2012

Ociosidade, lentidão e construção do sujeito

por Eugène Enriquez

Resumo

Durante toda a Antiguidade, Idade Média e início dos tempos modernos, trabalhar era incompatível com a condição de homem livre. A Revolução Industrial, a revolução da Independência americana, a Revolução Francesa subverteram essa tradição. O trabalho, ao invés de ser estigmatizado, torna-se o “grande integrador” das novas sociedades que emergiram com essas revoluções. A partir desse momento, o ócio, o lazer, a preguiça tornam-se marcas de infâmia. Quem não trabalha não tem direito de viver ou, na melhor hipótese, de ser ajudado e ser colocado à margem da sociedade.

Atualmente, o trabalho tornou-se o valor central. Todos procuram um emprego e o desemprego é a preocupação dos que temem ser rejeitados pela sociedade e perder suas identidades. Consequentemente, todos multiplicam suas atividades. Daí o estresse permanente, o burnout, a depressão e, às vezes, o suicídio. O indivíduo moderno é tomado por uma “obsessão de plenitude” pela qual paga muito caro, principalmente com “a perda de si”.

Na realidade, os seres humanos têm uma necessidade vital de preguiça, ócio, de perder tempo. Eles precisam de tempo para pensar e agir corretamente. Precisam pensar. Pensar significa ser capaz de reflexividade, ou seja, de voltar-se para si. Para bem pensar, é necessário ainda que sejamos capazes de nos interrogarmos sobre “quem somos”, o que nos motiva, atrai, faz sofrer e dá prazer. É necessário, portanto, que exista a “preocupação de si” (Foucault), que estejamos aptos a nos analisar (Freud), sozinhos ou com a ajuda de outro, que queiramos nos entender como um ser em movimento, em mutação e compreender o processo que nos anima. Ao pensarmos algo novo, ao pensarmos nos termos do antigo paradigma, ao pensarmos sobre quem somos, nos construímos a cada dia, pois somos seres definitivamente marcados pelo “inacabado”. Tudo isso demanda tempo, silêncio, lentidão.

Além disso, precisamos uns dos outros. É apenas pela amizade (à qual fazem referência todos os escritores da Antiguidade) e pelo amor de uma pessoa, de um grupo, de uma causa que o ser cresce e torna-se ele próprio: o ser individual e o ser social.

Logo, o sujeito precisa de tempo. Tempo para analisar sua relação com o outro, tempo para entender o outro. Em função disso, precisa de repouso, tranquilidade, momentos de verdadeira “ataraxia”. Se o homem não tivesse o lazer para nada fazer, sonhar, admirar uma paisagem, refletir sobre o mundo, sobre os outros e sobre si mesmo, ele não seria mais do que um animal motivado pela fome.


Não voltarei a falar de algo que é bem conhecido, que faz parte da cultura geral de vocês e foi abordado nas conferências precedentes: o fato de que o trabalho, na Antiguidade greco-romana e na Idade Média, foi considerado um castigo — “Ganharás o pão com o suor do teu rosto”, diz a Bíblia — ou como uma atividade indigna de um homem livre ou de um senhor.

Quero simplesmente lembrar uma característica essencial que foi fortemente sublinhada por Benjamin Constant: a diferença da concepção de liberdade entre os antigos e os modernos. Para os antigos, os gregos em particular, um homem livre era um indivíduo que tinha por objetivo principal se ocupar dos assuntos da cidade, a pólis, e que, portanto, desempenhava um papel essencial nas suas orientações políticas. Já nos tempos modernos, um homem livre se define como um indivíduo privado, preocupado apenas em obter o máximo de “gozo” na sua vida privada, tendo um status social elevado graças a seu êxito na vida econômica e que, por essa razão, pouco se preocupa com a vida da cidade. A mudança é radical e é fruto da Revolução Industrial inglesa, da declaração de independência dos Estados Unidos e da revolução política francesa de 1789. John Locke foi o primeiro a definir o homem moderno como um homem livre, isto é, não vinculado a uma terra ou a um senhor, a liberdade só existindo na medida em que esse homem tem a liberdade de “empreender”. Assim, a democracia não pode ser compreendida sem o investimento total na criação de riqueza e, consequentemente, sem o “capitalismo”.

Não há mais concentração na vida pública, mesmo que os mais ricos possam se interessar por ela, se tiverem tempo ou vontade de exercer funções representativas ou governamentais, nem concentração na guerra. No que se refere a esse último ponto, o guerreiro, os senhores sendo antigos guerreiros, tende a perder sua influência, pois o que prevalece, a partir das revoluções citadas, é a guerra econômica e não mais a guerra dos exércitos, esta só intervindo quando a guerra econômica não consegue assegurar a preponderância de uma nação sobre as outras. Aliás, é por isso que a tentativa hegemônica de Napoleão deve ser considerada como um arcaísmo”, por querer voltar ao tempo antigo, quando a força das armas é que era respeitada. O essencial é a produção de riquezas, como havia enunciado Adam Smith, e o gozo que ela proporciona. Para chegar a isso, o homem livre deve trabalhar. O “trabalhador”, como dirá Ernst Junger um século mais tarde, torna-se o artífice, o símbolo desse mundo novo.

Antes de prosseguir, é necessário deter-se numa figura central, embora habitualmente silenciada, exceto nos estudos psicológicos sobre a perversão: a do marquês de Sade. De fato, assim como na aurora dos tempos modernos houve um “momento Maquiavel” — isto é, uma reflexão sobre a política não como a melhor maneira de governar, reflexão feita, em particular, pelos políticos gregos, mas como o conjunto das técnicas postas A disposição de um “príncipe”, de um chefe, para assegurar seu poder e mesmo sua dominação, portanto, uma reflexão que não se preocupava com a moral —, houve também, no período pré-revolucionário e revolucionário, o aparecimento de um “momento Sade”, cujos efeitos se fazem sentir ainda hoje. Certamente Sade não exalta o trabalho, mas ele compreendeu que o mundo havia mudado radicalmente e entrado numa “era da produção”, armada de todas as técnicas disponíveis e preocupada com a invenção de novos meios de produção” (Marx). O que ele enuncia é a necessidade, junto com a produção dos bens, de uma produção “de afetos, de gozo, de volúpia”. O homem livre será aquele que puder sentir o máximo de prazer fazendo absolutamente o que deseja, sem o menor freio e de maneira contínua. Nada o irá reter, mesmo se para isso tiver que desprezar, humilhar, rejeitar, violar e matar os outros, pois assim dará provas de suas capacidades e de sua “soberania”. Esse é o programa que Sade proclama no seu opúsculo “Franceses, mais um esforço se quereis ser republicanos”, inserido no seu romance A filosofia na alcova (La philosophic dans le boudoir).

Um bom republicano deve querer ser livre. Como as hierarquias antigas foram destruídas com a morte do rei, todos os homens são agora potencialmente livres e iguais. Logo, uma concorrência total se instaura entre eles, e verdadeiros homens livres serão os que puderem ir até o fim do seu desejo em detrimento dos mais fracos, transformados em instrumentos para o gozo dos primeiros. Os homens livres serão os verdadeiros soberanos que manipularão, roubarão e matarão os outros que, por não terem sabido lutar, merecem ser escravos.

Assim como a produção das riquezas leva ao aumento dos bens, a produção de “crimes” levará ao aumento constante do gozo e da volúpia nos que tiverem a coragem de se comportar “como deuses” (Sade). Certamente, o mundo atual não se tornou sadiano, mas todos podem compreender que, com o advento do fascismo, do nazismo e do totalitarismo, criou-se um universo de senhores e de escravos. A democracia, em princípio, parece escapar a essa tendência. Mas, se observarmos bem, e voltaremos a falar disso, a escalada do individualismo, por um lado, e o triunfo da especulação financeira e da rentabilidade econômica, por outro, levaram à criação do mundo que conhecemos: o do crescimento indefinido de riquezas para alguns ou para algumas nações, e a pobreza relativa ou a pobreza absoluta para a maioria das pessoas e das nações. Para uns a riqueza e a dominação, para outros um trabalho sem interesse, sob pressão, continuamente mutável, ao qual é preciso se adaptar sob pena de perder seu lugar, estressante e causador de angústia, baixa autoestima, inadaptação, medo, esgotamento ou mesmo suicídios, e para muitos, naturalmente, o desemprego, a máquina substituindo o homem, que tende a se tornar “inútil”, ou a fome. A barbárie não está fora da civilização ou da democracia, é inerente a elas.

Tanto os regimes ditatoriais como os regimes democráticos engendraram, nos séculos XX e XXI, um mundo de desigualdades que produz volúpia para alguns e miséria e morte para muitos.

Assim, vemos que Sade, que na sua obra e na sua vida nunca tentou enviar alguém à morte, mesmo tendo a possibilidade de fazer isso no momento em que participou dos comitês revolucionários, foi um bom profeta: o mundo atual se assemelha cada vez mais ao que ele imaginou. No momento atual, um dos homens mais ricos do mundo, Warren Buffet, declarou: “Não há luta de classes, há uma guerra de classes. É a guerra dos ricos contra os pobres. E os ricos é que estão ganhando”.

Outra figura crucial para compreender o mundo no qual vivemos é o conde de Saint-Simon, que viveu no começo do século XIX. Saint-Simon, inspirador do arauto do positivismo, Augusto Comte, que foi durante dez anos seu secretário, pode ser classificado tanto entre os “socialistas utópicos”, segundo Marx, que sempre teve muita consideração intelectual pelo homem e por sua obra, como entre os pais da tecnocracia. Como “socialista”, ele insistiu na necessidade de todos trabalharem, na sua famosa parábola “das abelhas e dos zangões”, na qual fustiga a classe proprietária dos senhores e dos herdeiros, totalmente inútil e nociva, e exalta a figura do trabalhador, único produtor de riquezas; por isso Marx o admirava e tomou-lhe emprestada a noção de “alienação”. Como pai da tecnocracia, Saint-Simon quis substituir “o governo dos homens pela administração das coisas” e confundiu numa única classe produtores, chefes de empresa e trabalhadores assalariados, a única capaz, segundo ele, de tomar decisões corretas e construir um futuro melhor. A essência do pensamento saint-simoniano está contida nesta frase: “No dia em que cientistas e produtores estiverem no poder, não haverá mais problemas de obediência, pois os homens não obedecerão a outros homens e sim à verdade impessoal”. Sabemos que a tecnocracia se arrogou a capacidade de formular as únicas decisões pertinentes e de assegurar a felicidade do povo – sem ele, se necessário contra ele, mas nunca com ele. Somente o trabalho produtivo das riquezas diferencia o homem do animal e todos devem ajudar a criar o Estado industrial positivo. Conhecemos agora os resultados desastrosos desse anúncio, retomado por sociólogos e psicólogos do trabalho, que julgam, sem se dar conta das consequências, que o trabalho é o único fator integrador da sociedade e que o homem só se realiza pelo e no trabalho.

Eles naturalmente não conhecem o apólogo chinês no qual um imperador, desejando uma pintura de grande qualidade, escolhe a de um pintor – “este é um verdadeiro pintor” – que, antes de se lançar ao trabalho, meditou longamente durante vários anos. Também esquecem o que Leonardo da Vinci dizia da pintura, que, para ele, era “una cosa mentale”, a técnica e o labor vindo apenas em segundo lugar.

Podem-se compreender as reações, por diferentes ou divergentes que sejam, de Benjamin Constant, de Sade e de Saint-Simon, pois eles pensavam e escreviam no começo do século XIX, no momento em que o individualismo começava a levantar voo, em que a indústria se orgulhava de preparar um “futuro radioso”, época também do nascimento dos estudos sociológicos e psicológicos rigorosos. Mas desde então foi possível ver os danos provocados pelo progresso, pela sujeição do homem à tecnologia, que a psicologia e a sociologia contemporâneas denunciam.

Assim podemos, agora, ter uma noção mais clara do que são as civilizações do trabalho e do que é o psiquismo humano, e percebemos o que é necessário aos indivíduos para serem sujeitos criadores, autônomos e, tanto quanto isso seja possível, donos de seus próprios destinos.

Com esse objetivo, vejamos o que nos ensinam primeiro a psicologia e, a seguir, a sociologia.

Sabemos desde sempre, mas principalmente desde Hegel, Freud e os trabalhos da psicologia social, que o ser humano, nascido num mundo já constituído, heterônomo, como diz Castoriadis, é, no início, totalmente dependente e impotente, ao contrário da maioria dos animais. Aliás, mesmo os animais que precisam de certo tempo para se comportar de maneira autônoma tornam-se rapidamente capazes de se mover e de se alimentar por si mesmos.

Ao contrário, o infans, a criança antes de adquirir os rudimentos da linguagem, é incapaz de diferenciar o dentro e o fora, vive num mundo em que seu corpo — do qual, no começo, não tem percepção alguma e que sente, mais tarde, como um corpo fragmentado — não se distingue dos objetos-sujeitos que o cercam. O estado no qual se encontra pode ser caracterizado como o de uma “mônada psíquica”, ou seja, como uma substância simples fechada em si mesma, sem portas nem janelas, como a define Leibniz, e que, em razão de sua própria impotência, deseja tudo, pois não suporta a falta. Desejar tudo é querer ser alimentado, acariciado, embalado e amado sem nenhuma demora.

Banhada nesse “sentimento oceânico” (R. Rolland), em razão da sua “neotenia” (L. Bolk), isto é, da prematuridade que lhe prolonga formas larvais, a criança pode apenas chorar para chamar a atenção sobre si. Sua total impotência a obriga a desenvolver um comportamento de onipotência que diminuirá aos poucos com a socialização, mas que permanecerá sempre ativo em maior ou menor grau e será um elemento fundamental do seu narcisismo. Mesmo quando as pulsões da criança se transformam com o desenvolvimento das relações ditas objetais, ainda que sejam relações com sujeitos vivos, isto é, relações com seu meio — e em primeiro lugar os pais, que lhe permitirão introjetar e incorporar na psique os objetos-sujeitos que causam prazer —, a mônada psíquica persiste e o narcisismo tende a rejeitar esses objetos, a torná-los odiáveis, por fazerem parte do mundo exterior. Daí, como diz Freud, “o ódio, enquanto relação ao objeto, sujeito, ser mais antigo que o amor: ele provém da recusa primordial que o eu narcísico opõe ao mundo exterior e aos seus estímulos”.

Alguns indivíduos permanecem no estágio da “mônada psíquica”, de um narcisismo total que A. Green chamou “um narcisismo de morte”. Eles querem que o mundo seja o que desejam que seja, um instrumento para seu próprio prazer e para sua própria grandeza. Mesmo que exteriormente se assemelhem aos indivíduos normais, que, como veremos, fazem predominar o amor e a amizade, esses indivíduos estão, em realidade, cheios de ódio contra tudo o que possa perturbar sua sede de dominação e de instalação num prazer contínuo. É verdade que o ódio, neles, não chega à destruição dos outros, pois só os grandes ditadores podem emitir um discurso de ódio e provocar massacres, por possuírem o poder absoluto que enlouquece absolutamente. Mas, se não podem destruir os outros, muitos “pequenos”, que dispõem apenas de uma fatia de poder, estão dispostos a rejeitá-los, humilhá-los e desprezá-los.

Ora, é interessante observar que nossa sociedade de mudança e de adaptação permanente, nossa sociedade liquida, como a chama Z. Bauman, na qual todos devem ser flexíveis, trabalhar com afinco para não perder o emprego, ser rentáveis, capazes de suportar o estresse sorrindo, nosso “pesadelo climatizado”, segundo a expressão de Henry Miller, favorece a eclosão de personalidades narcísicas e transforma facilmente o indivíduo mais doce, obrigado a se defender, em animal feroz disposto a guardar seu lugar ou a expulsar alguém do seu. A “mônada psíquica”, que até os anos 1980 parecia ser uma noção capaz de explicar uma fase da primeira infância, tornou-se em poucos anos o slogan de grande número de pessoas que clamam “Eu, somente eu e basta”, como a Medeia da peça de Corneille, e se dispõem a ser os grandes e pequenos perversos e paranoicos descritos por Sade. Mergulhadas num estado de involução, elas voltam à infância mais arcaica, ao contrário de seus antecessores que evoluíram.

Não é somente o poder que enlouquece; a sobrecarga de trabalho, a pressão que sofre o trabalhador, o temor da sua incompetência e o medo do desemprego também enlouquecem e destroem os indivíduos, levando-os a não ver mais saída, às vezes a se suicidar e a matar os membros da sua família.

Essas consequências catastróficas, numerosas e com tendência a aumentar, felizmente não são as únicas nem as mais frequentes. Isso porque a socialização operada pelos pais e pelos professores, por medíocre que seja, e que na maior parte do tempo busca produzir crianças bem adaptadas e sem criatividade, permitirá que estas tenham acesso a relações mais positivas, a relações amorosas, ainda que o ódio e a crueldade continuem sempre operantes numa parte da psique.

Examinemos primeiro o papel dos pais e, em particular, o da mãe, papel fundamental uma vez que ela, na maioria das vezes, é quem vai se ocupar da criança. O psicanalista inglês Winnicott insistiu sobre a importância da mãe para a formação da criança. Mas, antes de abordar as ideias de Winnicott, eu gostaria de mencionar os trabalhos de um psiquiatra suíço, René Spitz, que verdadeiramente revolucionou o estudo da primeira infância. Spitz define uma doença que ele chamou de “hospitalismo”. Ele constatou que, nas clínicas e nos hospitais suíços onde se achavam bebês prematuros mas também crianças abandonadas, havia um número considerável de óbitos. No entanto, as crianças eram bem tratadas pelas enfermeiras e devidamente alimentadas. Spitz descobriu o que lhes faltava: o cuidado, o care, como dizem os ingleses, o “amor”. De fato, embora bem tratadas e alimentadas em horários fixos, essas crianças nunca eram acariciadas e beijadas, pois as enfermeiras usavam sempre máscaras de proteção, e elas nunca entravam em contato com o seio, a pele, o calor de um ser humano. Não eram tocadas, e ninguém nunca falava com elas. As enfermeiras se comportavam como robôs, seguindo as concepções médicas da época, cerca de 1920, não como seres humanos. E a criança, não ouvindo nem sentindo nada, não podendo fazer nada, só podia cair num estado de abandono e fugir dessa vida na qual não existia.

Uma anedota pessoal para confirmar, se necessário, que a teoria de Spitz é agora aceita por todo o mundo científico. A mulher de um dos meus filhos teve, como primeiro filho, uma criança extremamente prematura, a gravidez tendo durado apenas cinco meses. A sobrevivência era pouco provável. No entanto, essa criança foi imediatamente colocada num bom hospital, e os médicos, que hoje têm alguns conhecimentos psicológicos, disseram à mãe que fosse vê-la todos os dias, e também ao meu filho, quando pudesse, e que, mesmo a criança estando na incubadora, afastasse a cortina, a acariciasse o máximo possível, lhe falasse e lhe cantasse à meia-voz para que ela tivesse contato com um mundo humano. Ninguém pode se tornar um ser humano quando não é cercado por um invólucro sonoro e um invólucro tátil de outro ser humano que se comporta como uma boa fada. O resultado foi muito além do esperado. A criança não apenas sobreviveu, mas é atualmente — está com 17 anos — um jovem forte, dinâmico, saudável, simpático e, nas palavras de todos que o conhecem, “belo como um deus”.

Voltemos agora a um plano mais geral, ao que diz Winnicott. Esse psicanalista, que foi ao mesmo tempo pediatra, nos diz que a mãe deve ser suficientemente boa”. Por essa expressão ele não quer caracterizar toda mãe como devendo ser sempre “boa”, mas simplesmente que deve ter um comportamento normal de mãe feliz por ter um filho, mas que pode também ficar exasperada em certos momentos com o comportamento dele. Naturalmente essa mãe não deve ser má, mas justa, não cedendo aos caprichos da criança e sendo capaz de lhe mostrar isso. Boa, porém sem excesso, deve poder eliminar a frieza do seu comportamento. Uma mãe rígida e fria, sem interesse pela criança, é uma calamidade para o filho. Mas, excessivamente boa, excessivamente atenta, ela se arrisca a sufocar a criança, tornando-se uma mãe abusiva. Cada mãe deve encontrar um justo equilíbrio entre manifestação de ternura e manifestação de certa irritação. Tarefa difícil ou mesmo impossível, como pensava Freud, que disse a uma mãe que lhe pediu conselhos para a educação do seu filho: “Faça como puder, de qualquer maneira haverá problemas”.

Mãe suficientemente boa, portanto, ela deve saber segurar, manter a criança em posições seguras — é o holding — e deve também, ao se ocupar dela, manipulá-la suavemente, colocá-la em posições agradáveis — é o handling—, e saber tratá-la com cuidado, sem brutalidade nem aspereza e, quando a criança tiver necessidade, sorrir e falar com ela, brincar com as partes do seu corpo — é o taking care. Nada de excepcional nesse quadro, mas tudo é necessário e está ao alcance de toda mulher, que não precisa de conhecimentos psicológicos particulares para ter uma conduta adaptada que permita ao infans tornar-se uma criança confiante e sorridente. Para a criança, a confiança é essencial, para o adulto também, como veremos, pois a confiança é o resultado direto do amor da mãe pela criança. Freud não se enganou quando relacionou a grande confiança que tinha em si ao amor que lhe manifestava sua mãe. Teorizando essa relação, ele disse que uma criança bem amada sente-se em perfeita segurança e pronta a realizar grandes coisas, pois interiorizou dentro dela a confiança que sua mãe lhe transmite.
Aos poucos a mãe vai se separar corporal e geograficamente, não psiquicamente, da criança, e esta vai reconhecê-la como um objeto-sujeito exterior, que tem sua própria vontade, seus próprios desejos, e não apenas o de assegurar o bem-estar da criança, que pode lhe proibir certos comportamentos, que pode ter em relação a ela momentos de indiferença ou mesmo de irritação, embora continue a amá-la. A criança compreende que sua mãe “suficientemente boa” não é boa o tempo todo, não está sempre à sua disposição, o que a levará, algumas vezes, a se enfurecer e mesmo a querer destruí-la. Como dizia Melanie Klein, a mãe não representa mais o “seio bom” nutriente e acolhedor, mas o “seio mau” que não quer alimentar a criança quando esta exige sua presença, e que é capaz de rejeitá-la ou afastar-se dela temporariamente. Assim a criança vai adquirir o que eu chamo de noção de “diferido”; o que ela deseja pode vir a existir mais tarde, e aceitará, naturalmente com dificuldade, a temporalidade e a frustração. Vai compreender que as relações objetais são sempre ambivalentes, exigem tempo e se inscrevem mais na lentidão do que na precipitação.

Para poder continuar a se construir num modo mais positivo que negativo, para não se deixar arrastar pelo ódio, a criança tem à sua disposição duas “técnicas”: a invenção de “objetos transicionais”, segundo Winnicott, e o “jogo do carretel”, ou seus avatares, segundo Freud. Os “objetos transicionais”, como vocês, na condição de pais, devem ter observado nos filhos, e dos quais certamente se lembram na infância mesma de vocês, são todos aqueles objetos que se situam numa zona intermediária, numa “área transicional”, como diz Wirmicott, entre o “eu” e o “não eu”, ou seja, o que é parte de mim e o que sei não ser eu, pertencendo assim ao mundo exterior. Pode ser um urso de pelúcia ou outro brinquedo, um “cobertorzinho”, como o de Linus, uma das crianças desenhadas por Charles Schultz em sua famosa história em quadrinhos Charlie Brown, um sapato, um guarda-chuva etc. O importante é que esse objeto seja investido e mesmo superinvestido afetivamente, como o cobertorzinho de Linus, que se sente totalmente aterrorizado se o perde ou se a irmã o esconde dele. Será um objeto fetiche e, como todo fetiche, será a metáfora da presença constante do ser amado e ao mesmo tempo detestado, pois, como a mãe, às vezes o abandona. Assim estará sempre presente com a criança, que o abraçará, o acariciará e tentará às vezes destruí-lo. Esse objeto, como o cobertorzinho de Linus, tranquiliza a criança, the oferece uma proteção, embora ilusória — mas a criança, ainda mais que o adulto, vive de ilusão e favorece a construção de uma vida transicional que a envolva e vá lhe facilitar o contato com um mundo exterior, visto então como mais favorável do que hostil.

O “jogo do carretel” é uma brincadeira a que se entregava o filho de um amigo de Freud nos momentos de ausência da mãe, enviando ao longe um objeto e deixando de vê-lo, para depois trazê-lo de volta com o auxílio de um cordão. A criança pontuava a brincadeira gritando “fort”, longe, e “da”, perto. Freud e os psicanalistas depois dele interpretaram esse jogo como uma metáfora da ausência “fort” da mãe e da sua presença “da”. Pelo jogo, a criança aceita o desaparecimento da mãe, na medida em que é capaz de sempre fazê-la voltar. Ela nunca desaparecerá por completo e, além do mais, voltará exatamente quando a criança quiser. Esta sabe muito bem que o objeto não é sua mãe, mas um símbolo dela, o que facilita a aceitação de sua ausência e lhe dá ao mesmo tempo um sentimento de potência e de vitória quando o objeto retorna. A criança entra, assim, num mundo simbólico, o mundo da metáfora, começando a se tornar um ser humano, pois este só existe ao passar “através de uma floresta de símbolos”, como escreveu Baudelaire.

Se o papel da mãe é essencial, pois é a primeira educadora e a primeira forma corporal da qual a criança deve se separar lentamente, o papel do pai, menos direto, também se revela importante. Notem que, quando falo da mãe e do pai, considero apenas os que desempenham esses papéis e que podem ser tanto os verdadeiros pais como “substitutos”, ou representantes dessas figuras.

O pai, habitualmente em nossas sociedades, é quem ditará as interdições e servirá de referência. Ele pronuncia as interdições sociais, sendo a mãe a que se preocupa com as interdições corporais que a criança introjeta durante a educação, como o controle esfincteriano, na medida em que, numa sociedade ainda amplamente patriarcal, mesmo que essa característica esteja mudando, ele é o encarregado de representar o social e o racional, enquanto a mulher se ocupa da vida íntima e afetiva, e, portanto, de ser o porta-voz das exigências sociais. A mulher deve formar a criança, cabendo ao homem formar o adulto, o futuro trabalhador e o cidadão. Esse papel é particularmente visível nas sociedades arcaicas em que o pai, associado aos outros adultos, impõe à criança ritos de iniciação que a farão passar “do círculo das mulheres ao círculo dos homens”. Pois a criança, quando pequena, é de início filho da mulher e, num momento ou outro, será invadida pelo fantasma originário de retorno ao ventre materno, no qual vivia aquecida, no líquido amniótico, bem alimentada e não correndo perigo algum. Para arrancá-la dessa tentação e também da tentação da mãe de conservá-la junto a si, como se ainda não tivesse saído do seu ventre, comportando-se, portanto, como “mãe abusiva” que se julga a única mulher que a criança, menino, deveria amar e que a criança, menina, tomará como figura de identificação, é necessário lançar a criança no círculo dos homens e fazer dela, mesmo antes da idade, um adulto com vontade própria. Certamente nossas sociedades são menos coercitivas que as sociedades arcaicas. Isso não impede que seja preciso arrancar a criança da mãe a fim de que o incesto não se torne uma realidade. Sabemos agora duas coisas: 1) A proibição do incesto é a principal proibição de todas as sociedades, seja qual for a maneira como elas declinam tal proibição. Por uma razão simples, mas fundamental, antropológica, essa proibição é a única a permitir a distinção dos sexos e a das gerações que asseguram a troca generalizada e a filiação. “Não se pode ser o pai de seus irmãos e não se pode desposar a mãe.” Se esse princípio não for respeitado, então entramos no mundo descrito nos romances de Sade, em que todos podem se deitar com todos, no qual reina o caos e o crime generalizado. 2) O único incesto verdadeiro é o do filho com a mãe. Mesmo que nossas leis proíbam o incesto com o pai, que é o tipo de incesto mais frequente, e que essa interdição, nem sempre seguida de fato, seja necessária para assegurar a ordem social, convém não esquecer que o pai nunca é senão um pai “putativo” e que o único progenitor do qual se tem certeza é a mãe. As religiões não esqueceram isso. Entre os judeus, judeu é aquele cuja mãe é judia, pouco importando a religião do pai. Já os católicos fazem uma suposição e fecham os olhos, declarando: “A mulher deve ser e parecer honesta”, mas sabemos bem que essa frase é o exemplo do que Freud chamou “denegação”, cujo exemplo típico é “não sou racista”. Portanto, o incesto com a mãe é o único verdadeiramente importante do ponto de vista antropológico, pois significaria, caso se realizasse, que a criança nunca poderia se separar da mãe e tornar-se um ser autônomo, a mãe sendo a imagem, o fantasma da grande mãe arcaica, ao mesmo tempo mãe e pai, com “vagina dentada” ou pênis imenso, tal como encontramos em muitos mitos arcaicos. Donde o papel fundador, na formação dos filhos e na estruturação do social, do complexo de Édipo do garoto que, atraído pela mãe, de início e por muito tempo seu único objeto sedutor, deverá renunciar a ela por causa da ameaça, do fantasma da castração enunciada pelo pai, que se reserva a posse sexual da mãe. Num segundo momento, a criança deverá se identificar com o pai para poder igualmente, mais tarde, encontrar outra mulher com quem as relações sexuais sejam permitidas.

Se o pai é o principal agente de interdição, não se deve minimizar o papel da mãe. Também ela deve renunciar à sedução que exerce sobre o filho ou à sedução exercida pelo filho sobre ela e mostrar que, se continua amando o filho, não é o mesmo tipo de amor que tem pelo pai, o qual permanece sempre, para ela, o preferido. Alguns psicanalistas dizem que “o pai é recusa”. Seria mais conveniente dizer que os dois pais recusam ao garoto a posse da mãe, ainda que o pai, pela ameaça que faz pesar sobre o filho, tenha um papel mais decisivo. Quanto à filha, seu complexo de Édipo, especificado às vezes como complexo de Electra, fará com que ela também renuncie à mãe após ter-se identificado com ela, para amar o pai e depois renunciar a ele a fim de poder amar outros homens. No caso da filha, a mãe, ao mostrar que prefere o pai à filha, desempenhará um papel decisivo, pois fará do pai um homem atraente e conduzirá a filha a ter desejo pelo pai, que, nesse jogo amoroso, também é um elemento essencial. Ele exprimirá muitos sentimentos positivos em relação à filha para atraí-la, mas a seguir a frustrará, fazendo-a compreender que é muito pequena e que ele prefere a mãe. Compensará essa recusa indicando-lhe também que, quando crescer, ela poderá encontrar um “príncipe encantado” mais belo, mais jovem e mais viril que ele.

Em outras palavras: no seu papel educativo, os pais devem, dividindo entre si a tarefa da melhor maneira possível, ser ao mesmo tempo recusa e referência. Recusa da possibilidade de incesto e referência, pois os filhos também serão, mais tarde, indivíduos que verão seus desejos recompensados com alguém que não faz parte do círculo familiar. Assim, eles ensinam aos filhos o “adiamento para mais tarde”, a categoria do “diferido”, e fixam as regras da exogamia, mostrando que a endogamia, a concentração na família e nos primeiros amados, é mortífera para a identidade adulta. Ensinam-lhes igualmente que o verdadeiro amor a que devem aspirar não é o amor intergeracional; só pode ser um amor recíproco e não um amor canibal, como o de uma mãe ou de um pai abusivos. Dizem-lhes: se quiserem ter uma identidade e uma existência próprias, deem um tempo para refletir, querer e amar os que podem amar vocês. De fato, ter pressa e viver sob pressão nunca foi e não é o destino dos homens. Se observarmos os homens de algumas sociedades primitivas que permanecem vivas, constatamos que eles dão o tempo necessário para saciar seus desejos e suas necessidades, e conseguem criar assim uma sociedade que para eles é uma “sociedade da abundância”, como mostrou o antropólogo Marshall Sahlins, sem trabalhar muito. Um homem verdadeiramente construído é um homem que deu tempo ao tempo.

O trabalho psíquico que um homem deve realizar para tornar-se plenamente humano, isto é, alguém que confia em si, que conserva alguns aspectos narcísicos necessários à vida mas superou a tendência ao narcisismo de morte e quer se realizar o mais completamente possível, só vai terminar com a morte. “Morte que transforma toda vida em destino”, como disse André Malraux.

A relação afetiva com os pais não é suficiente. Mas ela permite a primeira experiência fundamental, segundo Hegel, que nos parece ter visto com exatidão: a do amor. Amor dado pelos pais, amor devolvido pelo filho aos pais. Essa experiência se prolongará pelo amor sublimado em ternura, amizade, companheirismo com irmãos, irmãs e colegas. Vai se tornar mais central no momento do encontro amoroso, na vida adulta. E inverterá todas as relações sociais na medida mesmo em que o amor ou o amor sublimado está na raiz do vínculo social. Nos seus escritos de juventude, Hegel mostrou que no amor dois ou vários seres se reconhecem enquanto indivíduos separados, diferentes, ou seja, na sua alteridade mais pura, mas todos dignos de ser amados de uma maneira mais ou menos forte.

Sem amor, sem amor recíproco, os indivíduos são seres deficientes que perderam a capacidade de experimentar e de exprimir sentimentos. Ora, sem vida “sentimental”, no sentido preciso do termo, há somente relações formais frias, que se assemelham mais a relações mecânicas do que a relações entre seres completos, ao mesmo tempo racionais e atentos a seus sentimentos.

Uma observação: quando falo de amor, não me refiro a uma relação idílica, sem problemas e sem nuvens. Ao contrário, o amor não existe sem conflito, pois os indivíduos têm ou podem ter desejos divergentes. Refiro-me ao sentimento que faz uma pessoa ser vista por outra como excepcional, única e sem a qual a vida se torna difícil. “Un seul être vous manque et tout est depeuplé” [Tudo se despovoa quando um ser nos falta], já dizia Lamartine num verso muito citado e que exprime perfeitamente esse sentimento. Esse ser é, como todo ser humano, um conglomerado de qualidades e defeitos. Está também dividido entre tendências diferentes, pode estar em conflito consigo mesmo e, portanto, longe de ser verdadeiramente unificado. Ninguém o é. Por isso o amor que evoco admite a presença dos conflitos, mas supõe que as pessoas sejam capazes de superá-los, às vezes vivendo com eles e, de qualquer maneira, fazendo prevalecer os elementos positivos da relação e não os negativos. Para poder viver nesse estado relacional, é preciso paciência e tempo, silêncios e palavras autênticas. É preciso saber apreciar os momentos mais sublimes e saber também que eles não podem durar. Como disse uma de minhas amigas neste breve poema: “Pour le temps de l’amour/j’ai pris le temps/ d’aimer le temps” [Para o tempo do amor/ dediquei tempo/ a amar o tempo]. E é aí que reencontramos o que nos ensina a sociologia das sociedades contemporâneas, que são sociedades que tentam apagar o tempo, substituí-lo pelo famoso tempo real, sociedades do trabalho e sociedades contra o amor.

Antes de abordar o trabalho, de que já falamos um pouco no início, continuemos centrados no amor. É preciso explicar por que nossas sociedades são sociedades contra o amor.

Acabo de dar a primeira explicação: o amor requer tempo para se formar e ainda mais tempo para se manter e frutificar. Vocês me dirão, certamente, que às vezes há “paixões súbitas”. Admito, mas sabemos bem que raramente esse sentimento devastador pode se prolongar por muito tempo. O característico da “paixão súbita” é ser como um raio, é sua instantaneidade. Quando esse sentimento violento continua, em casos raros, a mover positivamente um ser humano, é que ele mudou de natureza e aceitou se submeter às vicissitudes do tempo. Assim podemos deixar de lado a paixão súbita, que está mais presente no cinema e nos romances do que na vida cotidiana.

O amor, portanto, requer tempo, mas o trabalho, e voltarei a falar disso, ocupa a maior parte do tempo. E, se é assim, é porque as sociedades ocidentais, principalmente, aderiram à divisa de Benjamin Franklin: tempo é dinheiro. E como as sociedades se converteram ao capitalismo, primeiro comercial, depois industrial e atualmente financeiro, e como produzir dinheiro requer cada vez mais a atenção dos homens, estes, apesar de todas as denegações, se submeteram a produzir dinheiro por todos os meios: desde simples trabalhadores que não têm a posse dos meios de produção, até proprietários rurais, comerciantes autônomos, dirigentes e funcionários de empresas, operadores da Bolsa, vedetes do cinema e do showbiz, autores de best-sellers, pintores ou futebolistas em voga, a lista não é limitativa. E todo esse tempo para produzir e fazer circular o dinheiro não pode estar disponível para o amor. Digo exatamente produzir dinheiro e não produzir riquezas. Sob esse ponto de vista, Franklin foi um verdadeiro profeta. Pois, no tempo dele, para produzir dinheiro era preciso produzir mercadorias que tinham um preço. O que Marx apontou muito bem: o dinheiro produz dinheiro suplementar graças à criação e à venda de mercadorias. Agora se pode produzir dinheiro pela simples especulação, que existe desde o começo da Bolsa, mas adquiriu uma dimensão enorme com o desenvolvimento da informática, que possibilita transações em tempo real e a extrema sofisticação dos produtos especulativos. Não são apenas os grandes capitalistas e osyuppies que ganham dinheiro dessa forma. Os pobres também esperam ganhar dinheiro jogando na loteria ou participando de competições na TV, um autor de best-sellers vende seu romance a um editor antes de ter escrito uma única linha etc. etc. Quem não ganha dinheiro praticamente não é digno de viver.

Como ter tempo para o amor quando é preciso passar o tempo todo a ganhar dinheiro? Acrescentemos que os que têm pouca chance de ser ricos precisam dedicar tempo a estudos, esperando assim obter um emprego que lhes dê o suficiente para viver, tempo para participar de concursos públicos, tempo para conhecer pessoas influentes que lhes prometam um trabalho bem remunerado, tempo para ocupar dois ou três empregos quando um só não permite viver, e tempo para mendigar, roubar, corromper e dissimular seus ganhos, para se entregar a todos os tráficos possíveis, no caso dos que não podem ou não querem trabalhar. Fale de amor a alguém que tenta garantir sua sobrevivência e ele o olhará como se fosse um verdadeiro marciano.

É preciso mencionar outro fator que apenas tocarei de leve, pois será desenvolvido na conferência de Francisco Bosco: a compulsão de se manter ocupado. Esse autor mostra que os indivíduos, em nossas sociedades flexíveis, concorrentes, estão geralmente confusos e têm a necessidade de contínua comunicação com outros para provar a si mesmos que não estão sozinhos. A escrita de blogs, o envio de e-mails, textos, sms, o uso de telefones celulares, as indicações biográficas e fotos lançadas nas redes sociais, fazem com que os indivíduos, as pessoas que se pode contatar a todo instante estejam continuamente “ligadas”. É uma tendência que eu já havia evocado, antes da invenção desses meios modernos de comunicação, no meu texto “A noção de poder”, publicado em 1972. Eu dizia que os indivíduos das sociedades ocidentais estavam, em conjunto, expostos ao que chamei “a obsessão da plenitude”. Essa obsessão do pleno se verifica em todos os domínios da vida social: o trabalho (não se deve perder tempo, é preciso acelerar o ritmo), o prazer (é preciso sentir prazer o tempo todo, também nas férias o tempo deve ser ocupado por lazeres atraentes, como no Club Méditerranée, onde “gentis animadores” se ocupam das pessoas de maneira contínua, mal lhes deixando tempo para dormir), o corpo (é preciso permanecer jovem, estar em forma, bronzeado o ano todo, e para isso se farão exercícios de marcha, corrida, nado, bicicleta, mesmo no quarto, todas as atividades dos clubes esportivos), as amizades (festas serão dadas, as pessoas se convidarão umas às outras, se telefonarão ou se escreverão, farão compras juntas nos shoppings)… Portanto, tempo nenhum deve ser desperdiçado. Eu não previa, na época em que escrevi, a verdadeira revolução eletrônica que se seguiria e daria um enorme impulso a essa obsessão. Mas eu percebia claramente a tendência a “preencher o tempo”, como se qualquer tempo desperdiçado fosse uma catástrofe. Já então as pessoas eram incapazes de compreender os versos de Paul Valéry, quando escreveu:

Ces jours qui te semblent vides

E perdus pour l’univers

Ont des racines arides

Qui travaillent le desert[1].

Mas um fenômeno mais grave ocorreu. É que o amor também foi contaminado por esse frenesi do rendimento, da performance. Em certos clubes de encontro, as pessoas dispõem de sete minutos para decidir se a pessoa com quem falam lhes convém; já nos primeiros encontros há relações sexuais. Se forem satisfatórias, continuam. Caso contrário, muda-se de parceiro. O amor, que era um sentimento forte e duradouro, torna-se efêmero. Quer-se um parceiro com quem se possa viver intensamente momentos maravilhosos e unicamente esses. Nessas condições, o outro, mesmo bem escolhido, se revelará sempre decepcionante. São incontáveis os primeiros casamentos que rapidamente terminam em divórcio, e incontável o número de “amadas” que um “amante” pode ter. Os divórcios e os casamentos se multiplicam. Há trinta anos, as famílias ditas recompostas eram a exceção. Hoje, são a regra. E compreende-se facilmente o motivo: quando se quer viver uma relação idílica, sem conflitos, como nos romances “de amor”, que são os mais vendidos no mundo, persegue-se um sonho inacessível. Todos os seres humanos têm defeitos. Antes as pessoas se acomodavam ou faziam concessões recíprocas. Agora se abandona o amante ou o marido, achando que o seguinte será melhor. O que raramente acontece.

O amor entrou no ciclo de produção, tornou-se produtivo. Se o parceiro não produz mais desejos, por que não procurar outro? Se não assegura mais a vida com que sonhávamos, por que manter a relação? Tudo se acelera, tudo se torna efêmero. Como diz Z. Bauman, numa sociedade “líquida”, o amor se torna “líquido”, o amor escoa como água corrente, poderíamos dizer, parafraseando Apollinaire.

Não é só o amor que sofre com isso; o companheirismo e a solidariedade também. Troca-se de amigos como de camisas; no trabalho, desconfia-se dos colegas que poderão tomar nosso lugar; ainda no trabalho, com a desagregação progressiva do sentido de coletividade, a solidariedade entre os trabalhadores desaparece e, ao contrário, aumenta a “perseguição moral”, provocada não apenas por chefias, mas em geral por antigos colegas.

Isso me leva a especificar alguns pontos sobre o trabalho, atualmente. Não me refiro às exigências de adaptabilidade e de flexibilidade que ele requer. Quero apenas sublinhar que ele se tornou, em larga medida, aberrante. De fato, o trabalho moderno exige, cada vez mais, uma noção ampla e uma compreensão dos seus processos, uma coordenação benfeita e ideias inovadoras. Ora, se alguns dos dirigentes-executivos e técnicos de alto nível podem afirmar ter ideias e saber coordenar e compreender os processos, a maioria dos trabalhadores, mesmo pessoas muito competentes, é posta em situações nas quais lhes é impossível ou extremamente difícil operar essas atividades mentais.

Numa empresa, é necessário que seus membros se sintam reconhecidos, estimados, apreciados. Mas o estilo de organização pelo medo, por sistemas de avaliação que visam essencialmente apontar os erros, acarreta um temor generalizado de não agir bem, de não estar à altura, e vocês sabem que o medo é mau conselheiro e que, quanto mais ele se instala, maior o risco de errar. Além disso, o erro, antes visto pelos superiores com uma atitude de compreensão amistosa — lembremos estas palavras de Edison a um de seus empregados: “Você cometeu duzentos erros, são duzentos erros que não cometerá mais” —, agora figura no débito do trabalhador. O superior pensa e diz: ele estava bem, mas se tornou incapaz e deve ser dispensado.

A empresa moderna muda constantemente seus métodos, técnicas e meios de produção. Enquanto antes a experiência contava e o velho trabalhador podia transmitir sua experiência, seus “truques”, isto é, as pequenas técnicas que havia inventado para fazer bem o trabalho minimizando a fadiga, seu conhecimento da profissão e do ambiente de trabalho, considera-se agora, com a transformação constante dos métodos, que ele nada mais tem a transmitir. Assim, é toda uma experiência operária que se perde, como se perdem as músicas, os cantos, os poemas, os mitos populares, se ninguém os transmite e os recolhe. De fato, às vezes a mudança é tão profunda que não há nada mais a transmitir. Mas geralmente não é isso que acontece… Os trabalhos atuais de psicologia do trabalho, em particular os de I. Clot, na França, mostram que em certos setores, como o dos transportes, mesmo que as condições tenham se transformado, a base da profissão permanece a mesma, e os mais velhos teriam técnicas e atitudes a transmitir aos novos. É o que pude constatar durante algum tempo quando fui consultor do setor de energia nuclear na França. E não esqueçamos que o pessoal da base tem às vezes muito mais bom-senso que os engenheiros. Quando pensamos na aberração construída no japão, a famosa central nuclear de Fukushima, não longe do mar e numa área de abalos sísmicos, para não falar dos erros do ônibus espacial Challenger, só podemos ficar desolados ao constatar que experiências que exigiram tempo e reflexão da parte de todos os membros do empreendimento tenham sido pouco levadas em consideração.

Enfim, a empresa moderna é uma empresa estruturada a partir de projetos. Ora, os projetos também mudam continuamente. Alguns que eram urgentes não o são mais alguns dias depois. Outros são profundamente alterados e o trabalho efetuado antes não serve mais. Além disso, vários projetos podem estar em concorrência, traçando caminhos diferentes para a vida da empresa. Donde uma luta para fazer prevalecer um projeto sobre outro, com o exagero das qualidades do projeto defendido por uns e dos defeitos do projeto defendido por outros. Com enormes chances de se enganarem. Sabemos agora que, se Kennedy tivesse escutado alguns de seus conselheiros no momento da crise de Cuba, não teríamos evitado a Terceira Guerra Mundial. Podemos acrescentar que muitos projetos não se preocupam com as dificuldades de fazê-los passar à realidade: o que podem pensar indivíduos que trabalharam num projeto e o veem invalidado? Que autoestima pode resultar disso?

Por todas essas razões, a vida do trabalho, que ainda há trinta anos era um dos momentos centrais da luta pelo reconhecimento que cada indivíduo persegue, como mostrou Hegel nas suas obras da maturidade, agora não é vista senão como um fardo do qual queremos nos livrar o mais depressa possível para poder, no momento da aposentadoria, gozar a vida.

O trabalho poderia ser completamente diferente. Se fosse enriquecedor, se as pessoas pudessem ter o sentimento de fazer uma obra que exige tempo e reflexão, de realizar suas potencialidades, de ser reconhecidas por suas contribuições, ele poderia ajudar à construção da personalidade, pois permitiria a cada um não apenas ter confiança em si, mas ter maior autoestima, com o sentimento de contribuir para a realização de uma grande obra. Para que alguém tenha autoestima e, portanto, possa estimar os outros, é necessário ter uma vida positiva, um imaginário positivo em relação à organização da qual faz parte e da qual espera uma apreciação positiva.

Naturalmente, poderão me dizer que traço um quadro um tanto sombrio. É verdade que em algumas organizações, mais cooperativas e democráticas, a vida de trabalho se apresenta de outro modo. Mas eu quis mostrar, sobretudo, os impasses diante dos quais se confrontam as grandes organizações modernas.

Os homens têm necessidade de amor e necessidade de ser reconhecidos no seu trabalho. Hegel, nos escritos da juventude, insistiu no que ele chama de dialética dos amantes e, nos escritos da maturidade, de dialética do trabalho, a do senhor e do escravo.

De nossa parte, podemos fundir os dois aspectos da sua obra e acrescentar, se não julgarem isso muito ambicioso, um terceiro.

Quanto à dialética dos amantes, Hegel, Freud e a psicologia social mostraram a importância do amor para a construção do sujeito. Um ser que nunca foi amado e que nunca amou se assemelha, talvez, a um ser humano exteriormente, mas lhe falta o essencial: a capacidade de reconhecer os outros e de ser reconhecido pelos outros como um objeto-sujeito digno de amor ou, pelo menos, de amizade. A confiança em si que ele retira disso, ele a experimentará no trabalho, do qual deve gostar ou que ele deve pelo menos apreciar. É preciso um mínimo de idealização, e a idealização é coextensiva ao amor da organização e um mínimo de reconhecimento desta, portanto, de amor e de simpatia, para que o sujeito possa passar da confiança em si, o narcisismo de vida, à estima de si e dos outros. Isso envolve sempre sentimentos positivos.

Mas nem o amor recíproco, nem o reconhecimento no trabalho define o ser humano. Para ter acesso a essa condição, ele deve saber reconhecer dentro dele a beleza, fazendo prevalecer suas virtudes sobre seus vícios, e também a beleza dos outros e do mundo. Platão tinha razão. Primeiro é preciso o amor para chegar à beleza, mas é preciso também, vendo a beleza em si, nos outros e no mundo, chegar ao bem e à bondade. E para isso é indispensável a ociosidade — da qual me dirão que falei pouco, mas que estava em filigrana nas minhas palavras — para completar a figura de um ser humano.

Pois é preciso tempo, muito tempo de reflexão aprofundada, de pensamento agitado em todos os sentidos, para podermos chegar a uma obra e, enfim, para podermos refletir sobre nós, sobre nossas carências, possibilidades, esperanças e ilusões, e seguirmos no caminho, tanto quanto nos for possível, de uma certa sabedoria. Sabedoria que chamei, há 15 anos, de “ética da finitude”. Somente quando nos analisamos profundamente, ou com a ajuda de alguém que saiba escutar, é que podemos reconhecer nossas faltas, nossas falhas, fazer o trabalho do luto de nossas ilusões, deixar que a imaginação nos abra as portas dos sonhos realizáveis, examinar o que é possível fazer enquanto ser mortal que será julgado por seus atos e não por suas intenções, reconhecer a influência dos outros, em particular dos pais e dos mestres, na edificação do eu, resistir ao peso de um real às vezes detestável e ao peso muito forte dos outros dentro de nós, fortalecendo assim nossas próprias convicções, fazendo surgir e afirmando a originalidade de um ser ou de um homem que tem a capacidade de dizer “Eu” e que, ao mesmo tempo, compreende que faz parte de uma linhagem, de um grande todo que não é senão a espécie humana. É assim que nos aproximamos, tateando, do bem e da bondade.

E é preciso também, para terminar com uma nota mais leve, ter tempo para sonhar tranquilamente em andanças e passeios solitários à maneira de Rousseau, para caminhar longamente e descobrir os prazeres das montanhas, como o nosso confrade Frédéric Gros, para correr a pé e experimentar seu corpo, seguindo o exemplo do romancista japonês Haruki Murakami, para sentir o perfume das flores nos envolver, como pregava o poeta Mallarmé, para olhar os pássaros, as folhas e os ramos das árvores que nos cercam, a exemplo de todos os amantes da natureza. Veremos então que o mundo, apesar de todas as misérias que contém, é um mundo belo, maravilhoso, no qual toda aurora e todo pôr do sol nos encantam, um mundo abençoado que merece que tenhamos tempo para admirá-lo e para salvar seu esplendor.

Então saberemos combinar, da maneira mais sutil, o amor aos seres humanos, o amor moderado por um trabalho não alienado, e sim realizador, e a ociosidade amorosa que faz de nós não apenas seres vivos que refletem, mas que afirmam em voz alta, contra todos os ódios que desfiguram o mundo, nossa crença irresistível na vida. Tomemos decididamente o partido da vida, e um dia virá, talvez, em que assistiremos à eclosão de um novo mundo no qual cada um poderá dizer, como uma personagem de Shakespeare: “Quando eu nasci, uma estrela dançava”.

Notas

  1. Esses dias que te parecem vazios/ E perdidos para o universo/ Têm raízes áridas/ Que trabalham o deserto. 

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