Novas afinidades eletivas
por Eugène Enriquez
Resumo
problema fundamental e atualíssimo: “na sociedade do cada um por si, do um contra o outro, o homem se ‘des-cultura’, ele se des-civiliza”. De fato, as sociedades que adotaram economias ultraliberais têm historicamente levado a um individualismo extremado de seus cidadãos, ou melhor, seus “consumidores”, já que o reconhecimento do indivíduo passou a ser medido segundo seu poder de compra. Nesse contexto de competição ilimitada, a figura do “matador cool” tem salvo-conduto; ele não elimina fisicamente seu oponente, mas está autorizado a lograr sua morte moral e psíquica. Outros modelos dessas sociedades, lembra-nos Max Weber, as chamadas “equipes” ou “trabalhos de equipe”, podem dar impressão da existência de vínculos pessoais entre seus membros, o que não passa de um simulacro diante da necessidade de se estabelecerem mutualismos visando exclusivamente melhor desempenho profissional e sucesso individual de seus associados. O amor e a amizade pedem o oposto, pois exigem certa doação de si. À des-civilização corresponde a desumanização; “para Hegel, o amor é o que torna o homem especificamente humano, já que é a expressão do desejo de um outro desejo, quer dizer, o desejo do reconhecimento.” Mas o terreno geralmente é hostil: diante da competição agressiva e constante, amar equivale a expor-se, é potencial indício de fraqueza segundo a visão dicotômica de winners e losers. Os prejuízos são grandes porque só vemos ser confirmada a relação que Freud estabeleceu: o aumento de condutas patológicas na ausência de amor e amizade. Parte da patologia contemporânea manifesta-se na disseminação do utilitarismo das relações, geralmente baseadas na satisfação imediata de desejos e na expectativa do que se possa obter do outro. Além do encorajamento de comportamentos narcisistas, somos constantemente levados a um imediatismo hedonista, de onde o mal-estar, o desconforto gerado pelo amor. Eis que “tanto o pensamento exigente quanto o amor autêntico são rechaçados em nossa sociedade, pois ambos são perturbadores”, ambos não nos servem de imediato, tampouco são fonte certa de bem-estar ou prazer e, por isso, foram destituídos de valor.
Por que evocar o amor, por que evocar a amizade, amor sublimado, ou seja, sem conotações sexuais, por que interessar-se por suas transformações e avatares, quando a maioria dos indivíduos considera que o campo das relações afetivas essenciais permanece, se não imutável, ao menos pouco passível de mudanças? É o que comprova o sucesso sempre atual de textos mais ou menos antigos que abordam essa questão, de Sêneca a Cícero, a Stendhal ou a G. Simmel. De fato, constatamos que muitos tomam como referência esses textos já canônicos, que parecem ter abordado todos os aspectos desses tipos de relações humanas e sociais e percorrido todo o leque de respostas possíveis.
Sem dúvida, diriam os primeiros, os espíritos magoados têm consciência de que nada mais variado e flutuante no tempo e no espaço quanto esses sentimentos. Recordam que na Idade Média o amor cortês – e falarei mais de amor do que de amizade – tornou-se uma das molas essenciais da sociedade europeia e um de seus signos da capacidade de idealização e de sublimação; que no século XVII o sentimento amoroso foi alçado aos píncaros pelas Précieuses que desenhavam a carte du Tendre; que no século XVIII foi ele a principal preocupação dos libertinos, obcecados pela conquista amorosa, assim como dos burgueses, que esperavam ter êxito tanto no casamento quanto nos negócios; que no século XIX o amor romântico só colocava em contato dois corações que se afinassem para além de todas as convenções e dos riscos de morte; e que no século XX, pelo menos segundo o sociólogo americano Talcott Parsons, o “romantic
love complex” foi um elemento importante no desenvolvimento do capitalismo, pois, afastados de seus locais e famílias de origem, os amantes podiam, então, partir em busca de trabalho nos territórios dinâmicos em que se desenvolvia a economia. Percebem também que as amizades profundas, definitivas, duradouras – como a de Montaigne e La Boétie – vão progressivamente ceder o lugar a uma multiplicidade de relações relativamente superficiais, em que a proximidade da vizinhança ou ainda do trabalho vem a tornar-se um fator essencial de aproximação.
Faço parte desses espíritos mais ou menos prudentes que estimam que, embora haja nesses sentimentos elementos invariáveis, pelo menos nos países europeus ou das Américas do Norte e do Sul, as transformações e até mesmo mutações afetam os relacionamentos.
Quero desde já antecipar-me a uma objeção. É bem possível, dirão alguns espíritos fortes, que o amor e a amizade não desempenhem mais o mesmo papel de antes, mas o que importa? São apenas sentimentos! E hoje já não são os sentimentos que importam, mas a economia, de um lado, e, de outro, a realização para cada indivíduo de seu potencial. A riqueza das nações e das empresas e o sucesso de cada um, portanto. Naturalmente, há sentimentos que podem ter o seu lugar nesse novo universo: a vontade de competir, a agressividade, o desejo de conflito. O agon dos gregos: as relações econômicas, as relações humanas devem ser “agonísticas”. Cada um tem a obrigação de ser aquilo que há uns vinte anos chamei de “um matador cool” (alguém que não mate de fato, mas que mostre sua capacidade de dominar e humilhar e que sinta a necessidade de ser reconhecido como um “senhor”). “Morte aos vencidos!”, como diziam os antigos romanos. Embora a morte física não seja frequentemente consumada, ampliam seu campo de ação, por sua vez, a morte psíquica, a morte moral. O único sentimento positivo que permanece é o famoso “espírito de equipe”. Todo indivíduo deve colaborar plenamente com o sucesso da equipe, do grupo, da empresa de que faz parte. Ele pode, no íntimo, desprezar os demais membros dessa famosa equipe; ele deve atuar “como se” e contribuir integralmente para seu êxito, sem fazer um jogo demasiadamente pessoal. Todos – membros da empresa, da universidade e de outras organizações – devem mirar-se no exemplo do mundo do esporte, em que cada um deve elevar-se, superar-se, seja em benefício próprio ou a serviço da nação, no caso do esporte individual, seja em prol do grupo (e da nação), no caso do esporte de equipe. Max Weber foi bom profeta quando escreveu em 1905:
Quando a realização do dever profissional já não pode ser associada aos mais elevados valores espirituais e culturais, o indivíduo, em geral, desiste de justificá-lo. Nos Estados Unidos, mesmos nos locais de seu paroxismo, a perseguição à riqueza despojada de sentido ético-religioso tende hoje a associar-se a passivos juramentos agonísticos, o que lhe confere, no mais das vezes, o caráter de um esporte.
Quanto aos velhos sentimentos, amor e amizade, estes servem para escrever romances, fazer cinema, excitar a imaginação, mas não têm lugar em um mundo de concorrência desmesurada. Ameaçam desenvolver a fraqueza dos indivíduos, sua compaixão, seu “sentimentalismo” de mau gosto; torná-los, em suma, impotentes diante do aumento “das águas glaciais do cálculo egoísta”, como diria Marx. O campo das relações preserva ainda uma satisfação: a satisfação sexual, pensada como um acordo ou um confronto dos corpos, desprovido de carga psíquica. É, portanto, preciso que a sexualidade fale alto e forte: e é o que esta faz, em uma sociedade em que muitas revistas alardeiam os encontros efêmeros, são pródigas em conselhos para aumentar, a todo custo, o prazer sexual; uma sociedade em que se multiplicam os peepshows, as revistas e os filmes pornográficos; em que a liberação sexual se mantém em pauta e parece permanecer a palavra de ordem de uma época dedicada ao prazer.
No que me diz respeito, gostaria de insurgir-me contra essa tendência atual, não por questões morais, mas porque considero que, se o amor e a amizade viessem a desaparecer, haveria um aumento de condutas patológicas, daquilo que Freud chamava simplesmente de doença – passo a explicitar melhor essa palavra mais adiante –, uma derrota do pensamento, uma crise do conformismo, uma impossibilidade de dar prosseguimento ao trabalho da cultura, a morte da poesia e a desagregação do liame social. Eles fazem parte do próprio fundamento desse liame.
Atenção: o que digo não pretende excluir a sexualidade. Mas temos mais do que consciência de que falar demais de alguma coisa significa
– sempre, na realidade – fazê-la desaparecer ou calar. O exemplo mais significativo que posso dar é o da famosa frase de Stalin: “O homem é o
capital mais precioso”. E sabemos a que ele reduziu milhões de indivíduos. O atual discurso sobre a sexualidade, sobre o desempenho sexual, quer ocultar, recalcar o outro lado igualmente arriscado, perigoso da sexualidade, aquele que nos permite abrirmo-nos para o outro.
É por isso que minha vontade hoje é de lhes falar das metamorfoses do amor e da amizade. Assim, tentarei – de forma naturalmente parcial, em ambos os sentidos – apresentar aqui os elementos que considero essenciais daquilo que denomino “a construção amorosa”, da qual a “construção amistosa” não passa de uma modalidade, e sua transformação. Que significado atribuir a esse termo: uma primeira definição (se é que definir o amor não pressuponha desfigurá-lo) poderia ser: o amor autêntico, aquele que estabelece uma simetria (ou a mais tênue assimetria possível) nas relações entre as pessoas ou uma reciprocidade de investimentos afetivos, baseia-se no desejo (expressão da libido) de manter com outro ou outra uma relação privilegiada, porém não exclusiva, pois a exclusividade é a marca da paixão, muito diferente do amor, como bem o demonstrou a psicanalista francesa Piera Aulagnier. Nessa relação, cada um será fonte de prazer e felicidade, assim como de sofrimento, e os processos de sublimação e o trabalho de mentalização serão mais ativos do que os processos de idealização e de descarga afetiva. (Não se preocupem, vou explicitar progressivamente essas diferentes noções.) É, portanto, uma edificação que passa continuamente por fases de construção, desconstrução e reconstrução, ou ainda, para falar como Stendhal, cristalização, descristalização e recristalização – de que falaremos ainda. Edificação eminentemente frágil, como um castelo de areia passível de ser desfeito pelo mar, mas que, ao mesmo tempo e ao contrário, é também capaz de conter a correnteza e vencer as ondas. Tal edificação exige toda uma vida ou, pelo menos, longos anos, e situa “os amantes” naquilo que é característico do ser humano e social – a temporalidade, signo de todas as aventuras, de todos os perigos, de todas as felicidades. (Os animais, até onde se sabe, são movidos pelos instintos e instalam-se na repetição. Os seres humanos, embora também repitam, às vezes, são condenados à inovação e à invenção.)
O ponto que me parece indispensável abordar em um primeiro momento (que se reveste de grande importância) é o das relações entre:
O AMOR, A DOENÇA E A CULTURA
É preciso avançar devagar. Vou falar de uma frase de Freud que parece anódina: “Um egoísmo sólido protege do amor, mas, no final, devemos nos amar para não adoecermos e devemos adoecer quando não podemos amar”. Tentemos explorar ao máximo essa frase, remetendo-nos também, naturalmente, a outras percepções de Freud ou de outros autores importantes para o nosso assunto.
O “sólido egoísmo” conota a libido do ego que, invasora, pode tornar-
-se uma libido unicamente “narcisista”. Mas o que significa ser unicamente narcisista? Não apenas correr o risco de morrer mirando-se no espelho, presa pela própria imagem especular (e a doença é o primeiro caminho em direção ao desenlace fatal), mas, inicialmente, renunciar à própria liberdade, pois o indivíduo fica pleno de si mesmo quando se encontra nessa compacidade (denunciada tanto por Ibsen quanto por Freud) que se esconde sob a máscara da plenitude, aproxima-se do sufocamento, de não mais conseguir viver ou fazer escolhas. No amor, ao contrário, embora o indivíduo se aliene para o outro, ele ao mesmo tempo se liberta e liberta o outro. Alienação e liberdade não são antinômicas. O homem livre não é doente. É o que quer dizer com muita correção Lévi-Strauss, inspirado por Lacan, a quem faz referência, quando escreve (1950): “Pois é aquele que denominamos são de espírito, propriamente, que se aliena, pois que consente em existir em um mundo apenas definível pela relação entre mim e o outro”. Hegel já havia percebido isso em sua primeira dialética escrita no tempo de Iéna: A dialética dos amantes.
Para Hegel, o amor é o que torna o homem especificamente humano, já que é a expressão do desejo de um outro desejo, quer dizer, o desejo do reconhecimento. Ao amarem-se, os amantes reconhecem-se simultaneamente e reconhecem a alteridade irredutível. Assim, um e outro são dados juntos, mais exatamente, nascem juntos. Como são definidos pela morte, tanto um quanto outro entendem que é a própria finitude que os torna livres e disponíveis para essa aventura excepcional. Um sociólogo como G. Simmel (1921) escreve estas frases que seguem a mesma direção:
Só o ser que ama é um espírito realmente livre, pois sozinho enfrenta cada fenômeno com essa capacidade ou essa propensão a acolhê-lo, a apreciá-lo pelo que é, a sentir plenamente todos os seus valores… O cético, o espírito crítico, aquele que não tem preconceitos, em teoria, comporta-se de forma diferente. Muitas vezes observei que esses tipos de homens, por medo de perder a liberdade, não oferecem uma acolhida verdadeiramente independente em relação ao todo de fora, uma acolhida que sempre pede uma certa entrega ao fenômeno.
Assim, o ser experimenta a sua liberdade e a sua capacidade de lutar pela vida quando a libido pode investir em um novo objeto radicalmente diferente de si mesmo. Este “narcisismo bem temperado” nega o narcisismo de morte, pois vem acompanhado do dom de si mesmo, que não acontece uma única vez, mas que se revela uma verdadeira criação. Como escreve ainda Simmel: “A conservação do amor do outro é uma reconquista contínua [grifo nosso] e a conservação do amor que trazemos em nós, uma recriação igualmente contínua”.
Quando um homem é incapaz de amar, quando só se preocupa consigo mesmo, ele fica “doente”, pois se encarquilha dentro de si mesmo, e ele próprio é verdadeiramente pouco.
Assim, se alguns falam de “doença do amor” e outros da proximidade entre o amor e a morte (aliás, os gregos tiveram uma certa dificuldade em separar Áthropos de Afrodite), Freud nos diz que o amor é o que nos permite ter uma vida “saudável”. Sabemos, é verdade, que ninguém é perfeitamente saudável (normal) e que ninguém, nem mesmo o mais psicótico, é totalmente doente (patológico). No entanto, se seguirmos
G. Canguilhem, percebemos que o indivíduo saudável, normal, é antes e essencialmente aquele que é normativo, portanto, apto para estabelecer suas próprias normas, para questionar as normas sociais, mesmo que as aceite; aquele que não tem “medo de se desfazer” (M. de M’Uzan) e que é, portanto, capaz de assumir riscos, mesmo arriscando a morte. É, portanto, um “ser de convicção” (M. Weber), uma pessoa que é “causa de si mesma” (M. Enriquez), embora conheça as determinações sociais que pesam sobre seus sentimentos e suas decisões. Amar o outro é, por conseguinte, assumir um risco importante. Porque o outro pode aceitar o nosso apelo, como pode rejeitá-lo ou divertir-se com ele. Ao enfrentar esse “perigo” em potencial, essa possibilidade de adoecer por causa do outro, o homem afasta de si a doença. Mas que doença é essa? A doença
suprema, a de estar separado do corpo social, da espécie humana, de encerrar-se dentro de si, de só dar atenção a suas pulsões e fantasias, de ser incapaz de estabelecer relações de reciprocidade com os outros, e, assim, contribuir à tessitura do liame social. A doença consiste, então, em permanecer, como os animais, em estado natural e não conceber a si próprio como um ser da cultura, ou seja, um ser que pensa, que sublima, que atua com outros na fundação sempre renovada de uma civilização. Assim, o doente é o indivíduo que se entrincheira da civilização, que só contempla os próprios prazeres e sofrimentos, esquecendo-se de que é parte ativa dos prazeres e sofrimentos do outro.
Apesar disso, em seus escritos e mais particularmente em Mal-estar na cultura, Freud parece desenvolver uma ideia em contradição com esta. Ele mostra que o amor é excessivo, que os amantes podem bastar-se no amor sem precisar do que acontece à sua volta[1]. Pensamento popular bem representado pela canção: “os amantes são sós no mundo”. O amor seria contra a civilização, ou, pelo menos, instauraria nela uma falha.
Mas a contradição pode ser sustada. É incontestável que o amor provoca uma ruptura no processo civilizador, na medida em que sempre quer criar “unidades sempre maiores” e tende a homogeneizar o mundo desenvolvendo o amor essencialmente sublimado: camaradagem, fraternidade. Mas trata-se aí de um processo civilizador na forma como este se realiza em nossas sociedades, nas quais o desenvolvimento econômico e a obsessão pelo poder têm a primazia sobre qualquer outro valor, uma sociedade, portanto, de guerra política ou de guerra econômica. Sociedades que acentuaram “as tensões intoleráveis” (Freud), que aumentaram as restrições (Elias) e que acabaram (é o diagnóstico de Freud em Mal-estar na cultura) por fazer prevalecer a pulsão de morte sobre a pulsão de vida.
Se, ao contrário, considerarmos o processo civilizador como querendo sempre criar “essas entidades sempre maiores”, mas dessa vez respeitando as diferenças individuais e coletivas (cada indivíduo sendo um “desvio absoluto” [Fourier] para os outros), dando-se mais peso à troca, ao dom, à gratuidade, ao convívio, à corrente do amor (Eros) que atravessam a espécie humana e que fazem de todos os seres irmãos e irmãs (o que não quer dizer que seja sempre fácil viver com eles), tendo os cidadãos direitos e deveres em relação aos outros e ao planeta inteiro, então o amor, como a amizade, torna-se um elemento central no processo cultural e civilizador, pois indica que, se alguns seres se preferem, nem por isso rejeitam os demais. Pelo contrário, o amor que cultivam um pelo outro enriquece a espécie humana pelos sonhos que suscitam (imaginemos um mundo ocidental sem Tristão e Isolda, sem Romeu e Julieta, sem Laura e Petrarca, sem Dante e Beatriz, sem Jaufre Rudel e a condessa de Trípoli. Pois bem, esse mundo seria bem empobrecido e até muito mais do que isso, pois citei apenas alguns nomes, embora outros me venham à mente) e pela capacidade que têm os amantes de criar um contágio, uma imitação de epidemia à sua volta, contribuindo, por mais estreito que seja o seu poder, para a criação de uma civilização de amor.
Utopia, sonho insensato, dirão talvez os leitores. Isso não é tão certo, assim. Embora o nosso mundo seja mais atravessado por Tânatos do que por Eros, pelo combate do que pelo debate pela língua, ainda assim, se o amor jamais se manifestasse, mesmo que em tom menor, estaríamos em um planeta entregue unicamente aos mais fortes, onde ninguém demonstraria nenhuma compaixão (no sentido forte do termo), ou respeito, ou consideração pela dignidade dos outros. No entanto, diferentemente dos “espíritos fortes”, essas tendências existem, mesmo que permaneçam minoritárias, e assinalam a participação de todos na cultura e na espécie humana.
Infelizmente a tendência ao egoísmo é reforçada pela sociedade liberal em que vivemos. Em vez de entender que a verdadeira liberdade é experimentada na provação, o liberalismo (principalmente o econômico, que é o que predomina em nosso mundo) insistirá apenas no princípio do prazer, no gozo egoísta, na multiplicação dos encontros. Ora, é mais do que sabido que, seja Don Juan ou Casanova, estão condenados à insatisfação, pois o que obtêm fica apenas, como dizia corretamente Sade, “muito longe do que haviam ardentemente desejado”. Assim, o desejo vai ricochetear de objeto em objeto, a busca será infinita e sempre decepcionante. Não é à toa que emerge aqui, inclusive, a figura de Sade: a vontade da proliferação dos afetos significa que o homem entrou definitivamente no mundo da produção e da utilização de “utensílios” (Enriquez, 1991). Ele acreditou ser livre, mas, ao contrário, transformou-se completamente em homem produtor-consumidor. Ele terá necessidade de prazeres sempre renovados, de novos parceiros, de novas maneiras de “fazer amor” (péssima expressão, no caso). Ele desejará sentir sensações originais, ser sacudido por emoções inacreditáveis, ou, ao contrário (mas isso não passará do outro lado da mesma moeda), desejará ser o organizador e encenador de suas próprias volúpias, porém sem “ser tocado”, sem “sentir a menor emoção” (Sade). Daí a possibilidade, como escreveu Sade em sua obra, de “instrumentalizar” completamente o outro, de situá-lo como um objeto de gozo, passível de ser descartado e morto se necessário (como nesses filmes em que a mulher encontra o ápice da satisfação enchendo o amante de facadas). O ser humano conduz-se, então, de modo totalmente aberrante, mortífero, patológico. Se não chegar a isso, encontrará compensações nas mais variadas drogas e nos vícios mais obstinados.
Ele ter-se-á, então, transformado em um verdadeiro doente e a sociedade com ele, caso não o tenha precedido nesse caminho. Ter-se-á transformado, sem o saber, em um personagem sadiano. O mundo do capitalismo liberal está sendo, na realidade, o mundo sonhado (simplesmente sonhado) pelo marquês de Sade, o mundo da perversão polimórfica que terá deixado a fase da infância para caracterizar a fase do universo adulto.
NARCISISMO BEM TEMPERADO
Mas, para lutar contra essa tendência, é preciso nos perguntar o que poderá acompanhar essa liberdade que se abre em direção ao outro: o amor-próprio, ou seja, uma certa dose de narcisismo, mesmo que possa parecer paradoxal. Embora o narcisismo exacerbado só possa resultar no egoísmo ou na morte (Narciso afogando-se na própria imagem), um narcisismo “bem temperado” é indispensável. De outro modo, o amor pelo outro, o investimento no outro, a sua idealização frenética não passariam de indícios de um “buraco” na personalidade que o outro deveria imperativamente preencher. O outro seria aquele galho ao qual se agarraria o amante, por falta de balizas, de pontos de referência. Esse amor daria ao outro o lugar de um objeto, cujo único papel seria o de fornecer uma satisfação total e constante para a falta fundamental de confiança
em si próprio, e até mesmo no ser do amante. “Nada sou, tudo és, e graças a ti vivo.” Se for esse o caso, o outro – objeto de tal excesso de investimento, instalado em um lugar de “grande Todo” impossível de ocupar, insubstituível, que dá sentido à vida, será, na realidade, devorado (trata-se propriamente de uma vontade e de um ato de vampirismo ou de canibalismo). “Se existo apenas pelo outro, continuo sem existir, e mato o outro.” É talvez o sentido que podemos atribuir aos versos de Oscar Wilde (mesmo que ele não os tenha escrito com essa intenção): “Sempre matamos o que amamos”. Embora alguns aceitem ser devorados, por se sentirem indispensáveis à vida do outro e todo-poderosos (o que os coloca em uma posição narcisista perfeitamente mortífera), eles se iludem, pois o parceiro jamais cessará de devorá-los. Este nunca ficará satisfeito, desejará sempre mais sinais de amor, de solicitude, pois a rachadura (não criadora) só aumentará de tamanho, donde um ciúme e um desejo que assumem formas mórbidas. A salvação do “tão amado” só pode ser a fuga. De outra forma, ao acreditar ser tudo para o outro, ele perceberá que nada é e que o outro não é grande coisa. O amor não tem nenhuma relação com a impotência de um e o excesso de poder do outro.
Assim, para amar é preciso sentir-se relativamente bem consigo mesmo. Isso não significa que o amante não sinta algumas carências, não experimente contradições, não tenha, às vezes, necessidade de sentir-se tranquilizado. Como todo ser humano, o amante é falível, mas sente-se suficientemente consistente para enfrentar o mundo, mesmo que tenha de ficar só e sofrer com isso. Mas não conseguirá ficar assim. A libido do ego, como vimos, deve completar-se com uma libido voltada para um objeto (no sentido psicanalítico do termo – melhor dizer um sujeito) procurado por sua própria alteridade. Pois, como é dito em O banquete, cada um busca a sua metade perdida. É um mito, naturalmente, nada mais do que um mito. Mas, como todo mito, expressa um desejo profundo da humanidade, contém sempre um pouco de verdade e tem sempre fundamentos na realidade, é possível propor que aquele que tenta construir um amor ou uma amizade durável se conduz “como se” sentisse algo de incompleto em seu interior, que vai se esforçar permanentemente por remediar, encontrando e construindo o outro como uma outra parte de si mesmo, com a sua cooperação íntima, desconstruindo-se a si próprio.
Esse movimento em direção ao outro não é o puro reconhecimento do outro, sem benefício para o amante. Este deseja não apenas reconhecer o outro, conhecê-lo, fazê-lo existir, mas deseja também ser reconhecido pelo outro como aquele que pode assumir o papel da metade que falta, e espera que outro lhe devolva uma imagem positiva do que ele é e do que ele faz. As relações entre seres humanos nunca são puramente altruístas. Implicam sempre o desejo de um prêmio de prazer lisonjeiro para o narcisismo, esse narcisismo necessário, como dissemos anteriormente, justamente por ser capaz de amar sem o desejo de vampirizar o outro, sem a ilusão de ver todas as suas necessidades atendidas, como pôde fazer a mãe cujo amor (assim como o ódio ou a indiferença) é sempre marcado pelo excesso. É verdade que todo indivíduo, mesmo aquele que só estabelece relações simétricas (ou menos assimétricas possíveis) com o parceiro ou a parceira, lembrar-se-á constantemente, mesmo inconscientemente, dos momentos de fusão ou de rejeição da mãe, e sua tendência será ou sentir saudades e tentar reencontrá-los, ou ter horror a eles e tentar compensá-los e superá-los estabelecendo uma formação reacional. A mãe permanece presente em cada um dos seres humanos, e todos devem saber pagar essa dívida (na realidade, insolvível, porque infinita). Mas aqueles que tentam construir relações de reciprocidade, mesmo reconhecendo sua dívida para com a mãe, tentam fazer com que seja minimizada essa palavra que continua a ecoar dentro de si.
PROXIMIDADE E CONFLITO
Esse movimento em direção ao outro não é dirigido a qualquer outro. Este não apenas não deve tentar garantir o seu domínio sobre o amante, mas deve ser, apesar das diferenças, algo semelhante a ele. O amor durável tem mais chances de nascer entre pessoas que adotem as mesmas regras de vida e tenham gostos que possam ser compartilhados. Tristão só amaria uma princesa e Romeu, uma mulher de família tão nobre quanto a sua. O amor da princesa e do limpador de chaminés é uma bonita lenda. Como toda lenda, raramente se inscreve na realidade. Se o outro é sempre um estranho unheimlich (inquietante), ele deverá ser também suficientemente heimlich (familiar) para ser escolhido. Freud o percebeu bem, como aquele que sempre vê no outro essa mistura de perigo e de proximidade. A maioria dos seres opta pela proximidade, na tentativa de negar ou diminuir o perigo inerente a todo encontro.
E, no entanto, a proximidade pode ser um engodo. É a promessa de um prazer recíproco fácil de conquistar e de um sofrimento evitado. Estabelece o impasse sobre a dificuldade de uma relação em que cada qual permanece irredutível ao outro (qualquer que seja a sua proximidade) com seus sentimentos, suas opiniões, suas convicções próprias, e em que há a possibilidade de conflito aberto ou latente e de ser fonte de sofrimento. Se a relação for simétrica, deve necessariamente ocorrer o conflito, enquanto elemento estruturador inerente a toda relação (Kant tinha razão em observar, com Empédocles, que, embora o homem deseje a concórdia, a natureza chama à discórdia[2]) em que o “eu” e o “tu” (caros aoSr. Buber) não são réplicas um do outro. Ele nada tem de patológico, não pode ser considerado uma disfunção. O conflito (a discórdia) é a outra face do amor. Se o conflito não existisse, se a resistência fosse definitivamente vencida, os seres fundir-se-iam ou admirar-se-iam no espelho um do outro e baliriam como as ovelhas kantianas. Quando dois seres se amam verdadeiramente, são capazes (eu diria até devem) de causar sofrimento mútuo, cada qual podendo apontar para a falha do outro e aumentá-la, mesmo que só persiga o seu bem. Não se deve esquecer, inclusive, que o amor não é um jogo de dois personagens, mas de três. Como o falo que cada um busca conquistar, que se esquiva como o furão da canção (“il court, il court le furet”[3]) e que desempenha o papel de um terceiro por sobre os protagonistas da luta pelo poder, o amor é também uma instância tal que fura com suas flechas um e outro, que toda pessoa quer agarrar e encarnar (“eu te amo” significa, na realidade, “eu sou todo amor, eu sou todo amor”), mas que não é propriedade de ninguém. (Os antigos o perceberam bem, fazendo do amor o personagem que conduz o jogo, mas que não é conduzido por ninguém.) Assim, o amor é, em si
mesmo, fonte de sofrimento. Estar amando significa sofrer (e também, como já foi dito, ter prazer!), viver como um ser em sofrimento.
Ainsi Amour inconstamment me meine;
Et quand je pense avoir plus de douleur
Sans y penser je me treuve hors de peine.
Puis quand je croye ma joye être certaine
Et être au haut de mon désiré heur
Il me remet en mon premier malheur[4]
Louise Labbé
Embora o conflito esteja estruturalmente presente na relação amorosa, se o amor é uma terceira instância que traz, além do prazer, o sofrimento, é simplesmente porque Eros está sempre imbricado com Tânatos. A pulsão de morte joga seu jogo e realiza a sua obra: o desligamento. Nisto ela luta contra as ligações excessivamente estreitas, contra a tentação da fusão, e assim se inscreve como o sinal de que a paixão com seus descaminhos, de que a alienação com sua impossibilidade de retomada não ocorrerão. Ela impede aquilo que Fedra, de Racine, vai viver em seu grau mais extremo:
Je le vis, je rougis, je pâlis à sa vue;
Un trouble s’éleva dans mon âme éperdue;
Mes yeux ne voyaient plus, je ne pouvais parler.
Je sentis tout mon corps et transir et brûler[5].
Embora Eros tenha de falar alto para criar e manter o elo, Tânatos deve desfazê-lo, o que é causa de sofrimento, mas que proporciona o prazer do encontro com um ser que, também ele, é causa de si próprio, que ama o outro por ele próprio e não para satisfazer algum desejo paranoico ou megalomaníaco, como é cada vez mais o caso atualmente.
JOGOS SOCIAIS
Mas os jogos do amor, da amizade e do acaso não são jogados entre dois seres apenas. Eles intervêm diretamente na constituição dos liames sociais. Três pontos serão examinados. Inicialmente:
O narcisismo das pequenas diferenças
Lembramos que Freud assim designa um “narcisismo grupal” levado à incandescência. Para que tal narcisismo possa se desenvolver, é necessário que a libido vincule os seres humanos profundamente uns aos outros, assim como a seu chefe, quando substituem o seu ideal de ego por um objeto encarnado pelo chefe.
Como mostrou Freud, esse “amor” é necessário para a criação da coesão do grupo. É raramente uma atração sexual direta – seria mais inibida, assexuada, sublimada. Seria mais do tipo homossexual ou, em alguns casos, sem referência à sexualidade, cada membro do grupo semelhante ao outro – uniformes, conformes.
O grupo rumará em direção a uma homogeneização perfeita, à “massificação”. Ora, o que nos diz a nossa sociedade de capitalismo liberal senão que se o indivíduo é livre, ele é livre de ser como os outros. A individualização resulta na massificação. Só a individualização diferencia os seres. E, ao contrário, para ser um indivíduo “individualizado” é indispensável buscar os mesmos prazeres que os outros, sobretudo quando se pertence a um grupo particularmente coeso, que não dá importância aos demais. A identidade individual tende a fundir-se em uma identidade coletiva. Pois, como nos adverte G. Devereux (1973): “Se a gente é apenas um capitalista ou um proletário, um ateniense ou um espartano (e podemos acrescentar franceses ou alemães, partidários do rock ou de Wagner), a gente está bem perto de não ser grande coisa ou mesmo coisa alguma” (grifo do autor). E acrescentar ainda: “O ato de formular e assumir uma identidade maciça e dominante” – e isto, qualquer que seja a identidade –“constitui o primeiro passo para a renúncia ‘definitiva’ à identidade ‘real’”.
Essa vinculação alienada desenvolveu-se particularmente em nossas sociedades. Basta constatar a proliferação de confrarias, seitas, grupos de todos os tipos que tendem a preencher a insatisfação dos indivíduos pou-
co seguros em relação a si mesmos e que se abastecem no amor mútuo e na rejeição, no desprezo aos outros (que servem como superfícies de projeção de tudo o que é vil, abjeto, sujo que possa existir em sua própria interioridade), com uma aparência de solidez que pode desaparecer diante de qualquer choque violento.
Assim, esse “falso amor”, essa falsa amizade (essa conivência, essa colusão, essa alienação), são particularmente valorizados pela cultura liberal que, ao fingir incensar os indivíduos, transforma-os em uma “massa estagnante” (Canetti, 1960).
Voltado para dentro
Consideremos aqui certas consequências do narcisismo em seu apogeu. O indivíduo, ao não obter o que deseja, não conseguir atender às suas necessidades, responsabilizará a sociedade por essa limitação. O nosso indivíduo triunfante transforma-se, então, em vítima da sociedade, apenas capaz de se lamuriar, quando não se enche de raiva diante da situação, exigindo, aos gritos, uma reparação pelos danos sofridos. Não há dúvida de que a nossa cultura liberal gera vítimas de verdade. Mas, ao nos fazer acreditar que o indivíduo pode ser um rei que tem de poder satisfazer todos os seus desejos (quando Freud nos deixou bem claro que a civilização não nutria a renúncia à satisfação imediata de um grande número de desejos), ela desenvolve uma tendência à vitimização, que por vezes apresenta aspectos cômicos (tal o indivíduo que cai na escada de casa e ataca o arquiteto e o empreiteiro, para obter uma indenização pelo prejuízo). O homem que não ama os outros passa a ter medo do outro, a temer pela própria vida, por sua integridade, e se prepara para defender-se antes mesmo que qualquer perigo o ameace. Como aqueles americanos denunciados por Michael Moore, no filme Tiros em Columbine, que valorizam suas armas para preservar a liberdade, às vezes abatendo quem os possa colocar em dificuldades; ou ainda como aquelas crianças também apresentadas por Michael Moore, que matam os colegas de colégio por razões difíceis de destrinchar, mas em que medo, ciúme, inveja e o ódio próprio certamente têm a sua parte.
Voltar-se para dentro e para seus próprios prazeres pode também ter como consequência um rápido distanciamento das pessoas, até daqueles com quem se mantém algum vínculo, mesmo que relativo. Assim, um marido que perde a esposa é incentivado pelo meio que o cerca não a empreender um trabalho de luto, mas a preencher o vazio o mais rapidamente possível encontrando uma nova companheira, com quem poderá casar-se ou manter uma ligação temporária (outras virão, pois como diz o ditado popular, “perde-se uma, ganha-se dez”). Percebemos assim que os indivíduos, obcecados pelo desejo da plenitude, não conseguem mais suportar a menor falta, tolerar a menor rachadura, e só pensam numa coisa: esquecer o mais rápido possível o que poderia incomodá-los ou provocar neles qualquer ferida psíquica. Assim, o amor por si próprio pode resultar na queixa, no medo, no assassinato físico, ou no esquecimento. Em todas as circunstâncias, ele progressivamente dissolve os vínculos sociais.
Dissemos que Eros desempenha um papel essencial na formação de “entidades sempre maiores” (Freud, 1930)
Voltemos a este ponto.
Freud insistiu no papel de Eros na criação, a cada dia, de novas ligações com seres diferentes e cada vez mais afastados do círculo familiar. Eros obrava, como a libido, para aproximarmo-nos uns dos outros, dessa vez sob a forma do amor sublimado, portanto, da amizade amorosa, da fraternidade, da camaradagem, da convivência. Como já vimos, não amar é, ao contrário, colocar-se sob a égide de Tânatos, da pulsão de morte em seu aspecto autodestrutivo. Ora, uma sociedade de indivíduos em que cada um é posto em concorrência econômica e competição política, em constante emulação por honras, não apenas os afasta uns dos outros, mas faz com que se tornem muitas vezes insuportáveis uns para os outros. Se o indivíduo fiel à injunção da sociedade liberal quiser fazer parte dos winners e não dos losers, ele terá de transformar-se, como já disse, num “matador cool”. Não se trata (mas quase!) de matar o outro de verdade, pois ele poderá ainda vir a ser útil em outras circunstâncias, tornar-se um parceiro, mas apenas de eliminá-lo da corrida ao sucesso, como deve fazer todo bom desportista (bem sabemos quanto a referência ao esporte tornou-se central em nossas sociedades liberais).
Ao amar o outro (ou até mesmo simplesmente manter com ele relações cordiais, ternas, calorosas), corremos o risco de ficar à sua mercê, quando o que desejamos, para sermos os primeiros, é subjugá-lo, dominá-lo, adequá-lo aos nossos próprios desejos. Sem perceber, ao rejeitar esse vínculo, o homem está contribuindo para o desaparecimento dos liames sociais. O homem passará a só considerar o outro dentro de “estratégias relacionais” por ele articuladas. Percebe-se, então, que esse homem não passa de um servo da cultura estratégica, única cultura imaginável em uma sociedade liberal que só considera o outro como objeto a ser seduzido, manipulado ou banido.
EROS NÃO SÓ DESEMPENHA UM PAPEL PREPONDERANTE NA CONSTITUIÇÃO DOS VÍNCULOS SOCIAIS, MAS TAMBÉM UM PAPEL CENTRAL NO TRABALHO DA CULTURA ( LA KULTURARBEIT )
O trabalho da cultura, isto é, a possibilidade evocada por Freud, especificamente em Moisés e o monoteísmo (1939), de que esta permite “avançar em direção à espiritualidade”, contribuir com a sua pedra para a emancipação humana e para o reconhecimento mútuo, depende diretamente do amor capaz de criar a vinculação entre os seres. Freud dizia: “Tudo o que reforça os laços afetivos afasta a guerra”. Efetivamente, os laços afetivos fazem recuar os desejos de destruição e favorecem o impulso criador: obras literárias, artes plásticas, música e sobretudo a afinação das relações dos homens, que se tornam mais afáveis entre si, mais corteses, mais inclinados à ajuda mútua. Por outro lado, sem o sentimento positivo, sem a compreensão do outro, sem o interesse pelo outro, a cultura só pode periclitar e as pulsões reencontrarem sua força arcaica e suas tendências destrutivas. Certos psicanalistas, em particular N. Zaltzman (2002), em sua obra De la guérison psychanalytique, nos mostra que uma psicanálise “exitosa” não significa que o homem vá se sentir melhor no mundo, ou que seja capaz de resolver seus problemas, mas que tomou consciência de seu pertencimento àquilo que R. Antelme chamava de “espécie humana”. É quando o indivíduo se concebe conectado ao mundo, “homem entre os homens” (Sartre), capaz de dialogar com todas as etnias, todas as religiões, todas as nações, e de compartilhar o sofrimento dos outros (Tocqueville, inclusive, pôs bem em evidência o papel central da simpatia em relação aos outros para fundar, de forma durável, a democracia), que ele se torna verdadeiramente um homem da cultura e que contribui para a sua “obra”. Por outro lado, na sociedade do cada um por si, do um contra o outro, o homem se “des-cultura”, ele se “des-civiliza” (como observava N. Elias, 1989) e passa a nada mais ser do que a sede de suas paixões egoístas. Não se faz mais necessário continuar a avançar. O amor como encontro entre dois seres, entre vários seres, entre uma multidão de seres tecendo relações de reciprocidade de longa duração e marcadas pela simetria, está longe de caracterizar a nossa cultura liberal. Nela, como escreveu N. Luhmann (1982), o amor transformou-se em problema, a incomunicabilidade tornou-se a regra, o desempenho (permanecer o mais jovem, o mais belo, o mais viril ou, para uma mulher, a mais atraente), obrigatório. Como disse, também, A. Giddens (1992), “só se fica junto se a relação trouxer satisfações”, “só nos comprometemos pelo que podemos esperar levar desse compromisso”, ou ainda, como escreveu Z. Bauman (2003), “o amor tornou-se líquido”, podendo escoar-se rapidamente. Só irá interessar se contribuir para a autorrealização. Se, ao contrário, trouxer dúvidas, suscitar questionamentos, ocasionar queimaduras, ele só poderá ser rejeitado.
Assim, os vínculos (sejam os indivíduos legalmente casados ou não) desfiam-se rapidamente, os divórcios multiplicam-se, predominam os encontros efêmeros. É preciso satisfazer todos os desejos, e isto, continuamente. Não deverá haver repouso, momentos difíceis, problemas a resolver. “Je t’aime, moi non plus” não é mais o nome de uma canção. É a afirmação prototípica de uma sociedade em que o lugar do outro é o do fornecedor de satisfações imediatas e duradouras.
Mas como fruir constantemente pertence à ordem do impossível, como o outro não necessariamente jogará esse jogo, tendo, por sua vez, o seu próprio jogo a cumprir, como a doença está à espreita, o homem das sociedades liberais transforma-se, na realidade, em um ser cada vez mais insatisfeito, que não entende que o outro não se comporta como um bom computador, o qual basta dedilhar para obter-se a reação desejada.
Instala-se, então, o mal-estar.
As nossas sociedades não estão doentes apenas por não conseguirem resolver o problema do desemprego, por serem cada vez mais desiguais, por deixarem partes inteiras da população na mais completa privação, a ponto de algumas pessoas já não viverem, mas apenas sobreviverem. Elas sofrem da doença da falta de amor. Nossa cultura liberal esqueceu que o amor, a amizade, o respeito, a deferência, a consideração pelo outro constituíam o cimento indispensável para sua consistência e permanência. Acreditou que, ao instaurar “a guerra de todos contra todos”, permitia a cada um ultrapassar, realizar-se, fruir sem entraves. A consequência desse estado de coisas, como constatamos diariamente, não é a crise (é sempre possível sair de uma crise – como a palavra o indica –, ela tem os seus aspectos positivos, na medida em que abre portas), mas o mal-estar difuso, constante, sufocante, impalpável, verdadeiro smog psicológico que envolve todos dentro de uma espessa névoa. Esse mal-estar, a que Freud (1930) se referiu e que todo mundo esperou ser temporário, persiste e torna-se cada vez mais denso. O homem moderno não sabe o que fazer dele. Volta-se contra a sociedade, contra os outros, contra si mesmo, sem enxergar que faz parte disso e que o cultiva a cada dia.
Se chegamos a esse ponto do mal-estar, é por uma série de razões que os senhores puderam perceber nesta palestra, mas que eu gostaria de recapitular.
Em primeiro lugar, a transformação da sociedade
Que tende a passar da “universitás” à “societás”, duas modalidades sociopolíticas que haviam sido enunciadas pela escolástica medieval e recentemente retomadas por vários autores.
Universitás significa que “a sociedade, com suas intuições, valores, conceitos, língua, vem sociologicamente primeiro em relação a seus membros particulares, que só se tornam homens pela educação e pela adaptação a uma sociedade determinada” (L. Dumont, 1983).
Societás “corresponde à tendência que considera que a sociedade consiste em indivíduos, indivíduos estes que vêm primeiro do que os grupos ou relações que constituem ou ‘produzem’ entre si, mais ou menos voluntariamente” (L. Dumont, 1983). A sociedade ocidental não é mais uma universitás e tende a tornar-se, sem o conseguir inteiramente, uma societás.
Já não é uma universitás (ou é uma universitás desconjuntada) desde que Husserl, em 1935, evidenciou, em suas célebres conferências de Viena e Praga, “a crise da humanidade europeia”, e desde que H. Broch, em 1933, apontou na história ocidental a história da desagregação de valores, no terceiro livro de sua grande trilogia Les Somnambules. Para esses dois autores, um filósofo e outro romancista, nossa história não tem mais como horizonte “o mundo concreto da vida” (Die Lebenswelt) e nossas sociedades são afetadas pela perda de um senso comum e pelo declínio do que significa conviver.
Para que haja universitás é necessário que as instituições sejam sólidas, coercivas, remetendo-se a símbolos fortes, suscitando a crença e o respeito, fundando-se em princípios e valores comumente aceitos (mesmo que sempre exista um núcleo de deslocados ou de dissidentes), irrigando a ação coletiva. Cada indivíduo sente-se parte de uma “alma coletiva” (para retomar a terminologia de antes da Primeira Guerra Mundial), ou da “consciência coletiva”, descrita e preconizada por Durkheim. Ele faz parte de um “todo”, que o protege e em grande parte lhe dita a conduta. Ele obedece, pois tem o sentimento de obedecer a si mesmo, o superego coletivo prevalecendo sobre o seu superego individual. Ele é o homem do dever. Para ele, a regra e a norma são sagradas. Em tal universo, reina a moral. As prescrições são respeitadas como prescrições, por ser quase natural. Sem elas, o mundo ruiria.
Esse tipo de sociedade – que não apenas realiza uma divisão do trabalho implicando uma interdependência de todos, mas também uma aspiração coletiva a sentir-se protegido em uma comunidade de fundamentos transcendentais (Deus ou os deuses, ou ainda, em se tratando de uma sociedade secularizada, a Nação, a Pátria, o Estado) – está em via de extinção.
Cede lugar, cada vez mais, a uma sociedade de individualismo, em que o fundamental para cada um é “a fruição em suas atividades privadas” e a aceitação “apenas daquelas instituições que permitem essa fruição” (B. Constant, 1819). Os indivíduos já não desejam se sacrificar ao “grande Todo”, têm valores diferentes e cuidam para que estes sejam respeitados. Desaparece a moral imperativa – os homens querem ter cada vez menos deveres, e têm (ou exigem) cada vez mais direitos. Como não chegar a esse ponto, a esse foco sobre si mesmo, sua família, sua tribo, após uma Segunda Guerra Mundial particularmente assassina, depois da Shoah (Holocausto), dos gulags soviéticos, das guerras no Vietnã, dos massacres em Ruanda, da guerra no Iraque… Como acreditar ainda em valores comuns? As pessoas querem proteção e a realização individual.
O triunfo da racionalidade instrumental e a derrota do pensamento
“O mundo da vida” não é mais o horizonte da societás: esta deseja apenas inventar a cada dia novos instrumentos, utensílios, ferramentas, métodos, técnicas, próteses que lhe permitirão entregar-se um pouco mais ao sonho da dominação do real. O que não puder ter valor operacional imediato perde o interesse. Assim, a pesquisa fundamental, o pensamento que sai dos caminhos batidos, veem-se abandonados e em grande perigo. Pois há uma relação essencial entre esse pensamento e o amor. Fernando Pessoa dizia, aliás, admiravelmente: “O amor é um pensamento”. O amor, como o pensamento, perturba, questiona a ordem estabelecida.
Todo pensamento exigente que permita dar conta das relações sociais reais e desvendar os processos de exploração e alienação (o pensamento de Marx é um bom exemplo dessa ambição); que favoreça a exploração do inconsciente e aponte para um aparelho psíquico conflituoso (neste caso, a referência primeira é a de Freud); ou ainda que dê uma outra imagem do mundo ou da espécie humana (Copérnico, Galileu, Darwin), lança uma inquietação à sociedade e à economia psíquica dos indivíduos, pois obriga a enxergar o que não apenas havia sido ocultado, mascarado, reprimido, recalcado, mas que simplesmente não havia sido percebido ou o que havia sido esquecido. Obriga a reestruturar o nosso modo de apreender as coisas e os seres. Ele sempre funciona como uma “destruição criadora”, retomando a expressão de Joseph Schumpeter. Tanto destruir quanto criar são um escândalo, pois ambos rompem a ordem das coisas e impedem as rotinas. São contra a repetição, e é bem sabido, depois de Freud, que a compulsão à repetição é fundamental nos seres humanos. Não são apenas os pensamentos excepcionais que evacuam os paradigmas mais estáveis e inauguram novos epistémes, como os que acabam de ser mencionados. Trata-se de todo pensamento expresso ou traduzido em ato (como o dos pintores impressionistas, por exemplo) que, sem uma intenção consciente de arruinar as maneiras antigas de conceber e de fazer, emite novas interrogações, aponta para aspectos inesperados do “mundo experimentado”, provoca rachaduras nos sistemas. Monet queria apenas captar a luz, Cézanne, compor o “tema” à sua frente. E, na verdade, vieram a transformar paciente e dolorosamente a nossa visão da natureza. Em outras palavras, lançaram uma perturbação duradoura e crucial na ordem da percepção, quando sua única ambição era fazer o seu trabalho, tal como o concebiam, da melhor forma possível.
O amor, por sua vez (dizer isso não é nenhuma novidade), provoca perturbação. Faz surgirem ali, onde reinava a tranquilidade da alma e do corpo, sentimentos violentos e contrastantes. Basta lembrarmos a canção de Querubino, em Bodas de Fígaro, ou a epidemia de suicídios de amantes incompreendidos, quando da publicação de Werther, de Goethe. Racine o expressou admiravelmente em Fedra, quando a faz se lembrar de seu encontro com Hipólito.
A perturbação perdura, pois o amor não deixa o sujeito descansar e viver com serenidade.
O amor levanta um duplo problema fundamental – o da duração e o da intensidade. O amante se pergunta sempre: “Será que vai durar, será que ele ou ela me ama tanto quanto eu o ou a amo? Será que não devo questionar o que sou ou mudar de vida para ser digno do amor que tem por mim?”. “Não existe amor feliz”, escrevia Aragon. Seria melhor dizer: “Não existe amor sem asperezas, amor que alivia”. O amor desperta para os prazeres desmedidos e para o sofrimento mais agudo. Com ele, nenhuma certeza. Tudo tem de ser reinaugurado a cada dia. Como o pensamento, ele é destruição criadora, integra a pulsão de morte à pulsão de vida. Ele quer o outro vivo; ele quer o outro morto, se não for semelhante ao sonho projetado; ele é o sinal do nosso élan para a vida, mas muitas vezes assina a nossa sentença de morte. Há, portanto, uma homologia entre a perturbação do pensamento e a perturbação provocada pelo amor.
Tanto o pensamento exigente quanto o amor autêntico são rechaçados em nossa sociedade, pois ambos são perturbadores. E os indivíduos atuais precisam de certezas, querem refletir de forma binária, e todos os meios sofisticados de comunicação tomam essa direção. O que não é passível de ser posto em números, submetido a cálculos, torna-se insignificante. O quantitativo substitui o qualitativo considerado não “científico”.
O culto à excelência e ao desempenho – o dinheiro-rei
Todos os seus instrumentos, cada vez mais sofisticados, são confiados a pessoas extremamente qualificadas que devem provar sua competência diariamente superando todos os desafios (os “challenges”, como se diz em francês!) suscitados por um trabalho que a cada dia implica novos riscos. Assim surgiu o mundo da gestão rainha (Gaulejac, 2005), onde todos devem tornar-se tomadores de decisões, capazes não apenas de realizar bem o seu trabalho, mas de fazê-lo com excelência e ainda se possível melhorar os seus desempenhos. A organização do trabalho tal como se aplica hoje segue essa direção. O indivíduo com desempenho insuficiente desaparece, pois representa um prejuízo pesado para o aumento do lucro. A conclusão disso é a de que reina o dinheiro distribuído prioritariamente aos acionistas e aos donos de fundos de pensão.
A transformação do cidadão em consumidor
Antigamente (na época da pólis ateniense), havia o cidadão. Os tempos modernos inventaram o Produtor, o Trabalhador (com maiúsculas). O nosso mundo contemporâneo só se interessa pelo consumidor. “É preciso aumentar o consumo para impulsionar ou reimpulsionar a economia.” “Aquele que não consome não é um bom americano, um bom francês…” São essas as palavras de ordem. O indivíduo que não compra, que não possui o último produto útil (ou inútil) não tem a sensação de existir. Um humorista resume assim a situação: “L’Être s’est fait avoir[6]” – caricatural, mas bastante correto. Quando os indivíduos não têm o que consideram que deveriam ter, revoltam-se, pilham lojas, queimam carros. Amplia-se o reino do ciúme e da inveja.
A nova concepção do tempo – a vida imediata
“A vida imediata” já não nos remete à bela coletânea de poemas de Paul Éluard nem à vontade de viver intensamente de Gide (“Eu te ensinarei o fervor…”), dos dadaístas ou dos surrealistas. Não significa mais do que a necessidade de agir rápido, com urgência (N. Aubert, 2002), de concentrar-se no efêmero, no “que está na moda”; e, sobretudo nas empresas, ser capaz de estar informado e reagir “em tempo real”. Para os mais despossuídos, ela tem a sinistra significação da sobrevivência no dia a dia. Para todos, não há mais futuro (não são apenas os seguidores do “no future” que o afirmam, mas o próprios futurologistas, pois suas profecias geralmente revelam-se equivocadas), diminui a capacidade de previsão e desaparece a programação a longo prazo. Assim, tem-se que aproveitar imediatamente, lançar mão da oportunidade propícia (o kairos) no próprio momento, já que o futuro se tornou imprevisível. Com a vida imediata, o declínio da construção amorosa, dos laços de amizade, da solidariedade. Salve-se quem puder! Cada um por si.
A precariedade – a reinvenção do “inútil para o mundo”
Se todos devem saber manejar instrumentos sofisticados, demonstrar bom desempenho, ser bons consumidores, particularmente reativos (tomando as decisões corretas no momento oportuno), que fim levará aquele que (por todo tipo de razão) não estiver em condições de estar nessa situação? Pois bem, ele corre o risco de ser eliminado (demitido, sobrevivendo de “bicos”) socialmente, psiquicamente, às vezes fisicamente. Ele se tornou o que na Idade Média se chamava “um inútil no mundo”, a quem se deve dar certa ajuda, mas que incomoda. Se desaparecesse, ninguém sentiria a sua falta.
A instalação de um mundo sadiano (perverso)
Se todo indivíduo puder fazer uso de instrumentos, ele poderá enxergar a si próprio como um instrumento que é preciso afinar (as técnicas de capacitação aí estão para preencher suas lacunas). Se ele for um instrumento, pode ser usado como tal por outros. Assim, se crê livre, mas tem sempre de estar na ponte, estressando-se, superando-se, tornando-se melhor, mais completo. Na realidade, ele se vê negando a sua existência, os seus desejos, as suas dúvidas, os seus momentos de abandono, de desespero ou de entusiasmo. Ele tem que estar em conformidade, e, mesmo que esteja, poderá sempre ser objeto de manipulações infames. Pois o único valor que conta é o dinheiro, e é lícito, neste mundo, seduzir, coagir, persuadir, manipular o outro e, a rigor, matá-lo se isto significar um resultado econômico positivo para o manipulador. Então, assim chega o “tempo dos assassinos” anunciado por Rimbaud. Como escreveu H. Broch (1932), “o maior miserável toma sempre o papel do carrasco no processo de degradação dos valores, e, no dia em que as trombetas do julgamento soarem, o homem isento de valores tornar-se-á o carrasco de um mundo que condenou a si mesmo”.
Haverá, talvez, quem ache este quadro um tanto negro. E é, mas não mais – é até menos – do que a realidade que nos é lembrada diariamente pelos milhares de seres que morrem de fome, sucumbem às guerras, são presas de assassinos (às vezes de colarinhos brancos), vivem no limite da sobrevivência e nas nossas sociedades desenvolvidas são percebidos e rejeitados como dejetos (D. Lhuilier e Y. Cochin, 1999) no dia em que não parecem mais rentáveis ou em que sua empresa é adquirida, relocalizada. E, no entanto, alguns sinais, sem dúvida discretos, lembram-nos que nem sempre acontece o pior. Nem todos os homens se resignam a esse mundo sem amor, sem paixão recíproca e não alienante, sem reconhecimento mútuo. De fato, muitas pessoas ainda querem casar-se e ter filhos (filhos que, como mostrou Hegel, significam ir além de uma relação dual que poderia se tornar mortífera); os casais homossexuais querem ter filhos (graças a mães de aluguel) ou adotá-los. Desejam, cada vez mais, casar-se ou manter relações duradouras. As mulheres solteiras também desejam prolongar-se em seus filhos.
Em outro plano completamente diferente, o indivíduo atomizado começa a retomar o gosto pelo coletivo, pelos grupos de afinidades (é verdade que muitas vezes ele se engana e adere a seitas alienantes. Mas, apesar de tudo, ao escolher esse caminho, o que se quer sinalizar é a impossibilidade de viver só, isolado de seus semelhantes e com o coração frio), pelos grupos políticos que se situam fora dos partidos políticos ou dos sindicatos tradicionais. Retoma também o gosto pela política, quer dizer, o interesse pela vida da cidade, e, assim, pelos seres humanos que a compõem; investe em movimentos sociais mais ou menos inovadores, ou, pelo menos, não tradicionais (como os movimentos altermundialistas). Interessa-se pela construção europeia, mesmo que combata as suas formas atuais.
Portanto, Eros ainda não disse a última palavra. E é provável que jamais o faça, pois um mundo em que cada um é definitivamente separado dos outros só poderia transformar-se em uma “terra devastada”, onde reinaria um inverno eterno. Sendo assim, a voz de Eros ainda está baixa, e ouvem-se bem melhor os clamores de Tânatos. Apesar disso, o futuro ainda está longe de estar decidido. Há muito sabemos que, quando as sociedades evoluem em um certo sentido, reticências e resistências acabam emergindo. Como dizia Hölderlin: “Quando aumentam os perigos, aumenta também o socorro”. Talvez, em um momento imprevisível, um grande número de homens poderá repetir os famosos versos de La Fontaine:
Amants, heureux amants, voulez-vous voyager
que se soit aux rives prochaines,
soyez vous l’un à l’autre un monde toujours beau
Toujours divers, toujours nouveau[7]
Isto é pouco provável de acontecer. No entanto, não se trata de abandonar toda esperança de surpresa, pois, como escrevia outro poeta, René Char: “A cada derrocada das provas, o poeta responde com uma salva de futuro”.
Tradução de Lucia Melim
Notas
- Tradução livre: “No auge do amor, não subsiste nenhum interesse pelo mundo que os cerca: os amantes se bastam, não precisam nem de um filho comum para serem felizes. Em nenhum outro caso Eros traduz melhor a essência de sua natureza, seu intento de fazer de vários seres um só: mas conseguiu isso fazendo com que dois seres se apaixonassem um pelo outro, isto lhe basta, como comprova o provérbio, e ele se dá por satisfeito”. ↑
- “Sem as propriedades, em si decerto não dignas de apreço, da insociabilidade (dos homens), de que promana a resistência com que cada qual deve deparar nas suas pretensões egoístas, todos os talentos ficariam para sempre ocultos no seu germe, numa arcádica vida de pastores, em perfeita harmonia, satisfação e amor recíproco: e os homens, tão bons como as ovelhas que apascentam, dificilmente proporcionariam a esta sua existência um valor maior do que o que tem este animal doméstico”, escreveu Kant. Ideia de uma História Universal com um propósito cosmopolita (1784), trad. Artur Morão. Disponível em: LusoSofia Press, <www.lusofia.net>, p. 8. ↑
- “Corre, corre o furão.” [n.t.] ↑
- Tradução livre: “Assim com inconstância me conduz o Amor/ E quando penso que mais vou penar/ sem perceber desaparece a dor/ E quando creio que a alegria é certa/ Que soa a hora de meu desejo/ A desventura Ele desperta”. ↑
- Tradução livre: “Eu o vi, corei e empalideci ao vê-lo;/ Uma aflição elevou-se em minh’alma perdida;/ Meus olhos já não viam, não pude mais falar./ Senti todo o meu corpo tremer e arder”. ↑
- Jogo de palavras significando ao mesmo tempo “o ser se fez ter” e “o ser se deixou enganar”. [n.t.] ↑
- Tradução livre: “Amantes, felizes amantes, desejam vocês viajar/ Que seja em margens próximas,/ Sejam um para o outro um mundo sempre belo/ Sempre diverso, sempre novo”. ↑