O conceito de paixão
por Gérard Lebrun
Resumo
Ninguém é bom ou mal pelo que sente – o que é inevitável –, mas como reage a tal condição, temperando, dosando.
Trata-se, então, de domínio de si? Não propriamente, uma vez que isso pressupõe um aprendizado, e o virtuoso não se cria – ele é.
Ao analisar o conceito de paixão em Aristóteles, nota-se algo de estranho. É ainda a ideia de paixão educada. Com efeito, Aristóteles afirma que “o desejo é insaciável e alimenta-se de tudo”. A educação é, contudo, mais do que repressão dos desejos – noção exageradamente cristã. Diferente, a virtude aristotélica pode ser determinada pelo bom gosto ou equilíbrio natural de si.
Acreditar nisso seria um otimismo descabido? Na realidade, Aristóteles jamais se refere a uma lei moral. Trata-se, antes, do julgamento do outro diante de determinada conduta, mais de acordo com a ideia de elegância do que de moral. Daí alguma inatualidade na análise aristotélica de paixão, para a qual a razão não induz, por si, a um comportamento.
Por outro lado, como falar de conduta razoável sem assumir a natureza passional do homem. E eis que razão e paixão são inseparáveis, o que se evidencia quando, de acordo com Hegel, considera-se pathos em seu sentido original, ou seja, o de uma palavra que, ao contrário do que se costuma supor, é desprovida de qualquer nuance de censura ou egoísmo. Assim, paixão é o conteúdo racional essencial ao eu.
Em suma: para harmonizar as paixões, não se deve contar com uma lei moral, pois em nome dela só se pode reprimir. É preciso – isso sim – abandonar a ideia de logos como lei que se dirige a todos, ignorantes ou cultos. Iguais perante a Deus, à democracia etc. Afinal, é isso que induz à relação entre paixão e desvario. E contra isso o que se pode é tentar descobrir o quanto o conceito de pathos desvirtuou-se ao longo da história.
De início: ou os estoicos, ou Aristóteles. A grande oposição entre tais filosofias da paixão apareceu antes mesmo da noção de sujeito. A primeira trata a paixão como elemento constitutivo do humano e sua práxis. A outra, que influenciou Platão, cinde paixão e razão. Mais: reconhece o quanto é limitado o poder desta sobre aquela. Assim, ainda que a antropologia de Aristóteles pareça pressupor um humanismo, é ele, todavia, o juiz mais rigoroso das responsabilidades ética e política. Já a Platão cabe reconhecer que ninguém é voluntariamente bom ou mal e que os apaixonados são irresponsáveis.
Por isso há na ética aristotélica duas recusas: a de declarar guerra às paixões e a de considerar o comportamento passional involuntário. Já quanto aos estoicos e platônicos, eles consideravam a paixão voluntária e, por isso, interpretavam-na, pois é dela que se é causa perfeita.
Interessante, nesse sentido, é a distinção aristotélica entre o passional, origem da ética, e o patológico, origem do diagnóstico médico. Sabe-se quanto essa fronteira muda de acordo com as civilizações e as épocas.
Pode-se chamar de passional um comportamento semivoluntário? Pode-se considerar não totalmente responsável o apaixonado?
Assim como o deslocamento do território ético para o terapêutico, o desaparecimento de tal distinção é característico da atualidade. Dado isso, como salvaguardar ainda a paixão? Se todo comportamento é pulsional, a paixão passa a elemento estranho, a ser tratado.
O atual médico da paixão desconsidera a sabedoria ou a virtude. Assim, para entender o declínio da ideia de paixão, é preciso considerar o deslocamento moderno do eu junto à ideia de responsabilidade social.
Lemos nos Novos ensaios de Leibniz: “Prefiro dizer que as paixões não são contentamentos ou desprazeres nem opiniões, mas tendências, ou antes, modificação da tendência, que vêm da opinião ou do sentimento, e que são acompanhadas de prazer ou desprazer”.[1] Essa definição da paixão está em conformidade com nossos hábitos de espírito. Paixão, para nós, é sinônimo de tendência — e mesmo de uma tendência bastante forte e duradoura para dominar a vida mental. Ora, é digno de nota que esse significado da palavra paixão traga em sua franja o sentido etimológico de passividade (paschein, pathos), sentido lembrado por Descartes no começo do Tratado das paixões: “Tudo o que se faz ou acontece de novo é geralmente chamado pelos filósofos de paixão relativamente ao sujeito a quem isso acontece, e de ação relativamente àquele que faz com que aconteça”.
Aqui, Descartes recorda brevemente a definição aristotélica do agir e do padecer. Esses dois conceitos são inseparáveis, mas cada um deles designa uma potência bem distinta. Padecer é inferior a agir por dois motivos. Em primeiro lugar, é próprio do agente encerrar em si mesmo um poder de mover ou mudar, do qual a ação é a atualização; o ajuste está naquilo que faz ocorrer uma forma. Diz-se paciente, ao contrário, àquele que tem a causa de sua modificação em outra coisa que não ele mesmo. A potência que caracteriza o paciente não é um poder–operar, mas um poder-tornar-se, isto é, a suscetibilidade que fará com que nele ocorra uma forma nova. A potência passiva está então em receber a forma. Em termos aristotélicos, deve ser lançada à conta da matéria. Em segundo lugar, padecer consiste essencialmente em ser movido — ao passo que o agente, na medida em que sua atividade própria está em comunicar uma forma, não é essencialmente mutável. Ocorre, decerto, que ele deve mover-se para agir sobre o paciente, mas não como agente. É porque também ele é um ser que contém matéria. O paciente como tal é que é, por natureza, um ser mutável, caracterizado pelo movimento.
Nessa inferioridade do padecer, encontra-se assim a desqualificação, própria dos clássicos gregos, da mobilidade relativamente à imobilidade. É por conter matéria, isto é, indeterminação, que um ser se move. O fato de ter que mudar (de lugar ou de quantidade ou de qualidade) para receber uma nova determinação mostra que ela não possui todas as qualidades de uma só vez, e que a aparição dessas depende da intervenção de um agente exterior. Ora, este último aspecto é fundamental para a determinação do pathos. É reagindo a uma ofensa que eu sinto raiva. Sinto medo ao imaginar um perigo iminente que possa me prejudicar ou destruir. A paixão é sempre provocada pela presença ou imagem de algo que me leva a reagir, geralmente de improviso. Ela é então o sinal de que eu vivo na dependência permanente do Outro. Um ser autárcico não teria paixões. Pode-se imaginar um deus irritado ou um deus amoroso? É verdade que os poemas homéricos estão cheios dessas histórias. Mas é justamente por isso que Platão denunciava sua nocividade. Os poetas, afinal, “são grandes mentirosos”, acrescenta Aristóteles.
Portanto não existe paixão, no sentido mais amplo, senão onde houver mobilidade, imperfeição ontológica. Se assim for, a paixão é um dado do mundo sublunar e da existência humana. Devemos contar com as paixões. Devemos até aprender a tirar proveito delas. Não é de espantar, então, que o tratado das paixões de Aristóteles faça parte da Retórica, que analisa as paixões de modo a permitir ao orador suscitá-las ou pacificá-las em seus ouvintes. Saber jogar com impulsos emotivos pertence à técnica oratória — e é provável que os retores tenham sido os primeiros a atribuir ao pathos este sentido, a que hoje chamaríamos psicológico. O estudo dos efeitos que o discurso produz sobre os homens é que faz com que o pathos perca o seu sentido mais amplo de fenômeno passivo (sentido que igualmente convém às percepções sensíveis, como dirá Descartes) para vir a designar as percepções da alma. O objetivo do orador, e, mais ainda, o do poeta, não consiste apenas em convencer através de argumentos. É necessário também que ele toque a mola dos afetos, e utilize os movimentos da alma que prolongam certas emoções. Desta forma, é preciso então saber a propósito de que objeto determinado e por que disposição determinada do autor se realizam estas variações afetivas. “Entendo por paixões”, diz Aristóteles na Retórica, “tudo o que faz variar os juízos, e de que se seguem sofrimento e prazer”.[2] Assim, sinto cólera quando sinto desejo de me vingar de uma manifestação de desprezo, de uma humilhação ou insulto. Sinto ódio quando, a qualquer preço, desejo a destruição de alguém, mesmo que eu não seja testemunha do mal que esse alguém sofre.
Esses movimentos da alma são um dado da natureza humana e não se trata de extirpá-los nem de condená-los. Com efeito, não é em razão dos pathé que sentimos, diz Aristóteles, que somos julgados bons ou maus: isto seria absurdo, pois eles estão inscritos em nosso aparelho psíquico, e não podemos deixar de senti-los. Ninguém se encoleriza intencionalmente. Ora, a qualificação bom/mau supõe que aquele que assim julga escolheu agir assim. Um homem não escolhe as paixões. Ele não é, então, responsável por elas, mas somente pelo modo como faz com que elas se submetam à sua ação. É desse modo que os outros o julgam sob o aspecto ético, isto é, apreciando seu caráter. Só pode ser, aliás, dessa forma. Pois um juízo ético seria simplesmente impossível se não houvesse como regular as paixões. A excelência ética (arétè) — que traduziremos muito imperfeitamente por virtude — só pode ser determinada pelo modo de reagir às paixões e, mais precisamente, pelo modo como um homem pode temperá-las. Sempre que eu ajo de modo a revelar meu caráter, meu comportamento emotivo entra sempre em jogo, pois os outros não dispõem de outro critério para me julgar. Sem as paixões, também não haveria uma escala de valores éticos. Sem as paixões, ou antes, sem a possibilidade que nós temos de dosá-las. Pois as paixões e as ações são movimentos e, como tais, contínuas, isto é, grandezas que podem ser divididas sempre em partes menores e em graus menores, de tal forma que, quando ajo, me é sempre possível fixar a intensidade passional exata apropriada à situação. Sem dúvida, essa escala passional é limitada. Há um grau além do qual nenhum ser humano pode suportar uma emoção e um grau de apatia abaixo do qual não há como descer (a ausência absoluta do medo só existe para um deus ou para um animal). Entre esses dois limites há uma gama na qual se pode estabelecer a conduta correta ou média, a saber, a que nos permite evitar dois tipos de reações estereotipadas. No caso da raiva, por exemplo, a conduta correta (variável segundo as circunstâncias) estará tão afastada da suscetibilidade extrema que me faz arrebatar-me à menor suspeita de ofensa quanto da insensibilidade extrema (ou vileza) que me faria tolerar palavras ou atos contrários à minha dignidade. Percebe-se assim que o homem “virtuoso” não é aquele que renunciou às suas paixões (como seria possível?), nem o que conseguiu abrandá-las ao máximo. O homem virtuoso ou “bom” é o que aprimora sua conduta de modo a medir da melhor maneira possível e em todas as circunstâncias o quanto de paixão seus atos comportam inevitavelmente. Isto não quer dizer que haja uma disposição para as ações ou reações que seriam sempre objetivamente médias. Se assim fosse, a “virtude” do combatente consistiria em tomar o partido médio entre a fuga e o ataque, em escolher um local de combate que fosse o menos perigoso possível… Ora, a coragem, para Aristóteles, não tem nada em comum com esta semipoltronaria: o soldado corajoso é aquele que se arrisca ao máximo e que aceita a morte em nome da cidade.
Afirmaremos então que as paixões oferecem ao homem a ocasião de manifestar o domínio de si mesmo? Isso não seria exato. O virtuoso não experimenta a necessidade de dominar-se. É o egkratés que deve dominar-se sem trégua, o que adquiriu controle suficiente de si mesmo para não ceder ao impulso de maneira irrefletida, mas que sofre por ter de agir assim. Esse apenas aprendeu a refrear as paixões. O virtuoso, ao contrário, age corretamente, mas em harmonia com suas paixões, porque ele as dominou de uma vez por todas. Não só aprendeu a agir de modo conveniente, mas a sentir o pathos adequado. Enquanto eu precisar esforçar-me para resistir ao que minhas paixões trazem de excessivo, ainda não as domei. Ainda não sou “virtuoso”, ou seja, “forte” no sentido de Nietzsche (que dissimulou sua dívida para com a Ética a Nicômaco).
Essas análises de Aristóteles, que acabo de recortar em linhas gerais, hoje são um pouco desconcertantes para nós. Há particularmente algo que nos parece estranho: que a paixão seja compreendida como uma tendência implantada na natureza humana, mas eminentemente suscetível a ser educada. Certamente, Aristóteles não deixa de observar que “o desejo do agradável é insaciável e se alimenta de tudo”, e que ele crescerá sem medida se não for reprimido desde a mais tenra infância. “O desejo é infinito por natureza e a maioria passa a vida tentando saciá-lo”.[3] Todavia, a educação é mais do que a simples repressão dos desejos. Ela deve levar os “homens bem-nascidos” a dominar suas paixões, isto é, a torná-los aptos a utilizá-las adequadamente. No homem bem-educado, o pathos não é uma força que colocará permanentemente obstáculos à alma razoável: ele está a serviço do logos e em consonância com ele. A boa educação faz de mim um ser tão perfeitamente “condicionado” que as paixões estão permanentemente à minha disposição. Sem dúvida, o homem é um ser afável, mas essa passividade não o torna joguete das tendências contra as quais ele jamais cessaria de lutar. Se assim nos representamos as paixões, é porque o cristianismo nos fez acreditar na Queda e no Inferno. Contra esse fundo, a “virtude” só pode significar uma batalha contínua contra minhas pulsões e a “lei” a que devo obedecer. Esquece-se então de que a “virtude” pode ser determinada como simples questão de bom gosto e de equilíbrio das paixões em função das circunstâncias.
Análise exageradamente otimista da condição humana? Digamos antes: análise alheia a uma mentalidade impregnada de cristianismo. E isso, ao menos por dois motivos: em primeiro lugar, Aristóteles não fala nunca de uma lei moral que me proíba de praticar um ato qualquer. Aqui, a regulação ética não é exercida através de uma lei judaico-cristã, mas pela opinião de um espectador prudente, que aprovará/desaprovará minha conduta e avaliará se eu soube usar convenientemente minhas paixões. Não é a uma lei que eu devo referir minha conduta, mas à opinião moderada dos outros. Ora, os outros não sondam minhas entranhas nem meu coração; não me julgam com base no que sinto, mas na minha maneira de reagir ao que sinto. O homem não é portanto (ainda) aquele que, no segredo de si mesmo, consegue a todo momento a vitória sobre si mesmo; é aquele cujas paixões, à vista de todos, são proporcionais à causa que as produz e à situação que as suscita. Não se trata de alguém obediente, mas elegante. E não é exagero dizer-se que nesse sentido a ética aristotélica é mais um tratado de savoir-vivre do que um tratado de moral, na acepção que se nos tornou familiar. Um segundo aspecto permite-nos destacar a inatualidade de Aristóteles. Para ele, não existe uma razão pura prática, como para Kant. O pensamento, por si mesmo, não é motor, e uma ação não poderia ser a simples execução de um mandamento da razão. O que me leva a agir é o pensamento enquanto dirigido para um fim. Ora, é sempre uma pulsão (oréxis) que estabelece o fim; o primeiro motor de uma ação é sempre o objeto de uma pulsão. “A faculdade que move a alma é aquela chamada de oréxis”.[4] Dessa forma não há qualquer conduta que seja capaz de inibir totalmente as paixões. Toda conduta, inclusive a que se conforma ao logos, deve servir-se das paixões. Esse tema, por excelência, opõe o aristotelismo a toda filosofia ou a toda religião que conceba a moralidade como submissão incondicional a um logos — e particularmente ao estoicismo (o qual, como se sabe, exerceu influência sobre Kant). “O estoicismo”, escreveu um de seus intérpretes, “combateu com virulência toda especial a tese aristotélica segundo a qual as paixões são dadas na natureza humana e constituem preciosos auxiliares da razão — indispensáveis para a conduta correta da vida, quando mantidas em seu justo limite.”[5] Ora, para combater tal tese, é necessário sustentar que um juízo teórico (ou que uma injunção da prática pura da razão) seja suficiente para determinar uma ação e que um ser razoável afetado de passividade seja capaz de perseguir um objetivo sem ser motivado por uma pulsão. Não é proibido pensar que tal proeza seja possível, e que virtuoso seja sinônimo de racional: não é escândalo ser estoico ou kantiano. Contudo, é necessário tomar consciência do que essa opção implica quanto à interpretação que então se dá, a priori, da paixão — um obstáculo a ser transposto, uma força que deve ser vencida.
Ora, não é essa a única análise possível da “finitude” humana, ou melhor, da não-autarcia do homem (para evitar a ressonância cristã da palavra “finitude”). Podemos, igualmente, vivê-la da maneira descrita por Aristóteles. Sem dúvida, devemos aprender a viver em conformidade com o logos, mas sem esquecer que as paixões continuam sendo a matéria de nossa conduta — e que só a propósito de seres passionais se pode falar em conduta razoável (se deixarmos Deus de lado). Paixão e razão são inseparáveis, assim como a matéria é inseparável da obra e o mármore da estátua. Desse ponto de vista, ninguém é mais aristotélico do que Hegel, na Estética, quando ele se esforça por distinguir o que os gregos entendiam por pathos e os modernos entendem por paixão. “A palavra pathos é de difícil tradução, pois paixão implica algo de insignificante, baixo — como quando dizemos que um homem não deve sucumbir às paixões. Aqui, tomamos o termo pathos em plano mais elevado, sem qualquer nuance de censura ou de egoísmo. Assim é, por exemplo, que o amor sagrado de Antígona por seu irmão consiste em um pathos, no sentido grego da palavra. […] Orestes mata a mãe, não sob o império de uma dessas pulsões internas da alma, a qual chamaríamos de paixão; o pathos que o conduz a esta ação é bem pensado e refletido […] Deve-se limitar o pathos às ações humanas e pensá-lo como o conteúdo racional essencial presente no ‘eu’ humano, preenchendo e penetrando a alma inteira”.[6] “Nada de grande se fez sem paixão.” Nessas famosas palavras de Hegel, paixão não tem o sentido que lhe damos na expressão “crime passional”. A “paixão” de que se trata não é um impulso que nos leva, malgrado nosso, a praticar uma ação. Ela é o que dá estilo a uma personalidade, uma unidade a todas as suas condutas. A paixão, continua Hegel, torna profundos os heróis shakespearianos. O pathos que os anima pode ser simples, como acontece com o amor entre Julieta e Romeu, mas nem por isso tem a monotonia de uma ideia fixa. Trata-se antes da tonalidade específica de suas condutas, da tensão que unifica seus atos — sem importar que situação estejam enfrentando. Em suma, a “paixão” é então constitutiva de um personagem — mas sem transformá-lo num maníaco, num “apaixonado”, no sentido em que são apaixonados, nos romances de Balzac, o avaro, o pródigo ou o devasso. Stendhal é um dos analistas da paixão assim compreendida. Ou, no cinema, Visconti, no filme Senso. Aqui, o diretor tem tal maestria em fazer com que o espectador se torne cúmplice de sua heroína que esta tragédia de desgarramento amoroso jamais produz o efeito de uma queda ou degradação. Alida Valli simplesmente cumpre seu destino, como uma personagem da tragédia grega: sua paixão e seu caráter são indissociáveis. Essa vibração afetiva, que caracteriza os grandes personagens trágicos, pode levar um indivíduo à perda e também à glória; seja como for, ela escapa à nossa categorização “moral”. Também Nietzsche tenta frequentemente revelar-nos esse aspecto, por exemplo neste trecho da 2a Consideração Intempestiva, que descreve a “injustiça” e a “cegueira” do pathos sem o qual não pode haver grandes realizações: “Que se represente um homem transtornado, arrebatado por uma paixão violenta por uma mulher ou por uma grande ideia: como o seu mundo se transforma. Se olhar para trás, sente-se cego. Se auscultar o que vem dessa direção, só perceberá um ruído surdo e vazio de sentido; mas o que notará jamais lhe pareceu tão verdadeiro, tão próximo, tão colorido, tão luminoso, como se pudesse abarcá-lo com todos os seus sentidos de uma só vez. Todas as suas apreciações são modificadas e desvalorizadas. É o estado de espírito menos equitativo que há no mundo, estreito, injusto com o passado, cego às advertências, um pequeno turbilhão de vida no coração de um mar de trevas e esquecimento”.
Cegueira? Desvario? Abstenhamo-nos de julgar em nome de nossas categorias “morais”: “…os maiores atos realizam-se num tal excesso de amor”.[7] Seria inconveniente pronunciar a palavra sumária “amoralismo” a propósito dessas páginas de Hegel ou Nietzsche. Nenhum deles enaltece a paixão furiosa, nem quer apresentar-nos “Vênus encarniçada sobre sua presa”. Cada um deles tenta redescobrir, talvez por afinidade ou vinculação a Goethe — é uma interpretação pagã e, apesar das aparências, antirromântica da paixão.
Até agora, tomei Aristóteles como referencial do paganismo, mas com isso não quero absolutamente insinuar que essa página de Nietzsche seja um eco de Aristóteles. Não esqueço que, aos olhos de Nietzsche, Aristóteles foi um grego da Decadência que privilegiou a parte intelectual da alma, tornando o orthos logos um regulador da ação. Resta, contudo, que se compreendam um pouco melhor as tentativas para dar ao pathos seu sentido original quando nos referimos a Aristóteles — e isso por um motivo muito preciso. Aristóteles era o pensador de um logos que, sem dúvida, não pode ser traduzido com fidelidade pela palavra latina ratio — pois esse termo, em nossa semântica instintiva, nos leva à ideia de uma norma válida para cada um em quaisquer circunstâncias, em nome do qual um tribunal, o famoso tribunal kantiano, dispensaria justiça com toda a segurança. Não há (ainda) um tribunal aristotélico da razão. Reportem-se às análises das virtudes da Ética a Nicômaco. Ali observarão que a excelência ética, isto é, a dosagem passional que define cada virtude, é, em todos os casos, objeto de um difícil ajuste às circunstâncias. Requer-se, igualmente, “todo um trabalho” para tornar-se virtuoso. Não é o primeiro que aparece que sabe, em todas as ocasiões, equilibrar seu comportamento passional como convém. De onde vem a dificuldade? É que não há uma fórmula universal desse equilíbrio. E aquele que em cada caso e por sua conta consegue atingi-lo não pode basear-se em nenhuma medida que seria válida para todos os homens, todas as condições sociais, para os dois sexos etc. Em suma, para harmonizar as paixões, não se deve contar com uma Lei moral: em nome da lei só se pode reprimir.
Se a palavra paixão está solidamente associada à da repressão, é porque já representamos o logos como uma lei, expressa por um mandamento que se dirige a todos, ignorantes ou cultos — por uma injunção tão poderosa que todos os homens (iguais perante Deus e democraticamente iguais) seriam capazes de a compreender pela mesma razão. No fundo, é essa interpretação legislativa do logos que nos força a pensar toda a paixão como um fator de desvario e deslize e a considerá-la, de roldão, como suspeita e perigosa. Se é necessário pensar o logos como uma lei positiva, então os estoicos estão com a verdade: toda paixão, desde o seu despertar, já infringe a lei que me constitui como um ser razoável, todas as paixões, na sua origem, já me conduzem “para fora de mim mesmo”.[8] Essa condenação das paixões se dá sem apelação. Tentemos então medir quanto o conceito de pathos se encontra alterado.
O fato de o pathos ser tido como um fenômeno irracional (alogon) não quer dizer que haveria na alma, para os estoicos, uma força capaz de derrotar o logos. O desejo, o medo, a cólera, não provêm de uma alma irracional em nós. De onde vêm eles então? E que significa alogon, quando Zenão define a paixão como uma “pulsão excessiva” (ermè pléonazousa)?[9] Se o logos é constitutivo de minha natureza, como pode o alogon surgir em minha alma? Através da representação (phantasia). Percebo alguma coisa, tenho um sentimento de prazer ou de dor — e é a representação que transforma esse fato psicológico em uma tendência. Conscientizo-me de que o alimento é apetitoso ou de que a dor é ruim — e essa consciência desperta em mim uma tendência a procurar ou a evitar o objeto. Assim, a tendência é sempre precedida de um juízo a respeito do que devo procurar ou evitar. E esse é o tipo de juízo que pode me induzir a erro. Posso imaginar, por exemplo, que não é apenas necessário evitar a dor, mas que ela consiste em um mal absoluto e que deve ser evitada a todo custo. Dessa maneira, nasce a tendência irracional, ou pathos, que submete minha conduta ao meu sentimento de prazer ou de dor. Ela não é uma força estranha que me obriga, mas o sintoma de uma fraqueza da alma. Essa tese deve levar-nos a matizar o “intelectualismo” que se costuma imputar aos estoicos. Crisipo não afirma que se deve o pathos a um raciocínio falso, mas a um “assentimento fraco”. O apaixonado não é simplesmente um estouvado que comete um engano: é um desvairado que deu as costas (apostrophé) à razão. Seu erro provém de um desajuste do logos em si, pois ele engana-se ao julgar a proporção dos acontecimentos. Sua alma não está em harmonia com a instância que, por natureza, nele deveria dominar e é esse desvio em relação à natureza que explica o caráter excessivamente passivo do pathos. Por isso há um só meio de evitar as paixões: extirpá-las, impedindo que a emoção se transforme em uma tendência. Esse é o objetivo da profilaxia estoica. De tanto medir a fragilidade da vida e a precariedade dos bens que não dependem de mim, acabarei por não mais reagir negativamente aos efeitos, permanecendo apático, mesmo aos golpes imprevisíveis do destino.
Essa sabedoria não é equivalente a uma anestesia, como se afirmou algumas vezes, e a apatia não consiste, exatamente, em insensibilidade. “O sábio”, diz Crisipo, “sofre a dor, mas não é mais tentado por ela: sua alma não se abandona mais a ela.”[10] Ele ainda sente a emoção, mas é suficientemente treinado a ponto de não interpretá-la de maneira fantasiosa, jamais se deixando tragar por ela. Ele é como um ator experiente que permanece sempre distante das peripécias do drama que representa. Não se trata mais de saber até que ponto é conveniente deixar que suas paixões se extravasem. Seria absurdo pretender controlar a paixão e modular sua força, pois ela é sempre o sintoma de uma doença e não de uma reação inevitável a uma emoção. Nada se fez enquanto não se impossibilitou a alma de senti-las. A sabedoria é uma cirurgia das paixões.
Compreende-se que Nietzsche se tenha perguntado se os estoicos ainda eram gregos. Os gregos de antes da Decadência viviam com as paixões e não contra elas; eles não temiam deixar-se testar por elas. “Domínio das paixões, e não enfraquecimento ou extirpação das paixões. Quanto maior é a força do querer, tanto mais liberdade damos às paixões.”[11] Nada é mais antiestoico. Aos olhos de Nietzsche, a apatia estoica é um remédio cuja utilização é o sintoma da mais profunda fraqueza. Os estoicos, apesar das aparências, são os filósofos da vontade fraca, da vontade incapaz de enfrentar as perturbações da alma. “É preciso destruir as paixões”: essa é a decisão ingênua que torna danosos a maioria dos ascetismos. Danosos, não por serem “repressivos”, mas porque partem da ideia de que é impossível viver uma paixão sem ser totalmente dominado por ela, e porque são, antes de tudo, sensíveis ao perigo da paixão. “Destruir as paixões e os desejos, só por causa de sua tolice e para evitar suas consequências desagradáveis, parece-nos hoje uma manifestação aguda de tolice. Não admiramos mais os dentistas que extraem os dentes para evitar que incomodem mais.”[12] Se é necessário recusar o ascetismo de tipo estoico, não é pelo fato de pretender refrear as paixões — mas porque concebe destruí-las, já que não consegue suportá-las e dominá-las. Pois descreve como doença o que é, na realidade, um teste de força. “No que se refere ao remédio receitado por todos esses médicos da alma que preconizam uma cura radical e dura, é permitido nos perguntarmos: será nossa vida tão dolorosa e importuna a ponto de ser vantajoso trocá-la por uma maneira estoica e petrificante de viver? Não nos sentimos suficientemente mal para precisarmos estar mal ao modo estoico.”[13]
Este tema nietzschiano é bem conhecido e não pretendo desenvolvê-lo aqui. É talvez mais interessante perguntar se o conceito de paixão, tal como Nietzsche o reinterpreta, é aquele que em geral temos em mente. Compreendemos a paixão como uma tendência que deve ser domada? Ou como um mal a ser extirpado? À primeira vista, a resposta não deixa dúvidas. É Nietzsche que conta com nossa simpatia. Nos estoicos, vemos no máximo uma filosofia que nos socorre em tempos difíceis. Mas essa sabedoria altiva se nos tornou estranha — não porque seja uma confissão de fraqueza, é verdade, mas porque pensamos que ela conta inteiramente com as forças humanas. Não seria mais razoável tolerar as paixões, nas quais ocorre a junção da alma e do corpo, e incorporá-las a nossa vida, em nosso dia a dia? Todavia, pensando desse modo, talvez estejamos mais próximos do estoicismo do que de Nietzsche ou mesmo de Aristóteles. Isso é fácil de se observar. Basta perguntar-se até que ponto sou responsável por meu comportamento racional. Até que ponto a sociedade tem direito de me pedir satisfação de seus excessos? A essas questões, a intelligentsia dá uma resposta laxista. Vivemos em uma época em que o crime passional é uma circunstância atenuante. Essa noção, que segundo Foucault foi forjada por hábeis advogados no fim do século XVIII, floresceu graças ao romantismo. Resistiu durante a época vitoriana e incorporou-se aos nossos hábitos. Considera-se que uma pulsão demasiado forte diminui minha culpabilidade. Ora, pode-se perguntar se essa ideia é compatível com o reconhecimento da normalidade das paixões. Se minhas paixões são elementos constitutivos de minha saúde mental, contrariamente ao que pensavam os estoicos, e se visamos integrá-las ao nosso comportamento em vez de aniquilá-las, então é necessário admitir que o adulto tido como normal, de agora em diante, é responsável por suas paixões e pelo mau uso que delas venha a fazer por “fraqueza”. Por que deveria uma sociedade condoer-se dos “fracos” — a menos que, naturalmente, ela tenha decidido considerá-los doentes? Mas se a paixão é tida como a causa da conduta, como o foco de exame ético através do qual devo mostrar minha força, é impossível considerá-la uma doença que me coloca “fora de mim mesmo”, e de recuperar o tema estoico. É preciso escolher entre os estoicos e Aristóteles. É duvidoso que alguém possa escapar a essa escolha.
A grande oposição entre duas filosofias da paixão apareceu mesmo antes do nascimento da noção (moral e jurídica) do sujeito. Uma, aparentemente mais condescendente (Aristóteles), que trata a paixão como um elemento do ser humano normal e de sua práxis; a outra, mais rigorosa em aparência (Platão, o estoicismo), mas que faz uma cisão tão grande entre razão e paixão que precisa reconhecer rapidamente o quanto é limitado o poder da primeira sobre a segunda. Dessa forma, os estoicos sabem perfeitamente o quanto é inútil tentar curar o apaixonado enquanto for presa da sua crise. Ora, no que diz respeito à noção de responsabilidade, a primeira opção conduz necessariamente à sua extensão, a segunda à sua restrição, fato que poderá surpreender o leitor moderno. Ainda que a antropologia de Aristóteles pareça pressupor um “humanismo”, é Aristóteles, todavia, que se revela o mais rigoroso quanto à determinação da responsabilidade ética e jurídica. E é o platonismo que se apresenta frequentemente como um ascetismo enfadonho, que afirma que ninguém é voluntariamente mau e que os apaixonados são todos irresponsáveis. Como devemos compreender essas linhas cruzadas? Como a antropologia, que reconhece a solidariedade da alma e do corpo, se concilia com uma moral, no fim das contas, mais severa que a do platonismo? Refletindo sobre este aparente paradoxo, começa-se a compreender por que Aristóteles está bem mais afastado de nós do que podia parecer há pouco e que faz o homem pagar muito caro (sem dúvida, caro demais para nosso gosto) pelo status de normalidade que o filósofo outorga às paixões. Decerto elas são inocentes, “inteiramente boas por natureza”, como dirá Descartes. Mas isso não é motivo para que a cada vez sejamos inocentados daquilo que delas fazemos. Uma vez que as paixões não são nem mórbidas nem demoníacas, sou ainda mais responsável pelo mau uso que delas possa fazer.
Resta que possa ter sido vítima de uma infância infeliz em que meus pais e mentores tenham permitido que meus apetites se tenham desenvolvido de tal maneira que já não sou capaz de refreá-los. Talvez. Porém, curiosamente, como apontam os intérpretes, Aristóteles jamais evoca as circunstâncias atenuantes que pudessem valorizar minha má educação. O que afirma, em compensação, é que na vida há sempre um momento em que cabe apenas a mim não contrair maus hábitos. Posteriormente, é tarde demais: é como se eu tivesse lançado uma pedra que não posso mais recuperar.[14] Tornei-me “fraco” para sempre, e sou eu quem deve ser responsabilizado por isso.
Consideremos um outro exemplo. Um capitão de navio que se vê sob uma tempestade deve jogar ao mar a carga que prometera conduzir ao porto. Caso contrário, haverá naufrágio. Certamente, esse ato é perdoável. E, todavia, nem diríamos que ele agiu sob coação. Trata-se ainda de um ato voluntário. Com efeito, guardemo-nos de fazer restrições à esfera do voluntário. Sem isso, o que faríamos?
Todos poderiam alegar que não estava em suas mãos dominar essa tendência ou amor. Todos poderiam dizer como a Medeia de Eurípides: “Compreendo perfeitamente a infinitude do mal que farei, mas a minha cólera é mais poderosa que meus pensamentos.”[15] Ora, não é verdade que a paixão me possa obrigar, propriamente falando, no sentido em que um lutador mais robusto force seu adversário a curvar-se perante ele.
Como distintivo de minha passividade, não é, porém, uma justificativa. Também não é verdade que ela me torna ignorante daquilo que faço, pois não podemos brincar com a palavra ignorância. Édipo, sem dúvida, ignorava que o viajante que feria fosse seu pai, motivo pelo qual seu parricídio pode ser considerado “involuntário”. Mas aquele que age sob o impulso da cólera ou da luxúria é como um homem que comete um crime em estado de embriaguez: cabe-lhe moderar sua paixão, como cabe ao bêbedo não se embriagar. Do mesmo modo, se o “desregrado” perdeu toda norma ética, essa “ignorância” provém da vida que levou. Deve-se enviá-lo à prisão, não a um terapeuta. Em suma, se a paixão é um componente de minha natureza e de minha saúde é porque, em princípio, ela é dominável. O senso comum não perdeu tempo em representá-la como um acesso de loucura, pois aquele que é bastante “fraco” para nunca se deixar levar por ela não é absolutamente um insano. Não é a violência desencadeada pela paixão que caracteriza o desregramento: é a escolha que se faz de um falso bem de uma vez por todas. A maioria desses atos de fraqueza “são praticados a sangue-frio”. Não imaginemos os luxuriosos assim como os descreve Platão: “possuídos por um prazer tão violento que os transforma em loucos e faz com que gritem como furiosos”.[16] O desregrado não é esse energúmeno. Ele é, antes, conforme Aristóteles, “um homem que busca o prazer, mesmo que não sinta cobiça, pois crê que é necessário tirar proveito de todas as boas ocasiões”.[17]
Dessa forma, parece que há na ética de Aristóteles uma correlação entre duas recusas. De um lado, a recusa de se “declarar” guerra às paixões: deve-se aprender a dominá-las e não a reprimi-las. De outro, a recusa em considerar o comportamento passional como involuntário. Quanto a esse aspecto, pode até dizer-se que Aristóteles é mais rigoroso que os estoicos. Estes consideravam a paixão como voluntária, pois decorreria da interpretação que dou da minha emoção e da qual sou a “causa perfeita”, assim como de cada um de meus atos. Porém, nota-se ainda nas descrições estoicas que, mesmo que todos os homens tenham uma natureza razoável, nem todos têm a mesma faculdade de se “adaptar às circunstâncias” — e que a interpretação errônea, como observamos, deve-se a um afrouxamento do logos em mim, o que por si só já é um fenômeno mórbido. Esse tipo de análise impossibilita a separação entre o passional e o patológico. Para objetá-la, é necessário ver desenhar-se essa distinção na Ética a Nicômaco. É preciso não confundir, diz Aristóteles, o intemperante, que pode ceder à tentação repentinamente, com o desregrado, que optou pela busca sistemática do prazer. Ambos são censuráveis, mas apenas o último é incurável. Além do mais — e é isso que realmente importa — essas duas formas de abandono ao pathos devem ser cuidadosamente dissociadas da depravação mórbida, que revela uma completa ausência da parte superior da alma — e que deve situar-se “para além dos limites da maldade”. Esses depravados que vivem em busca de prazeres “além da natureza” não podem ser chamados nem de intemperantes nem de desregrados. “Os que roem as unhas, comem terra, os sodomitas, escapam a qualquer qualificação ética.” Sua realidade não se inscreve mais em uma tipologia das paixões, mas se refere ao que, em termos modernos, se chama de patologia mental. “Aquele que tinha fobia a doninhas estava sob a in-fluên-cia de uma doença.”[18]
Seria como se, em seus textos, Aristóteles quisesse desatar a dificuldade que encontramos para compreender e mesmo traduzir o termo grego pathos. Compreendido como um afeto mórbido que posso vir a controlar, o pathos carrega originalmente dois conceitos bem diferentes: o passional, que faz surgir a ética, e o patológico, que remete ao diagnóstico médico. Sabe-se o quanto a fronteira entre esses dois domínios varia de acordo com as civilizações e as épocas: enquanto Aristóteles considera os sodomitas como doentes, a época clássica irá situá-los entre os “desregrados” — e ainda no século XVIII alguns serão levados ao suplício. Porém, o que nos interessa no momento não são as flutuações dessa linha divisória, mas saber se a paixão, tal como foi concebida pelos escritores clássicos, conserva um sentido externo à sólida manutenção dessa divisão.
Pode-se legitimamente chamar de passional um comportamento encarado como semivoluntário? Pode-se legitimamente chamar de apaixonado alguém que julgamos, como tal, não ser totalmente responsável? Se respondermos afirmativamente ou se desconsiderarmos os conceitos de “vontade” e de “responsabilidade”, renunciaremos de fato à distinção entre passional e patológico. Julien Sorel e Raskolnikov tornam-se belos casos clínicos. Ora, assistimos atualmente ao obscurecimento dessa linha divisória. Talvez um dos traços mais característicos de nosso século tenha sido o crescente deslocamento de condutas do território da ética para o da terapêutica. Trata-se de um aspecto da modernidade, observou Foucault, distinguir o adulto são e normal, “indagando-lhe o que ainda lhe resta de infantil, quais as loucuras secretas que nele habitam e que crime fundamental desejou praticar”.[19] Como, então, salvaguardar a especificidade da paixão? Se se compreender que todo comportamento do indivíduo tem suas raízes nas pulsões, cuja origem e natureza ele ignora, a paixão só pode ser um elemento estranho em mim, e não se trata mais de integrá-la na minha vida, mas somente de submetê-la a um tratamento que a enfraquecerá ou exorcizará.
Não estaríamos assim retornando por outras vias à inspiração estoica? Pode-se dizer que a semelhança é pequena, pois nossos atuais médicos da paixão não têm mais como objetivo tornar o indivíduo sábio ou virtuoso, mas simplesmente adaptá-lo à vida, libertando-o de suas inibições e angústias. Resta-nos apenas curar os doentes e tratar deles, é ainda uma antropologia que, animada por esse espírito, escolhe, de início, considerar patológica a paixão, independentemente de suas intenções libertadoras. O termo libertação, aliás, já atesta que a paixão não me pertence e tem como efeito tornar-me um alienado. Sem dúvida, não é mais compreendida como uma irrupção da animalidade ou do demoníaco no homem. Mas estamos seguros de que os tormentos por ela provocados não se originam em nós mesmos, e apenas uma terapêutica seria capaz de encontrar a razão disso tudo. Para compreender o que significa esse declínio da ideia de paixão seria necessário pôr o fenômeno em relação com o deslocamento moderno do “eu” e questioná-la quanto à ideia de responsabilidade social. Esses são temas muito vastos para que sonhemos em abordá-los aqui.
Contentemo-nos com uma observação.
É fato que as sociedades evoluídas veem esboroarem-se as noções de pecado e vício. Mas será que a mentalidade moderna se tornou mais tolerante para com as paixões? A palavra tolerância seria imprópria: trata-se antes de uma neutralização do conceito de paixão. Não consideramos mais as paixões como componentes do caráter de um indivíduo, os quais ele deveria governar, mas como fatores de perturbação do comportamento que ele é incapaz de controlar unicamente através de suas forças. Estamos então, é verdade, menos inclinados a culpabilizar o apaixonado, mas isso porque somos antes levados a considerá–lo doente. A medicina ocupa cada vez mais o lugar da ética; a noção de desvio, o do erro; e a cura, o do castigo. Talvez fosse possível acompanhar, através da literatura, o desenvolvimento desse ascetismo da paixão. Após Balzac e Stendhal, os romancistas continuaram a representar os apaixonados. Mas estes não são mais “monstros sagrados”: a inspiração shakespea-riana esgotou-se. Tomemos os personagens mais notáveis de Dostoievski ou de Proust. Eles convidam-nos mais a traçar um diagnóstico do que uma qualificação ética. Não inspiram temor ou piedade, mas antes a curiosidade de decifrar uma conduta que, em grande parte, são incapazes de controlar. Ora, a paixão só tinha sentido pelo modo de reagir que a ela imputávamos e pelo controle a ela imposto. No momento em que o herói perde essa liberdade, não passa de um cliente em potencial para um terapeuta.
Assim, atenua-se a paixão — essa passividade que não excluía a responsabilidade.
A exigência da normalidade continua muito grande — mas a infração da norma é imputada à doença e não a uma vontade má. Essa transformação é característica de uma atitude permissiva? Seria um engano assim o crer, pois uma moral austera pode perfeitamente contentar-se com essa tese de irresponsabilidade do apaixonado. O platonismo é um bom exemplo disso. Afinal de contas, foi Platão quem começou a pôr no mesmo plano pathamata te kai nosámata (paixões e doenças),[20] o que pode parecer, à primeira vista, espantosamente permissivo e que descreve o comportamento passional como um caso clínico. Para despertar a desconfiança quanto à ideia confusa de “permissividade”, não poderia fazer melhor do que citar este trecho de Timeu (86b-d), que, à primeira vista, pode parecer espantosamente “permissivo”: “A doença própria da alma é a demência. Mas há duas espécies de demência: uma é a loucura, a outra é a ignorância. Segue-se que, como resultado, todo o afeto que comporta uma ou outra dessas perturbações deve ser chamado de doença, devendo-se admitir que o prazer e a dor excessivos são para a alma a mais grave das doenças. Pois, alegre ao extremo, ao sofrer, pelo efeito da dor, a paixão contrária, o homem é incapaz de ver ou escutar com precisão não importa o que seja, quando despropositadamente se apressa para agarrar um objeto ou desfazer-se de um outro: ele torna-se fu-rioso e inapto ao menor raciocínio. Assim, aquele em quem a semente é farta e corre abundantemente em sua medula, torna-se louco, durante a maior parte de sua vida, por excesso de prazeres e de dores: sua alma está doente e endoidecida pela ação do corpo. No entanto, não o consideramos doente, mas voluntariamente perverso. Todavia, na realidade, a luxúria imoderada é, em grande parte, uma doença da alma provocada pelas propriedades de uma substância que corre no corpo. Da mesma forma, toda vez que esperamos que a impotência domine a volúpia, que reprovamos, dos viciados, como se assim o fossem voluntariamente, cometemos uma injustiça. Ninguém é mau por vontade própria. O homem mau torna-se perverso devido ao efeito de uma disposição maligna do corpo ou de uma educação desregrada”.
Os depravados são, antes, doentes a serem curados e não perversos que devem ser punidos. Ninguém é mau voluntariamente. Esses temas permanecem mais do que nunca sedutores. Mas devemos ter consciência de que eles têm uma contrapartida — admiravelmente formulada pelo dr. Knock, o charlatão imortal apresentado por Jules Romains: “Todo homem com saúde é um doente que se ignora”.
Será que essa é, por acaso, uma boa nova?
Tradução de Mônica Fuchs
Notas
[1] Leibniz, Nouveaux Essais, II, 21, 9.
[2] Aristóteles, Rhétorique, II, 1378a 20.
[3] Idem, Politique, II, 7, cf. Éthique à Nicomaque, III, 119b.
[4] Idem, De Anima, III, 9, 432b-433a, cf. Éthique à Nicomaque, VI, 2. 1139a.
[5] Max Pohlenz, Die Stoa (Göttingen, 1970), I,S. 150.
[6] Hegel, Aesthetik, XII, S.313-4 (Glökner), trad. francesa S. Jankélévitch, I, p. 272.
[7] Nietzsche, 2e Considération intempestive, trad. francesa Biaquis (Aubier), pp. 211-3.
[8] Stoicorum Veterum Fragmenta, von Arnin (Teukner), III, parágrafo 478.
[9] Idem, I, parágrafos 205-206.
[10] Idem, III, parágrafo 574.
[11] Nietzsche, Wille zur Macht, 933.
[12] Idem, Götzendamerung, VIII, S. 101 (Kroner). Trad. francesa Albert, Crépuscule, p. 110.
[13] Nietzsche, Gai Savoir, parágrafo 326 (trad. francesa Klossowski).
[14] Aristóteles, Éthique à Nicomaque, III, 114 a 15 e segs.
[15] André-Jean Voelke, em seu belo livro L’Idée de Volonté dans le Stoicisme (puf, 1973), observa que se encontra nos estoicos a ideia de que a paixão submeteria o indivíduo a uma constrição: “…a paixão comporta um elemento de constrição e de violência que não se encontra no erro teórico… Os termos bis, biaios intervêm frequentemente nas descrições da paixão” (p. 86).
[16] Platão, Philèhe, 45 e.
[17] Aristóteles, Éthique à Nicomaque, VII, 1148a 15-20.
[18] Idem, ibidem, VII, 1549.
[19] Michel Foucault, Surveiller et Punir, Gallimard, p. 195.
[20] Platão, República, IV, 439b.