O sonho de Frankenstein
por Jorge Coli
Resumo
Mary Shelley teve uma centelha de gênio ao inventar, em 1818, com apenas vinte anos, uma criatura feita de pedaços de cadáveres. Não era reviver um morto: era criar, por meio da ciência, um homem novo e superior aos produzidos pela natureza.
Há um paralelo possível com o campo das artes plásticas. Uma questão fundamental, reativada pelas correntes neoclássicas, era a forma ideal. Ela devia resultar de uma combinatória que junta elementos extraídos de seres diferentes. Este modo artístico era dominante quando Mary Shelley escreveu Frankenstein.
Frankenstein liga arte e ciência, a imagem cristalina e o cadáver repugnante, o super-homem e o mostro. O projeto era luminoso como uma obra de arte. “Seus membros eram proporcionados, e eu havia escolhido seus traços como um belo – Belo! – Deus”, escreveu Mary Shelley. A prática, no entanto, trazia a mácula e o fascínio imundo do cadáver: “Eu recolhi os ossos em necrotérios, e perturbei, com dedos profanos, os segredos tremendos da estrutura humana”.
No século XIX, quando a ideia de máquina impera enquanto modelo mental para a concepção do mundo, o princípio da ação sobre as partes que compõem um todo em funcionamento vai conferir uma estranha autonomia a estas mesmas partes. Trata-se de fragmentos pertencentes a um todo material, mas também, por assim dizer, virtual. O fragmento pressupõe que o todo traga um suplemento vital já que, uma vez constituído, esse conjunto é capaz de movimentos, ações e – às vezes – de vida. O fragmento inerte comporta, deste modo, uma aura de vida e, por suposto, uma aura de morte.
Na virada do século XVIII para o XIX, há um deslocamento do lugar onde se encontra o humano. Surge uma nova configuração, na qual o olhar do homem sobre o homem não é mais sobre si, mas sobre uma coisa. O homem objetiva-se a si mesmo, no sentido de que se dispõe, como objeto, para um sujeito que conhece. Objeto de si, seu corpo se evidencia, apresenta-se como corpo apenas, disposto para a ciência ou para a arte. O que é horrendo nos quadros religiosos que, antes desse tempo, figuravam o martírio? O sofrimento, preço terrível e prova definitiva de fidelidade a Deus. A fragilidade passageira da presença corporal humana neste mundo: quia pulvis es. Mas esses quadros incorporavam também a ofensa à unidade do corpo, imagem divina, templo a ser reverenciado, que ressuscitaria no dia final dos mortos. Ao agredir o corpo, o algoz agredia Deus em sua obra maior.
Penso no quadro de Poussin, O martírio de santo Erasmo. Ele data de 1628. Foi uma encomenda e o pintor teve de adaptar o tema, tão sanguinolento, ao seu mundo, ordenado e claro, voltado para a Antiguidade clássica. Santo Erasmo é destripado vivo. Sua lenda conta que os intestinos foram retirados metodicamente, enrolados numa espécie de grande carretel de madeira, parecido com o cabrestante dos navios, movido por manivela. Poussin figurou o episódio.
Tudo, na tela, é muito limpo. Santo Erasmo possui uma compleição atlética, em que o realismo da anatomia se mistura com a inspiração antiga. Fizeram-lhe um talho na barriga, que o carrasco pressiona com a mão direita, para não deixar as entranhas se soltarem em desordem. A saída dos intestinos é controlada: a mão pressiona o ventre ao mesmo tempo que aperta a tripa; a esquerda puxa; e os intestinos tomam a feição de uma corda, que vai se dispondo, com regularidade, no carretel, acionado por outro homem. Tem-se a impressão de profissionais, de práticos trabalhando. Essa tortura foi empregada na Europa até, pelo menos, o século XVIII.[1]
O horror que deriva da pintura de Poussin evita a repugnância física, os desesperos, os gestos patéticos. Poussin exclui compaixões: todas as figuras à volta de Erasmo são de romanos, de pagãos que não se apiedam com sua sorte. O impacto da violência e do pavor originou-se, naquela imagem, justamente da frieza e da racionalidade técnicas, do esvaziamento sentimental.
Essa cena de martírio, que se passa na Roma Antiga, permite a Poussin evidenciar seus poderes de produzir belas anatomias. O corpo de Erasmo, nu, está intacto, salvo pela abertura no ventre, ocultada pela mão do carrasco. A inspiração clássica é evidente: arqueado, de costas, sobre um banco, Erasmo — que lembra, na horizontal, a pose dos Mársias antigos pendurados por Apolo em uma árvore — responde, como um reflexo humano e verdadeiro, à estátua dourada de Hércules, que o pintor dispôs no alto, à direita. Se se quiser, trata-se, de fato, de uma violência com contenção apolínea.
Os admiráveis corpos inventados por Poussin tiveram seus modelos na tradição clássica dos antigos gregos e romanos. Essa derivação combinou-se, sem contradição, com o racionalismo técnico empregado no martírio, limpo e ordenado como o pintor dispôs. Evitou sangueiras e dilacerações. Por trás de tudo, porém, encontra-se a divina unidade do corpo. A cultura clássica de Poussin, a eficácia pragmática de sua tortura, coincide com o respeito religioso pela intacta coesão.
A revolução iluminista trouxe, ao contrário, a postura científica e metódica que pressupõe a desmontagem do corpo em partes, para a compreensão do todo. Está claro, é possível encontrar um grande número de precursores, mas, no século XVIII, ocorre uma substituição. A unidade divina conferida ao homem era irredutível: seus pedaços não formavam elementos constituintes. Agora, pela visão científica, as partes, organizadas e em função, produzem o todo.
Assiste-se, paralelamente, ao adentrar pela cultura dos últimos dois séculos, a um fascínio pelo humano que se desmembra. Isso pode ocorrer de modo difuso ou específico. Cria-se, por assim dizer, uma poética do fragmento. Ela vai se constituir como um instrumento de crítica às certezas científicas e à tirania da perfeição. Semelhantes posturas interrogativas são, no mais das vezes, latentes e intuitivas, nem sempre são localizadas no domínio da consciência, mas acionam, pela angústia e pela perturbação, fortes alertas. Elas flutuam, muitas vezes, em águas intermediárias entre arte e ciência.
Quando é instaurada, nas artes, a reforma iluminista do neoclassicismo, triunfa com ela uma vertente do idealismo, que eu seria tentado a chamar “idealismo paradoxal”. Em Idea, Panofsky retraçou, através dos tempos, o movimento pendular que, de um lado, projeta a beleza nas formas abstratas do pensamento, penetrando no sensível por participação ou derivação. Mas que, de outro, se eleva a partir de uma análise do sensível por elementos, constituindo uma forma supranatural, cuja beleza é captada no próprio sensível, mas acima do que ele possa produzir.
É esta última a que triunfa entre os neoclássicos, com um peso, talvez, nunca sentido antes. A parábola de referência, tantas vezes retomada pelos artistas daquele período,[2] é a de Zêuxis e as mais belas moças de Crotona. Zêuxis, o grande pintor da Grécia Antiga, deve criar a imagem de Helena, cuja beleza nenhuma outra mortal igualara. Escolhe, então, as cinco mais belas moças de Crotona, e seleciona o que cada uma delas tem de mais belo: rosto, pernas, seios etc. Monta, assim, uma imagem de suprema beleza, a partir de elementos fornecidos pela natureza, mas acima daquilo que a natureza, ela própria, conseguiria produzir.[3]
O caráter paradoxal desse idealismo reside no fato de que ele é, na verdade, um empirismo e, de certo modo, um realismo, se atribuirmos a esse conceito a ideia de imitação do sensível. Isso encontrará uma grande coerência no projeto neoclássico. Embora tomando como norte as referências greco-romanas, o neoclassicismo é um fruto das Luzes. Esse “idealismo empírico” revela-se um instrumento, por assim dizer, enciclopédico. Ele oferece ao pintor uma técnica capaz de representar todas as formas do mundo, atirando o artista para uma tensão contraditória. Tal tensão resolve-se no procedimento concreto: o artista seleciona a parte e a aprimora, isto é, elimina dela as aparências mais efêmeras e circunstanciais, conferindo-lhe uma ascese que a define melhor e, ao mesmo tempo, explicita. O sensível eleva-se ao intelecto, conforma-se a seu “ideal”. Tudo o que o mundo sensível oferece é passível desse tratamento: só assim entende-se que tipo de classicismo encerra um quadro como A morte de Marat, de David. Só assim compreende-se a faculdade de captar novas experiências culturais, demonstrada por pintores viajantes neoclássicos, como Debret, entre nós. O neoclassicismo propõe, sem dúvida, um projeto de beleza, mas ele se encontra, de fato, como um instrumento da universalidade enciclopédica.
Isso tudo, porém, é outra história. O que nos interessa aqui se caracteriza por uma familiaridade, uma constância frequente no tratamento de cada elemento do corpo. O neoclassicismo alcançava a representação de todos os elementos possíveis do mundo sensível. Mas o corpo humano, por tradição herdada da Antiguidade e reforçada na Renascença, significava o centro e o apogeu dessa arte. O respeito pela compreensão das formas humanas era tamanho que a pedagogia neoclássica preconizava pintar primeiro os modelos nus, para, em seguida, os vestir. Isso era praticado mesmo nos retratos, naturalmente fazendo apelo a modelos que tivessem uma compleição equivalente à dos retratados. Os estudos para as telas assim concebidas, que podem mostrar o papa Pio VII ou Eugênio de Beauharnais despidos, causam, hoje, certa estranheza engraçada. O quadro inacabado de David, O juramento do jogo de péla, com o desenho dos corpos sem roupa, mas com cabeças modernas, usando perucas, como é o caso de Mirabeau, demonstra perfeitamente esse procedimento.
Os quadros neoclássicos — da mesma maneira que os de Poussin, artista que permanecia uma das grandes referências para aqueles pintores — são claros, limpos e ordenados. Ao desmembramento dos corpos sucedia minuciosa reconstituição, na busca de um todo perfeito, situado acima da natureza. Para jogar com as palavras, estamos aqui à frente de um “sobrenatural apolíneo”, cuja apoteose, no sentido de sacralização, mas no sentido teatral também, explode no formidável acúmulo de nus masculinos no Leônidas, de David.
Poussin, grande referência para a pintura neoclássica, sem sombra de dúvida. Mas o século XIX possui suas próprias perversões. Ingres, pseudoclássico, pseudo-rafaelita, embora se proclame herdeiro de Rafael e levante a bandeira do ideal contra os “apóstolos do feio” — isto é, contra românticos e realistas —, vê seus cânones minados pela obsessiva atenção que concede às partes. Elas terminam se impondo, com estranha autonomia, sobre o todo. Conseguir a suprema perfeição num elemento, depois montá-la no todo, sem que esse todo possa reclamar da anatomia e da perspectiva, eis a consequência. O que o induz à confecção de monstros admiráveis pela beleza: odaliscas com vértebras a mais, heróis com cabeças mal atarraxadas ao tronco.
Fixadas cristalinamente, como sobre uma superfície de esmalte, fora do tempo, fora do movimento, as imagens de Ingres introduzem um erotismo particular. Não se trabalha sobre o corpo impunemente, sem que uma contaminação voluptuosa se estabeleça. De Ingres a Picasso ou Bellmer, há uma tradição que, apoiada no intelectualismo da linha, do desenho, aglutina fragmentos corpóreos, em reconstituições singulares, em que a sexualidade adquire preeminência.
Ingres demonstra, além disso, que o todo perdeu seu caráter sagrado e que as partes surgem, em sua isenção de significados religiosos ou humanistas, como coisas misteriosas, com leis próprias. Patenteia-se aqui a perda do divino, como supremo sentido para as coisas. Diga-se, entre parênteses, que os fortes movimentos emotivos dos românticos se assemelham às pulsões emocionais dos barrocos, menos num ponto essencial: para estes últimos, tais impulsos permitem chegar ao contato com o divino, que dá sentido a tudo. Para os primeiros, esse sentido diluiu-se por trás do mistério e do desconhecido. A angústia barroca repousa na possibilidade de que um apelo não atinja a resposta divina. A angústia romântica é mais desesperada: ela repousa no princípio de que não há resposta e, portanto, em última análise, não há salvação. O homem de Ingres perdeu a coerência divina da anatomia: metamorfoseou-se no inesperado, cujo sentido nos escapa.
Poussin, David, Ingres, Picasso, Bellmer: são artistas que mantêm, no entanto, de qualquer modo, o princípio do todo. Nessa sucessão, a partir de Ingres, o todo se recompõe de modo singular, ordenando, sem coerência objetiva, as partes, que se tornaram determinantes. Mas o todo — mesmo escapando das regras gerais que o transformam num “todo reconhecível por todos” — continua presente. Um quadro cubista ou A grande odalisca compõem um todo, mesmo que nessas telas se encontre a obediência a leis que são próprias apenas a cada uma das obras. O fragmento, porém, será capaz de uma poética autônoma, como fragmento.
Ou seja, o fragmento torna-se todo. A experiência da arqueologia moderna contribuiu consideravelmente para a incorporação, na cultura ocidental contemporânea, do fragmento como portador de beleza e poesia específicas. A regra geral, desde a Renascença, era que as esculturas da Antiguidade, descobertas em escavações e muito fragmentadas, passassem por restaurações que as completassem. Partes oriundas de diversas estátuas reuniam-se para compor um novo todo; ou esculpia-se o que faltava. Eram próteses, na expressão feliz de uma especialista.[4]
Existiam grandes ateliês para esse tipo de reconstituição, com peças em reserva, que vinham de descobertas diferentes, em locais diversos. Cabeças, braços, mãos ficavam à espera de serem reutilizados: numa comparação prosaica, eram como são hoje as peças em negócios de carros usados, à espera de uma nova utilização.
O importante era que a estátua surgisse com inteireza, ficando como secundária a origem dessas cabeças, mãos ou pés. Ora, é no final do século XVIII, e sobretudo no início do XIX, que a atitude de estudiosos e do público se altera. O fragmento descoberto passa a ser respeitado como portador de beleza e poesia em si próprio, e os procedimentos restauradores que se praticavam começam a ser vistos como uma espécie de profanação ao espírito original que concebera a estátua. Isso é verdadeiro até hoje, a tal ponto que, desde há duas ou três décadas, peritos e conservadores de museus pelo mundo afora têm procedido a “desrestaurações” de obras que, assim tratadas, conservam apenas o núcleo original da estátua mais importante. É uma filologia cujas determinantes chegam a ser contrárias à apreensão dos movimentos da cultura: uma estátua restaurada durante os séculos XVI, XVII e XVIII entrou para a cultura visual da história com o aspecto que lhe foi conferido pela época que a descobriu e restaurou. Ela viveu, em todos os olhares, através dos tempos, com aquela aparência que hoje se desmancha. Entre alguns exemplos muito célebres dessas desmontagens encontram-se o grupo do Laocoonte, do Vaticano, e o fauno Barberini, de Munique.
O que nos importa, porém, é notar a incorporação, nas contemplações do público frequentador de museus, de obras que foram mutiladas pelo tempo. Desses fragmentos, que contêm em si uma beleza concentrada e específica, emana uma poesia nova, marcada pela sobrevivência a eras sucessivas, pela ausência do todo. A beleza de um torso, de um pé, tão maravilhosamente concebido pelos antigos, pulsa por si só. As restaurações de antes, que completavam as partes ausentes, é sentida, agora, como ofensiva e espúria, como um atentado aos originais remanescentes, como monstruosa pretensão diante de fragmentos tão belos. Quando Lord Elgin traz os mármores do Partenon para Londres, eles permanecem no estado em que se encontravam, sem complementos arbitrários.
Mais ainda, a força expressiva dos fragmentos impõe-se como modelo de prática artística. Em 1845, Balzac publicava sua célebre novela Le chef d’œuvre inconnu, na qual um velho pintor do século XVII, chamado Frenhofer, tentando produzir uma grande obra-prima, destrói a imagem com infinitas pinceladas que se sobrepõem e que resultam num borrão confuso. Mas, dentro da nebulosa, percebia-se um pé, tão estupendo que parecia viver:
En s’approchant, ils aperçurent dans un coin de la toile le bout d’un pied nu qui sortait de ce chaos de couleurs, de tons, de nuances indécises, espèce de brouillard sans forme; mais un pied délicieux, un pied vivant! Ils restèrent pétrifiés d’admiration devant ce fragment échappé à une incroyable, à une lente et progressive destruction. Ce pied apparaissait là comme un torse de quelque Vénus en marbre de Paros qui surgirait parmi les décombres d’une ville incendiée.
A ficção de Balzac exprime a nova sensibilidade diante dos fragmentos que escaparam “a uma lenta e progressiva destruição”, e que, dessa maneira, se compara aos achados arqueológicos: “Esse pé aparecia ali como um torso de alguma Vênus em mármore de Paros que surgisse por entre os escombros de uma cidade incendiada”.
Frenhofer termina por se suicidar, ao descobrir o engano ao qual levara sua loucura perfeccionista; mas a parábola pode ser lida pelo avesso: a loucura seria imaginar um todo possível. Em vez da luxúria plena, o fetichismo da parte. Os tempos novos são antes pelo inacabado, e um pé vale um corpo. Progressivamente, a força do fragmento passa a ser moderna, como bem notou Marguerite Yourcenar:
Le jour où une statue est terminée, sa vie, en un sens, commence. […] Ces durs objets façonnés à l’imitation des formes de la vie organique ont subi, à leur manière, l’équivalent de la fatigue, du vieillissement, du malheur. Ils ont changé comme le temps nous change […] Un faux aspect d’art moderne naît de ces transformations involontaires de l’art antique.[5]
O fragmento parece, portanto, moderno, e aos poucos os escultores vão incorporá-lo em seu trabalho. Mais que todos, Rodin o emprega com gênio e o leva ao extremo. O fragmento é determinante na gênese de seu processo criador. Com Rodin, sua prevalência chega a tal ponto que o artista passa a fabricar fragmentos, imitando o trabalho do tempo, do sofrimento e do envelhecimento, das velhas esculturas herdadas dos gregos e romanos.
O fragmento amplia assim seus poderes. Rodin mutilará seus próprios gessos e acentuará a força expressiva de um gesto, de um passo, de um movimento. Mais ainda, proporá associações inesperadas: enxertar a mão de uma estátua monumental em uma cabeça, por exemplo, e assim formar uma bizarra unidade, onde o todo perdeu referências plausíveis, mas abriu-se para sugestões impensadas. Rodin precede, desse modo, os futuros jogos do surrealismo.
Rodin introduz ainda, graças a sua preferência pelo bronze, ou seja, pelo barro, plástico, flexível, portador das marcas deixadas pela mão que o trabalha, um erotismo menos intelectualizado que o do mármore. O artista é fascinado pelo sexo feminino, pela vagina, e a expõe, sem falsos pudores, evidenciando-a, escancarando-a. Ele exalta aspectos imediatamente orgânicos. Nele, a pulsão fetichista que o fragmento contém em si aflora, violenta.
Não é invenção sua. Essa atitude havia sido preparada ao longo do século XIX. Do realismo de Courbet, por exemplo, nascem carnes que guardam sua natureza orgânica. Courbet, fascinado ele também pelos mistérios do corpo feminino, conceberá um quadro inusitado, cujo título é A origem do mundo. Um torso feminino, sem cabeça, pernas ou braços, que são seccionados pelos limites da tela. Em evidência, a vagina.
Surgem, paralelamente a essas concepções muito concretas do corpo e pressupondo-as, interrogações e prazeres derivados de seu caráter transitório. Nada, porém, de um memento mori, de uma lição cristã sobre a vida passageira deste mundo terrestre.
Se, em Ingres, o erotismo intelectualiza-se pela linha e pela superfície incólume, intacta, lisa, alguns de seus contemporâneos — justamente aqueles que o pintor chamava de “os apóstolos do feio” — descobrirão a poética da carne orgânica, efêmera porque corrupta.
Gros e seus cadáveres congelados, verdolengos, atirados ao nariz do público, em seu quadro de Eylau, datado de 1808, pode se configurar como inicial. Mas Géricault acentuará essa inclinação, em 1819, com Balsa da Medusa, e com todos os estudos que gravitam em torno dessa tela máxima. São estudos que adquirem feitura e aspecto de obras definitivas, mas que apresentam o tema singular de pedaços de pernas ou braços. Não são, porém, fragmentos de uma anatomia a ser reconstituída em sua inteireza: são fragmentos de corpos, são fragmentos de cadáveres, que o pintor decidiu não identificar, não sugerindo unidade alguma. Não são estudos de partes de uma imagem; são figurações de partes mortas, à espera da putrefação.
Ao mesmo tempo que, no final do século XVIII, se afirmava a arte neoclássica — com seu desmembramento de partes em benefício de um todo perfeito, arte que, pelas etapas concebidas com cuidado, pensadas, refletidas, se queria em acordo com a razão —, se inventava também um instrumento científico, racional, iluminista, para a execução dos condenados à morte.
A guilhotina foi concebida como um instrumento da democracia igualitária. Antes plebeus eram enforcados e a dignidade da decapitação era concedida apenas a aristocratas. As cabeças eram decepadas por carrascos mais ou menos hábeis no manejo do machado. Com a guilhotina, e sua precisão técnica, todos podiam ter acesso ao mesmo tipo de morte, que não errava no golpe e, segundo os teóricos do tempo, era menos cruel porque não provocava dor.
O período revolucionário do Terror trouxe o cadáver à evidência. A guilhotina multiplicara as punições por crimes políticos ou ideológicos. As cabeças míticas da Medusa, cortada por Perseu, ou de são João Batista, obtida por Salomé numa bandeja de prata, cedem lugar agora a um contato presente, cotidiano, com essas cabeças verdadeiras, sem corpo, que o imaginário se encarregava de multiplicar.[6] Mais fortes ainda talvez tenham sido as incessantes guerras “modernas” do período napoleônico, seus milhares de mortos, de aleijados. Essas guerras provocaram o aperfeiçoamento das técnicas cirúrgicas voltadas para as amputações e restaurações.
Estes são alguns dos motivos que levaram o cadáver, a putrefação, a entrar como elemento constituinte das novas sensibilidades que se difundiram durante o século XIX. O gênio de Baudelaire cultivou, como ninguém, a poética do mórbido e do putrefato. “Une charogne” [Uma carniça], o célebre poema,[7] torna intensos tais fascínios e desejos estranhos. Não é inútil citá-lo aqui por inteiro. O poeta dirige-se à amada:
Rappelez-vous l’objet que nous vîmes, mon âme,
Ce beau matin d’été si doux:
Au détour d’un sentier une charogne infâme
Sur un lit semé de cailloux,
Les jambes en l’air, comme une femme lubrique,
Brûlante et suant les poisons,
Ouvrait d’une façon nonchalante et cynique
Son ventre plein d’exhalaisons.
Le soleil rayonnait sur cette pourriture,
Comme afin de la cuire à point,
Et de rendre au centuple à la grande nature
Tout ce qu’ensemble elle avait joint;
Et le ciel regardait la carcasse superbe
Comme une fleur s’épanouir.
La puanteur était si forte, que sur l’herbe
Vous crûtes vous évanouir.
Les mouches bourdonnaient sur ce ventre putride,
D’où sortaient de noirs bataillons
De larves, qui coulaient comme un épais liquide
Le long de ces vivants haillons.
Tout cela descendait, montait comme une vague,
Ou s’élançait en pétillant;
On eût dit que le corps, enflé d’un souffle vague,
Vivait en se multipliant.
Et ce monde rendait une étrange musique,
Comme l’eau courante et le vent,
Ou le grain qu’un vanneur d’un mouvement rythmique
Agite et tourne dans son van.
Les formes s’effaçaient et n’étaient plus qu’un rêve,
Une ébauche lente à venir,
Sur la toile oubliée, et que l’artiste achève
Seulement par le souvenir.
Derrière les rochers une chienne inquiète
Nous regardait d’un oeil fâché,
Épiant le moment de reprendre au squelette
Le morceau qu’elle avait lâché.
Et pourtant vous serez semblable à cette ordure,
A cette horrible infection,
Étoile de mes yeux, soleil de ma nature,
Vous, mon ange et ma passion!
Oui ! telle vous serez, ô reine des grâces,
Après les derniers sacrements,
Quand vous irez, sous l’herbe et les floraisons grasses.
Moisir parmi les ossements.
Alors, ô ma beauté ! dites à la vermine
Qui vous mangera de baisers,
Que j’ai gardé la forme et l’essence divine
De mes amours décomposés !
A carniça é como lúbrica fêmea, carregada de desejos, atraindo os homens com os fedores, exacerbados, agressivos, de seu ventre. Ela é o testemunho evidente do efêmero, da unidade que se faz e desfaz: “de rendre au centuple à la grande nature/ Tout ce qu’ensemble elle avait joint”.
A metáfora artística, empregada pelo poeta, nos remete ao chef-d’œuvre inconnu e aos modos inefáveis da forma que se esvai, aos quais se afeiçoariam tantos artistas, num espírito próximo ao decadentismo (Carrière ou Medardo Rosso, por exemplo): “Les formes s’effaçaient et n’étaient plus qu’un rêve,/ Une ébauche lente à venir,/ Sur la toile oubliée, et que l’artiste achève/ Seulement par le souvenir”.
O que é mais: a deliquescência romântica alcança um domínio que o próprio romantismo reservava à pureza, desfazendo-a — o lugar da mulher amada: “Et pourtant vous serez semblable à cette ordure,/ A cette horrible infection,/ Étoile de mes yeux, soleil de ma nature,/ Vous, mon ange et ma passion!”.
A poética da corrupção física mostra quanto desapareceu qualquer princípio de unidade atemporal, seja ela religiosa ou artística, neste mundo em que o cadáver participa da configuração humana, cuja essência é essência inexistente — se considerarmos a essência como divina ou pertencente aos atributos do belo ideal.
As flores do mal, de Baudelaire, foi publicado em 1861. A sensibilidade que contém, voltada para uma nova percepção do corpo, pressupõe uma preparação que ocorre num período bastante preciso. Indico, aqui, algumas datas: os mármores do Partenon, trazidos por Lord Elgin para a Inglaterra, são expostos em 1816; A grande odalisca, de Ingres, data de 1814; Leônidas, de David, é do mesmo ano, 1814; A balsa da Medusa, de Géricault, é revelada ao público em 1819.
De 1814 a 1819, isto é, no momento da falência e do refluxo do Império napoleônico, afirma-se, de modo bastante claro, a percepção, estranha e nova, do homem pelo seu corpo. É exatamente nesse período, em 1818, que é publicado Frankenstein, de Mary Shelley.[8]
O livro tem um subtítulo, The modern Prometheus: Victor Frankenstein tentou, como o herói mitológico, alcançar segredos proibidos. Mas ele o faz à maneira moderna, com o auxílio da ciência. Trata-se de um aviso pelo pavor, de um alerta contra os excessos científicos. Esse sentido primeiro, que é, evidentemente, ainda hoje operante, repousa sobre outra intuição mais oculta e difusa. Com partes de cadáveres diversos, dr.
Frankenstein quer fabricar uma vida superior, uma espécie de super-homem. O monstro é produzido como nos antigos ateliês de restauração, que formavam estátuas de partes diversas.[9] Ou como nos quadros neoclássicos, que compunham suas anatomias com base no estudo dos detalhes.
A similaridade com a pintura neoclássica vai além: ela se encontra ainda no objetivo, que é a obtenção de um belo ideal a partir de elementos preexistentes na natureza. O projeto de Victor Frankenstein era luminoso como uma obra de arte. Mary Shelley conta que o cientista buscara, para sua criatura, a proporção harmoniosa dos membros, a beleza dos traços, como as de um belo deus, um deus dos tempos clássicos.
Como se sabe, a experiência resultou monstruosa. Já vimos que Ingres, partindo do método neoclássico, mas modificando seu mecanismo, chegara também a monstros. O processo de abstração interno ao comportamento artístico de Ingres conduziu-o, porém, a uma curiosa forma de beleza monstruosa. Em seu mundo cristalino, ele preserva da feiúra e do horror os monstros que inventou.
Não é isso o que ocorre com Frankenstein. O sentido das partes corpóreas como carne, num sentimento geral que ocorria então, intervém.
Para obter os efeitos necessários nos corpos da Balsa da Medusa — episódio real de morte, antropofagia, putrefação —, Géricault teve de frequentar necrotérios e salas de dissecação, fazendo estudos pictóricos dos membros dos cadáveres. Um desses estudos resultou numa obra esplêndida e assustadora, conservada no museu de Montpellier. Nela, conferindo à tela um acabamento cuidado, o pintor reúne partes de braços e pernas, dos quais não sabemos sequer se pertencem ao mesmo corpo. O princípio que descrevemos no início, e que consiste na perda da unidade humana, foi aqui levado ao extremo. A morte aparece num limite: além dessas imagens, o que mais pode haver? Géricault nos acua onde não há saída, destruindo qualquer veleidade metafísica ou espiritual que console. É a morte, na sua constatação mais brutal e menos indulgente.
Géricault dispõe-nos aquém das esperanças. Nesse sentido, os membros decepados que atira uns sobre os outros nos revelam a perda da unidade, a perda desse misterioso princípio vital que oferece um sentido apenas precário, antes que sobrevenha a morte. Fragmentos nos quais a ausência é tão assustadora quanto a presença. Não há mais homem, não há mais nada além de pernas e braços. Também não há mais nada a fazer. Géricault afirma a impotência, limita a existência. A partir deles, qualquer reconstituição torna-se grotesca. Géricault, no avesso do espírito positivo, é o contrário do dr. Frankenstein.
Ambos, porém, passaram por caminhos parecidos. Em ambos houve a busca do cadáver, o contato com as carnes mortas. É isso que comprometeu a experiência do cientista. Ele pensou ir além do cadáver para chegar acima do que a natureza podia dispor. Com partes de diversos seres mortos, quis criar vida superior. As carnes podres comprometeram o projeto cristalino:
Quem poderá conceber os horrores de minha labuta secreta enquanto eu chafurdava na umidade profanada da cova ou torturava o animal vivo de forma a animar o barro sem vida? Meus membros agora tremem, e meus olhos nadam com a recordação (…) Peguei ossos de ossuários e perturbei, com dedos profanos, os tremendos segredos da estrutura humana (…) Mantive minha oficina de imunda criação; meus globos oculares saltavam de seus orifícios em resposta aos detalhes de meu emprego.
Mary Shelley inclui, desse modo, na prática do cientista, a mácula e o fascínio imundo do cadáver, paralelos aos de Géricault ou Baudelaire. Aquilo que é existente e concreto compromete o projeto ideal.
Há, por fazer, uma longa história das regiões fronteiriças entre arte e ciência, centrada no corpo, nos seus fragmentos, no cadáver. O século XIX foi pródigo em imagens artísticas ou científicas — às vezes, artísticas e científicas a um só tempo. Assinalo aqui apenas uma delas, das mais extraordinárias, e que pertence a nossa cultura: o Tiradentes esquartejado, pintado por Pedro Américo, que se encontra no Museu de Juiz de Fora. Nela, o artista emprega a ciência do anatomista e a ciência do historiador para tratar, de maneira surpreendente e sem equivalentes na história das artes ocidentais, um herói pátrio.
Pedro Américo procedeu a um cuidadoso esquartejamento e dispôs os pedaços com uma limpeza clínica ainda mais fria e clara do que no Santo Erasmo, de Poussin. Em sua tela, história e heroísmo resumem-se num corpo despedaçado. E, se é verdade que o artista emprega, aqui, a metáfora do martírio cristão, graças à presença de um crucifixo no cadafalso, o corpo, desunido em bela frieza e numa luz curiosamente amena, evidencia-se, sobretudo, como corpo. Assim, história, heroísmo, imagem artística ficam de um lado, do lado do mito. Do outro lado ficam os membros, esquartejados, confinados em si mesmos.[10] O século XX prolongou, desdobrou, reiterou esses fascínios. O cinema, num dos seus gêneros fecundos, o filme de terror, retomou os mitos criados pela imaginação do século precedente. Transformou, por reiteração deliciada, o monstro de Frankenstein numa criatura autônoma, que passa de livro a filme, e de filme em filme. Quantos não conhecem a palavra Frankenstein? “Parece um Frankenstein.” “Feio como um Frankenstein.” Quantos, porém, leram Mary Shelley ou, ao menos, sabem quem foi o autor do livro em que Frankenstein foi gerado? O destino do monstro foi tão pleno que devorou mesmo o nome de seu criador: Frankenstein passou a denominar a criatura. A tal ponto que me referir, como fiz acima, “ao monstro de Frankenstein” para nomear a criatura sem nome, pode parecer pernóstico, porque é como se eu estivesse sublinhando: “Vejam, sei que Frankenstein não denomina o monstro, mas o cientista”.
Stephen King analisou as razões dessa popularidade, a mais profunda estando no sentimento de humanidade que Mary Shelley conferiu ao monstro e que o cinema respeitou. James Whale, ao dirigir a primeira versão falada de Frankenstein, versão prototípica, atribuiu a ele nobreza de espírito. O monstro é uma vítima, em muitos sentidos, humana e moralmente mais elevado do que seus perseguidores. A maquiagem original do filme de Whale repetiu-se ao longo das numerosas adaptações cinematográficas que se seguiram.[11] Ela era assustadora, mas permitia as expressões dolorosas que Boris Karloff soube emprestar a seu personagem. Stephen King apreendeu perfeitamente a dose de humanidade por trás da máscara, e que produz ambiguidade em nossos sentimentos provocados pelo monstro: “Bem, não choramos exatamente quando o monstro de Frankenstein morre (…), mas ficamos, possivelmente, enojados com nossa própria sensação de alívio”.[12]
O século XIX criou a sensibilidade propícia a essas formas monstruosas, o século XX, em diversos campos artísticos, deu continuidade a elas e as acentuou. Nos últimos tempos, paralelamente às experiências da engenharia genética, as artes vêm mostrando inflexões que intensificam essas preocupações. Muitos artistas — é impossível estabelecer aqui uma lista significativa, tantos são eles — levantam hoje interrogações a partir do corpo. Ele é sentido como reduto material e subjetivo de entranhas e de carnes, de onde brotam investidas contra limites sociais, naturais, metafísicos. Ele é maltratado, deformado, aglutinado em formas horrendas: o monstro interroga.[13]
O cinema não ficou atrás: basta lembrar a extraordinária saga dos Alien, em que a gestação da violência se faz dentro do homem, o alienígena predador é ambicionado como arma, por um espírito militarista, em fim de contas, mais monstruoso do que tudo.
A profundidade mais crítica se desenha: Frankenstein liga arte e ciência, a imagem cristalina e o cadáver repugnante, a violência e o sofrimento. Ele incorpora, no projeto monstruoso, uma ambiguidade humana, muito humana. Ele mostra as virtudes da imperfeição.
Há uma questão que pode ser enunciada, permitindo concluir. Ajuntar ou cortar? Entre a unidade e o fragmento, entre a arte e a ciência, o corpo humano centrou sensibilidades, expostas ou ocultas, provocadas por tensões presentes no século XIX. Recentemente, artistas, filmes fizeram com que elas ressurgissem em grande visibilidade. O corpo humano, interrogado em sua matéria, em sua forma, suscita sensações de crise, por meio de uma poética que busca, de maneira surpreendente, suas energias no imperfeito.
A perfeição era meta. Res extesa et cogitans, a velha dualidade tenta uma solução na beleza da forma humana, na qual o corpo é perfeito, ou seja, em que a matéria se ultrapassa a si mesma, em que o princípio ideal toma forma. Trata-se de uma convergência, situada em linha de fronteira. O sensível, imperfeito, atinge, em seus limites, a perfeição ideal.
Quando isso ocorre no campo artístico, encontramo-nos numa espécie de laboratório virtual, onde o processo de representação funciona como hipótese. A forma representada não é, de fato, vida, e a tentação clássica é, buscando extrair o objeto da materialidade e da temporalidade, descobrir nele uma eternidade harmônica.
Se seguirmos as indicações oferecidas por Leni Riefenstahl, cineasta de gênio que se pôs a serviço do nazismo, entraremos por um caminho inverso. Em seu filme Os deuses do estádio (Olympia, 1938), sobre as Olimpíadas de Berlim, há um prólogo no qual a diretora associa estátuas da Antiguidade clássica ao atleta moderno. Isto é, ela mostra ser possível a introdução, no mundo, da perfeição, já que a carne se identifica ao mármore, já que o corpo real superpõe-se ao ideal da escultura. A representação artística ensina a beleza ao mundo, que deve adaptar-se a ela. Já se disse que o projeto nazista foi um projeto estético: tornar perfeito um mundo imperfeito.
A perfeição, porém, tem o seu preço. Como figura do pensamento, engendra-se na pureza. Mas como figura do ser, depende da materialidade. Como se sabe, o método nazista é o do corte e da eliminação. Só aquilo que é perfeito se torna digno deste mundo. Legitima-se, dessa maneira, a supressão do resto. Como aqui não estamos mais falando de estátuas, pinturas, filmes ou livros, mas de seres humanos, o vínculo entre arte e ciência se estabelece. Trata-se de eugenia, trata-se de ciência altamente depurada, trata-se de uma racionalidade que impõe, tranqüila e inexoravelmente, a pureza genética.
Não é preciso muito esforço para compreender que, dentro do atleta admirável em sua perfeição, se esconde o monstro. Porque ele é, em tudo, semelhante ao modelo esculpido, menos num ponto: não é de pedra, mas de carne. Sua identificação à sublime estátua significa o avesso de qualquer postura humanista, já que lhe falta a consciência de que é vulnerável e imperfeito. A dimensão humana oculta-se em nome de uma imagem visível. Em verdade, o mestre do perfeito é o imperfeito. É o imperfeito que ensina. É dessa lição que Leni Riefenstahl se esqueceu.
A utopia do corpo, em que a perfeição se perfila no horizonte como meta, não cessou de sensibilizar as preocupações dos séculos XIX e XX. A ciência mostrou-se como o instrumento por excelência para atingi-la; e a parábola de Frankenstein configura-se como lição filosófica. A busca da perfeição corpórea, não como projeto de harmonia, mas como plenitude do ser, incide sobre a crítica da própria ideia de perfeição. Ela contém em si um caráter exclusivo, em evidência que se basta a si própria, eliminando todo o resto. Numa prática coletiva, a celebração da pureza corpórea entra em coerência com a utopia nazista. A eliminação do imperfeito pelo perfeito significa a eliminação da diversidade do mundo, pressupondo a tirania.
A arte assinala ao homem seus limites e suas tragédias. As quimeras da arte — quimeras eram seres mitológicos que apresentavam, enxertadas, partes de leão, de cabra e de dragão — levantaram um mundo de carnes frágeis, de horrores íntimos, num fascínio que elas compartilharam com práticas científicas. Frankenstein promoveu a junção da arte e da ciência, para que a arte iluminasse a ciência. O monstro criado por Mary Shelley significou o alarme contra os desejos racionais, puros e superiores do saber científico, esse mesmo saber que nem sempre hesitou diante das mais pavorosas experiências. A maior arma do monstro não era a força. Nem o é para nós. Diante das certezas poderosas, das perfeições triunfantes, resta-nos outra arma, superior: resta-nos a fragilidade.
Notas
[1] O livro de referência para as questões ligadas à arte e ao martírio é o de Lionello Puppi, que consultamos na edição francesa: Lionello Puppi, Les suplices dans l’art; cérémonial des exécutions capitales et iconographie du martyre dans l’art européen du XII au XIX siècle. Paris, Larousse, 1991 (a primeira edição italiana é de 1990): Além do quadro de Poussin, Puppi apresenta duas imagens que representam o martírio de santo Erasmo. A primeira é uma xilogravura de Lucas Cranach, o Velho, datada de 1500 (Aschaffenburg, Museum der Stadt). Puppi assinala que a evisceratio era comumente praticada no centro e no norte da Europa. Note-se que nessa gravura as tripas não se enrolam num cabrestante, mas em volta de um eixo de madeira, de modo desordenado. A segunda é o painel central de um tríptico pintado por Dirk Bouts, o Martírio de santo Erasmo com são Jerônimo e são Bernardo de Clairvaux, de 1448, e conservado na catedral de Louvain. Aqui também o cabrestante não é empregado. Comentando a tela de Poussin, Puppi assinala: “O tratamento do tema apresenta tons muito animados, que contrasta com a maneira habitual do mestre e que é possível atribuir à experiência visual do esquartejamento manual e da evisceratio, suplício ainda em uso em Roma no início do século XVII” (p. 152). O autor informa que Erasmo era santo invocado pelos navegantes, o que contribuiu para a definição de sua iconografia, “tendo à mão a barra de um cabrestante com uma corda enrolada. Ela fez nascer o conto, abusivo mas muito divulgado, do último suplício, ao curso do qual os carrascos lhe teriam aberto o ventre, depois retirado os intestinos, enrolando-os em volta de uma barra de cabrestante” (p. 89).
[2] Entre os mais notáveis, o de Nicolas Monsiaux, Zêuxis escolhendo seus modelos, 1797. Art Gallery of Ontario, Canadá, e, sobretudo, o de François-André Vincent, Zêuxis escolhendo por modelos as mais belas moças de Crotona, Paris, Museu do Louvre.
[3] Sobre o episódio de Zêuxis, ver Régis Michel, Tart des salons”, in Aux armes et aux arts!, les arts de la Révolution, 1789-1799. Paris: Adam Biro, 1988.
[4] Geneviève Bresc-Bautier, “Le temps des prothèses, avant l’âge de la restauration”, in Le corps en morceaux, catálogo da exposição do Musée d’Orsay, Reunion des Musées Nationaux, 1990, pp. 79 ss. A bibliografia especializada sobre a questão é abundante. Contento-me em citar apenas outra obra, além do referido catálogo: H. S. Plenderleith, La conservation des antiquités et des oeuvres d’art. Paris, 1966.
[5] Marguerite Yourcenar, “Le temps, ce grand sculpteur”, in Le temps, ce grand sculpteur, essais. Paris: Gallimard, 1983, p. 61.
[6] Sobre esses pontos, uma obra interessante a consultar é Julia Kristeva, Visions capitales, catálogo da exposição do Museu do Louvre. Paris: RMN, 1998.
[7] Les Fleurs du mal, poema XXIX.
[8] A mais inteligente análise que conheço sobre a obra foi escrita por Stephen King, em Danse macabre. Londres; Sidney: Futura, Macdonald & Co., 1981.
[9] Ou, para continuar uma metáfora já evocada, e empregada também por Stephen King: “The inevitable result, of course, is a creation of a monster with more parts than a J. C. Whitney automotive catalogue” (Stephen King, op. cit., p. 68).
[10] Maraliz Christo está estudando o quadro de Pedro Américo, sob minha direção, na perspectiva de um doutorado. Uma vez completado, ele trará, sem dúvida, as análises finas e minuciosas que tal obra exige.
[11] O Dicionário Cinemania, da Microsoft, enumera trinta filmes desde esse último. Mas esse dicionário data apenas de 1996. OThe essential monster movie guide, escrito por Stephen Jones, enumera mais de cinquenta filmes, incluindo curtas-metragens, animações e vídeos. Nenhum dos dois, porém, dá conta, nessas listas, de filmes que derivam do monstro mas que não fazem referência ao nome de Frankenstein, como é o caso de The rocky horror picture show, dirigido por Jim Sharman em 1975.
[12] Stephen King, op. cit., p. 77.
[13] Nesse sentido, ver La peinture comme crime, ou La part maudite de la moder-nité, mostra do Museu do Louvre. Paris: RMN, 2001; Sensation, Young British Artists from the Saatchi Collection. Londres: Thames and Hudson, 1999.