Os caminhos do desejo
por Flavio Di Giorgi
Resumo
O signo linguístico é sempre um símbolo, não é puramente convencional como um sinal de trânsito. Ele faz parte de um sistema mais amplo que a língua. Esse sistema é a cultura. E as culturas são modos peculiares de povoar e de repartir o continuum do que se percebe no universo (povos da África distinguem apenas duas cores no arco-íris). Por isso elas variam como as línguas que, por sua vez, se transformam de maneiras curiosas. Macunaíma, por exemplo, é um mito macuxi (povo de Roraima) que Mário de Andrade pegou numa versão já muito alterada em relação à original. Nos caminhos do latim e do grego, línguas que mais influenciaram nosso vocabulário, a palavra desejo designava originalmente, para os latinos, gula e cupidez (cupeo), desejo propriamente sexual (van, de onde se formou Vênus) e também a falta de alguma coisa (desiderare, “desistir de olhar os astros” e reconhecer que não se tem o que se quer), que é a origem mais recente da palavra. Em grego, desejo podia exprimir disposição, apetite (orégo) ou impulso sexual (orgué, de onde provém orgasmo). Variações semelhantes ocorrem com a palavra amor. O poeta latino Catulo, queixando-se do abandono de sua amada Clódia, escreveu: “Tamanha indiferença força o apaixonado a amar mais e a menos querer bem”, jogando com os sentidos diferentes do amor dileto, harmonioso (diligere), e do amor possessivo, enciumado (amare). É na riqueza de transformações etimológicas como essas que se revelam a diversidade e a plasticidade das línguas e das culturas.
O título, “Os caminhos do desejo”, significa os caminhos dos termos que designaram o desejo, de onde eles vieram, o que está por trás dessas palavras pelas quais nomeamos o desejo, e os congêneres do desejo e do amor. Existem dois níveis em que a gente pode responder a este tipo de indagação. Um primeiro nível tem caráter superficial, e você fala do vínculo imediato. O sujeito diz: “Escuta, de onde é que veio gastrectomia?” Aí alguém responde: “Veio de dois formantes gregos, de gastro, ‘estômago’, e ectomia, ‘ablação cirúrgica, corte’ “. Então é ablação cirúrgica do estômago, esta é uma explicação etimológica, mas ela é de um nível bastante leve, superficial. Na verdade, você pode fazer uma indagação ainda mais profunda: “Donde veio gastro?”. Porque é com esse termo que os gregos designam o estômago. O que está por trás da palavra gastro? De início, digamos que o signo linguístico é sempre um símbolo no sentido peirceano da palavra símbolo, quer dizer, aquele sinal representante de uma realidade em que a relação entre os significantes, isto é, a corrente sonora gastro e o significado, uma víscera do homem, o estômago, não é uma relação lógica e necessária, é uma relação puramente convencional como o sinal de trânsito: convencional que o vermelho seja a parada e o verde a permissão de passagem. Poderia ser o contrário, quer dizer, o signo linguístico é de natureza arbitrária e, no entanto, isto não quer dizer que ele não seja secundariamente motivado. Que quer dizer isto? Ele não é de uma arbitrariedade absoluta, ele entra num sistema que é mais amplo que a língua, e de que a lingua é uma das partes: ele entra no conjunto da cultura. A cultura é o conjunto de sistemas simbólicos que mantêm entre si certa homologia.
Uma cultura compreende o sistema linguístico, o sistema indumental (como as pessoas se vestem), o sistema alimentar, a culinária toda, o que comem, quando comem, como comem, essas coisas, com que talheres, se há talheres; compreende também os mitos, as técnicas, que são, entre outros, os sistemas mais à vista de uma cultura. As culturas são muitas neste mundo, só as culturas indígenas do Brasil atual são 137, muito diferentes umas das outras. As culturas são modos peculiares que agrupamentos humanos inventaram de povoar o cosmos de objetos, porque o universo é basicamente um grande continuum, ele não está a priori dividido em objetos. Nós, seres humanos, é que criamos esses objetos e depois encucamos nas crianças que tal fenômeno ou realidade também contém aqueles objetos. Assim, fomos ensinados quase todos aqui que o arco-íris tem sete objetos, sete cores, isso fica tão marcado em nós que pensamos que tem mesmo. De fato, o arco-íris é também ele um continuum, e os objetos são os homens que criam. Há um grupo, ao norte do Japão, que vê catorze cores no arco-íris. Nós vemos sete, mais modestamente. Há um grupo da África que vê quatro só, e aliás não são bem quatro, porque a primeira e a última são o mesmo sipswuka, que é o fulvo; o citena é o grupo dos azuis; cissena, o grupo dos alaranjados; e, finalmente, sipswuka outra vez, no finzinho do arco-íris. A gente acha pouco, só quatro, mas se a gente desce para a Zâmbia, aí a redução é maior, para o pessoal da Zâmbia o arco-íris se divide em duas partes, do começo ao meio do arco-íris é hui, o bloco ciânico, azul; e do meio para o fim é ziza, o bloco xântico. Isto nos assusta muito, por que só duas cores para o arco-íris? Porque foi assim que eles repartiram o real. Cada cultura reparte o real à sua singular maneira e, se você quer saber qual foi a motivação secundária disto, você pode investigar que na Zâmbia, por exemplo, eles têm todos um conhecimento fantástico de botânica, fundamental para sua sobrevivência. Eles são nômades, então eles vão para muitas regiões novas, a todo instante conhecem todas as plantas. À primeira vista, eles logo dizem: “Essas aqui são nutritivas, estas podem ser medicinais, essas daqui só serão nutritivas depois de tal desenvolvimento”. E assim por diante. Eles têm um grande conhecimento de botânica, e quem estudou botânica ocidental, essa gente que como nós acha que arco-íris tem sete cores, sabe que as cores decisivas em botânica são duas; as propriedades das plantas são conforme a sua cor: as plantas ciânicas têm tais propriedades, as plantas xânticas têm tais outras. Então essa é a importância do ciânico oposto ao xântico. Isto ficou na cabeça do pessoal da Zâmbia, e levou-os, motivou-os a assim distribuir os objetos do arco-íris.
O que ocorre com o arco-íris ocorre com todos os aspectos da realidade. Cada cultura é uma maravilhosa maneira inventada pelo homem de inventariar o universo. E as línguas refletem as culturas, o modo como as culturas evoluem, entram em choque. As línguas também evoluem e mudam, as línguas vão recebendo novos vocábulos, o sistema vai sempre se alterando e vai sempre se reequilibrando, de tal modo que o português arcaico a gente nem entende mais, mas é o português. “Um papagai mui fremoso/cantava mui saboroso/ca entrava o verão.” Isso dá para entender, não dá? “Um papagaio muito bonito/cantava saborosamente/porque começava o verão.” Isso é português do século XIV, e porque não é mais, há algumas palavras que temos que eles não tiveram nunca. Eles não tiveram bisteca por exemplo, nem bistequeiro, porque bisteca veio de beefsteak, os ingleses é que introduziram aqui. Também não têm capim, capim tiramos de línguas indígenas daqui, capim, “mato fino”. Também não têm tufão, porque este os portugueses descolaram lá na China quando foram a Macau. Eles ouviram os chineses falar quando viam um vento muito forte que aquilo era o tufon, tufong, “vento forte”, e ficou tufão. Não havia em Portugal ventos tão fortes, portanto não havia nome para o fenômeno, e assim por diante. As línguas se enriquecem, mudam, variam do mesmo modo que a cultura varia, língua e cultura mantêm relações muito íntimas. Agora, quando uma cultura entra em crise, certos aspectos da sua divisão de mundo são contestados, são desacreditados, são substituídos por outros. Então, às vezes há uma grave crise porque a linguagem fica em defasagem em relação à cultura. A linguagem conserva mapas que não correspondem mais a nenhum território, e a nossa experiência é ver territórios que ainda não têm nenhum mapa, ainda não têm palavras.
É muito interessante, e muito lúdico, pesquisar como é que as palavras foram formadas. Numa certa época da cultura a motivação para criar a palavra estava ligada aos cânones, ao modo de ver daquela cultura naquela época, e isto continuou na palavra. Quando você fala barata, barata mesmo, inseto — o periplaneta americanus que o homem tão estranhamente odeia — o que está por trás da palavra barata? É estranho, o que está por trás da palavra barata é a ideia de vermelho, porque barata em português vem do latim blata, com rotacismo, a passagem do l a r, porque é muito comum em português até hoje a gente de vez em quando falar “uma sarva de parma” , não fala? Blata virou brata; o povo da Ibéria tinha tendência a evitar grupos consonânticos, tipo momentânea mais vibrantes, bre, bre. Então fazia aquilo que o japonês até hoje faz muito aqui no Brasil: fazia suarabácti, inseria uma vogal no meio e se não gostam do termo suarabácti, e acham muito erudito, a gente tem um sinônimo que é anaptixe. É frequente que o nipônico fale “num burinca”, brinca; extra, no japonês de hoje é excitora”; “Buragiro” , Brasil; o tempo do falso milagre, os japoneses chamavam a esse tempo no Brasil de Buragiro Bumu, o boom do Brasil, porque é uma língua sempre na mesma estruturinha, vogal consoante, consoante vogal, não tem grupo consonântico. O povo da Ibéria fazia muito suarabácti naquele tempo, então, a blata depois virou barata; e a blata, latim que significava “barata”, tem a mesma raiz do inglês blood, do alemão blut, “sangue”, porque a barata daquela época no Mediterrâneo era barata vermelha, uma das 26 espécies de barata que existem no mundo há 260 milhões de anos. (Daí que eu estranhe a nossa hostilidade à barata. Pelo menos por uma questão de precedência devíamos respeitá-la mais, nós somos uma espécie tão recente na terra, é uma arrogância desprezar um bicho tão antigo, não é?) Quer dizer que barata no fundo quer dizer “a vermelha”, só.
Se eu falar a palavra batina, o que está por trás da palavra batina é tão simples, existe uma palavra hebraica aba que quer dizer “pai”. Dado o clericalismo incrível da hierarquia institucional da igreja cristã, os sacerdotes se intitularam “pais”, pais das pessoas. Eu acho isso tão insuportável, eu pessoalmente, mas a gente os chamou de pai na forma arcaica da palavra pai, padre, a gente une batina a padre, não une? Pois é, na etimologia está certinho, porque aba, o pai, deu a palavra abbas, abbatis, que deu em português abade, mas depois abbas, abbatis, significou não apenas um monge mas também o sacerdote secular. Tanto que em francês, o cura, o padre comum é abbé, o abbé Pierre vem de abade, a mesma palavra que vem por sua vez do hebraico aba, “pai” , “abade”. A roupa do abade era vestis abbatina. Quando a Ibéria falava um latim modificado, vestis, a vestis abbatina, — isto é, abacial, do abade, vestis abbatina —, o pessoal esqueceu a palavra vestis, e só começou a dizer abatina, e depois os portugueses pensaram que esse a de abatina fosse artigo e aí ficou só batina. É muito comum haver estes equívocos.
Vocês vejam o que é o choque cultural: quando invadiram a Ibéria, os romanos levaram para lá alguns artefatos culturais deles que o pessoal celtibero não tinha, e que pertenciam a um sistema de ver o mundo. O tempo pelos gregos e também pelos romanos fora dividido em horas, o tempo de um dia. Hora em grego é a própria palavra hora, e havia um relógio de sol que os gregos tinham inventado, que os romanos usavam e levaram para a Ibéria, era o horologium; logium quer dizer “marcador de”, era o marcador de hora, a palavra hora tinha sentido naquela cultura; ele é um marcador de hora, o horologium. Como para os celtiberos a palavra hora não significava nada, eles não tinham essa divisão do dia, só de ouvido eles pegaram o horologium e, porque hora não era importante e o pedaço hora foi liquidado, ficou horloge em francês, e ficou hoje, em português, relógio, e em espanhol, surpreendentemente, reloj, “relógio”. De onde veio relógio? Veio de horologium, ou de uma dissimilação dos o em geral, quando um deles se dissimila em e, orologium ficou no começo orologim, depois eles entenderam que o era artigo, orelogio, tiraram o o e ficou só relógio. Quer dizer que hora, coitadinha, ficou reduzida ao re, porque ela não era importante culturalmente, ela não era um item da cultura celtibérica, daí que sumiu na palavra. Então a etimologia diz muito sobre a evolução da cultura e diz muito também sobre as defasagens que às vezes passam a existir entre a língua e a cultura, uma não se adaptou muito bem ao compasso da outra.
Então vamos tratar de algumas palavras. Claro está que como há 4300 línguas no mundo, ficaríamos séculos aqui discutindo os étimos das palavras que nelas designam os desejos. São diferentes para cada cultura e para cada língua. Agora, essas línguas se agrupam em grandes blocos genealógicos. Há línguas que são ramos da mesma árvore, e alguns desses ramos são muito conhecidos, e a árvore fica muito importante. Pegue o ramo da árvore do indo-europeu, que é um conjunto imponente de línguas. Inicialmente, tempos atrás, há milênios atrás, no indo-europeu havia o itálico: o osco, o latim, o úmbrio e o falisco. O latim ficou importante porque ele foi a língua do Império romano, foi a língua do Sacro Império Romano Germânico, e produziu uma série de filhos, produziu o português, o galego, o catalão, o espanhol, o provençal, o francês, o rético, o italiano, o romeno, o sardo e o dalmático. Do mesmo modo que o latim morreu, também o dalmático já acabou. Então estamos ainda falando uma pervivência do latim, uma língua indo-europeia, como é indo-europeu o grego, que pertenceu ao grande bloco helênico: o ático, o arcádio, o cipriota, o dórico e o jônico. Hoje pervive o grego moderno, diferente do grego clássico. Depois você tem o grande grupo germânico, que também é indo-europeu, irmão do latim e do grego, e tem todas as línguas germânicas: as escandinavas (o norueguês, sueco, o dinamarquês), o holandês, o alemão, o flamengo, o inglês, o frisão que já morreu. Vocês têm o grande bloco balto-eslavo: o lituano, o letão, o russo, o ucraíno, o polonês, o tcheco, o eslavônico, o servocroata e o búlgaro; também o balto-eslavo é irmão do itálico, do latim. Agora vem o grande grupo indo-irânico, irmão também do latim, do grego, do germânico e do balto-eslavo. Compreende o sânscrito, língua já morta da India, mas que produziu uma prole muito numerosa: o hindi, o pendjabe, o marata, o concáni, o bengáli, o guzeráti. São todas línguas irmãs do hindi, por sua vez pervivência do sânscrito, por sua vez irmão do latim e do grego, do velho alemão e do velho eslavo. Há o céltico, várias línguas célticas desapareceram, hoje vocês encontram falado o céltico da Irlanda, por exemplo. O gaélico também é língua irmã do latim, como é irmão do latim o armênio, como foi irmão do latim o tocárico falado nas fronteiras da China, o albanês falado até hoje na Albânia. Tudo isto é o bloco indo-europeu, o bloco mais conhecido no mundo, tendo em vista que muitas dessas línguas são faladas por muita gente e foram veículos de cultura, são línguas culturais também importantes, veículos da cultura hegemônica, da cultura tecnológica. Há um outro bloco também muito conhecido de todos vocês que é camito-semítico, que inclui o hebraico, o velho acádico, o assírio, o babilônico, o velho copta do Egito Antigo, o árabe, o aramaico falado na Palestina no tempo de Cristo, o cuxítico, língua da Etiópia, as línguas berberes do Magrebe no norte da África — tudo isto é camito-semítico. Depois vocês têm o grande bloco chamado uralo-altaico, que inclui o lapão do polo Norte, perto da Suécia, o finês da Finlândia, o carélio, perto de Leningrado, o mordve, lá perto também, o estoniano, o húngaro, o turco, o manchu, o mongol, o usbeque, o tadjique, falado na República Soviética do Tadjiquistão, e também inclui surpreendentemente o coreano, o japonês e todas as línguas paleo-siberianas. Isso é o grande bloco uralo-altaico. Vocês têm o sino-tibetano, são línguas da China e do Tibete. Vocês têm o dravídico, que são várias línguas da Índia; o malaio-polinésio, falado na Indonésia, na Malásia e em várias ilhas da Polinésia; o banto na África, abaixo da bacia do Zambeze até o sul. São 990 línguas banto, deram muitas palavras em português, pois vieram muitos negros bantos para cá e influenciaram muito o português. Há sudanês do norte da África, são 490 línguas sudanesas, a mais conhecida delas é o haussá da Nigéria, o ioruba que é ensinado na Universidade Federal da Bahia.
Há uma multidão de línguas indígenas no Brasil. A mais conhecida, porque foi aquela em que se travou o primeiro contacto, é o tupi. Tupi-guarani é um bloco de línguas que pertence ao macrogrupo andino, eles vieram dos Andes, se rebelaram contra o Império quétchua. Há o bororo, língua de Rondonópolis, de Merure, e há a mais bonita de todas as línguas da terra das que eu conheço, a mais harmônica, a mais fofinha, que é o macuxi do Roraima: uma beleza, o macuxi — ai, eles estão desaparecendo —, a arte macuxi também é uma arte tão delicada, a pintura, a escultura, a própria pintura dos corpos, eles têm uma arte requintadíssima, e têm uma literatura oral com alguns dos mitos mais belos da espécie humana. Os mitos macuxi são muito mais bonitos que os mitos gregos e olha que os mitos gregos são em geral bonitos, é de você não acreditar, você lê um mito macuxi e você diz: “Pôxa, mas aqueles índios do Roraima! “. Pois é, aqueles índios do Roraima, Macunaíma é um mito macuxi, só que o Mário de Andrade pegou uma versão já muito alterada; a versão original, que é a do ciclo da noiva de madeira — olha que bonito o nome desse ciclo — são mitos lindíssimos os mitos da noiva de madeira, a versão original de Macunaíma é muito mais bonita.
Pois é, há muitas línguas no mundo, isso que eu queria dizer, e é verdade que talvez tenha dito de uma maneira muito ampla, mas é porque elas são muitas mesmo, e eu pulei blocos importantes mas também não quero estender isso. Então a gente vai limitar muito, eu vou só enfocar algumas línguas indo-europeias mais prestigiosas, vou enfocar duas das línguas indo-europeias que mais influência têm sobre o nosso vocabulário, o latim e o grego. Vou escolher algumas palavras designativas de desejo e de amor e de prazer em latim e grego e vamos fazer longas investigações sobre o que está por trás dessas palavras, assim como por trás de barata está a palavra sangue, o que será que está por trás da palavra eros, o que está por trás da palavra libido, surpresa!, libido vai ser uma surpresa, vai ser sim, suponho até que algumas pessoas ficarão levementes chocadas. Só que eu não queria ser doutoral nem chato, eu queria que tivéssemos um momento lúdico, um momento de brincar com as palavras, um momento de alegria e de diversão, porque a etimologia é antes de tudo um grande barato, porque você rememora momentos singulares, situações de contextos muito bonitos da aventura humana. E dessa aventura estranhíssima do homem não se conformar com o mundo que está aí, e querer criar um mundo diferente, que é a cultura, ato pelo qual ele vai de homo sapiens a ser humano.
Quando a gente nasce, a gente é apenas homo sapiens, nível biológico; só quando a gente é banhado nas águas da cultura é que a gente vira ser humano, porque o homem faz o símbolo mas são os símbolos que fazem o homem homem, e isto, a cultura, é feita de símbolos, símbolos. Não parece porque ficou tão natural tudo isso para nós, por que que um cavalo é um cavalo? Quando a gente é criança e a gente sabe que cavalo em inglês é horse, a gente acha isso uma espécie de perversão. Então os ingleses não sabiam que um cavalo é um cavalo? Depois a gente aprende a relativizar, eu só não conto uma piada porque ela realmente, para esse tipo de público, para esse tipo de formalidade, é chocante. Eu prometo contar essa piada para grupos particulares em off depois da palestra, é sobre o caráter arbitrário do signo e as reflexões de um português. Posso falar? Posso falar agora? Vocês não sabem o que estão autorizando. Refletia o nosso português da anedota, ele dizia assim: “Cu em alemão é vaca, cu em francês é pescoço, bem faz o português em que cu é cu mesmo”. Ele estabelece um estranho referencial, e essa piada nos fará lembrar sempre do caráter arbitrário do signo. Agora vamos a algumas concretizações.
Até agora discreteamos in abstracto sobre o que seria etimologia, que ela pode ter um nível leve, um nível profundo, e você pode aprofundar até quando der, até quando a ciência humana pode alcançar. É uma ciência com que eu não estou muito satisfeito, os dicionários etimológicos ainda são muito decepcionantes, há um grande número de palavras em que o dicionário etimológico sempre diz: “Etimologia desconhecida”. E é triste, não soubemos interpretar, perdemos esse pedaço, a pequena aventura daquela palavra ficou esquecida, ficou obscura, talvez algum dia progridamos o suficiente para que o número de verbetes que vêm com essa decepcionante cota seja menor, menor. O melhor dicionário do português é um dicionário escrito por José Pedro Machado, em Portugal, esse homem morava numa cidadezinha que não tinha energia elétrica, a obra dele é monumental, é um dicionário bom, em dois volumes grandes, o Dicionário etimológico da língua portuguesa. Ele trabalhou nisso quinze anos e diz no prefácio: “Quinze anos à luz de velas”. Isso me envergonha muito, eu que tenho energia elétrica não escrevi nada de etimologia ainda, espero poder escrever, do jeito que está o problema com o pessoal da Cemig é capaz que venha a ser com luz de velas mesmo. Vamos agora à parte das demonstrações. Vejam bem, eu escolhi apenas algumas poucas palavras, escolhi palavras que designaram amar, que designam paixão, que designam desejo, que designam prazer. Então vamos lá, haverá sempre duas áreas, a área grega e a área latina, claro, convergindo sempre para a nossa área, para nossa língua.
Vejam bem, para dizer “desejo”, os romanos tinham uma palavra básica que é o verbo desejar na sua forma mais comum, que era cupio. Cupio é o desejo, isto quer dizer “eu desejo”, cupio. É o verbo cupere, “desejar”, que dá o substantivo cupiditas, que dá o português cobiça, dá o português cupido, o adjetivo cupidus em latim que vem da mesma raiz. Então você tem cupido, cobiça, concupiscência, não tem isso? Palavra quase só usada nos discursos da teologia moral. Agora, cupio, se você pega a palavra latina e tenta investigar de onde ela vem, dentro da cultura latina, quais os usos em que eles empregam o verbo cupio mais frequentemente, cupio parece que está no começo, a motivação para designar mais a gula; gula, pelo seguinte: existe uma palavra chamada cupedo, uma palavra popular no latim que vem do verbo cupeo, e que significa gulodice nos dois sentidos, abstrato e concreto, a gulodice para nós é gula também, comeu por gulodice porque tem gula, e a gulodice é a própria coisa que você come, não é isso? Pois é, cupedeo tem esses dois sentidos, a gulodice como a atitude da pessoa, a gulodice como artefato que a satisfaz. Agora se você investiga um pouco mais, nos níveis arcaicos do latim, quando o latim começou a ser uma língua, há documentos muito obscuros sobre isso, de repente você vê que cupeo está ligado a uma ideia de ferver, soltar fumaça; quer dizer que quando o sujeito deseja é como se ele estivesse soltando fumaça, soltando vapor, essa é a ideia que está por trás.
Agora a palavra desejar mesmo. O latim tinha outra palavra que de repente na língua clássica sumiu, ela ficou em outros vocábulos mas não significou mais desejar, num certo período era a palavra para o desejar, é uma raiz van, yen, que está na palavra venus. Venus em latim significa antes de tudo desejo sexual; venus , secundariamente, designou a deusa dos jardins, e depois os romanos, quando conheceram a mitologia grega, acabaram-na assimilando à deusa do ato sexual, Afrodite, que nunca foi a deusa do amor. O amor para os gregos é um deus de categoria primária, anterior a todos os deuses olímpicos, que é Eros; Afrodite é apenas a deusa do ato sexual, certo, a deusa da libido e do ato sexual, esta é Vênus, e tanto que a origem de Afrodite, vocês sabem a origem, não sabem? Afrodite vem de uma palavra grega, afro, que quer dizer “espuma”. As mitologias que a gente costuma ler, gregas, em geral ad usum delphini, feitas para adolescentes e também crianças, e portanto bastante expurgadas da sua linguagem original, elas nos ensinam algo que não é bem a lição grega original, dizem que Afrodite chama-se Afrodite porque nasceu das espumas do mar. Aí você fica pensando numa bela praia, na espuma da praia e diz: “Como eram poéticos os gregos, imaginaram que a deusa da beleza e do amor nasceu das espumas do mar”.
Só que não são essas espumas, o mito é muito mais brutal, o mito é assim: Uranos, Uranos na verdade quer dizer o grande mijão (o céu “chove”, os gregos eram muito brincalhões). Urano, o céu, era casado com Gaia, a terra, teve inúmeros filhos: os gigantes, os titãs, e as titanas também. Um belo dia, Gaia, a terra, chegou para o titã mais novo que era Cronos, os romanos o chamavam de Saturno, e veio se queixar ao filho, ela disse para o filho: “Olha, eu já gerei muitos filhos neste mundo, eu estou cansada, mas seu pai é um tarado, seu pai continua com o mesmo apetite sexual dos primeiros meses, ele não me deixa sossegada, ele me solicita demais, e eu não aguento mais isso, eu não quero mais engravidar”. Ai o Cronos pergunta para a mãe: “E então, mãe?”. Ela disse: “Eu vim falar com você, propor que você mate o seu pai”. Aí o Cronos disse para a mãe: “Não, mãe, ele ainda é muito forte, eu não vou conseguir”. Ela disse: “Sim, mas você é muito ouvido pelos teus irmãos, se todos os titãs meus filhos atacarem Urano, vocês o derrotam”. Ele fez isso, convocou os irmãos todos e eles foram e atacaram Urano. Atacaram o Urano, dominaram-no e castraram-no e jogaram os órgãos sexuais de Urano no mar. Ele era enorme, Urano, e o mar se tingiu do sangue de Urano, do sangue dos órgãos genitais de Urano, e foi desta espuma que nasceu Afrodite, desta, não da espuma da praia do Lázaro.
Pois é, mas essa palavra, venus, em latim é o ato sexual, daí a ideia de doença venérea, nós usamos esse termo, doença venérea. Uma pessoa muito bonita e que tem muito charme erótico, o latim chamava de venustus, venusta. Então venus é o charme erótico, só que venus no começo não era isto, venus no começo significava apenas “desejo”, o desejo no sentido amplo, e havia um verbo formado dessa raiz ven que significava “desejar”, que era mais usado que cupio numa certa época, mas de repente ele sumiu com esse sentido, perdeu este sentido, mas ele é parente de uma palavra indo-europeia que foi conservada em germânico. Em alemão, a palavra “desejo” é wunsch, wunsch tem a mesma raiz da palavra venus. O germânico conservou essa raiz com seu sentido básico de “desejo”, o latim o perdeu, e também essa palavra desejo existia na palavra venia, data venia, não tem data venia em português? Eu peço venia, eu peço licença, venia significava “graça”, “favor”, era o objeto do desejo porque é a mesma raiz ven, yin, do verbo desejar antigo, ven. Havia um outro verbo para “desejar” no latim primitivo, o verbo aerusco, ele significava na verdade “ir atrás de”, certo, “ir atrás de”, como um ar ou como um vento, esse também sumiu, ficou cupio.
Agora mais recentemente, depois da era clássica, em latim, outra palavra dominou o cenário de sentido do desejo, o verbo desiderare; desiderare, que deu o português desejar, e dá o português desiderativo, e dá o próprio português desejo. Donde vem desiderare? Desiderare vem da palavra sidus, sideris, que quer dizer “astro”, “estrela”, bonito né? O que que tem a ver desejo com as estrelas? Por que desiderare, que tem a palavra astro, significou “desejar”? Isso vem da linguagem dos adivinhos e arúspices, dos homens que tentavam interpretar o futuro em Roma. Eles tinham um modo de observar os astros, tinham todo um discurso sobre a relação dos estados dos astros com a vida humana, e você chegava para um homem desses e dizia: “O que vai acontecer comigo? Eu vou para uma batalha, eu vou perder ou vou ganhar?”. Aí ele contemplava os astros naquela noite e te dizia o que ia acontecer. Esse ato de contemplar os astros chama-se considerare, de onde veio o português considerar. Levar em consideração é no fundo observar os astros, considerare, ver o conjunto dos astros, e a partir daí tirar uma conclusão sobre os eventos futuros, considerare. Agora, quando alguém estava desesperado de tudo, quando aquilo que ele queria não tinha mais, quando estava no miserê, tudo deu errado, e o sujeito então tinha perdido o ânimo, aí diziam para ele: “Vai ver os astros para ver o que acontece”. Ele dizia: “Não adianta, eu estou perdido”. Isso era desiderare, “desistir dos astros”. Isso é que é desejar, desejar é ter a certeza da ausência, da ausência, não tenho o que eu quero e por isso eu desejo, então desejar, na sua origem, quer dizer: desistir de olhar os astros, desistir de especular sobre o futuro, com grande realismo reconhecer que você não tem o que você quer, e por isso bye bye astrologia, bye bye Tarot, bye bye I ching, bye bye búzios, bye bye cartomantes, nigromantes e outros mantes e quiromantes também, eu não tenho nada, eu quero curtir a certeza da ausência, me deixa então tomar a atitude que me cabe, desejar, o desejo é o desejo da ausência, daquilo que você não tem, não é não? Eu acho que esse étimo lindíssimo, você desliga da tua prisão a ideia do destino, e você passa a usar a sua atitude de homem, primeiro passo para você ter o que não tem é desejá-lo, não é? É reconhecer a ausência, é marcar o objeto da tua busca, o desiderare da linguagem dos arúspices e dos adivinhos, coisa muito comum em Roma, a linguagem dos arúspices é muito popular, os romanos eram tremendamente supersticiosos.
Então você tem o cupio, tem o antigo verbo van, que deu venus, venia, que mudaram de sentido, e tem o desiderare, o mais recente, para exprimir desejo. Já no grego a palavra básica para o desejo é o verbo orégo, orégo, que poderia mais ser traduzido por “disposição”, “apetite”, abertura corporal para obter o que você quer, do que propriamente por desejo, tanto que anorexia quer dizer “inapetência”. Hoje a gente usa mais para indicar a falta de vontade de comer, mas o sentido é mais genérico, anorexia, inapetência, você pode estar inapetente também não só para a comida. O que está por trás da palavra orégo? Orégo em grego basicamente significa o achar bom, achar agradável, ligada ao orégo existe uma palavra que teve muito maior fortuna histórica porque o orégo deu mais que anorexia. Anorexia não é uma palavra com grande ibope, ibope mesmo tem a outra, a que vem de uma palavra tirada de uma mesma raiz de orégo, que é orgué, quer dizer “pulsão”. Pulsão, você sabe, quando o cara está com orgue ele está inquieto, ele está animado, orgué pode ser cólera em grego, pode ser desejo sexual intenso, pode ser uma animação excepcional para qualquer coisa, para arte por exemplo. Um artista, um músico que gosta muito de música, quando toca, pode estar possuído pela orgué, e é de orgué que vem a famosa palavra grega orgasmós, “orgasmo”, que é ligada, isso sim, à realização sexual. Orgasmós é o êxtase, orgasmo, que o Reich recuperou no seu sentido etimológico pleno. O orgasmo do Reich é o orgasmo sexual, mas é mais amplo que isso, é a felicidade plena, a união completa entre o psíquico e o físico, você está com a energia orgônica em dia, bem espalhadinha por todo o seu corpo, tanto que ele chama de energia orgônica, de orgué. Energia da pulsão, pulsão e impulso, traduz o alemão Triebe muito usado na psicologia, muito usado na psicanálise, Triebe, impulso.
Então o orgué frequentemente é cólera em grego, e a cólera é também no fundo algo que significa uma espalhação muito grande de algo pelo corpo, quer dizer, a supra-renal produz epinefrina em grande quantidade, e a epinefrina acelera enormemente a circulação do sangue, por isso que certas cóleras são insopitáveis. Depois que a supra-renal banhou a sua circulação sanguínea de epinefrina, você até fala em voz alta, você xinga, você se exalta, e não tem muito jeito, você não pode eliminar epinefrina por um ato de meditação. Tanto que os temperamentos eram governados pelo critério médico na Grécia, o Hipócrates diz que um dos tipos humanos básicos é o colérico, o colérico é aquele organismo em que o órgão que tem mais atividade é a supra-renal, tem uma supra-renal numa hiper-função, o famoso pavio curto, só que o pavio curto fica bravíssimo a certa hora mas passa logo, corpo nenhum aguenta ficar naquela circulação terrivelmente rápida durante muito tempo. Então orgué, de orégo, e da anorexia, apetite, impulso, na verdade por trás dessa palavra está a sensação de achar bom, de achar agradável.
Passando agora para um termo um pouco diferente, amar. Amar, amar sempre pressupõe um desejo, o latim tem dois verbos que se contrapõem e a contraposição ora é uma, ora é outra, amare, amo, amas, amavi, amare, verbo paradigmático da primeira conjugação, para quem fez latim, vocês lembram? Amare, amo, são verbos fortes, originalmente é o amor erótico. Certo, amare significa realizar o ato sexual, primeiro sentido de “amar”, e o segundo sentido de amare é o gostar, estar apaixonado. Agora, diligere numa certa época se opõe a amare. O diligere não incluía nele mesmo, necessariamente, a força erótica de amare, nunca se usou diligere sozinho para significar relacionamento sexual em latim, diligere deu o português “dileto”, “predileto”, “dileção”.
Há uma outra distinção, esta feita sutilmente por um dos maiores poetas da Antiguidade que foi o extraordinário Caio Valério Catulo. Eu vou dar o poema para vocês porque ele é exemplar. Catulo é um dos maiores poetas líricos da história humana, ele veio de Verona, de uma família rica e importante, menino culto, rico, de Verona que vai para Roma aos dezoito anos. Em Roma, logo ele entrou no círculo dos intelectuais e das intelectuais daquela época, e se apaixonou perdidamente por uma mulher fora do comum, que era da família mais importante de Roma, a família Clódia, a família que deu para Roma o que Roma teve de melhor e pior, irmã do famoso Clódio, porra louca da extrema esquerda romana que tinha tropas de extrema esquerda que se opunham ao esquadrão da morte da direita de Milon. O Clódio foi assassinado pelo próprio Milon num entrevero dos grupos paramilitares de direita e dos grupos de extrema esquerda. Ela era irmã de Clódio, e era mais de extrema esquerda do que ele, mas ela era ao mesmo tempo música, poetisa de alto nível, que coisa fantástica, uma grande oradora. Isso é importantíssimo em Roma, que não tinha TV Globo; o modo de formar opinião era ser um grande orador, era a palavra falada, tanto que todo aristocrata tinha que fazer curso de retórica, ser um grande orador. Vai ser outro critério de definir o ser humano, a retórica, um grande orador era uma catapulta humana em Roma, como foi o caso de Tibério Graco, como foi o caso de Caio Graco, e como foi o caso do próprio Caio Júlio César. Ela era uma grande oradora, era uma mulher independente, não havia nome em Roma para esse tipo de mulher.
A mulher em Roma não tinha status oficial, a mulher não tinha nem nome pessoal. Nome, ela só tinha o nome da família, nome, não, nome pessoal não tinha. Se Cícero, que era da família Túlia, era Marcus Tullius Cícero, tem uma filha (e teve) ela se chamaria obrigatoriamente Túlia. Se ele tivesse uma segunda filha ela seria Túlia também, só que a mais velha ia ser chamada de Túlia maior, e a menorzinha, minor. Se tivesse uma terceira seria também Túlia, aí a primeira era Túlia prima, ela vira Túlia secunda, e a outra Túlia tertia, “terceira”, mas ela é sempre Túlia porque ela é da família Túlia. Mulher não tem nome, e enquanto ela está na casa do pai, solteira, ela é filia familias, submetida ao pai; quando se casa, ela é matrona, submetida ao marido, só que só na teoria. Na teoria o marido tem até o direito ius vitae sobre a mulher, o direito de vida ou morte, ele pode matar o filho até os dezesseis anos ou matar a mulher sem responder a nenhum processo, é um direito que ele tem. Só que na prática era muito diferente, você vê pelas comédias de Plauto que a maioria das mulheres mandava nos maridos, especialmente quando o dote delas era muito alto, quando ela era de família mais rica que o marido, o marido matar a mulher em Roma sem responder processo praticamente nunca foi usado.
Mas ele, Catulo, se apaixonou por Clódia. Clódia não era filia familias, ela já tinha se casado uma vez, e não era matrona porque tinha se divorciado, coisa que aliás a lei de Roma não admitia. A mulher não podia pedir divórcio, como a mulher não podia aliás pleitear em juizo, porque ela não era cidadã, mas ela se divorciou por conta própria, e era mulher livre, ela ia com os homens que lhe agradassem, principalmente aqueles que lhe agradassem politicamente. Ela era uma militante, militante e artista, e se encontrou com Catulo, que também não era de se jogar fora, e ele encantou Clódia, e eles viveram alguns anos muito bem. Pareceu até durante certo tempo que Clódia tinha esquecido que ela não era mulher de um homem só. Catulo canta em alguns poemas extremamente bonitos e felizes esta época da sua vida, mas um belo dia Clódia o deixa, e ele fica absolutamente desesperado e desesperado principalmente porque ele sabe que não adianta mais, ele quer se libertar da paixão por Clódia, e não consegue. São os poemas mais lancinantes de toda poesia antiga, alguns dos poemas mais lindos, como o Carmen 51 de Catulo. Ele está nas termas romanas, as termas que aliás eram ótimas, tinham banhos quentes, tinham uma grande sala, um grande salão que era o unctorium, lugar onde você se perfumava, e depois tinha um enorme parque que era para os namorados em todos os sentidos da palavra namorar, era o parque dos apaixonados. Ele sai do unctorium depois de tomar banho nas termas, e quem ele vê ao longe? Ele vê Clódia, sentada frente a frente num colóquio amoroso muito apaixonado com um cidadão, e escreve: “Parece-me ser um deus aquele sujeito que está sentado a teu lado, face a face te ouvindo rir docemente, coisa que a mim rouba o domínio de todos os sentidos, pois, Clódia, quando agora eu te vejo assim conversando com ele, a minha língua se entorpece, os meus ouvidos zumbem um ruído interior, uma chama perpassa todas as minhas juntas e os meus olhos são toldados por uma dupla noite”.
Ele perde o domínio de todos os sentidos, a língua fica paralisada, os ouvidos zumbem, as juntas são perpassadas por um fogo interior, os olhos se cegam, não é assim que fica um apaixonado frustrado ou inibido? Ele não consegue falar, é assim mesmo. O poema segue, é um poema muito bonito, mas é o poema de um homem apaixonado que não controla sua paixão, e um desses poemas, que é o que eu prometi, é o seguinte, vocês verão a tremenda diferença entre amare e diligere, ele diz assim: “Dizias outrora, oh Clódia, que não conhecias senão a Catulo e que por causa de mim não dormirias nem mesmo com Zeus; eu te amei então não só como um homem comum ama a sua amada mas como um pai ama seus filhos e genros. Agora no entanto eu te conheço; por isso, embora eu arda ainda mais desmedidamente, és para mim no entanto muito mais vil e leviana”. Como é possível?, se pergunta: “É que uma tamanha indiferença força o apaixonado a amar mais, mas a menos querer bem”. Ele usou para “eu te amei então” naquele período em que estava tudo bem, em que o amor não tinha crise, ele usou dilexi, “eu te amei”. É o verbo diligere, é o amor, sem crise, certo, é o amor em que a componente erótica, e a estima, o querer bem, estão harmônicos, fundidos, sem fronteira. Quando, no entanto, o amor entra em crise, quando o amor se vai, é como diz o Roberto Carlos: Quando o amor entra em crise, o que acontece? Acontece o que ele diz: “Embora eu arda ainda mais desmedidamente, a paixão cresceu, és para mim no entanto mais vil e leviana”. A estima caiu, caiu muito, e ele diz: “Como é que pode acontecer uma coisa dessas?”. Ele diz: “É que uma tamanha indiferença força o apaixonado a amar mais e a menos querer bem”. Amar aí é amare, é o amor erótico, força o apaixonado a ter maior amor erótico e a menos querer bem.
Então o amor tem duas componentes: o diligere tem o amare erótico, e tem bene velle, que é a estima; certo, o amor precisa ter esses dois polos, esses dois elementos bem harmônicos. Se não tem, aí vai dominar a paixão, e ele vira apenas amor possessivo, e aí surgem aqueles famosos casos em que o amado mata a amada, matou por amor, matou por paixão. É o amare sozinho que faz matar, é o amare sem bene velle nenhum, onde não existe mais querer bem. Por isso acho que Oscar Wilde está errado quando ele diz: “Que o homem mata aquele que ama, aquela que ama”. Não, ele mata aquela de que ele simplesmente gosta porque ele sente apenas o amare. A mesma coisa se repete em sânscrito. A língua sânscrita tem dois verbos para o amor: camati, que corresponde ao amare romano, é o amor erótico, camati dá a palavra cama, o amor erótico, donde o famoso Camasutra, as regras do amor; cama, o amor erótico corresponde ao amare. E tem o lubiati, lubiati que é o amor, amor, o amor que também inclui o querer bem, lubite, que não é só o amor erótico. Então o amor tem esses dois elementos.
O latim tem uma outra palavra para dizer ”gostar”, libel, donde vem a palavra libido, a famosa libido. Também existe a palavra lubet (libet ou lubet), libido. Originariamente “gostar” no sentido muito amplo, libet tem um forte sentido erótico também, mas não tão exclusivo quanto amare. Agora, fantástica é a relação de libet com outra palavra, a relação existente entre libido e lubrificante. Quem conhece a fisiologia humana sabe que tem sim, o lubrifico em latim significa “passar óleo”, “lubrificar”, “tornar correntio, livre”. Se você não passa óleo as coisas emperram, não emperram? Pois é, libet significa na verdade “estar lubrificado”, estar possuído do desejo com uma conotação tremendamente fisiológica aí, estar lubrificado. Então, libido e lubrificante vêm da mesma origem, resultado do lubrificante da fisiologia, e da tua libido. O lubrificante é produzido também pela libido, os dois se produzem também um ao outro, aquela estranha não separação entre corpo e psique, que é típica dos romanos e gregos, e que hoje é recuperada em grande parte por toda uma tendência, explicar a doença como psicofísica sempre, essa tendência fortemente reichiana.
Quando você vê certas folhinhas da Petrobrás, em que Lubrax tem ao lado uma pin-up girl às vezes in naturalibus, aí sim você diz: “Puxa, que outdoor etimológico”. É o próprio, é o próprio, esse anúncio deve entrar em qualquer manual que se preze de semântica ou de linguística. Olha o nome Lubrax, e olha quem está lá, a libido, isso lembra uma famosa palavra grega. Apolo tinha muitos adjetivos físicos; um dos adjetivos pelos quais os gregos chamavam Apolo era Lóxias. Lóxias é uma palavra estranha, se você vai ver qual é a origem da palavra Lóxias — afinal é importante Apolo dentro da cultura grega, era um elemento de proa, de primeira linha, então é interessante se saber o que significa Lóxias, já que se refere a esse elemento tão importante — e Lóxias você vai ver que significa “o túrgido”. É como aparece um homem quando ele está no auge do desejo sexual, mesmo sob a roupa, isso é que significa Lóxias. Lóxias, desculpe a palavra, se fosse traduzir direitinho significa “o tesudo”. É estranho que assim seja chamado o deus da sabedoria, o deus das artes, Lóxias, vê como a etimologia esclarece as coisas.
E a etimologia de vez em quando te faz ficar meio constrangido, eu me lembro de pessoas que começaram a aprender um pouco de origem das palavras e já ficavam um pouco constrangidas de usar o verbo recuar por exemplo. Eu me lembro dos meus dois saudosos professores de filologia românica na USP, ambos pastores protestantes, pessoas muito sérias, um deles uma das figuras mais imponentes da linguística de todos os tempos do Brasil, um homem soberbamente sábio, Teodoro Henrique Maurer Júnior, já morreu. O Maurer era um homem muito meticulosamente observante da boa linguagem, também muito temeroso de qualquer palavra que afetasse qualquer frivolidade mental ou qualquer permissividade moral. Ele tinha um assistente que era assistente mesmo, vinha a todas as aulas do Maurer, também era muito culto, era também protestante, também pastor, muito amigo do Maurer, Isaac Nicolau Salum. Eu me lembro que, uma vez terminada a aula, o Maurer comentava um acontecimento e de repente lhe escapou da vigilância a expressão: “Puxa vida, puxa vida”. Aí o Salum lembrou-lhe amavelmente, mas a sério: “Professor Maurer, lembre-se da origem dessa expressão”. O Maurer ficou imediatamente vermelho, muito vermelho, porque ele se lembrou de que essa expressão vem de “puta vida”, e foi um disfemismo do tipo “diabo” passar a “diacho”, “puta vida” passar a “puxa vida”, “juro por Deus” virar “juro por dedo” e assim por diante. Aliás, a própria palavra puta quer dizer “menina”, ”moça”, “garota” e no começo da língua latina puta queria dizer ”virgem”. Vem da mesma raiz de puer, da mesma raiz de puela, da mesma raiz de pusillus que quer dizer “pequeno”, mas “au” ou “pau” na sua forma alargada, donde advém Paulus que em latim quer dizer “baixinho”. E talvez tenha sido por uma espécie de auto-gozação, Saulo, o perseguidor dos cristãos, o pessoal chama de Saulo mas é Saul, quando ele cai do cavalo ele muda o nome, ele passa a adotar o nome romano e adota o nome de Paulo, e vira Paulo de Tarso, Paulo quer dizer baixinho, ele era baixinho, certo. Pois bem, de repente essas palavras sofrem uma singular mudança, numa certa época da cultura, e elas passam a significar “prostituta”. Isso é muito comum em português, haja vista a diferença que há, nesse país, nas falas regionais a respeito do sentido da palavra rapariga. Não há designação muito boa para a prostituição, a própria palavra prostituta é uma palavra terrivelmente erudita no começo. Minas Gerais tem um nome fantástico, mulher dama.
Mas vamos ainda ao amor, como é em grego tudo isto? Você tem em grego quatro verbos para dizer amar, você tem erao, que vem da palavra eros, o amor no sentido amplo e que também é o amor sexual. Originariamente é isso que ele designa, o amor erótico. A própria palavra erótico vem de eros, éros, érotos, o amor. O verbo erao correspondente ao latim amare, correspondente ao sânscrito camati, amor erótico basicamente. Depois você tem o verbo filéo , tirado da palavra filos, que quer dizer “amigo” e designa mais o amor de amizade, o amor de querer bem, é o gostar. Mas por trás de filéo, a palavra que existe é beijar, os gregos beijavam os amigos. Hoje isso voltou à nossa cultura, há vinte anos a nova geração começou a abraçar e beijar todo mundo, os mais velhos no começo ficavam meio refugando, depois aderiram alegremente. Porque nós fomos, eu que tenho 55 anos fui educado num ambiente em que a tactilidade era muito reservada, a comunicação táctil era muito pouca, nunca se beijavam os meninos, até certa idade beijavam-se as meninas na casa, os amigos não se beijavam entre si não, e pertenci a um tempo também em que a tactilidade em todos domínios era escassa, a um tempo em que dar a mão já significava quase noivado ou namoro, dar a mão. Também entre amigos, nos colégios principalmente religiosos, havia aquela proibição de se tocarem, havia aquela famosíssima frase: “Ludus manus ludus canis”, “Brincadeira de mão, brincadeira de cão”. O que é uma expressão violentíssima, uma vez que tradicionalmente na cultura ocidental, o cão conota o homossexual masculino. E então não podia beijar não, e não se podia beijar o menino não; as famílias julgavam que, se beijassem muito o menino, ele teria a sua virilidade ameaçada, tinha-se um medo terrível de que os rapazes ficassem homossexuais, era uma cultura muito arisca para isso. Pois é, filéo, por trás de filéo está a palavra beijar, significa que para os gregos a amizade era conotada pelo beijo, mas também tem um outro sentido estranho.
Filéo está ligado a uma raiz do reflexivo, “tornar seu próprio”, “apropriar-se”, “tornar uma coisa sua”. Ele está ligado a um sentido muito forte de identificação e possessividade, e dessa palavra vem a palavra filtro, filtrum em latim, originariamente também venenum, que vem de venus, significava poção que alguns entendidos faziam, afrodisíaca, para você aumentar o desejo sexual. Você estava apaixonado por uma fulana que não dava bola, então você pedia ao entendido um filtro, e você dava esse filtro para a moça beber, aí ela se apaixonava por você se o filtro era bem feito. Filtrum vem de filéo como venenum vem de venus. O filtro é antes de tudo o filtro amoroso, ele é um afrodisíaco, existiam afrodisíacos para os homens e para as mulheres, e havia umas pessoas que se diziam nisso entendidas, eram solicitadíssimas essas pessoas. Mas havia muita gente que desconfiava disso, como o extraordinário cientista, filósofo e poeta Tito Lucrécio Caro, que escreveu o De rerum natura. Lucrécio, como era um ser estranho na cultura romana, sabia coisas que ninguém sabia, e ele era confessadamente ateu, o que era um escândalo. Ele dizia: “Vocês são uns tontos, religião não passa de medo, vocês têm medo de coisas que vocês não conhecem, vocês têm medo da morte, vocês têm medo da desgraça, por isso que vocês têm religião, vocês inventaram os deuses como apoio; vejam bem, os deuses de vocês são tão ruins, são tão perversos, imaginem, um deus pede para Agamemnon sacrificar sua filhinha Ifigênia para que os gregos ganhem a guerra de Troia, isso é de uma crueldade tão grande!”. Lucrécio diz: “Eu, pessoalmente, conheço pessoas melhores que os deuses, portanto como posso adorar os deuses? Me apresentem deuses melhores que eu estou disposto a discutir a questão, mas esses daí não, vocês pensam que tromba d’água é castigo dos deuses”.
E no poema De rerum natura, ele explica espetacularmente bem o que é uma tromba d’água, por que existe. Ele disse: “Está vendo, ela tem causas naturais, tem deus nenhum nessa história”. E ele vai explicando coisas e coisas, ele tem teorias sobre o sonho, são teorias até hoje muito estimáveis; sua é a primeira grande teoria materialista da origem da linguagem. Ele é cientista numa cultura que não sabia quase nada da ciência, ele é o primeiro sujeito no mundo a falar de molécula, ele era partidário da teoria atômica de Demócrito, e ele é o primeiro sujeito a falar de molécula e é o primeiro sujeito a dizer que os átomos são diferenciados da sua capa externa porque senão tudo resultava na mesma coisa. Ele disse: “Há coisas diferentes e tudo é feito de átomo, então é porque os átomos se abotoam com os outros átomos com botõezinhos diferenciados”. Ele é o primeiro sujeito a dizer essas coisas, mas acredita que a alma humana é feita de átomos também, e não há nada semelhante ao conceito de espírito, que a única coisa que cumpre ao homem fazer neste mundo é evitar a dor, só, e ele era estranho mesmo, ele era um homem de uma família relativamente rica, e morava numa cabaninha perto de um riacho, dizia: “Por que que eu preciso ter uma casa chique, bonita, para mostrar poder, prestígio? Eu não quero, é uma delícia ter uma casinha perto de um riacho, e viver em contato com a natureza e não ter nenhuma ambição de poder, de status, de dinheiro”. Era assim Lucrécio. Como ele morreu muito jovem, as más línguas da época nos disseram que ele, cientista que era, também fazia filtros amorosos, porque o Lucrécio foi um sujeito conhecido pela sua grande sensualidade, ele sempre gostou muito de mulher e sempre, segundo as testemunhas da época, sempre se houve muito bem no domínio erótico, o pessoal dizia que ele fazia isso porque ele tomava filtros afrodisíacos e foi uma vez que ele errou o filtro e morreu porque o filtro deu errado. Então havia certa desconfiança contra os filtros, sempre pode dar uma “zica”.
Voltemos então a filéo, “beijar”, e a erao, eros, a raiz que aqui está por trás é “aplacar”. Você está inquieto e eros te aplaca, parece o contrário, que eros te agita. Aí vem outra palavra que é agapao, que dá a famosa palavra agape, “comunhão”, “banquete”. Agapao vem de uma raiz agam, que significa ”muito”, a ideia que está por trás é ”satisfazer”. Então temos o erao, “amor, erótico”; filéo, “amor de amizade”; o agapao, a ”satisfação”, você ama a satisfação do seu desejo; e, finalmente, stergo, que dá a palavra amor. Storgue, stergo quer dizer amar alguém no sentido de ser amistoso com a pessoa e também por trás de stergo existe uma raiz que significa “proteger”. Então seria um amor cujo impulso básico é a tendência a proteger o outro, isso parece mais um amor parental, não é?, dos pais. Bem, agora quanto às palavras paixão e prazer. A palavra paixão: em grego, há duas palavras paixão, uma só quer dizer ”sofrimento”, é a palavra pathos, que vem do verbo páscho, sofrer, e que produz o adjetivo patético, “relativo ao sofrimento”. Estranhamente também produz a palavra pateta; quando um cara não batia bem, os gregos falavam: “Esse cara sofre”. E nós dizemos isso até hoje: “Fulano? Fulano sofre”. Supõe-se “sofre da bola”, “é louco”. Os gregos também falavam isso, então o que sofre em grego é o particípio do verbo páscho, pathetés, que dá o português pateta. Virou uma palavra popular, pateta, já que o povo adora chamar as pessoas de loucas quando fazem coisas estranhas. Pateta, o que sofre, scilicet da bola, mas essa palavra pathos só quer dizer “sofrimento”, “afecção”, aquilo que te afeta a alma mas te faz sofrer. O amor tem um pouco disso também, ou não? Da paixão amorosa frequentemente as pessoas se queixam: “Dizendo que vai sofrer muito”, a famosa coita do português arcaico que vem do latim cogitare. Cogitare quer dizer ficar pensando, ficar esvoando no pensamento. Quando você está sofrendo de alguma preocupação, é isso que você faz, você está com uma coita, é daí que vem a palavra coitado, o sujeito preocupado por alguma paixão, por algum problema que ele não consegue resolver e ele fica cogitatus, fica cogitando, exco gitando.
Em grego, a palavra paixão, além de pathos, é timós. Timós em português se transliteraria em thymós, thymós quer dizer “coragem”, basicamente a atitude positiva de tomar iniciativa. O páthos deixa meio paralisado; você, quando está com páthos, uma paixão que é sofrimento, em geral você se inibe, você se fecha. O timós é o contrário, é a reação a isso, você reage, investe, toma iniciativa, quer dizer coragem o timós. E timós vem de uma palavra que quer dizer “fumaça”, “sopro”, “vento”, mesma raiz da palavra anima, da palavra animus, ânimo é a mesma coisa que coragem, não é? Ânimo quer dizer “sopro”, “vento”, como a palavra spiritus. Espírito também quer dizer “sopro”, “vento”, como a palavra psique também quer dizer “sopro”, “vento”, e como a palavra hebraica que designa o espírito, a alma, nefech, quer dizer “sopro”, “vento”. Não esqueçam que a palavra gás foi criada a partir da palavra geest em holandês, que é a mesma palavra do inglês ghost, espectrum, espírito, e no alemão Geist, espírito. Então a gasolina e o espírito têm relação, aliás têm mesmo, como é que se chama aquele fogareiro em que você põe álcool, não é uma espiriteira? É que a palavra espírito também designou o álcool. Quando se diz que alguém é espirituoso, a gente não está querendo dizer que ele tem muito espírito no sentido tradicional da palavra espírito, espirituoso é o sujeito que bebeu um pouco, ele está com muito álcool, por isso que ele está desinibido. Engraçado, é engraçado isso que a gasolina e o álcool e o sopro e o vento tenham relações profundas com a noção de espírito e de alma, e a primeira ideia mesmo de espírito no homem mais primitivo, é de que ele fazia a pessoa viver e o indício mais forte da vida era a respiração, não é isso? A própria palavra respiração, respirar, está ligada à palavra spiritus, então timós tem relação com a palavra espírito, com a palavra anima, mesmo a relação profunda ”sopro”, “fumaça”, “vento”.
Eu acho que não vou incluir a palavra prazer nas minhas discreteações por causa da carência de tempo, não vamos examinar a palavra hedonê, o prazer, e hedonista, o sujeito que é partidário distraído do maior prazer. Hedonê vem de uma palavra curiosa, “doce”; hedonê está ligada à palavra mel. Quer dizer que uma das motivações históricas do prazer para os gregos e para os romanos é o mel, parece que os povos mediterrâneos sempre tiveram um enorme penchant pelo mel e foi super, superapreciado no Mediterrâneo, parece que eles deviam ter papilas gustativas muito especialmente dotadas para apreciar o doce. O que eles falam do mel e do doce é cheio de êxtase, de encanto. Não é anormal, pois, que a ideia de prazer esteja ligada ao mel, há pouco tempo se resgatou do mar Jônio um navio grego afundado e que devia ser de 600 anos antes de Cristo e lá se encontraram muitas ânforas de vinho. As ânforas ainda estavam hermeticamente fechadas, de modo que as pessoas ousaram experimentar o vinho, e aí descobriram que o vinho dos gregos era aquilo que eles próprios em outros textos chamam de hidromel, era o vinho extremamente doce, ao gosto mesmo dos povos mediterrâneos. Eu já não tenho esse gosto, eu tenho provavelmente muitas papilas do doce, e poucas do amargo, tanto que o amargo não me injuria muito, eu gosto de jiló e de todas as verduras amargas. Já o doce me agride muito, quando eu era pequeno e pegava uma colher de mel, o mel literalmente me queimava a boca, papilas do doce muito agudas, sentia doce demais. Gregos e romanos deviam ser o contrário, deviam ter muitas papilas para o amargo, poucas para o doce e portanto gostavam do doce, e não gostavam do amargo. O amargo sempre é usado para as metáforas da tristeza, do desespero, da dor. Até hoje a maioria das pessoas ainda é da linha do mel, o mel é o símbolo de tudo o que é bom, e o amargo conota tudo aquilo que não é bom. Então hedonê, o prazer, vem de mel, suavis em latim, “suavidade”, também vem da palavra mel.
Bem, eu não sei se foi muito divertido para vocês, eu queria passar a ideia de que a etimologia é muito gostosa, ela te traz muita surpresa. Veja, só para terminar, a fantástica etimologia da palavra sapeca, vocês já falaram muitas vezes “essa criança é muito sapeca”, não falaram? Faz muito barulho, é muito irrequieta, mexe em tudo, muito moleca, sapeca. Olha de onde vem sapeca: sapeca vem do chinês que significa “um cento”. Qual a relação que tem um cento com uma criança pestinha? É a seguinte: a portuguesadinha foi com a cara e a coragem para o mundo todo, não foi? Chegaram à China, então lá na cidade de Macau olhando tudo aquilo, e vendo um leilão chinês, um leilão de pequenas mercadorias, eles têm este tipo de leilão, então está todo mundo ali reunido, um leiloeiro mostra o objeto, naquele leilão chinês, o leilão acaba automaticamente quando alguém oferece cem moedas, falou primeiro cem, leva. A portuguesada assistindo ao leilão, não sabendo chinês nem sequer as regras do jogo, e a chinesada ia leiloando com as suas bolsas cheias de moedas, todos com a sua bolsa, dizem: cem! Primeiro, é importante porque é você que leva. De repente os chineses diziam que uma grande zorra se criava, um monte de gente brandindo as bolsas que tilintavam muito pois faziam um grande barulho porque eram muitas, e a turma gritando: sapeque, sapeque. Cada um querendo ser ouvido primeiro que o outro: um cento, um cento. Que era a oferta maior e final: sapeque, sapeque. Os portugueses então acharam que sapeque era isto, era a ordem de entrar numa grande farra, e na verdade sapeque quer dizer “um cento”. Aí se criou em português inclusive o verbo sapecar, mil coisas.
No meu tempo no Ipiranga, se uma moça estava mal falada, a gente dizia que ela era uma moça sapeca, havia muitas famílias italianas, sapeca ainda não era muito grave, grave era quando diziam que ela era uma chiveta, sciveta, em italiano se usa. Chiveta é corujinha, é uma menina que volta tarde para casa, vocês conhecem numa ópera tem a certa altura, uma hora que começa: “Mimi, Mimi. È una sciveta”, o cara está pichando a moça, está querendo dizer: não pensem que a Mimi é uma boa moça não, Mimi é uma chiveta, é uma corujinha. E isso se usava muito no Ipiranga no meu tempo: “Fulana? Ah, fulana é uma chivetinha, chivetinha”. Tinha a moça sapeca, sapeca era mais um pouco meio desmioladinha, mas não muito mais; chiveta já era mais grave, namoradeira e boêmia, com todos os riscos inerentes a isso, no caso de uma moça. Então, com Mimi, a sciveta, com a fantástica etimologia sapeca, eu creio que terminamos a nossa parte.