2005

Muito além do espetáculo

por Maria Rita Kehl

Resumo

A cultura contemporânea é uma cultura da imagem, cujo predomínio sobre a palavra, oral ou escrita, é demonstrado de maneira exemplar pela presença da publicidade e da televisão na vida cotidiana. Ora, o imaginário é o registro psíquico do corpo, onde se fundam a um só tempo o narcisismo e as ilusões de identidade individual, fortalezas onde se ancora o ser (cujo fundamento é certamente imaginário) do homem moderno. A cultura do narcisismo é, a um só tempo, condição e sintoma do fato de vivermos em sociedades em que as bases do laço social são construídas pela via do imaginário. Ora, o individualismo narcisista afirma-se continuamente a partir da exclusão do outro. O paradigma desta relação pode-se resumir na frase: ou ele, ou eu (e não, por exemplo, ele e eu). Ora, o esquecimento da dimensão coletiva de nossa existência é justamente a condição de nossa alienação em relação às demandas dos discursos do Outro, que se tornam imperativos rigorosos do superego veiculados, por estranho que possa parecer, antes de mais nada pela publicidade. Imperativo de gozo, alienação, narcisismo: estão dados os fundamentos que fazem da cultura contemporânea uma cultura violenta.


O tema escolhido por Adauto Novaes para mais um ciclo de conferências da Artepensamento não poderia ser mais atual. Em primeiro lugar, a expressão “muito além do espetáculo” parece questionar se a ideia do filósofo Guy Debord,[1] de que vivemos em uma sociedade do espetáculo, ainda é válida hoje, quando a cultura da televisão e da publicidade vem sendo rapidamente substituída pela da internet, dos games on-line, do sexo virtual. As novas tecnologias introduzem um novo paradigma? Ou são apenas uma intensificação das mesmas condições que caracterizam a sociedade do espetáculo?

A velocidade vertiginosa em que novas tecnologias de mídia eletrônica são lançadas no mercado, cada qual com a pretensão de tornar obsoletas todas as anteriores, faz com que muitos teóricos dessa área considerem também obsoletos os conceitos utilizados para pensar a sociedade contemporânea. Não compartilho da crença nessa obsolescência dos conceitos. Por um lado, ela me parece um efeito de alienação: sentimos que nossos recursos críticos ficam obsoletos na medida em que a propaganda dos poderes da tecnologia faz com que acreditemos que cada nova invenção é realmente capaz de arrasar todo o passado e nos projetar em direção a um futuro absoluto. Nós, pensadores e críticos da sociedade contemporânea, somos também presas desse temor de nos tornarmos obsoletos, de ver as categorias de nosso pensamento ser ultrapassadas pela velocidade das inovações tecnológicas.

Por outro lado, não devemos nos esquecer de que uma das características da modernidade, que se exacerbou em nossa hipermodernidade,[2] é justamente o fato de que diferentes temporalidades, marcadas por diferentes modos de inserção dos indivíduos no laço social — recursos materiais, formações ideológicas, referências culturais, etc. —, convivem sem se anular. Essa imensa tolerância das sociedades hipermodernas não é, como parece, uma abertura para o novo, e sim prova do triunfo do individualismo de mercado. Diferentes manifestações do mesmo convivem pacificamente no mundo contemporâneo sob uma mesma forma dominante: a forma mercadoria.

Nesse sentido, eu não diria que o conceito de cultura de massa esteja superado, por exemplo, embora talvez já não represente a forma predominante da cultura contemporânea. Ainda existem as massas, que talvez já não ocupem mais o espaço público na forma da adesão a grandes comícios e convocações de líderes políticos ou religiosos, tal como analisadas por Freud e Canetti. As massas de hoje mobilizam-se automaticamente quando convocadas a se reunir sob a batuta dos DJs de grandes shows musicais patrocinados por marcas publicitárias: Skol Beats, Tim Festival, Hollywood Rock. Não seguem ordens de um führer, o que não deixa de ser um avanço, mas perseguem com igual fanatismo o fascínio das marcas.

Também as mercadorias da indústria cultural adorniana ainda circulam, demarcando os modos de inserção social dos indivíduos isolados e anônimos; elas convocam as massas ao consumo oferecendo amparo à insegurança que a própria sociedade de massas produz. Os grandes meios de comunicação, entre os quais se destaca a televisão comercial, que, por suas peculiaridades técnicas e econômicas, precisam dirigir-se ao maior número possível de pessoas, constituem uma massa no momento da recepção de suas imagens.

É a imagem (televisiva, publicitária, jornalística etc.) que constitui a massa no instante da recepção, pois, para atingir as multidões em sua diversidade e em sua complexidade, precisa fazer tabula rasa das diferenças. As imagens e enunciados característicos da cultura de massas precisam ser os mais vagos, os mais genéricos, os mais vazios[3] possíveis, para nivelar todos os espectadores sob um denominador comum que os mantenha ligados na programação comercial das emissoras de tevê e de rádio, nas chamadas das capas de revistas e, sobretudo, nos apelos publicitários onipresentes nas ruas de todas as cidades. São essas imagens (ainda quando sejam construídas com palavras) que apelam a um conjunto indiferenciado de pessoas, anulando as diferenças pela via das identificações e apagando o lugar e as condições de sua enunciação. Imagens enunciadas por “ninguém” e dirigidas a “todos” são hoje o principal produto da cultura de massas.

O problema maior da cultura de massas é o imperativo mercadológico que a sustenta. É ele que diferencia o “bom” e o “mau” produto cultural, de acordo com critérios de audiência e lucro. É ele que impõe uma lógica tirânica, excluindo todas as experiências e expressões pouco rentáveis de circulação, sob o imperativo da novidade predominante na sociedade contemporânea, que mascara uma extrema intolerância a tudo o que não se rege pela dinâmica veloz do consumo.

Nesse sentido é que também continua válido o conceito de sociedade do espetáculo; a circulação veloz e abrangente das imagens/mercadorias nos faz ver que o espetáculo segue a todo o vapor, recobrindo todo o planeta com imagens sedutoras, cuja forma predominante e mais eficiente em matéria de produção de subjetividade é a imagem da marca publicitária.

ALÉM DO ESPETÁCULO, AINDA O ESPETÁCULO

A formulação “muito além do espetáculo” nos provoca, pois questiona o que pareceria óbvio: o que se situa além do espetáculo deveria ser a vida. Mas, em nossa sociedade, a vida não está além do espetáculo. O espetáculo abarca toda a superfície da vida. Foi o que o filósofo Guy Debord escreveu em 1967, antecipando os efeitos da expansão da televisão, veículo privilegiado da indústria cultural nas sociedades ocidentais: há quase quatro décadas, Debord já escrevia que a vida contemporânea é toda mediada pelo espetáculo. Mas não qualquer espetáculo; a dimensão do espetáculo, hoje, não se compara, por exemplo, ao papel catártico da tragédia grega ou do circo romano. “Nosso” espetáculo abarca toda a extensão da vida social, porque se traduz na forma de imagens industrializadas; imagens que são mercadorias, portanto, funcionam socialmente como fetiches.

A mais velha especialização social, a especialização do poder, encontra-se na raiz do espetáculo. Assim, o espetáculo é uma atividade especializada que responde por todas as outras. É a representação diplomática da sociedade hierárquica diante de si mesma, na qual toda outra fala é banida. No caso, o mais moderno é também o mais arcaico.[4]

Na sociedade espetacular, a “mais velha especialização do poder” expande-se a ponto de abarcar todas as relações entre os homens. O que é um outro modo de dizer que todas as nossas relações, hoje, são mediadas pelo fetiche da mercadoria/imagem.

A definição mais simples do fetichismo da mercadoria é a de que ele é resultado de uma operação que oculta, sob a aparente equivalência objetiva das mercadorias, as diferenças — sob as formas de dominação e exploração — entre os homens que as produziram. Cada mercadoria que circula no mundo capitalista e que pode ser trocada por outras, equivalentes em seu valor — equivalência que veio a ser simbolizada pela mercadoria mais abstrata de todas, o dinheiro —, traz em si mesma a história de um capitalista e de um operário; de um que comprou a força de trabalho e de outro que a vendeu sem saber ao certo o quanto de seu tempo estava sendo cedido à reprodução do capital. A riqueza que a mercadoria concentra é extraída do tempo de vida que um sujeito, despossuído de qualquer outro bem, teve de entregar “livremente” ao capitalista para garantir sua sobrevivência, e assim continuar vendendo seu tempo e produzindo mais mercadorias.

O brilho da imagem/mercadoria tem o poder de encobrir o conflito que existe em sua origem. Ou a relação (de exploração) entre pessoas, estabelecida no processo de sua produção. O que também são maneiras de encobrir a dimensão da falta, inerente à condição humana. Só que, na sociedade das imagens, não só o trabalhador é explorado na produção da imagem. Nós, espectadores e consumidores, também contribuímos inconscientemente para sustentar o brilho das imagens.

Nossa alienação é semelhante à do operário analisado por Marx: uma parte de nosso tempo de vida é cedida à acumulação do capital, pela via do consumo das imagens, sem que nós tenhamos consciência disso, ou seja, uma parte de nosso tempo de vida é cedida para a acumulação do capital, pela via do consumo das imagens, enquanto nós pensamos que estamos apenas nos divertindo e usufruindo do “excesso” de liberdade de escolhas que nos é oferecido. Não nos damos conta de que todas essas escolhas são a mesma escolha, e que nossa liberdade se limita à liberdade de nos deixar seduzir pela paixão da servidão. A alienação, no modo de produção do capitalismo avançado que é, predominantemente, produção de imagens, abarca a todos na medida em que as imagens convocam a todos, sem exceção.

O apelo das imagens publicitárias dirige-se a um cidadão genérico; no dizer de Eugênio Bucci, o personagem/sujeito da publicidade é um sujeito “automático”, que se acredita único, especial (este é o discurso da publicidade), ao mesmo tempo que está identificado com todos os outros que se identificam com a mesma imagem. Ele é ao mesmo tempo um indivíduo nomeado como único e, sob o apelo genérico que o torna substituível por qualquer outro consumidor, não é ninguém.

Há uma passagem do texto de Theodor Adorno sobre a indústria cultural, escrito vinte anos antes do livro de Debord, que ilustra bem o que quero dizer:

O princípio impõe que todas as necessidades lhe sejam apresentadas como podendo ser satisfeitas pela indústria cultural, mas, por outro lado, que essas necessidades sejam de antemão organizadas de tal sorte que ele se veja nelas unicamente como um eterno consumidor, como objeto da indústria cultural.[5]

O que Adorno antecipa, aqui, sobre o que vai ser desenvolvido de maneira radical no texto de Guy Debord, é o efeito da produção de mercadorias culturais (ou espetaculares) sobre a subjetividade. Estes sujeitos cujas necessidades já são organizadas pela indústria cultural de modo que sua demanda de satisfação volte-se sempre para os objetos que esta mesma indústria lhes oferece, estes sujeitos, que se reconhecem socialmente apenas como consumidores, não percebem que são, também eles, inseridos na vida social como objetos.

Para Adorno, a passividade é uma das características mais marcantes da condição subjetiva dos homens sob o domínio da indústria cultural. Também para Debord, os sujeitos contemporâneos estão todos submetidos à lógica do espetáculo.

O caráter fundamentalmente tautológico do espetáculo decorre do simples fato de seus meios serem, ao mesmo tempo, seu fim. É o sol que nunca se põe no império da passividade moderna. Recobre toda a superfície do mundo e está indefinidamente impregnado de sua própria glória.[6]

Podemos entender as passagens desses dois autores como indicações de que o consumo dos objetos da indústria cultural, sob a forma predominante do espetáculo, inclui-nos a todos em um mesmo processo de alienação.

A alienação, conceito comum às teorias de Marx e Freud, diz respeito à impossibilidade de os sujeitos (agentes produtivos em um caso, psíquicos em outro) alcançarem o processo que está na origem do que os subjetiva. Em Freud, a alienação diz respeito à condição humana. A transformação do infans em sujeito decorre de seu atravessamento pela dimensão da linguagem, que o ultrapassa desde a origem. O sujeito freudiano nunca é senhor de si, nunca está de posse das condições de sua existência, que é por definição uma existência no laço social.

Em Marx, os trabalhadores, sob o modo de produção moderno, supostamente livres para negociar a venda de sua força de trabalho, não sabem que consentem em ser expropriados de uma parte de seu tempo de trabalho a favor do lucro do capitalista. Essa forma de alienação expande-se, na sociedade do espetáculo, de modo que abarque também a posição dos consumidores de mercadorias, o gozo que o espetáculo nos oferece não nos pertence, ele é cedido (alegremente!) à lógica que rege a acumulação do capital. O espetáculo é a positivação desse acontecimento abstrato (fase invisível do poder) que é a acumulação de capital. Ele torna o engajamento subjetivo cada vez mais consistente, na medida em que é cada vez mais inconsciente.

O outro engano a que nos entregamos, seduzidos pelo fetiche da mercadoria, é a ilusão de que vivemos em uma sociedade rica. Mas a quantidade de mercadorias em circulação não é igual à riqueza social. A riqueza, para Marx, não se mede pela quantidade de produtos (valores de troca) em circulação, e sim pela expansão das forças e capacidades humanas que uma sociedade é capaz de promover. A mercadoria encobre o empobrecimento humano que o capital produz. Faz-nos esquecer a riqueza social que se perde no mundo capitalista.

Duas afirmações de Guy Debord ajudam-nos a compreender melhor a relação entre a expansão do capital, a alienação e o empobrecimento humano:

O espetáculo na sociedade corresponde a uma fabricação concreta da alienação. A expansão econômica é, sobretudo, a expansão dessa produção industrial específica.[7]

O homem separado de seu produto produz, cada vez mais e com mais força, todos os detalhes do seu mundo. Quanto mais sua vida se torna produto, mais ele se separa da vida.[8]

Há uma categoria de profissionais que trabalham para produzir identificação entre a abundância de mercadorias e a plenitude da vida do espírito. As propriedades do fetiche retornam dos objetos, investidas sobre os corpos de alguns humanos — ou melhor, para as imagens de alguns corpos humanos Os operários dessa fábrica de esquecimento são os ídolos de massa: suas imagens são mercadorias dotadas do máximo valor de fetiche. O trabalho dos ídolos de massa consiste em viver uma vida glamorosa (tão empobrecida quanto a de todos nós) e oferecer seu mais-valor de humanidade para nosso consumo em forma de imagem. Quanto mais banais se tornam os homens comuns, mais espetacular é a representação da vida que a indústria do entretenimento lhes oferece.

A vedete do espetáculo, representação espetacular do homem vivo, ao concentrar em si a imagem de um papel possível, concentra, pois, essa banalidade.[9]

Como vedete, o agente do espetáculo levado à cena é o oposto do indivíduo, […] Aparecendo no espetáculo como modelo de identificação, ele renunciou a toda qualidade autônoma para identificar-se com a lei geral de obediência ao desenrolar das coisas. [10]

A função dos ídolos de massa na sociedade do espetáculo é viver o simulacro de uma vida plena que nos é continuamente roubada, como se não fossem, eles também, alienados nela. “O consumo alienado torna-se para as massas um dever suplementar à produção alienada”.[11]

Assim é que a sociedade do espetáculo vive obcecada pela fama. O espetáculo promove a afirmação da vida humana como visibilidade: existir, hoje, é “estar na imagem”, segundo uma estranha lógica da visibilidade que estabelece que, automaticamente, “o que é bom aparece / o que aparece é bom”. Nem mesmo nossos breves momentos de revolta escapam ao fascínio da imagem, de modo que as condições de mudança da vida social parecem completamente apartadas da ação dos sujeitos. “À aceitação dócil de tudo o que existe pode juntar-se a revolta puramente espetacular: isso mostra que a própria insatisfação se tornou mercadoria.[12]

O que essa lógica da visibilidade exclui da vida social? Tudo aquilo que não se dá a ver, mas é parte essencial de nossa humanidade: a falta, o enigma, o campo simbólico, que são exatamente as condições do pensamento. A sociedade do espetáculo não reprime o pensamento, mas torna-o dispensável; a exclusão dessa condição essencial da subjetividade deixa os homens desamparados, desgarrados de uma dimensão essencial de si mesmos.

Os indivíduos anônimos, isolados entre si e separados dos produtos de seu trabalho — o que é um modo de ser separados de uma parte essencial de suas vidas — buscam amparo na referência onipresente dos produtos da indústria cultural. A lógica do mercado, na hipermodernidade, fala mais alto do que a do Estado, da Igreja, da tradição. A isso devemos, em parte, as condições de nossa liberdade, mas também de nosso desamparo e de nossa alienação: já não sabemos onde está o Senhor que nos escraviza. Gilles Lipovetsky, em entrevista à Folha de S.Paulo, refere-se a “um sentimento de excrescência, de ultrapassagem dos limites, em que as coisas caminham cada vez mais rapidamente porque os limites da tradição — Estado, religião — se perderam”.[13]

Esse sentimento de desamparo e ultrapassagem dos limites conhecidos é justamente o que sempre levou os agrupamentos humanos a inventar seus mitos, de modo que sejam dotadas de sentido as novas formas da ordem social. Ocorre que nossos mitos hoje são produzidos industrialmente, ou hiperindustrialmente. Para onde quer que se voltem os homens, na sociedade do espetáculo, hão de deparar sempre com imagens que buscam representá-los para si próprios. A cultura deixa de ser referência de alteridade para tornar-se espelho do que nos é mais íntimo e familiar — só que essa familiaridade vem-nos de fora da subjetividade, fora das relações com nossos semelhantes. Vem-nos de nossa relação com as coisas, com as marcas dos produtos, com as mercadorias, de modo que, quanto mais confortáveis nos sentimos nesse mundo conhecido, mais fundo mergulhamos na alienação e no desamparo.

Esse é o desamparo do trabalhador expropriado de seu tempo de vida, assim como o do consumidor expropriado de suas referências, já que o espetáculo apaga a relação com o tempo (no sentido da história.) e com a origem. Também é este o sentimento de inutilidade dos homens como agentes da vida social; no mundo em que tudo é presente, tudo é novo, tudo é imediato, as tentativas de modificar a ordem social podem ser rapidamente absorvidas como mais uma “novidade” interessante e divertida, “mais do mesmo” a conservar o que Debord chamou de inconsciência das mudanças das condições de existência.

Em resposta a essa passividade, é inútil exagerar a intensidade de nossas manifestações de descontentamento, pois nesta sociedade tudo é “híper”, como escreve Lipovetsky. O espetáculo alimenta-se das intensidades, a violência não lhe é hostil, nem estranha. Ao contrário, a violência é o combustível e a cocaína que abastecem o show business — por isso os sujeitos/espectadores estão cada vez mais adaptados a ela. Sob o império do gozo, mal nos damos conta da violência que se encerra na proposta de uma vida de hiperdiversão, toda voltada para a novidade, a ultrapassagem dos limites, a eterna juventude.

A cultura do excesso ultrapassa os indivíduos e ameaça a todos de rápida obsolescência. Só as mercadorias, em sua juventude renovada, protegem o consumidor contra a velhice, a caduquice, a insignificância, o esquecimento. Voltemos a Debord:

Onde se instalou o consumo abundante, aparece entre os papéis ilusórios, em primeiro plano, uma oposição espetacular entre a juventude e os adultos: porque não existe nenhum adulto, dono da própria vida, e a juventude, a mudança daquilo que existe, não é de modo algum propriedade desses homens que agora são jovens, mas sim do sistema econômico, o dinamismo do capitalismo. São as coisas que reinam e que são jovens, que se excluem e se substituem sozinhas.[14]

O ESPETÁCULO E A CENA INCONSCIENTE

Por fim, também nos vemos apartados de nosso próprio saber inconsciente, que é continuamente expropriado pelas técnicas avançadas das pesquisas de marketing e devolvido na forma de apelos publicitários. O inconsciente não é individual — como “discurso do Outro”, cena em que se representa o desejo que é “desejo do desejo do Outro”, o inconsciente forma-se no laço social. “O inconsciente é a política”, disse Lacan, à sua maneira provocativa e enigmática. Mas, como efeito da relação com o Outro, o inconsciente diz respeito aos sujeitos, um a um. O “sujeito do inconsciente” é exatamente esse que se manifesta em cada indivíduo, de maneira singular, fazendo com que ele, de um modo ou de outro (com ou sem o recurso a uma psicanálise), implique-se com as causas de seu desejo. Esse “saber inconsciente” é esteio da subjetividade. Quando a publicidade se apropria das representações do inconsciente e as devolve à sociedade na forma de enunciados objetivos, imagens sedutoras, propostas convidativas que parecem esclarecer o enigma do “desejo do Outro”, o inconsciente deixa de dizer respeito aos indivíduos, um a um. A subjetividade subordina-se ao espetáculo de maneira radical.

Todo esse desamparo favorece a adesão às formações imaginárias que se oferecem como suporte para “resolver” o enigma de nosso lugar na sociedade, de nosso valor como indivíduos, e do próprio sentido de sua vida. Nossa sociedade cética, que aparentemente não acredita em mais nada, acredita cegamente nas imagens que se oferecem como suporte para o ser. Nas palavras de Eugênio Bucci, somos a única civilização que acredita no que os olhos vêem.

Na sociedade hiperindustrial contemporânea, a dimensão simbólica do Outro é toda recoberta pelo imaginário produzido pela indústria do espetáculo. É essa produção que torna a ordem social não apenas suportável, mas, até onde isso é possível, desejável. Tornar desejáveis a opressão, a exploração e todas as formas de dominação é resultado das estratégias contemporâneas de socialização e inclusão na ordem social: não mais operam a partir de instituições repressivas e de uma moral que valoriza a renúncia ao gozo, mas pela sedução e oferta de gozo.

Nesse sentido devemos compreender a afirmação de Slavoj Zizek de que a ideologia não é uma falsificação da realidade, mas a própria realidade social subjetivada. A ideologia opera fazendo-nos desejar que as coisas sejam como são, ou impedindo-nos de imaginar que exista outro modo de viver. A ideologia não é uma falsificação da vida social, mas sua naturalização. O engano não está no modo pelo qual percebemos a vida, mas na convicção de que as coisas “são como são”, o apagamento da história e da compreensão simbólica das relações (abstratas) entre os homens nos faz perceber as condições do presente como eterna repetição de uma “natureza humana” transcendental e imutável. A vida contemporânea mediada pelo espetáculo apresenta-se aos indivíduos como uma ficção totalitária porque o espetáculo produz adesão inconsciente à ordem social que ele traduz em imagens. Este o sentido de nossa radical alienação, hoje: o inconsciente trabalha para os modos mais abstratos de reprodução e concentração de capital.

A eficiência do espetáculo não consiste em reprimir as outras falas, mas em torná-las indesejáveis, inconvenientes diante das promessas de gozo que o espetáculo não cessa de produzir. Por meio delas, o poder instala-se no coração dos homens. O título do livro mais recente de Slavoj Zizek, Bem-vindos ao deserto do real,[15] é uma frase tomada do filme Matrix, dos irmãos Wachowski. Lembra a passagem em que os protagonistas despertam da realidade virtual controlada pela Matrix, e encaram a realidade em que viviam sem saber. Ao se confrontarem com o “deserto do Real”, livres da ilusão em que estavam mergulhados, a reação dos heróis de Matrix não é de libertação: é de horror. Para Zizek, este é o paradigma da sedução operada pela ideologia: ela nos faz desejar a dominação e repudiar o alto preço cobrado pela liberdade. A contrapartida da eficácia da ideologia manifesta-se no que o filósofo denomina (com Alain Badiou) paixão pelo Real. Só que paixão pelo Real, a meu ver, não é o avesso da ideologia: é a força propulsora das formações imaginárias que recobrem todos os aspectos da vida que não podemos compreender. É precisamente do imaginário que se alimenta a ideologia. A violência da ideologia advém dessa totalização do imaginário como representação “fiel” do Real.

O GRANDE OLHO DA TELEVISÃO

Debord escreveu seu livro em plena era da expansão da televisão. Tomo a televisão como o mais importante meio da sociedade do espetáculo. Onisciente, onipresente, onipotente, ocupa na vida social o lugar que, até pouco mais de dois séculos atrás, era ocupado pela imagem de Deus. Se Deus ou os deuses foram, em todas as culturas anteriores à nossa, figuras imaginárias do Outro, capazes de unificar em torno de sua representação e seus desígnios as condições do laço social, hoje a sociedade é laica, muitas pessoas ainda acreditam em algum Deus, muitas religiões existem e até se expandem, mas Deus já não é UM, já não tem o poder de concentrar as representações imaginárias do Outro e dar consistência às determinações simbólicas da ordem social.

A tevê ocupa o lugar de Deus como emissora permanente de discursos que podem ser entendidos como um saber sobre o mundo, a vida social e os sujeitos em particular; por ser ao mesmo tempo doméstica e pública, ela estabelece uma ponte entre o público e o privado; é um veículo capaz de se dirigir a cada um e a todos, e de nomear o que deseja dos agentes sociais — que sejam consumidores, é claro. Além disso, que instrumento é mais eficiente para ficcionar diariamente a vida social do que a televisão? Doméstica como uma lâmpada, cotidiana como o pão, onipresente e onisciente como Deus, a televisão é tecnicamente capaz de fabricar, para cada fato da vida cotidiana, sua dose de fantasia. Nos créditos dos telejornais deveria estar escrito o que antigamente vinha estampado nas garrafas de coca-cola: “marca de fantasia”. A televisão produz mitos para a vida moderna na velocidade em que o McDonald’s produz hambúrgueres. Produz e reproduz ficção política com tal eficiência que se torna capaz de recobrir todo o campo de forças em que se jogam os interesses “reais” que afetam diretamente nossas vidas.

A tevê é de fato um grande olho que nos vê enquanto a vemos. Seus enunciados podem ser entendidos como formulações do desejo do Outro. Desse modo, participa da subjetividade desde a fonte, desde as primeiras articulações do desejo, que se formam em torno da pergunta sobre o desejo do Outro: o que (o Outro) quer de mim?

Uma prova curiosa de que a televisão ocupa no psiquismo um lugar equivalente ao lugar de Deus (como figura imaginária do Outro) é a frequência com que os delírios psicóticos persecutórios constroem-se em torno dos “superpoderes” da televisão. Nos hospitais psiquiátricos encontram-se internos que, nos momentos de surto, tentam destruir os aparelhos de tevê. Acreditam que os locutores dos telejornais lhes dão ordens, que os personagens das novelas os perseguem e as publicidades contêm mensagens cifradas que lhes dizem respeito. De certa maneira, estão certos: as mensagens — não cifradas, mas explícitas — da publicidade, de fato lhes dizem respeito não apenas enquanto consumidores em potencial, mas enquanto sujeitos do (desejo) inconsciente, ao qual elas se dirigem.

Apesar da diversidade dos programas televisivos, todas as emissoras comerciais são niveladas pelo discurso único da publicidade.

Para Fredric Jameson, “a televisão colonizou o inconsciente”. Podemos esquematizar essa colonização em três operações bastante claras. Primeira operação: ocupar o lugar imaginário do Outro. Segunda: enunciar o desejo do Outro como imperativo de gozo. Terceira: oferecer imagens que representem as representações recalcadas do gozo.

O sujeito que se reconhece no personagem publicitário capaz de abater a socos, no dia do casamento, os simpáticos convidados que ousaram sujar com tinta branca a lataria do seu Peugeot (ou qualquer que seja a marca) está diante da oferta de representações inconscientes, até então recalcadas (proibidas), autorizadas socialmente e tornadas positivas no discurso da publicidade. Ele trabalha para o espetáculo da propaganda na medida em que se reconhece nessas representações, mas não percebe que elas lhe foram expropriadas.

O MITO INDUSTRIALIZADO

Nesse ponto é possível estabelecer uma relação entre espetáculo e mito, promovendo um diálogo entre as ideias de Guy Debord e as de Roland Barthes.[16]

A genialidade de Barthes foi ter percebido a particularidade da relação entre a produção de mitos, as necessidades expressivas da sociedade e o poder, no contexto das sociedades industriais modernas. Barthes não define o mito moderno como uma narrativa; ele pode estar concentrado em uma frase ou mesmo em uma imagem. A imagem é até mais eficiente:

[…] a imagem é certamente mais imperativa do que a escrita, impondo a significação de uma vez só, sem dispersá-la. Mas isso já não é uma diferença constitutiva. A imagem se transforma numa escrita, a partir do momento em que é significativa: como a escrita, ela exige uma lexis.[17]

O que define o mito é seu poder de recortar um aspecto da realidade social de modo que lhe seja emprestada uma significação indiscutível. A matéria-prima da mensagem mítica pode ser uma foto, uma frase, uma marca. O que as diferencia é o recorte que lhes fixa o sentido. “[…] desde o momento em que são captadas pelo mito, reduzem-se a uma pura função significante: o mito vê nelas apenas uma mesma matéria-prima; a sua unidade provém do fato de serem todas reduzidas ao simples estatuto de linguagem”.[18]

Reduzidas ao “simples estatuto de linguagem”, as mensagens míticas ganham a capacidade de fixar um sentido imperativo e indiscutível, como se a verdade enunciada emanasse naturalmente de sua própria enunciação. A forma do mito afasta toda a riqueza — a diversidade, a história, as contradições — que preexiste ao momento em que um recorte da realidade foi transformado em imagem/linguagem. Para que tal efeito seja possível, é preciso que o significante do mito seja pleno e vazio ao mesmo tempo. Pleno de sentido socialmente atribuído — como o coração vermelho emprestado a tantas mensagens publicitárias — e vazio de especificidade, de história, de experiência social. Por isso ele se presta a condensar quaisquer significações, emprestando-lhes sempre o mesmo sentido, um sentido “universal” (o amor, a emoção), vago — tornado indiscutível, porém, pelo efeito das identificações que é capaz de promover.

Barthes define o mito moderno como uma fala “roubada”.

É que o mito é uma fala roubada e restituída. Simplesmente, a fala que se restitui não é a mesma que foi roubada: trazida de volta, não foi colocada no seu lugar exato. É esse breve roubo, esse momento furtivo de falsificação, que constitui o aspecto transpassado da fala mítica.[19]

A falsificação consiste na transformação do “sentido em forma”.

Mas as falas do mito foram roubadas de onde? Das falas emergentes, geradas pelas relações horizontais entre os humanos. Por quem? Pelos agentes do poder — no caso, o poder do capital, que não coincide necessariamente com o poder político. Para que este roubo se efetue, não é necessário que esses agentes do poder saibam, maquiavelicamente, o que estão fazendo. Sabem, apenas, que as falas emergentes numa sociedade expressam necessidades e anseios também emergentes, que ainda não encontraram seu “objeto” no campo da política. Assim, essas falas roubadas são restituídas a um outro lugar: o lugar dos códigos estabelecidos e “naturalizados”, que contribuem para estabilizar o laço social, dotando de consistência imaginária aquela parcela de renúncia exigida de cada sujeito que participa de uma sociedade.

É essa operação que nutre o espetáculo e alimenta a produção de imagens que representam nosso desejo para nós mesmos. As falas que compõem nossa mitologia são “roubadas” das práticas falantes que se estabelecem por ensaio e erro, tentando dar conta das “mudanças nas condições da existência”. Mas, acima de tudo, elas são expropriadas das formações do inconsciente.

Os mitos são, tradicionalmente, formações do inconsciente. Mas o sujeito do inconsciente, no caso das narrativas antigas, manifesta-se coletiva ou individualmente no seio da própria sociedade que produz o mito. Já no caso do mito industrializado, as técnicas de marketing, cada vez mais aperfeiçoadas e com o auxílio da teoria psicanalítica, “roubam” as expressões emergentes na sociedade e as devolvem na forma de imagens que convidam à identificação: “eu sou este que deseja o carro x”. O mito, na atualidade, é construído por uma classe de profissionais especializados no uso de técnicas capazes de detectar as formações do inconsciente de modo que elas sejam devolvidas a essa mesma sociedade na forma de imagens/mercadorias. É nessa operação que o consumidor de imagens se aliena.

Na sociedade hipermoderna a tecnologia da imagem torna o mito mais eficiente. As imagens têm mais poder de criar significação do que as palavras porque parecem a transposição direta dos fatos sem mediação da linguagem. O “efeito de real” criado pela imagem é mais convincente do que aquele criado pelas palavras. Além disso, a imagem é menos dialética, mais capaz de encobrir a contradição e apresentar a realidade social como se fosse unívoca, “preto no branco”. Nesse sentido, o espetáculo é, no dizer de Debord, “uma visão de mundo que se objetiva”. Mesmo nos casos em que as imagens sejam construídas com palavras.

É dessa forma que, na modernidade, o mito compõe a ideologia, no sentido de que colabora para naturalizar as determinações (humanas, históricas) da vida social. O mito contemporâneo, à diferença do que ocorria em sociedades pré-modernas, não promove a referência a uma fantasia da origem dos tempos que explicava e justificava a ordem presente. O mito hoje é uma produção contínua do presente, o apagamento da história das significações, que dessa maneira nos são apresentadas ingenuamente como “naturais”, como se emanassem da própria essência da vida. Parece contraditório que a sociedade do espetáculo, que depende da obsolescência acelerada de todas as representações, de todos os anseios e da própria ideia de origem, seja capaz de uma tal estabilidade no campo da ideologia. É que a produção contínua do presente, a obsolescência programada das mercadorias, do gosto, das modas e das representações produzem como pano de fundo o sentimento e a convicção de que todas as coisas são a mesma coisa. Se todas as trocas sociais seguem a lógica da circulação das mercadorias, as quais são todas medidas pelo mesmo equivalente simbólico — o dinheiro —, também entre nós todas as práticas, todas as falas, todas as representações se equivalem. Nossa paixão pelas “novidades” estéticas e tecnológicas lançadas dia a dia pela indústria do entretenimento funciona para apagar as diferenças, e não para acentuá-las.

Isleide Fontenelle, em texto apresentado no Seminário Margem Esquerda, na USP, referiu-se ao fato de que o léxico amoroso emprestou seu vocabulário ao apelo das mercadorias. Ela cita Melinda Davis, considerada uma das grandes pesquisadoras de tendências de consumo na atualidade, a qual concluiu que o marketing contemporâneo “precisa estabelecer uma relação emocional com o consumidor, já que o que se busca hoje são emoções, são satisfações intangíveis que produzem reações sensoriais”.[20]

O vocabulário da publicidade busca seus verbetes no dicionário da vida emocional. Quando voltam à origem — as relações entre as pessoas —, os vocábulos amorosos vêm contaminados pela lógica mercantil. Na verdade, o amor já é um significante bastante gasto. O léxico amoroso foi o empréstimo da subjetividade às propagandas “antigas”, isto é, dos anos 1950-1960. Produtos eram vendidos em nome do amor de mãe, de marido, de esposa. Não nego que o amor até hoje seja capaz de vender alguns produtos. Nesse ano de 2004 descobrimos que o frigorífico Sadia há sessenta anos está vendendo amor. O McDonald’s seduz clientes para seus hambúrgueres com base na declaração de adolescentes que dizem “amo muito tudo isso”. O apelo vago é proposital: pode-se preencher a expressão “tudo isso” com uma diversidade de imagens capazes de alcançar os mais diversos tipos de consumidor.

Mas o uso abusivo do apelo ao amor termina por enfraquecê-lo; hoje seu lugar majoritário está sendo ocupado, na publicidade, pelo apelo erótico. Do “eu amo” ao “eu desejo”, passamos rapidamente ao “eu gozo”, com a evocação de representações associadas às pulsões de morte. Em uma vertente irônica, os sete pecados capitais — gula, inveja, preguiça, ira, etc. — são eficientes promotores de vendas. No terreno das “reações sensoriais” evocadas por Melinda Davis — em que também se instaura o gozo —, temos da pura e simples “emoção” até significantes de “velocidade”, “adrenalina”, “excitação”, “novas sensações” e o singelo (a essa altura do campeonato) “prazer”.

No entanto, o desgaste dos significantes publicitários é apontado por Jeremy Rifkin:

O capitalismo enfrenta um novo desafio: não há mais nada a comprar… restam poucos valores psíquicos que se podem tirar ao se ter dois ou três automóveis, meia dúzia de televisores e aparelhos de todo tipo para suprir todas as necessidades e desejos possíveis. É nessa conjuntura que o capitalismo está fazendo sua transição final para o capitalismo cultural plenamente desenvolvido, apropriando não só os significadores da vida cultural e das formas artísticas de comunicação que interpretam esses significadores, mas da experiência vivida também(…)[21]

É verdade que na sociedade brasileira poucas pessoas têm “dois ou três automóveis, meia dúzia de televisores…”, etc., mas o que interessa no trecho citado acima é a constatação de Rifkin de que restam poucos valores psíquicos a ser explorados pela publicidade. O que ele quer dizer? Que o sujeito do inconsciente já foi todo virado do avesso, que todas as falas que representam os sujeitos já foram roubadas e transformadas na mitologia publicitária?

A indústria do espetáculo terá, daqui em diante, a tarefa de nos vender a possibilidade de constituir de novo um lugar para o inconsciente?

Algo semelhante já tinha sido detectado por Adorno, quando ele escreveu, sobre sua experiência de exílio nos Estados Unidos, que naquele país a dimensão da vida do espírito estava perdida porque tudo se tornou cultura. Constatação que não contradiz nada do que o filósofo já havia escrito sobre a indústria cultural. A saturação de mensagens, signos, estímulos estéticos, imagens fez com que a cultura deixasse de ser o campo da alteridade, do que faz exceção à banalidade do cotidiano. Nesse sentido os atuais pesquisadores de mercado detectaram que é preciso reinserir artificialmente a alteridade na cultura pela via da venda de “novas experiências”. Inconsciente e “cultura”, como duas manifestações do discurso do Outro, precisam ser reinventados na hipermodernidade.

Resta saber quem os inventará.

Notas

[1] Guy Debord, A sociedade do espetáculo (Rio de Janeiro: Contraponto, 1997).

[2] A expressão foi cunhada pelo filósofo Gilles Lipovetsky para sustentar, contra o conceito de pós-modernidade, a ideia de que ainda vivemos dentro dos paradigmas da modernidade, que não terminaram, mas simplesmente se intensificaram a partir das inovações técnicas e comportamentais iniciadas na segunda metade do século XX.

[3] Uma imagem vazia não é aquela que não expressa nada, e sim a que tenha uma forma tão abrangente e inespecífica, que comporte o maior número de significados possível. “O significante do mito se apresenta de uma maneira ambígua: é simultaneamente sentido e forma, pleno de um lado, vazio de outro”. Roland Barthes, Mitologias, trad. Rita Buongermino, Pedro de Souza & Rejane Janowitzer (São Paulo: Difel, 2002). Um coração vermelho, por exemplo, embora seja uma imagem, ao ser transformado em mito, torna-se significante vazio a ser preenchido de vários sentidos — no caso, todos de forte apelo afetivo —, associado a praticamente qualquer produto cultural.

[4] Guy Debord, A sociedade do espetáculo, cit., p. 20.

[5] Theodor Adorno, “A indústria cultural”, em Theodor W. Adorno & Max Horkheimer, Dialética do esclarecimento, trad. Guido Antonio de Almeida (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985), p. 133 (grifo meu).

[6] Guy Debord, A sociedade do espetáculo, cit., p. 17.

[7] Ibid.,p.24.
 Ibid., p. 25.

[8] Ibid., p. 25.

[9] Ibid., p. 40.

[10] Ibid., pp. 40-41.

[11] Ibid., p. 31.

[12] Ibid., pp. 39-40.

[13] Entrevista de Gilles Lipovetsky a Marcos Flamínio Peres, em Folha de S.Paulo, Mais!, São Paulo, 14-3-2004.

[14] Guy Debord, A sociedade do espetáculo, cit., p. 42.

[15] Slavoj Zizek, Bem-vindos ao deserto do real: cinco ensaios sobre o 11 de setembro (São Paulo: Boitempo, 2003).

[16] Roland Barthes, Mitologias, cit.

[17] Ibid., p. 201.

[18] Ibid., p. 205.

[19] Ibid., p. 217.

[20] Isleide Fontenelle, Humanidade espetacular: emancipação ou autodestruição virtual?, texto apresentado em seminário no Departamento de História da FFLCH-USP, São Paulo, 28 de maio de 2004.

[21] Jeremy Rifkin, apud Isieide Fontenelle, Humanidade espetacular…, cit., p. 11.

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