2017

O pós-humano: rumo à imortalidade?

por Jean-Michel Besnier

Resumo

No espaço de alguns anos, ocorreu algo de extraordinário no universo midiático das sociedades contemporâneas: fala-se de imortalidade, não mais como um fantasma, mas como uma perspectiva aberta pela tecnociência.

Não é mais absurdo cogitar a vida eterna, graças à mudança contínua das peças de nosso corpo e à artificialização de nossos órgãos ou à transferência de nossa consciência para materiais inalteráveis. A única morte considerável seria resultado de desconectar-se ou de recusar recorrer aos milagres da tecnologia.

As NBICs – convergência entre as nanotecnologias (N), as biotecnologias (B), a informática (I), as ciências cognitivas e a neurociência (C) – banalizaram o discurso e os anúncios hiperbólicos que lhes serviram de propaganda e de manifesto nos anos 2000. Conseguiram tornar a morte intolerável para nós e desencadearam uma expectativa frenética: hoje, alguns homens chegados à idade madura sentem dificuldade de aceitar a ideia de que poderiam morrer antes de estarem disponíveis técnicas de imortalização. Ray Kurzweil, líder californiano do transhumanismo, faz parte desses homens que acreditam que, se chegar a 2045, data estimada para a emergência da Singularidade, poderá se beneficiar da imortalidade.

É uma atitude irrisória e patética, mas não mais do que a dos metafísicos de sempre, que pretendiam abolir o tempo em função de sistemas integralmente autodedutivos e capazes de demonstrar que a finitude humana é uma ilusão que pode ser dissipada.

O homem é desejo de eternidade: é uma banalidade lembrar isso. É da natureza mesma do desejo querer o absoluto que porá termo ao desejo. O paradoxo da natureza humana baseia-se inteiramente nesse desejo que busca suprimir-se. É isso aliás o que diferencia os homens dos animais e dos deuses. A metafísica aguça esse desejo, mas não chega a liquidá-lo.

Como se chega a isso? Como sucede de se restabelecerem as ilusões denunciadas por Kant e os adversários dos sistemas, que sabem perfeitamente que estamos condenados ao tempo e votados à morte?

Uma possível resposta é a aceleração dos progressos tecnológicos, a que se deve o sentimento de hiperpotência produzido pelas máquinas. Isso promove inclusive regressões de natureza animista, cuja a anulação entre o animado e o desanimado é o primeiro indício do fim da morte.

Várias décadas de inovações em matéria de inteligência artificial, a que se deve acrescentar a perspectiva do domínio das nanotecnologias e da biologia de síntese, embotaram o racionalismo moderno, que se empenhava na grande divisão entre a matéria e o espírito, o inerte e o vivo, o virtual e o real, a natureza e o artifício.


No espaço de alguns anos, algo de extraordinário aconteceu no país de Descartes: fala-se de[1] imortalidade não mais como de um fantasma, mas como de uma perspectiva aberta pelas tecnociências. Não é mais despropositado imaginar uma vida eterna, mediante a mudança contínua das peças do nosso corpo e da artificialização de nossos órgãos, ou mediante o teletransporte de nossa consciência para materiais inalteráveis. A única morte a considerar estaria ligada à escolha de desconectar-se e de recusar recorrer aos milagres da tecnologia. A única morte natural seria acidental.

A convergência tecnológica NBIC[2] conseguiu banalizar o discurso hype que lhes serviu de cartaz e de manifesto nos anos 2000. Conseguiu tornar a morte impensável e desencadeou uma expectativa frenética: hoje, alguns homens chegados à idade madura têm dificuldade de aceitar a ideia de que poderiam morrer antes de estarem disponíveis técnicas de imortalização. Ray Kurzweil faz parte desses homens e diz que, se chegar a 2030 e à emergência da singularidade, se beneficiará da imortalidade.

É uma atitude ao mesmo tempo irrisória e patética, mas não mais nem menos que a dos metafísicos de sempre que pretendiam acabar com o tempo, graças a sistemas integralmente autodedutivos e capazes de demonstrar a ilusão da finitude humana.

O homem é desejo de eternidade: é uma banalidade lembrar isso. Faz parte da natureza mesma do desejo querer o absoluto que dará um fim ao desejo. O paradoxo da natureza humana está inteiramente nesse desejo que busca suprimir-se e que, no entanto, nos diferencia dos animais e dos deuses. A metafísica aguça esse desejo, mas não consegue pôr um termo nele. Não conseguimos nos igualar aos deuses. Georges Bataille dizia de Hegel, o filósofo do saber absoluto que representa “o ápice da metafísica”, que a prova mais convincente de seu fracasso é que ele está morto. O motejo é mais profundo do que se crê, sobretudo se pensarmos que a tecnologia anuncia estar prestes a realizar o que Hegel e a metafísica não puderam.

Como se chegou a isso? Como se restabeleceram as ilusões denunciadas por Kant e os adversários dos sistemas, que sabem perfeitamente que estamos condenados ao tempo e votados à morte?

Entre as respostas possíveis, haveria esta: a aceleração dos avanços tecnológicos e o sentimento de hiperpotência produzido por nossas máquinas provocam regressões de natureza animista: perdemos a consciência da diferença entre o animado e o inanimado (é o que caracteriza primeiramente o animismo) e, assim, estamos prontos a considerar que a vida não poderia deixar-se deter pela morte. Várias décadas de inovações em matéria de inteligência artificial, somadas à perspectiva atual no domínio da biologia de síntese, embotaram o racionalismo moderno que se empenhava em preservar a grande divisão, para citar Bruno Latour, entre a matéria e o espírito, o inerte e o vivo, o virtual e o real, a natureza e o artifício.

A imortalidade é produzida hoje por um conjunto de representações que pertenciam outrora a utopias forjadas pelos visionários de um mundo que teria conjurado a mudança graças a instituições, a rituais e a uma sabedoria voltada para a eternidade. As utopias são, por princí­ pio, eternizantes: pretendem estabilizar a ordem das coisas. Mas acreditávamo-nos curados das utopias. Pelo menos desde os totalitarismos que evidenciaram que, ao expulsar o tempo, suprime-se a liberdade. Não queríamos mais saber dessas utopias que propõem o melhor dos mundos e uma felicidade insustentável. Ora, eis que elas voltam com força, graças a tecnologias que anunciam a remodelagem do homem, o aumento de sua capacidade e, em última instância, sua substituição por outra espécie.

As utopias geradas pelas tecnologias nos convidam a romper com a humanidade a que pertencemos ainda e, justamente por isso, a considerar a imortalidade.

Retomo minha pergunta: como se chegou a isso? Associo a descoberta da imortalidade como ambição pós-humana à era digital, isto é, à extraordinária alavanca que um procedimento aparentemente muito simples efetivou, e que consiste em converter todas as coisas numa sequência de o e i. Esse procedimento chamado digitalização é hoje banal. Nosso mundo passou a ser visto como um conjunto de elementos discretos transformados em sinais (imagem, áudio, caracteres de imprensa, genes, impulsão etc.) – sinais que podem ser transportados, armazenados, manipulados etc.

No entanto, esse procedimento exerce uma influência considerável sobre nossa maneira de pensar o mundo: ele homogeneíza e torna intercambiável tudo o que existe, inclusive os humanos que somos. O homem digital não é só o que utiliza as ferramentas tecnológicas de hoje, é também aquele ao qual se aplicam essas ferramentas – scanner, sequenciador do genoma, quantificação biométrica, próteses eletrônicas, implantes intracerebrais.Já dá para ver como é fácil imaginar a imortalidade de um homem-código-de-barras, como se diz às vezes.

A digitalização foi uma revolução metafísica, a revolução com a qual os filósofos sempre sonharam (conforme a mathesis universalis de Descartes ou o sistema do saber absoluto de Hegel). Com ela se dispõe de um equivalente generalizado (as sequências de o e I e os algoritmos de tratamento dos dados) capaz de unificar e estabilizar o conjunto da realidade – e, a partir daí, controlar o mundo.

A utopia maior da sociedade de informação é a globalização – que começou com Cristóvão Colombo em 1492, ganhou um novo impulso com a Revolução Industrial e culmina no ano 2000 com os instrumentos que permitem aos indivíduos agir em escala planetária. Uma de suas formulações mais impressionantes é a de Thomas Friedmann, em 2006: “A Terra é plana”, isto é, ela se contrai e se achata à medida que as tecnologias esmagam o tempo e o espaço, impõem os mesmos comportamentos e submetem tudo às mesmas eventualidades (das Bolsas, por exemplo). Não espanta que a globalização exprima a seu modo o fim da história anunciado por Hegel no início do século XIX, reativado nos anos 1930 por Kojeve e lembrado em 1989 por Fukuyama. Ora, não importa o que se diga, esse fim da história exige que seja possível a emergência de um homem capaz de subtrair-se ao tempo e de estabilizar definitivamente as condições de sua existência.

A globalização oferece todos os ingredientes da utopia aberta pela era digital: o acesso aos conhecimentos, as trocas pacificadas entre os homens, a abolição das fronteiras geográficas e ontológicas, a inteligência coletiva, a medicina conectada. Não espanta que nela se enxertem com frequência espiritualidades mais ou menos inspiradas no budismo, que anunciam com a internet a realização das virtudes cardinais necessárias ao carma: o sentimento da impermanência de todas as coisas (ditado pelos fluxos aos quais estamos expostos), a convicção da ligação de todas as realidades num grande todo (a interconexão possibilitada pelo ciberespaço) e a revelação da vacuidade do eu (o sentimento da intercambialidade dos neurônios que somos, na escala do cérebro planetário). Pierre Lévy é, na França (e no Canadá, para onde emigrou), o exemplo do tecnólogo convertido ao budismo, porque considera que o ciberespaço nos transforma em chamas que circulam de maneira ubíqua, isto é, sem pressão. O ciberespaço nos espiritualiza porque nos desmaterializa. É o argumento místico espontâneo lançado pelo imaginário da internet e que alimenta facilmente o fantasma da imortalidade.

A utopia do homo communicans é a de um ser dessubstancializado, submetido ao nomadismo e ao mobilismo que associamos à liberdade (a de eternos turistas que nunca repousam em parte alguma) e que se opõem à inércia na qual vemos a morte. O ciberespaço conseguiu sugerir uma representação do futuro contrária aos valores de sedentarismo e de segurança que caracterizavam o mundo de ontem, para citar Stefan Zweig, e no qual vemos o triunfo da morte. Ele o sugere, no melhor dos casos, invocando a realização do universal aberto de Pierre Lévy, isto é, sem totalidade, tal como a contracultura americana e a geração de 1968 o haviam sonhado (sonhava-se então com a fusão graças às tecnologias do virtual, não mais apenas graças à música e ao LSD). No pior dos casos, o ciberes­ paço é apresentado como um fantasma coletivo no qual somos cada vez mais reduzidos ao estado de simples e efêmeros avatares expostos a ser desconectados (conforme o livro de William Gibson, Neuromancer, que originou o filme Matrix dos irmãos Wachowski). Ao querer nos livrar de um enraizamento mortal no real, a utopia acaba virando facilmente distopia. Mas não é o que acontece com toda ilusão de imortalidade? Ulisses partiu de Calipso que lhe prometia a imortalidade e a eterna juventude – para escapar do congelamento do desejo propriamente humano que a virtualização consegue hoje impor.

O imaginário da globalização e do ciberespaço se prolonga natural­ mente nas utopias pós-humanas que os movimentos de contracultura incubaram, desde os anos 1960.

Sua mensagem é simples: dispomos hoje dos meios científicos e técnicos para realizar a humanidade, isto é, suprimir todas as imperfeições que lhe barram o acesso à felicidade. É a mensagem da maior parte dos trans-humanistas que se reconhecem na sigla H+, como Niels Bostrom ou Marc Roux. A utopia se faz presente na perspectiva de uma felicidade que porá fim aos erros da história. Alguns trans-humanistas radicais querem mesmo utilizar as tecnociências para suprimir a entropia, que vota tudo o que existe à extinção, como Max More, criador do Instituto de Exotropia. Estamos aí no fantasma absoluto.

O argumento médio, compartilhado por numerosos cientistas, é de que as tecnociências nos permitem controlar a evolução biológica e tomar o lugar da seleção natural. É o caso, por exemplo, das biotecnologias, das perspectivas em matéria de clonagem, das células-tronco, da hibridação do vivo e do eletrônico. A biologia é essencialmente eugenista, ideia hoje aceita, após ter sido temida. Não espanta que o mito da saúde perfeita, da supressão do envelhecimento – e a chegada da imortalidade – esteja no centro dos anúncios regularmente endereçados ao público.

A convergência tecnológica NBIC oferece os meios de acelerar a utopia de uma humanidade que se realizaria graças às tecnociências: ela alimenta a ideia de que estaríamos a caminho de um além do humano – um pós-humano, uma espécie inédita. Esse pós-humano surgiria como surgem as espécies novas na natureza, por mutações que nossas inovações introduzem no ambiente e por vantagens seletivas que elas apresentam nesse ambiente tecnologizado. Evidentemente não se pode dizer o que será esse pós-humano, já que será um fenômeno emergencial. Os tecnoprofetas o batizam de singularidade, sucessor, ponto ômega… Apenas se pode dizer que ele resolverá os problemas que se colocam à humanidade, a começar pela morte.

O homem aumentado é uma vaga aproximação desse para além do humano. A expressão designa as realizações que se obtêm e que se obterão cada vez mais da aplicação das tecnologias ao humano: por exemplo, aumento da memória, visão noturna, exoesqueleto, orelhas e retinas artificiais, psicoestimulantes para reforçar a atenção ou impedir dormir, ou ainda implantes intracerebrais para exercer ações à distância. Todo esse arsenal de realizações possibilitadas pela convergência tecnológica e, em primeiro lugar, pelas modelizações e simulações resultantes da digitalização, todo esse arsenal nos prepara, segundo os trans-humanistas radicais, para acolher o pós-humano.

Graças às tecnologias NBIC, não haverá mais necessidade de nascer por acaso (as técnicas de transgênese são o começo disso e a ectogênese é anunciada para breve); não haverá mais necessidade de sofrer (as neurociênciasjá produzem as moléculas requeridas); não haverá mais neces­ sidade de envelhecer (a nanomedicina saberá nos reparar até em nosso DNA); e não haverá mais necessidade de morrer, a menos que se decida baixar o conteúdo do cérebro em outro suporte. Há ingenuidade nessas especulações, mas elas dizem muito sobre a obstinação que sentimos em querer nos livrar daquilo que faz de nós homens e mulheres.

Na era digital, a humanidade revela o quanto gostaria de acabar com ela mesma. As tecnologias do virtual, por si sós, exprimem já esse cansaço de ser limitado pelo corpo, conforme Pierre Lévy já evocou. A utopia que triunfa é a utopia de uma saída do humano. Por isso nos assustamos mui­ tas vezes com os exageros encenados na ficção científica (a representação de um mundo de zumbis incapazes de sentir a menor emoção ou de ter relações afetivas, nos filmes Avatar, de James Cameron, ou Blade Runner, de Ridley Scott). Mas por isso também nos deixamos fascinar pelos mesmos exageros quando somos tomados de desânimo diante de um mundo que produziu os piores horrores, como o Holocausto ou Hiroshima.

As utopias ligadas ao digital apostam na desmaterialização para engajar a humanidade no caminho de sua desincorporação, isto é, de seu desaparecimento. A imortalidade é o argumento choque dessas utopias, sustentado pela convergência tecnológica. Como resistir? Talvez buscando reconciliar a humanidade consigo mesma, curando-a desse cansaço de si que a levou a preferir as máquinas ao humano.

Somos capazes de reclamar uma regulação das técnicas que leve à recusa de fazer o que se poderia fazer (ou seja, o desafio da ética aplicada às tecnociências)? Não ceder cegamente ao eugenismo possibilitado pelas biotecnologias. Não dissimular que a supressão do sofrimento pode ter como avesso o desaparecimento de seu contrário, o prazer. Não diabolizar a velhice como um estado vergonhoso. Redescobrir que a morte dá um sentido à vida e que ela é mesmo a condição do desejo entre os homens (como em Platão a figura de Eros se opõe à dos deuses fechados em si mesmos).

As tecnologias criam desmedidas e, se devem ser controladas, não há como não barrar suas pretensões. De que maneira? No front das políticas de pesquisa, pondo um freio à corrida das inovações. No front das mentalidades, opondo-lhes outro imaginário que não o das utopias pós-humanas: um imaginário que valorize e preserve a vulnerabilidade e a consciência da fragilidade como o verdadeiro privilégio do humano.

O desejo de imortalidade, caso se realizasse, seria a morte do desejo. Será que podemos querer isso? Em um momento em que as tecnologias desencadeiam roteiros de apocalipse, a questão merece ser examinada.

  1. A tradução do presente ensaio, incluindo as citações de obras feitas pelo autor, é de Paulo Neves.
  2. Sigla formada pelas iniciais de nanotecnologia, biotecnologia, infotecnologia (ou tecnologia da informação) e cognotecnologia (ou tecnologia cognitiva). [N.T.]

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