2005

O modelo econômico: uma só nação, um só mercado consumidor

por Elizabeth Carvalho

Resumo

A transmissão da Copa de 70 é um marco na história da televisão brasileira. A vitória da seleção do Brasil na Copa do México, transmitida via satélite, exibida por 63 emissoras nacionais promoveu a integração nacional pelo vídeo. A transmissão da Copa marca também o início da era da grande expansão das emissoras de TV pelo território nacional. De 1970 a 77, o Estado forneceu infra-estrutura a 50 novas estações, levando à consolidação do veículo como a “mídia por excelência” para a publicidade.

Com uma mentalidade empresarial contemporânea que revolucionava os veículos de telecomunicação do país, a nova Rede Globo de Televisão tornou-se porta-voz do moderno modelo econômico brasileiro e cresceu sob a influência de um marcante grupo norte-americano que criou um modelo empresarial usando e incentivando o amadurecimento de talentos “nativos”, adequando um modelo multinacional à realidade brasileira. Modelo empresarial à parte, a Globo se valeu, ainda, do interesse do sistema autoritário vigente numa penetração capilar da televisão na sociedade brasileira nos moldes em que foi concebida.

A TV Globo cresceu também pelo fato de que, naquele momento, o capitalismo nacional (às vezes) e multinacional (maciçamente) necessitava de um canal de abrangente eficácia para veicular a sua mensagem. Às agências de publicidade, à sua eficiência, não bastavam mais a mídia impressa nem o rádio. Era necessário expandir os negócios.

Este vastíssimo universo atingido instantaneamente pela Rede Globo recebeu nos anos 70 um único modelo brasileiro — o do eixo Rio-São Paulo. O modelo do grande sonho burguês. O que houve foi uma padronização das regiões mais distantes por um modelo — de programação e, fundamentalmente, de consumo — dos grandes centros urbanos, em detrimento de suas características próprias.


A nação brasileira partilhou pela primeira vez a grande emoção da instantaneidade da imagem em junho de 1970, com a vitória na Copa do México, transmitida diretamente por satélite. É certo que, um ano antes, ela já havia acompanhado pela TV o desembarque do homem na Lua. Mas não se tem notícia de nenhuma grande conquista da humanidade capaz de promover uma mobilização como a daquele momento, quando as então 63 emissoras nacionais exibiam para milhões de rostos tensos e delirantes um quarto e definitivo gol do Brasil contra a seleção da Itália. Os pés de Pelé & Companhia sacudiram o país numa gigantesca festa coletiva. O Brasil era tricampeão da Copa do Mundo. A integração nacional pelo vídeo estava nascendo junto com a década, via futebol. O Brasil era Grande e Vitorioso.

A transmissão da Copa de 70 é um marco na história da televisão brasileira. Ela efetiva, entre outras coisas, o uso do satélite, que de fato permitiu a penetração da televisão no país: se em 1970 ela estava presente em cerca de 4 milhões de domicílios, representando quase 25 milhões de habitantes (telespectadores potenciais), em 1980 ela se aproxima dos 16 milhões, isto é, quase 70% dos lares brasileiros. A transmissão da Copa marca também o início da era da grande expansão das emissoras pelo território nacional — de 1970 a 77, o Estado forneceu infra-estrutura a 50 novas estações, levando à consolidação do veículo como a “mídia por excelência” para a publicidade, que nela concentra, nos dias que correm, quase 70% de seus investimentos. E ainda: é a partir de 1970 que se configura a ascensão das empresas líderes da indústria de propaganda no Brasil, e se formaliza o ingresso do governo e das empresas paraestatais no quadro dos grandes anunciantes, criando uma nova fórmula para o negócio publicitário — os consórcios. Na realidade, a penetração da TV possibilitou a unificação de um imenso mercado, por onde se infiltrou uma agressiva e ininterrupta invasão de supérfluos, do desodorante ao automóvel.

A consagração da TV como a mais eficiente porta-bandeira da sociedade de consumo foi explicitamente defendida num documento que a Associação Brasileira de Empresas de Rádio e Televisão (Abert) divulgou em setembro de 1977, “visando a contribuir para a prática cada vez mais profissional da publicidade que se configura nos anos 70”. A TV era vista como a soma das vantagens de todos os veículos, o veículo por excelência. O documento dizia:

Do cartaz ela herdou o enquadramento visual, reelaborado com infinitas possibilidades pelo movimento. Das mídias impressas se tornou irmã pelo convívio com a notícia, a informação cultural e a cor. Com o rádio ela compartilha a velocidade e o som. Do cinema, herdou o acervo e com linguagem própria recriou a capacidade narrativa da vida e o clima de espetáculo. Sendo pois mídia nacional, sem também deixar de ser mídia regional e local por excelência, criando a atmosfera apropriada para a exposição publicitária a públicos de massa e seletivos, a TV brasileira como veículo responde com velocidade ao desafio profissional.

Este “desafio profissional” foi impulsionado ainda em 1971, quando a televisão a cores — outro importante marco da década — chegou ao mercado brasileiro. Dois anos depois, a transmissão a cores se institucionalizava no país: em 1973, as vendas de aparelhos subiram a 1,3 milhão. Por uma dessas graças de mercado, para a felicidade das indústrias de televisores, a TV a cores acabou impulsionando o comércio de aparelhos em preto-e-branco. Em 1954, quando o Ibope fez a sua primeira pesquisa de audiência, os domicílios com TV eram cadastrados como consumidores de produtos altamente sofisticados. Com a chegada da cor, e a ajuda do crediário, a TV passou a ser uma necessidade dos brasileiros: os que não podiam adquirir um produto mais sofisticado sentiam-se impelidos a comprar um aparelho qualquer mais barato. Em 1974, ano da Copa Multicolor, o número de domicílios com TV no Brasil subiu para a casa dos 9 milhões.

A ASCENSÃO DO IMPÉRIO GLOBAL: O CASAMENTO PERFEITO

O gigantesco esforço de integração nacional pelo vídeo promovido pelo Estado encontrou a noiva ideal em fins dos anos 60. Com uma mentalidade empresarial contemporânea que revolucionava os veículos de telecomunicação do país, a nova Rede Globo de Televisão tornou-se porta-voz do moderno modelo econômico brasileiro.

A história da TV Globo remonta a 1962, quando a emissora assinou secretamente um contrato com o grupo americano Time-Life. O documento estabelecia uma “sociedade em cota de participação”, e aos diretores estrangeiros garantia cerca de 30% dos lucros líquidos anuais do empreendimento. Quatro anos depois, este acordo viria a público com os trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito que investigou as relações Globo/Time-Life. Nomes influentes como os dos ministros Carlos Medeiros e Silva, da Justiça, e Luiz Gonzaga Nascimento e Silva, do Trabalho, haviam participado das negociações. A CPI decidiu que os acordos feriam a Constituição. A interferência de um grupo estrangeiro na orientação de uma empresa de comunicação era frontalmente contrária aos interesses nacionais, entendiam os deputados. Mas o inquérito terminaria arquivado em 1967; o governo do general Arthur da Costa e Silva declarava infundadas as acusações. Pressões políticas levariam o Executivo a reabri-lo pouco depois — e a emissora seria, finalmente, nacionalizada em 1969.

A nacionalização da emissora não se deu simplesmente por empenho moralizante do governo. Havia um desinteresse do próprio grupo multinacional. A Globo era uma emissora fraca, pouco rentável, de baixa audiência. O quadro de 1967/68 mostrava-se de tal forma deficitário que o grupo Time-Life facilitou a compra pelo grupo brasileiro. O crescimento da TV Globo se dá justamente a partir de 1969, junto com o boom de telecomunicação no país.

Mas a Globo cresceu sob a influência marcante do grupo norte-americano, que criou um modelo empresarial usando e incentivando o amadurecimento de talentos “nativos”, adequando um modelo multinacional à realidade brasileira. Este modelo contou com um poderoso tripé diretamente associado ao sucesso da emissora — Walter Clark, seu diretor-geral até 1977, o superintendente de programação José Bonifácio de Oliveira Sobrinho e Joe Wallach, uma espécie de “gerente-geral” que o Time-Life forneceu à Globo. Wallach acabaria se naturalizando brasileiro e incorporando-se definitivamente aos quadros administrativos da emissora.

Modelo empresarial à parte, a Globo se valeu, ainda, do interesse do sistema autoritário vigente numa penetração capilar da televisão na sociedade brasileira nos moldes em que foi concebida. Centralizada a emissão de conteúdo, era fácil controlar. Walter Avancini, ex-diretor do núcleo de novelas da Globo, durante sete anos atento espectador, ativo participante do crescimento do Império, ressalta um fator importante: “O comportamento empresarial da Globo foi facilitado nesses 15 anos pela ausência de um sindicalismo atuante no país. Qualquer empregado da Globo, em qualquer nível, era obrigado a aproveitar as péssimas condições trabalhistas impostas pela empresa, sem ter a menor possibilidade de reivindicar condições mais justas. A Globo nunca teve uma infra-estrutura compatível com o seu gigantismo nem com as necessidades de suas classes trabalhadoras, embora sua imagem para fora seja muito diferente.”

A Globo cresceu também pelo fato de que naquele momento o capitalismo nacional (às vezes) e multinacional (maciçamente) necessitava de um canal de abrangente eficácia para veicular a sua mensagem. Às agências de publicidade, à sua eficiência, não bastavam mais a mídia impressa nem o alcance de então da mídia eletrônica. Era necessário expandir os negócios. Vivia-se em ritmo de milagre. O espectador é, em última e verdadeira análise, um consumidor. Este seu caráter é que norteia a expansão das redes de televisão, levando, na prática, à nacionalização do mercado. As agências de publicidade necessitam de uma eficiência crescente, precisam de garantias de audiência. Fátima Jordão, diretora de planejamento da Lintas do Brasil, realça o fato de, até este ano, a Globo ter tido um nível de demanda comercial muito maior do que a sua capacidade horária. “Até bem pouco tempo atrás, a Globo operava com uma seletividade muito grande de anunciantes, ou seja, era possível sentir a propaganda brasileira de décadas diferentes apenas mudando o canal do televisor. Na Globo, a década de 70, os anúncios maravilhosos, a propaganda americana transposta com toda a perfeição. Na Tupi, a década de 60, e nas demais emissoras a propaganda estática, pobre, própria da década de 50. Houve um momento em que a propaganda chegou a ser melhor do que a própria televisão brasileira. Quer dizer, o ideal estético da propaganda chegou a se constituir num modelo.”

A penetração da Globo representava, portanto, a expansão do mercado de consumo do país. Presente hoje nos 21 estados brasileiros e no Distrito Federal, ela cobre atualmente 96% dos 325 principais municípios brasileiros com população superior a 50 mil habitantes, com uma população total de 57 milhões de brasileiros. Alcance sequer sonhado pelo MDB e Arena juntos. Eleitorado para dezenas de partidos. Em termos publicitários, são municípios decisivos para a disseminação do consumo. Na edição 37/38 da revista Mercado Global, uma publicação da Central Globo de Comercialização endereçada às empresas de marketing, um longo artigo sobre a cobertura (penetração efetiva) da emissora ressaltava a influência mercadológica da Globo nos lares… sem TV. “Esta influência”, dizia o artigo, “se verifica principalmente com produtos de consumo de massa e pessoal com distribuição nacional, pois os hábitos de consumo são ditados pela televisão para as populações polarizadas pelo veículo”.

O MODISMO ELETRÔNICO E A MÃO ÚNICA

Este vastíssimo universo atingido instantaneamente pela Rede Globo recebeu nessa década um único modelo brasileiro — o do eixo Rio-São Paulo. O modelo do grande sonho burguês. “Na prática, integração nacional não houve; o que se estratificou foi a mão única”, analisa Walter Avancini. “Bagé e Caruaru não estão na Globo. O que houve foi uma aculturação desses setores da população, uma padronização das regiões mais distantes por um modelo — de programação e, fundamentalmente, de consumo — dos grandes centros urbanos, em detrimento de suas características próprias.”

Numa recente entrevista ao Jornal do Brasil, o sociólogo pernambucano Paulo Sérgio Duarte observa o fenômeno da penetração da TV no Nordeste brasileiro: “Ainda estávamos engatinhando na televisão em preto-e-branco quando chegou a Globo com a cor e uma programação na base de conceitos, modos de viver e de pensar absolutamente dissociados da realidade regional. Nossa dependência econômica passou a ser também cultural”. Esta mesma dependência era denunciada pelo bispo de Marabá, uma pequena e esquecida cidade paraense — para chegar até os seus poucos televisores, a programação da Globo viajava diariamente 387 quilômetros de ônibus. “Um pai de família chegou a vender a sua casa para comprar uma televisão”, queixava-se D. Alano Pena à revista Veja. “E a população inteira corre agora o sério risco de criar necessidades supérfluas através do massacre da publicidade.”

Pode-se dizer que hoje praticamente não há espaço no país imune ao “massacre” a que se referiu o bispo de Marabá. Em sua edição 36, a revista Mercado Global publicou um artigo proclamando “a formação do grande celeiro mato-grossense graças à penetração da emissora”. O depoimento do diretor comercial de uma agência de propaganda da distante Campo Grande é sintomático: “O tipo de produto que se procura aqui é o mesmo do Rio e de São Paulo… Os jovens têm os mesmos anseios, querem vestir os mesmos jeans, gostam de curtir uma moto, ouvem o mesmo tipo de disco. As crianças constituem atualmente uma fatia muito importante para nós, que lidamos com publicidade. Às vezes elas pedem um tipo de brinquedo que o nosso comércio ainda não tem, o que demonstra como é incrível a velocidade com que as coisas se processam.”

Bancos, sabão em pó, cadernetas de poupança, brinquedos, automóveis, eletrodomésticos, refrigerantes, desodorantes e xampus – estes são os principais recados que a televisão brasileira levou aos brasileiros nos anos 70. Através de dados do Sercin – uma empresa paulista dedicada ao levantamento da concorrência por linha de produtos veiculados pela propaganda – é possível diagnosticar as principais tendências da indústria da publicidade nestes últimos anos, e o consequente consumo de supérfluos.

Pode-se constatar, por exemplo, que o principal bombardeio desfechado sobre os brasileiros durante o ano de 1973 foi o do sabão em pó, que investiu cerca de 25 milhões de cruzeiros na propaganda de televisão; a partir de 1974 foram os bancos que assumiram a vanguarda do ataque, praticamente duplicando de ano para ano os seus investimentos na TV; em 1978, eles chegaram a cerca de 373 milhões de cruzeiros. As cadernetas de poupança, por sua vez, só se incluem entre os cinco maiores anunciantes brasileiros a partir de 1975. Nos dois anos anteriores, elas cederam lugar para a sedimentação das linhas aéreas nacionais, que curiosamente desapareceram da lista dos cinco grandes a partir também de 1975. Mas não foi apenas em bancos e em cadernetas de poupança – evidentemente importantes mensagens favorecidas pela política econômica adotada pelo Sistema nesta década – que o país investiu: investiu também substancialmente nos cabelos. A proliferante e lucrativa indústria dos xampus fez jorrar em 1975 nada menos que 42 milhões de cruzeiros em publicidade pelo vídeo. Em 1976, essa quantia subiu a 115 milhões; em 1977, foi de 127 milhões, e em 1978, 168 milhões. Correndo no mesmo páreo dos cinco, constantes ao longo da década, estavam os investimentos em desodorantes, brinquedos, cigarros e refrigerantes. E automóveis, evidentemente. É curioso assinalar que a indústria automobilística, embora próxima à lista dos cinco grandes desde 1973, só foi assumir uma posição de liderança na propaganda de consumo a partir de 1977, justamente quando os efeitos da crise mundial de combustível se tornaram mais fortes e a política de racionamento acelerou-se em todo o país.

Nesta nova década que se aproxima, vale ressaltar que o modelo brasileiro de consumo tende a se expandir além das fronteiras do país, em direção ao território paraguaio e ao sudoeste argentino. Graças ao possante sistema de repetidoras da TV Paranaense, e da TV Cultura de Maringá, ligadas ao Sistema Globo, e mais recentemente à TV Tarobá, de Cascavel, ligada à Rede Bandeirantes, é possível receber sinais de captação da TV brasileira junto às populações dos países vizinhos. Foi em Hernanderias, pequena cidade paraguaia a 30 quilômetros da fronteira, que a repórter da revista Veja Teresa Furtado identificou, no início de 1979, o refrão “Vamos construir juntos”, de uma propaganda da Receita Federal sobre o Imposto de Renda, cantado em português pelas crianças da localidade. Se os anos 70 foram os da “integração nacional”, estes pequenos sintomas podem talvez reforçar a tese de que os anos 80 serão, quem sabe, os anos da integração continental.

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