se o homem sedutor constitui uma narcisista, eu diria que a mulher sedutora constitui um perverso. Oferece ao seduzido a sua indiferença e ao mesmo tempo se recobre de todos os fetiches da feminilidade: ela é a própria (re)negação da castração. Qual a mentira da mulher na sedução? Que ela não deseja, mas se faz desejar. Que ela possui os atributos desejáveis da feminilidade mas não pede nada, pois “nada lhe falta”. Ela até pode “dar” o que lhe sobra, mas não precisa do que ele oferece: ela fere a pretensão fálica masculina para se oferecer sutilmente como possibilidade de cura — pois quem conseguir conquistá-la está salvo.

A mentira é a mesma: “ao meu lado, benzinho, não existe castração”; mas a Mulher tem que usar outro truque pra mentir: os fetiches da feminilidade. O homem sedutor pode usar outros fetiches — dinheiro, poder, força física, etc. —, mas no tem que esconder nada sexualmente, ele possui mesmo o falo universal da infância para oferecer a quem quer seduzir. A mulher sedutora tem que aliar seus truques fetichistas à recusa sexual (no mínimo, a recusa de seu desejo) se quiser se manter no lugar da mãe fálica no inconsciente masculino. Ao recusar, se torna duas vezes poderosa: uma pelo “mistério” que não deixa desvendar; outra pela auto-suficiência que aparenta, questionando diretamente a auto-estima que o homem centraliza em sua potência sexual. “Eu não preciso do que você tem” é a mensagem que estimula diretamente a velha fantasia infantil de que então, em algum lugar, a mulher tem também.

Se o homem sedutor faz da mulher um bebê passivo aprisionada diante do espelho de suas bajulações, a mulher sedutora, com sua indiferença bem calculada, transforma sua vítima num menino priápico, hiperativo, empenhando todos os recursos de suas pobres façanhas masculinas na conquista daquela que agora parece a única capaz de lhe devolver a auto-estima perdida, a única merecedora de receber todo amor que um dia ele dedicou à mãe fálica. A angústia de castração que ela promove com seu desdém vingativo (não vamos nos esquecer de que num outro momento da vida ela também foi desprezada) só pode ser aplacada, para o seduzido, com a (re)conquista da mãe fálica que ela representa: “Andei sobre as águas / como são Pedro / Como Santos Dummont / fui aos ares sem medo / fui ao fundo do mar / como o velho Piccard / só pra te seduzir / só pra te impressionar…”.[23]

O homem sedutor faz da mulher bebê-narciso nos braços da mãe e ao mesmo tempo lhe oferece, no sexo, as evidências da diferença, da não-unidade entre eles dois. A mulher sedutora promove no homem a angústia de uma castração que ele já viveu e ao mesmo tempo se oferece como possibilidade de renegação de toda a castração, se ele souber conquistá-la.

É o detalhe deste ao mesmo tempo que prenuncia, para o seduzido, o naufrágio da sedução. O sedutor lhe oferece a possibilidade de esquecer o que ele sabe por experiência. O seduzido já sabe que o que lhe é prometido não está lá, já viveu, de um modo ou. de outro, esta perda. Pressente, no mistério que mantém o sedutor, que algo lhe escapará: o controle de si mesmo/o conhecimento de si mesmo. O que ele(a) sabe de mim que eu não sei? O que ela(e) esconde de mim que eu sabia e já não percebo mais? Refazer-se como pleno objeto idealizado do desejo alheio (a promessa da sedução) é perder um conhecimento de si mesmo, das próprias limitações e atributos, que já se pagou preço alto para conquistar. O seduzido se angustia porque sente que está perdendo outra vez o ser da sua experiência em troca do ser da idealização alheia: “Ah, se eu pudesse entender o que dizem os teus olhos!”[24]

Mas ainda assim ele sai dessa experiência com mais chances do que o sedutor. Sai ainda mais desiludido do que entrou: mais consciente de sua vulnerabilidade. Se não se deixar encantar muito tempo pelas vantagens secundárias do ressentimento, o seduzido-e-abandonado terá boas chances de curar seus males numa relação de amor: o amor que lhe dirá não a partir de idealizações prévias, mas a partir da intimidade, da convivência, da troca, aquilo que a sedução lhe fez perder — a noção de quem, de fato, ele é.

Já o sedutor, enquanto não falhar em sua crescente acumulação de troféus, tem menos sorte. Sua grande oportunidade é através da depressão — mais dia, menos dia ele pode se cansar de sustentar seu narcisismo com mentiras que, afinal, ele também já sabe (mesmo que no inconsciente) que devem falhar. Ele também “conhece” aquilo que renega tão ativamente; ele também se esvazia em relações estéreis onde evita fobicamente alguma troca verdadeira para poder se manter no papel. O sedutor tem ainda muito mais medo que o seduzido, medo de um desconhecido fantasmático que ele se empenhou a vida toda em desconhecer, perversa ou narcisicamente — mas também está sujeito à carência, à tentação de se entregar. Um dia ele erra uma pirueta, cai do trapézio e encara o chão lá embaixo, através da frágil rede que o sustenta. Um dia ele se deprime e vai sentir, como o seduzido, necessidade de saber quem de fato ele é para além das cambalhotas com que mantém entretida a plateia. Pois o sedutor, não se esqueçam (e não só a mulher, neste caso), é aquele que passou a vida renunciando a ser, em troca de parecer.

Uma palavra final para os jogos de sedução recíproca dos apaixonados. Os jogos de esconde-esconde com que os apaixonados excitam mutuamente a curiosidade um do outro e ao mesmo tempo permitem satisfazer os restos dessa curiosidade infantil, curiosidade de crianças que um dia quiseram saber tanta coisa sobre o sexo, a vida, o amor, e foram “condenados” às soluções perversas pela falta de preparo dos adultos.

A paixão correspondida libera/evoca/permite a perversão. Os mil jogos de sedução dos amantes apaixonados excitam de novo a curiosidade infantil, polimorfa, perversa, contra a indiferença neurótica a que a chamada “vida adulta” tão frequentemente se reduz.

Os apaixonados se propõem charadas sobre a diferença e a identificação, os limites e alcances do amor. E se eu for outro? E se você não for essa que aparenta ser? E se nós dois trocarmos de lugar? Ou se fôssemos dois homens —ou duas mulheres? E se você for malvado? E se eu te fizer sofrer — até onde? até que ponto? Qual o limite — a dor? o incesto? o medo? acreditar de novo em Deus? cair na real? Trocaria as figurinhas da minha infância — todas! — com você. Depois disso, quem vai se importar conosco? Quem vai nos reconhecer?

E trocam de papel, e trocam de lugar. Se permitem brincar com uma certa isenção — a proteção que o amor do outro oferece — com as angústias da infância. Brincam com o perigo, refazem mistérios, encenam a sedução. Brincam de liberdade, os pares apaixonados — e esta brincadeira é quase de verdade.

[1] Linda flor (Ai, ioiô), modinha de H. Vogler, C. Costa, M. Porto e L. Peixoto.

[2] Eclipse oculto, Caetano Veloso, 1984.

[3] Poema dos olhos da amada, Vinícius de Moraes e Paulinho Soledade.

[4] Idem, ibidem.

[5] Menino do Rio, Caetano Veloso.

[6] Lacan: “Le stade du miroir comme constitutif de la fonction du je”, in Écrits, Paris, Seuil, 1968

[7] Nos próximos parágrafos devo repetir a teoria da passagem pelo Édipo quase da mesma maneira como está em meu ensaio em Os sentidos da paixão, mas tal passagem me parece indispensável para a compreensão do que se segue, pelo menos para os que não estão familiarizados com a teoria psicanalítica.

[8] Ai de mim, Copacabana, Caetano Veloso e Torquato Neto.

[9] Hugo Bleichmar, Introducción al estudio de Ias perversiones, Buenos Aires, Helguero, 1978. E também Freud, “Fetichismo” in Obras completas, Madri, Biblioteca Nueva, pp. 2993-7 (vol. 3).

[10] Tenho a impressão de que algum fetiche imaginário está inscrito em todas as formas de gozo dito perverso apoiada nas ideias de Bleichmar sobre o fetichismo; mas sinto necessidade de estudar mais este assunto para discuti-lo a fundo.

[11] Carolina Schlegel em carta a Schelling, 1800 — citada por Gerd Bornheim no artigo “A filosofia do romantismo”, in O romantismo, J. Guinsburg (org.), São Paulo, Perspectiva, 1978

[12] Novalis, “Bluetenstaub” (1798), citado por Gerd Bornheim no mesmo artigo.

[13] Linda flor, op. cit.

[14] Freud, “Sobre la sexualidad feminina” in Obras completas, Madri, Biblioteca Nueva, 1978, p. 3077, vol. 3.

[15] Piera Aulagnier, “A feminilidade e seus avatares” , in O desejo e a perversão.

[16] Freud, “Sobre la sexualidad feminina”, op. cit.

[17] Não vou abordar neste texto a psicose, caso em que nem o pai nem a castração chegam a se inscrever no inconsciente da criança por não terem lugar no inconsciente materno; na psicose, a criança não chega a ser separada da mãe pelo pai ou qualquer outro “terceiro” que desloque o desejo materno, mantendo, no imaginário, a unidade narcísica com ela.

[18] A homossexualidade feminina é abordada brilhantemente por Joyce McDougall no texto “Cena primitiva e argumento perverso”, in Em defesa de uma certa anormalidade, Porto Alegre, Artes Médicas, 1983.

[19] A descrição das defesas narcisistas típicas do homem e da mulher está no texto de Piera Aulagnier, op. cit.

[20] Kalu, baião de Humberto Teixeira.

[21] Expressão de Piera Aulagnier, op. cit.

[22] Ouvi pela primeira vez ideias sobre a eficiência de dom Juan e sua “lista” de seduzidas em palestra de Chaim Katz em 1981, Rio de Janeiro.

[23] Andei sobre as águas…, samba de Paulo Vanzolini

[24] Este teu olhar, Carlos Lyra.

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