Os últimos dias de um profeta
por Newton Bignotto
Resumo
Em 23 de maio de 1498, em Florença, três padres dominicanos eram enforcados. Diante de uma multidão silenciosa, mas ávida por tal tipo de espetáculo, acabava o período político mais intenso da história florentina. Entre os condenados, estava Girolamo Savonarola. Tinha sido a figura central nos últimos anos da cidade. Seus sermões vigorosos e imaginativos galvanizaram multidões – e provocaram a ira da Igreja. Tanto que seus seguidores foram perseguidos por toda Toscana.
A Florença do século XV era rica e agitada. A filosofia política mesma era revolucionária se comparada à praticada durante a Idade Média e seus rígidos padrões de pensamento.
Formado por dominicanos, Savonarola conservou ao longo da vida os princípios tomistas que lhe foram passados, a não ser por combinar fé profunda e doutrina política. É isso, aliás, que confere unidade à sua vida e ao seu pensamento; seu desenlace trágico, inclusive.
Se fosse o caso de escolher uma imagem que sintetizasse Savonarola a olhos contemporâneos, não seria a de um político, mas a de um religioso de costumes simples e austeros. Nunca quis, por exemplo, ser o dirigente máximo de Florença; em compensação, quis encarnar a palavra divina. Foi o que fez no fim da vida, valendo-se sobretudo do medo disseminado em meio ao povo florentino, submetido a sucessivas pestes e guerras. Com efeito, muito se falava do fim dos tempos e do futuro reino do Espírito Santo, quando os monges governariam o universo e a humanidade viveria a pobreza angélica.
Nesse sentido, é a partir de 1494 que Savonarola passou a referir-se a suas profecias e à necessidade de comunicá-las a Florença. Em um sermão proferido em 1495, ele afirma mesmo que: “Essa luz, Florença, foi dada a ti e não a mim, porque não é pela luz que o homem é agradável a Deus. E eu quero que tu saibas que comecei a ver essas coisas há mais de 15 ou 20 anos, mas só a 10 falo delas”.
Eis, aliás, os principais temas de seus sermões: a renovação da Igreja, o terrível castigo por que passaria a Itália e a necessidade de preparar-se para ele.
Tudo isso se reforçou com a publicação do “Resumo das revelações”, em 1495. Nele, Savonarola procura explicar sua trajetória espetacular até o centro da vida florentina, o que se deve menos ao anúncio do apocalipse do que à revelação de que suas palavras provinham diretamente de Deus.
Mas aos poucos Savonarola começou a mudar. Não desejava mais ver Florença destruída pela justa cólera divina. Abriu-se, então, para a redenção. “Mais tarde” – lê-se no “Resumo” – “eu anunciaria que a cidade seria reformada e viveria melhores momentos, segundo a vontade de Deus, a qual os florentinos deveriam se conformar”.
A partir de então o profeta é aos poucos substituído pelo político, mesmo que apegado à figura de pregador e homem da Igreja.
Savonarola hesitava, mas os acontecimentos frenéticos do final de 1494 acabaram por empurrá-lo para o centro das tormentas e o transformaram no profeta do novo tempo. E então, em 10 de dezembro, ele anunciou, do alto de sua cátedra, uma boa nova, para quem acreditasse nele como nos Evangelhos. Tratava-se de buscar o “bem espiritual”, da reforma das consciências e da disposição ao bem comum em detrimento do bem particular. Assim, Florença seria mais gloriosa, rica e potente do que jamais tinha sido. Dia após dia, criticava a corrupção do poder, sobretudo o do Vaticano. Com isso, um cisma começou a se prefigurar, e o papa reagiu. Mesmo assim, Savonarola seguiu com suas pregações cada vez mais inflamadas, motivo pelo qual foi excomungado em 12 de maio de 1497.
Uma guerra, sobre a qual quem deu a palavra final foi Maquiavel ao escrever que “só o profeta armado triunfa, pois a natureza do povo é cambiante. É fácil persuadi-lo de uma coisa, mas difícil mantê-lo persuadido. Dessa forma, é preciso se organizar de tal maneira que, quando ele não acreditar mais, se possa fazê-lo acreditar à força”.
Já que desarmado, não demorou para que Savonarola fosse preso – e torturado. Rapidamente, seus partidários foram banidos. Em 9 de abril de 1498, começaram os interrogatórios. À frente do processo, estavam os inimigos de Savonarola, sobretudo seu redator, Francesco Barone.
Florença começa a se desfazer simbolicamente de seu profeta. Se, fazia um mês, ele impunha respeito e temor, sua imagem, depois da prisão, estava acabada. A questão já não era sua morte, mas onde aconteceria. Florença mesmo ou Roma? Para o povo, o profeta tinha se revelado falso profeta, e só a morte poderia bani-lo definitivamente das suas ruas e mentes.
Tudo aconteceu às pressas e como previsto.
“Confesso que reneguei Cristo. Disse mentiras. Senhores de Florença, eu vos tomo por testemunhas, eu O reneguei por medo dos tormentos, e, se devo sofrer, quero sofrer pela verdade: o que disse eu o recebi de Deus. Meu Deus, Tu me impões a penitência, pois eu Te reneguei por medo dos tormentos e o mereço” – disse Savonarola pouco antes de morrer.