Pensar é estar doente dos olhos
Resumo
Se cada pessoa é um olhar lançado ao mundo e um objeto ao olhar do mundo, Fernando Pessoa não se contentou em ser um único olhar, quis ser vários. E o olhar é um tema privilegiado e diferenciado na poesia filosófica de seus heterônimos. A começar por “ele mesmo”, cujo olhar estático, descarnado (“sonho sem ver / os sonhos que tenho”), vê o mistério do oculto, mas, como consciência soberana que “se vê olhando”, nunca consegue sentir-se “ele mesmo” e por isso é o mais triste dos olhares pessoanos. Para tentar outra relação com o mundo, Pessoa inventou seu mestre Alberto Caeiro, de olhar “nítido como um girassol”, olhar de criança, olhar que se assemelha ao das filosofias orientais. Mas há uma tensão interna nesse olhar que insiste em exibir sua serenidade. Mais de um poema de Caeiro começa com a fórmula: “Quem me dera…” O estoico e neoclássico Ricardo Reis também tem um olhar sereno, mas nele é apenas um ideal. Enquanto Caeiro vê “a eterna novidade do mundo”, Reis vê a eterna velhice do mesmo. O olhar de Álvaro de Campos, enfim, é modernista, cubista, caleidoscópico. Ele quer “sentir tudo de todas as maneiras”, como na sua “Ode marítima”. Mas seu olhar insaciável acaba sendo frustrante e o lança de volta na depressão e na saudade. Com essa multiplicidade de olhares, Pessoa conseguiu sintetizar os problemas filosóficos de nossa época, aguçando o olhar míope que lançamos cotidianamente ao mundo. O que ele fez foi desvendar o visível para produzir uma visão mais intensa.
Cada pessoa é um olhar lançado ao mundo e um objeto visível ao olhar do mundo. Cada corpo dispõe de um jeito de olhar que lhe é próprio e essa particularidade condiciona também sua visibilidade como corpo diferente dos outros.
Inicio com essas evidências para preparar o enfoque de um fenômeno poucas vezes visto: o de uma pessoa que não se contentou com dispor de um único olhar mas quis dispor de vários, enfrentando o risco de se perder a si mesma de vista.
Minha proposta é considerar cada um dos múltiplos nomes sob os quais escreveu Fernando Pessoa (cada heterônimo e o não menos heteronímico ortônimo) como um olhar; examinar não apenas o jeito de olhar que caracteriza cada um deles, mas também o modo como, em cada um, é tratado o próprio tema do olhar.
O olhar é um tema privilegiado na poesia pessoana porque esta, em suas várias facetas, é uma poesia de vocação filosófica, onde a reflexão sobre a relação sujeito-objeto é constante. Se algo unifica as múltiplas personalidades do Poeta é, paradoxalmente, a questão sempre presente da unidade impossível do sujeito Pessoa.
Começarei por Fernando Pessoa “ele mesmo”, não porque eu o considere como o Pessoa verdadeiro e essencial, mas por comodidade. Seguirei a ordem de apresentação que é a habitual nas edições de suas obras completas. Na verdade, qualquer ordem serviria para percorrer o círculo descentrado dos nomes-Pessoa, e “ele mesmo” alguma vez pensou numa ordem diferente daquela geralmente adotada por seus editores póstumos.[1]
FERNANDO PESSOA: O OLHAR VELADO
Fernando Pessoa “ele mesmo” é aquele que não consegue olhar o mundo com um olhar de ver. Entre seus olhos e as coisas há uma névoa constante, um intervalo de bruma que desrealiza o real:
E a terra é verde, verde…
Por que então minha vista
Por meus sonhos se perde?
De que é que a minha alma dista?
(OP, p. 122)
O sonho, tema recorrente em FP, é por ele vivido e considerado como oposto ao real. O olhar do sonhador é um olhar de desconhecimento e de perda:
Sou o ser que vê,
E vê tudo estranho
[…]
Tudo é ilusão
Sonhar é sabê-lo.
(OP, p. 142)
Sonhar é estar separado e distante, é perder um real inapreensível porque indesejável:
Contemplo o que não vejo.
(OP, p. 170)
Este verso define plenamente o olhar de FP “ele mesmo”: estático e cego para o mundo exterior, incapaz de estabelecer uma relação do sujeito que olha com o mundo sensível. O olhar de FP é toldado pela impossibilidade de se deter naquilo que Merleau-Ponty chama de “carne do mundo”. Descarnado ele mesmo, corpo que nega sua corporalidade, FP vê as coisas irreais como símbolos de uma realidade oculta igualmente invisível:
Ao longe, ao luar,
No rio uma vela,
Serena a passar,
Que é que me revela?
Não sei, mas meu ser
Tornou-se-me estranho,
E eu sonho sem ver
Os sonhos que tenho.
Que angústia me enlaça?
Que amor não se explica?
É a vela que passa
Na noite que fica.
(OP, p. 143)
No jogo paranomásico da rima, o véu que perturba a visão da vela impede que esta revele o que venda, deixando seu contemplador no escuro angustiante da noite.
Para FP, tudo o que o olhar vê é símbolo de algo oculto. Mas, diferentemente dos poetas românticos e simbolistas, FP não postula o mundo interior do sonho como um mundo alternativo e preferencial; poeta-filósofo, ele questiona seu modo de olhar, reflete sobre sua incapacidade de ver o mundo exterior:
Olho o Tejo, e de tal arte
Que me esquece olhar olhando,
E súbito isto me bate
De encontro ao devaneando —
Que é ser-rio, e correr?
O que é está-lo eu a ver?
Sinto de repente pouco,
Vácuo, o momento, o lugar.
Tudo de repente é oco. —
Mesmo o meu estar a pensar.
Tudo — eu e o mundo em redor —
Fica mais que exterior.
Perde tudo o ser, ficar,
E do pensar se me some.
Fico sem poder ligar
Ser, ideia, alma de nome
A mim, à terra e aos céus…
E súbito encontro Deus.
(OP, pp. 111-2)
Esse poema mostra, exemplarmente, aquilo que Benedito Nunes apontou como “o primado da consciência reflexiva” em FP. “A reflexão excessiva [diz Benedito Nunes], que nele se opôs ao sentir espontâneo, à plenitude das vivências puras, explica o desdobramento, tão patente nos poemas de O cancioneiro, dos atos de olhar, ouvir e lembrar. Mais do que olhar, o poeta vê-se olhando”.[2]
Paul Valéry, outro poeta em quem a consciência prevalece sobre as sensações, pôs na boca de sua “Jovem Parca”: “eu me via me ver”. Ver-se vendo, olhar-se olhando, é deixar de olhar e de ver o que se olha e vê fora de si, para tentar captar, no sentido inverso, o próprio ponto de onde o sujeito olha. O resultado dessa operação, além da perda do objeto exterior, é o eclipse do próprio sujeito, que topa com o ponto cego da consciência tentando captar-se a si mesma como objeto. A esse respeito, diz o psicanalista Lacan: “Na ilusão da consciência de se ver vendo, o que se elide é o olhar, esse avesso da consciência”.[3]
A autodevoração da consciência se representa, em Valéry, pela imagem da serpente que devora sua própria cauda. A jovem Parca, ao ver-se vendo, estabelece ela mesma e imediatamente essa relação:
Eu me via me ver, sinuosa, e dourava
De olhares em olhares minha profundas florestas.
Seguia nelas uma serpente que acabava de me morder.[4]
A reflexão excessiva impede o puro olhar, a apreensão do objeto pelo sujeito. Em FP, a incapacidade de ver o mundo exterior como algo onde o olhar possa deter-se afeta a existência do próprio sujeito. Seu olhar se coloca imediatamente fora das coisas: para além delas, já que busca por detrás delas algo oculto, invisível e essencial (é o Pessoa ocultista), e aquém delas, já que ao invés de ver as coisas o sujeito tenta ver-se a si mesmo olhando (é o Pessoa da consciência reflexiva). O sujeito se torna assim tão alheio a si mesmo quanto as coisas, sem nome — “sem poder ligar/ Ser, ideia, alma de nome/ A mim, à terra e aos céus” —, anônimo e sumido (FP rima “some” com “nome”), oco-eu dentro de um oco-mundo, mera parte ou momento do Grande Objeto.[5]
O sujeito se constituirá então como inquietante estranheza para si mesmo:
De quem é o olhar
Que espreita por meus olhos?
Quando penso que vejo,
Quem continua vendo
Enquanto estou pensando?
(OP, p. 132)
FP não é um idealista absoluto, que postule a inexistência do mundo para afirmar a única existência das representações que o sujeito possui desse mundo. Em FP, o próprio sujeito pensante se dissolve, na impossibilidade de ver o mundo como exterior. A sensação de inexistência não é prévia à experiência do olhar, não se estende do sujeito ao mundo, mas do mundo ao sujeito. FP não diz: não existo, portanto nada existe, mas diz: não consigo deter meu olhar no mundo, para ideá-lo e nomeá-lo, e por isso não posso idear-me ou nomear-me.
Só uma entidade maior e superior, um Olhar de cima, poderia colocar cada uma dessas coisas em seu lugar, vê-las, nomeá-las, compreendê-las. Um Olhar sem véu, que velasse pelas coisas e pelo sujeito que, velado, em vão tenta vê-las: “E súbito encontro Deus”.
Em outro poema, podemos perseguir o desdobrar desses significantes cujos significados só a poesia motiva:
Entre a árvore e o vê-la
Onde está o sonho?
Que arco da ponte mais vela
Deus?… E eu fico tristonho
Por não saber se a curva da ponte
É a curva do horizonte…
[…]
Deus é um grande Intervalo,
Mas entre quê e quê?…
Entre o que digo e o que calo
Existo? Quem é que me vê?
(OP, p. 113)
A vela, velada e ocultante, que passava no rio do outro poema, é aqui substituída pela árvore e pelo arco da ponte, igualmente velados para os olhos do Poeta, mas velados pelo olhar de Deus, que os vê e que não podemos ver, que apenas podemos intuir como grande Intervalo”. O olhar de Deus faria a ligação das coisas, mas como não podemos vê-lo nem ver por seus olhos, afrontamo-lo como Intervalo.
O olhar de Deus é invocado por FP para garantir a existência das coisas e de si mesmo. Entretanto, esse Deus judaico que tudo vê sem que o vejamos, Grande Olho sempre pronto a desvendar a culpa e puni-la, revela-se como outra ameaça à autonomia do sujeito, alienado objeto, perdido no olhar do Sujeito Absoluto, de quem ele é “erguido pó, símbolo só” (OP, p. 164).
Olhado por um deus invisível, FP se sentirá espreitado por todos os lados, pelos próprios objetos inanimados:
Sinto a sua ausência de olhos fitar-me e estremeço.
[…]
De onde é que estão olhando para mim?
Que coisas incapazes de olhar estão olhando para mim?
Quem espreita de tudo?
As arestas fitam-me.
Sorriem realmente as paredes lisas.
(OP, pp. 133-4)
Marilena Chaui, num texto sobre Merleau-Ponty, se refere a essa misteriosa presença das coisas: “O sensível, ser dos confins, é ‘o que vela às portas de nossa vida’. A presença das coisas é um mistério não por ignorarmos como são possíveis, mas porque reivindicam a existência como indivíduos. Mais: são campos ou configurações, famílias ou estilos de ser. Menos: são puras diferenciações e não encarnações do princípio de identidade”.[6]
A experiência de FP com as coisas vai entretanto além (ou alhures) desse sereno e quase amistoso mistério de que falam Merleau-Ponty e Marilena. Quando as coisas começam a nos olhar, estamos experimentando não o mistério do conhecimento, mas o mistério do desconhecimento; é aquela experiência do inconsciente que Freud conceituou como Unheirnlich (a inquietante estranheza) e que, quando de pontual passa a permanente, se chama loucura, psicose.
FP beira esse risco. Mas no mais das vezes essa experiência pessoana do mistério das coisas se apoia no álibi filosófico de um ocultismo neoplatônico:
Neste mundo em que esquecemos
Somos sombras de quem somos,
E os gestos reais que temos,
No outro, em que, almas, vivemos,
São aqui esgares e assomos.
Tudo é noturno e confuso
No que entre nós aqui há.
Projeções, fumo difuso
Do lume que brilha ocluso
Ao olhar que a vida dá.
(OP, p. 178)
FP “ele mesmo” não é sempre igual a ele mesmo. A esse Poeta do Mistério e do Oculto se justapõe (ou se contrapõe) o ortônimo da Razão soberana, do olhar iluminista, que tudo quer dominar:
Guia-me a só razão.
Não me deram mais guia.
Alumia-me em vão?
Só ela me alumia.
[…]
Com o olhar, a razão
Deus me deu, para ver
Para além da visão —
Olhar de conhecer.
(OP, pp. 159-60)
Esse “olhar de conhecer” é um presente de deus grego. Levado ao extremo, o “olhar de conhecer” é destrutivo e autodestrutivo. Pior do que não ver porque “tudo é oculto” é ver demais, com a fúria destruidora do Fausto, que FP “ele mesmo” também assina. Nessa peça inacabada (Primeiro Fausto), FP desenvolve largamente o tema do “olhar de conhecer”. Conhecer o objeto é anulá-lo, é devorá-lo pela consciência. Quanto mais o olhar desse Fausto se aguça nessa prática, mais o sujeito Fausto se sente ameaçado, por supor no olhar de outrem igual poder anulador:
Ó horror metafísico de Outrem!
O pavor de uma consciência alheia
Como um deus a espreitar-me!
Quem me dera
Ser a única consciência animal
Para não ter olhares sobre mim!
Dos olhos de cada um me fita, vivo,
O mistério de ver; e o horror de verem-me
Abisma-se.[7]
Essa temática é familiar aos leitores de Sartre. A psicanálise nos leva a dar a tal reflexão uma inflexão particular, pela inclusão do desejo inconsciente no enfrentamento do olhar de outrem. Esse olhar, diz Lacan, “é não um olhar visto, mas um olhar por mim imaginado no campo do Outro”.[8]
A autovigilância da consciência em FP “ele mesmo”, como em seu Fausto, é um meio de evitar o corpo, o corpo próprio e o alheio, corpos desejantes de que ele, literalmente, não quer nem saber:
Tão abstrata é a ideia do teu ser
Que me vem de te olhar, que, ao entreter
Os meus olhos nos teus, perco-os de vista,
nada fica em meu olhar, e dista
Teu corpo do meu ser tão longamente,
a ideia do teu ser fica tão rente
Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me
Sabendo que tu és, que só por ter-me
Consciente de ti, nem a mim sinto.
(OP, p. 106)
Simetricamente, é bom, para FP, que o olhar do outro seja também desencarnado:
Olhas-me de repente
De um distante impreciso
Com um olhar ausente
Começas um sorriso.
(OP, p. 186)
O olhar alheio dá a FP um trabalho insano. Proteger-se é uma eterna vigilância:
Cerca de grandes muros quem te sonhas.
[…]
Faze canteiros como os que outros têm,
Onde os olhares possam entrever
teu jardim como lho vais mostrar.
Mas onde és teu, e nunca o vê ninguém,
Deixa as flores que vêm do chão crescer
E deixa as ervas naturais medrar.
Faze de ti um duplo ser guardado;
E que ninguém, que veja e fite, possa
Saber mais que um jardim de quem tu és.
(OP, p. 188)
Olhar sem ver (porque a vida é sonho e tudo é oculto); ver-se olhando (porque a consciência se quer soberana); ser visto sem ver quem nos olha (estar assujeitado ao olhar de Deus ou dos múltiplos deuses aninhados nos outros e nas coisas) — todas essas situações são terrivelmente desconfortáveis; em nenhuma delas FP consegue sentir-se “ele mesmo”. Por tudo isso, o olhar do ortônimo é o mais triste dos olhares pessoanos.
ALBERTO CAEIRO: O OLHAR NÍTIDO
Olhar e ser olhado como FP “ele mesmo” é exaustivo. Para deixar de ser ele mesmo e tentar outra relação com o mundo, FP inventou seu mestre Caeiro.
Contra a busca do mistério, em que se abisma FP “ele mesmo”, Alberto Caeiro propõe o simples olhar para as coisas, sem nenhuma interrogação metafísica. Ao “olhar de conhecer”, ele opõe o olhar de ver:
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas coisas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
(OP, p. 207)
Caeiro se apresenta como o oposto de FP “ele mesmo”: solar, enquanto aquele é lunar; “simples”, enquanto aquele é complicado; “sereno”, enquanto o outro é angustiado. Para Caeiro, o melhor modo de olhar o sol, como as outras coisas, é voltar-se para ele e abrir-se à sua luz:
O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás…
E o que vejo a cada momento
aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem…
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras…
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo…
(OP, p. 204)
Olhar de criança, olhar primeiro, olhar nítido — para consegui-lo é preciso parar de pensar:
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender…
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…
(OP, pp. 204-5)
Pessoa criou Caeiro como o mestre de que necessitava para ser menos infeliz; concebeu-o como o fundador de um movimento filosófico político e estético, o neopaganismo, cuja inspiração se encontraria na Antiguidade clássica. O objetivo desse movimento era reativo e terapêutico: “Fazer renascer o objetivismo puro dos gregos e romanos” em oposição ao subjetivismo cristão, “decadente” e “mórbido”.[9]
Ricardo Reis, que será outro dos discípulos de Caeiro, dizia que este possuía “toda a simplicidade, toda a grandeza, toda a posse das cousas que os antigos tinham”. Para o “espírito exilado na vida contemporânea”, Caeiro seria uma “consolação”; para o “mal de adulto” de que sofremos hoje, os Antigos, “simples” e “inocentes” como crianças, seriam um exemplo salutar.[10]
Não cabe discutir aqui até que ponto a concepção que Pessoa tinha dos gregos e romanos corresponde às reais posturas filosóficas da Antiguidade. Como observou Benedito Nunes, Caeiro é o “porta-voz de um realismo originário, desvinculado de compromissos filosóficos historicamente determináveis, e que ignora o problema das duas substâncias, matéria e espírito, corpo e alma”.[11]
“Grego”, Caeiro estaria mais próximo dos pré-socráticos do que dos grandes filósofos da era clássica. Seu empirismo o aproxima de um Heráclito, de quem subscreveria as afirmações só aparentemente óbvias como: “O sol é novo cada dia”, ou “A largura do sol é a de um pé humano”.
Caeiro é pagão pelo fato de sua relação direta com o mundo sensível dispensar qualquer referência a outro mundo, superior e sobrenatural, que as coisas ocultem ou ao qual estejam subordinadas:
Sempre que olho para as cousas e penso no que os homens pensam delas,
Rio como um regato que soa fresco numa pedra.
Porque o único sentido oculto das cousas
É elas não terem sentido oculto nenhum,
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as cousas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.
(OP, p. 223)
O olhar, que é a relação privilegiada na filosofia reflexiva, é educado por Caeiro para equivaler às outras experiências sensoriais, e estas ao pensamento, numa integração total e harmoniosa do sujeito com o objeto. A representação do objeto deve desaparecer, para Caeiro, em proveito de uma cognição direta e sensorial:
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
(OP, p. 212)
Enquanto FP “ele mesmo” não consegue sentir porque “o que em mim sente está pensando”, Caeiro propõe a naturalidade e a calma de “Sentir como quem olha” e “Pensar como quem anda” (OP, p. 216).
Mais do que praticar um olhar objetivo, Caeiro busca um tipo de olhar que desfaça a distinção sujeito-objeto, que integre o que apreende com o que é apreendido. Assim, o olhar de Caeiro se assemelha ao que é proposto pelas filosofias orientais. Um famoso mestre zen dizia: “Logo que começas a pensar numa coisa, ela deixa de ser. Precisas vê-la imediatamente, sem raciocinar, sem hesitar”[12]. O mesmo afirma o mestre Caeiro:
Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.
(OP, p. 231)
Para Caeiro, como para os mestres do zen, o olhar não é instrumento de análise mas abertura receptiva ao real; muito diferente do olhar ocidental, que é ataque armado de conceitos, carregado de intenções intelectivas ou de projeções psicológicas, olhar que separa, que cinde, que destrói.
O amor, para Caeiro, é uma doença dos olhos tanto quanto o pensamento. Em seu breve período de “pastor amoroso”, Caeiro tem sua visão embaçada. A figura da amada, figura cambiante e falsa como todas as que não são fruto direto dos sentidos, se sobrepõe constantemente às formas do mundo exterior. “Amar é pensar”, diz ele (OP, p. 230); e pensar, já vimos, é estar doente dos olhos. Somente após curar-se dessa doença amorosa o pastor Caeiro poderá recuperar a nitidez de seu olhar:
Quando se ergueu da encosta e da verdade falsa, viu tudo:
Os grandes vales cheios dos mesmos verdes de sempre,
As grandes montanhas longe, mais reais que qualquer sentimento,
A realidade toda, com o céu e o ar e os campos que existem, estão presentes.
(OP, p. 230)
A proposta de Caeiro é a de um olhar novo e claro, aberto à maravilha cotidiana de as coisas existirem e serem visíveis a olho nu. O olhar nítido é o próprio fundamento da proposta de Caeiro. Para ele, não é o modo de ser que precede e determina o modo de olhar, mas é o modo de olhar que define o ser:
Sou fácil de definir.
Vi como um danado.
(OP, p. 237)
Saber olhar é uma receita de felicidade. Numa conversa relatada por Álvaro de Campos, Caeiro explicava: “Toda a coisa que vemos, devemos vê-la sempre pela primeira vez, porque realmente é a primeira vez que a vemos. E então cada flor amarela é uma nova flor amarela, ainda que seja o que se chama a mesma de ontem. A gente não é já o mesmo nem a flor a mesma. O próprio amarelo não pode ser já o mesmo. É pena a gente não ter exatamente os olhos para saber isso, porque então éramos todos felizes” (OP, pp. 247-8).
Em que medida o próprio Caeiro consegue praticar o olhar que prega? A resposta é: até certo ponto. Caeiro é muitas vezes capaz de falar das coisas que vê sem sobrecarregá-las de conceitos e sentimentos, colocando-as diante de nossos olhos “pela primeira vez”: a noite que entra “como uma borboleta pela janela” (OF, p. 203); as flores “cor da sombra” quando uma nuvem passa ( OP, p. 219); as bolas de sabão “com uma precisão redondinha e aérea” (OF, p. 218). Ou de modo ainda mais direto, com simples dêixis: “Há novas flores, novas folhas verdes” (OF, p. 235); ou como tautologia assumida: “O luar através dos altos ramos [ …] / É não ser mais/ Que o luar através dos altos ramos” (OP, p. 222).
Entretanto, na medida em que a poesia de Caeiro é também uma proposta de método, uma insistente lição arrazoada de como se deve e não se deve olhar o mundo, essa poesia evidencia uma tensão interna. Mais do que um claro olhar, Caeiro é um esforço de olhar claro. Sua maestria não é apenas exemplar, como a dos mestres zen; ela se exerce de modo argumentativo, autojustificativo e constestatório. Caeiro não é apenas o oposto de FP “ele mesmo”; ele é resposta, crítica e oposição dialógica. O mestre dialoga frequentemente com um discípulo oculto, equivocado e teimoso, cujas perguntas seriam as de FP “ele mesmo”: “O mistério das coisas? Sei lá o que é o mistério” (OP, p. 207); “o que nós vemos das cousas são as cousas! Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra?” (OP, p. 217).
Por ser não apenas prática, mas teoria da simplicidade, Caeiro se revela complexo; por insistir tanto em exibir sua serenidade, torna-se suspeito de intranquilidade. Sua suposta identidade consigo mesmo e com o mundo se quebra, pelo fato de seu discurso fazer dessa identidade um objeto de análise. Como FP “ele mesmo”, Caeiro também se vê olhando, também transforma o próprio olhar em coisa pensada:
O meu olhar azul como o céu
É calmo como a água ao sol.
É assim, azul e calmo,
Porque não interroga nem se espanta…
[…]
Porque tudo é como é e assim é que é,
E eu aceito, e nem agradeço,
Para não parecer que penso nisso…
(OP, p. 217)
Este último verso é a confissão do disfarce. Caeiro não é apenas o mestre de FP “ele mesmo” e dos outros; é o mestre aplicado de si mesmo, e a repetição da lição evidencia que o aluno a recebe com dificuldade:
O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê
Nem ver quando se pensa.
Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem do desaprender
(OP, p. 217)
Aprendizagem árdua, que lhe arranca o desabafo:
Que difícil ser próprio e não ver senão o visível!
(OP, p. 218)
Mais de um poema de Caeiro começa com a fórmula: “Quem me dera… “. Quem me dera ser de
fato Caeiro, e poder olhar sem pensar — isto é o que diz, indireta e constantemente, a poesia do guardador de rebanhos. Apesar disso, seu olhar é o mais feliz dentre os olhares pessoanos. O esforço por ser Caeiro, em vários momentos, tem êxito, e permite ver o sol e os girassóis, sem névoas de mágoa e sem nuvens de perguntas.
RICARDO REIS: O OLHAR DISTANTE
Ricardo Reis, o heterônimo neoclássico, autor de rigorosas odes horacianas e teórico do neopaganismo, é um esforço redobrado: Reis procura ser o fiel discípulo do mestre Caeiro. Como este, pretende ver claramente o mundo “exterior”; mas seu olhar é frio e desencantado:
O mundo exterior claramente vejo —
Coisas, homens, sem alma.
(OP, p. 287)
Estóico, RR procura olhar o mundo desapaixonadamente, sem se envolver com ele:
Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo.
(OP, p. 259)
A formulação dessa máxima diz tudo: a virtual insatisfação com o espetáculo (contentar-se com ele), a conveniência de considerá-lo apenas como espetáculo, a posição assumida de espectador não participante.
Descrente da utilidade da ação, já que acima dos homens paira o Destino soberano, RR adota uma atitude contemplativa e busca, no desapego, a serenidade. Seu olhar é olhar à distância:
Sereno e vendo a vida distância a que está.
(OP, p. 258)
Entretanto, mais do que a serenidade dos sábios, o que ele cultiva é a indiferença soberba dos seres magoados. Seu estoicismo é uma autodefesa.
Em RR, coloca-se constantemente a questão do lugar do olhar, que define a situação do observador no universo, sua relação com as coisas vistas e com os outros seres capazes de olhar. Há, na poesia de RR, uma hierarquia dos olhares.
“Mais alto estão os deuses […] visíveis à nossa alta vista” (OP, p. 265). Abaixo do homem, estão as coisas do mundo, que ele deve olhar como os deuses, à distância: “Vê de longe a vida […] Imita o Olimpo no teu coração” (OP, p. 270). A altura é o desafio enfrentado por RR. Não podendo olhar dos céus, como os deuses, RR busca ao menos o alto das colinas, “longe de homens e de cidades”, onde ninguém, nem casa alguma, lhe vede a vista (OP, p. 262).
Olhar como os deuses é, para RR, ter um conhecimento imediato, total, sintético, oposto ao conhecimento analítico da ciência humana, “contemplação estéril” que olha “até não ver nada com seus cansados olhos” (OP, p. 292). O olhar dos deuses é o olhar clarividente, o olhar ideal:
Para os deuses as coisas são mais coisas.
Não mais longe eles veem, mas mais claro
Na certa Natureza
E a contornada vida…
Não no vago que mal veem
Orla misteriosamente os seres,
Mas nos detalhes claros
Estão seus olhos.
A Natureza é só uma superfície
Na sua superfície ela é profunda
E tudo contém muito
Se os olhos bem olharem.
Aprende, pois, tu, das cristãs angústias,
traidor à multíplice presence
Dos deuses, a não teres
Véus nos olhos nem na alma.
(OP, p. 294)
Contrariamente ao olhar cristão, cego para o visível por considerá-lo como mero sinal do invisível essencial, o olhar que RR deseja ter detém-se na carne das coisas, onde tudo está. Assim, Caeiro e Reis proclamam o oposto daquela famosa frase de Saint-. Exupéry: “O essencial é invisível aos olhos”. Os neopagãos pessoanos afirmam exatamente o contrário: “O essencial é visível aos olhos”.
Esse olhar sereno e clarividente é porém, para RR como para Caeiro, apenas um ideal. Atormentado pelo fluir do tempo, obcecado com a morte, RR não pode ter a serenidade olímpica dos deuses eternos. O epicurismo de RR é triste (quem o diz é outro heterônimo[13]). A crença no poder do Destino não o libera mas oprime, porque esse Destino se parece mais com os desígnios do Deus infalível e punitivo de Israel do que com as potências caprichosas, porém múltiplas, cambiantes, opostas entre si, e sobretudo visíveis e acessíveis a que estavam sujeitos os pagãos.
A concepção cristã do tempo irreversível tinge de cores melancólicas tudo o que RR contempla. “Está envenenada para sempre a alma humana”, reconhecerá ele num texto teórico.[14]
O olhar de RR, temendo as mutações, transforma o espetáculo do mundo em quadro imóvel, ondas do mar, folhagens, frutos, corpos nus, tudo parece, em sua poesia, fixado como num baixo-relevo. O olhar de RR é olhar petrificante de Medusa. A profusão das formas naturais adquire, sob seu olhar, uma rigidez geométrica. Os jardins são “exatos” (OP, p. 257); os raios do sol são “lisos” e “agudos” (idem), a própria chama da lâmpada, forma móvel por excelência, é para ele “firme” e “esguiada”, “como preciosa e antiga pedra” (OP, p. 263); o mar “jaz” (OP, p. 264), e seu movimento é regido pela simetria: três precisas ondas (OP, p. 265).
Dentro dessa natureza-cenário, as pessoas figuram como atores imóveis de um “quadro vivo”:
Bocas roxas de vinho,
Testas brancas sob rosas,
Nus, brancos antebraços
Deixados sobre a mesa;
Tal seja, Lídia, o quadro
Em que fiquemos mudos,
Eternamente inscritos
Na consciência dos deuses.
(OP, p. 266)
Assim, tudo se imobiliza sob o olhar de RR. Comprovando que sua concepção do tempo não é cíclica como a dos Antigos, tudo o que se repete é visto por ele não como recomeço, mas como ausência de mudança e renovada decepção. O verão traz de novo “as aparentes novas flores” (OP, p. 276, sublinhado por mim); as ondas do mar, “uma após uma”, são sempre a mesma onda (OP, p. 273); a abelha que freme sobre a flor “não mudou desde Cecrops” (OP, p. 275). Enquanto Caeiro via a “eterna novidade do mundo”, RR vê a eterna velhice do mesmo.
O mundo não muda para o olhar de RR porque ele teme qualquer mudança em si mesmo:
Tudo que me ameace de mudar-me
Para melhor que seja, odeio e fujo.
Deixem-me os deuses minha vida sempre
Sem renovar […]
(OP, p. 273)
Por temor de que as mudanças, sinal do tempo, tragam a morte, RR quer tudo parado, intemporal; mas ao ver tudo imóvel, o que seus olhos encontram é a própria rigidez da morte:
Olho os campos, Neera,
Campos, campos, e sofro
Já o frio da sombra
Em que não terei olhos.
A caveira ante-sinto
Que serei não sentindo […]
(OP, p. 278)
Obcecam-no os “olhos feitos para deixar de ver” (OP, p. 279), a cova que esconde “olhos e bocas” sem abrigar mais “olhar nem riso” (OP, p. 281). E não é nem mesmo preciso que a morte tenha chegado para matar o olhar; este vai morrendo pela vida afora, em tudo o que vê morrer. Diante de um arbusto que fenece, diz RR: “Em tudo o que olhei fiquei em parte” (OP, p. 282). Leia-se: em tudo o que olhei morri um pouco.
De todos os heterônimos de Pessoa, RR é aquele em que mais forte se manifesta a pulsão de morte. A beleza fria de seus poemas é a de monumentos funerários, sublimações do horror de ser mortal, formas de harmonia congelada ofertadas ao olhar dos vivos, para que estes se lembrem de que seus olhos se fecharão um dia.
Espanta-me que muitos leitores, isolando versos de RR — como “Para ser grande, sê inteiro” (OP, p. 289), ou “Quanto faças, supremamente faze” (OP, p. 287) —, tentem transformá-lo em mestre de vida; a lição de RR, se lição há, é de um pessimismo mortal. Não é o sentido dessas odes que nos ensina qualquer coisa de utilidade moral, mas a sua forma soberana, que contradiz, em sua altiva conquista, o niilismo filosófico ou, segundo outra ótica, a profunda neurose de sua mensagem. O olhar de RR petrifica o que vê, e nesse sentido mata; mas petrifica em formas que suplantam as formas naturais, e nesse sentido, que é o artístico, vivem e sobrevivem.
ÁLVARO DE CAMPOS: O OLHAR CALEIDOSCÓPICO
AC é o heterônimo “modernista”, engenheiro naval por profissão, cosmopolita por formação, dândi por militância estética, histérico ciclotímico por constituição psíquica. Representante do “sensacionismo” (mais um dos numerosos movimentos concebidos por Pessoa), AC quer “sentir tudo de todas as maneiras”, até transbordar, extravasar-se (OP, p. 345). O sensacionismo se define como uma arte sintética e cosmopolita, uma “nova espécie de Weltanshauung”[15] alcançada através de uma “análise acerada das sensações”.[16]
Derivado do simbolismo francês e aparentado ao futurismo italiano, o sensacionismo propõe, no entanto, um tipo de visão que lhe é próprio. Enquanto o simbolismo “desfocava o mundo”, em obediência a estados mentais de tédio e de apatia,[17] o sensacionismo busca captar também as sensações intensas, enérgicas, vibrantes da vida moderna. Do futurismo, o sensacionismo recebe a arte da decomposição das formas; mas aplica-se a decompor “não as coisas, mas as nossas sensações das coisas”.[18]
Tal é o programa estético de AC, programa que vai orientar seu modo de olhar o mundo. Vejamos até que ponto ele o cumpre.
O olhar de AC é o olhar do homem moderno, adequado às novas circunstâncias: as metrópoles, a multidão, os meios de transporte mais velozes. Como o homem da multidão, detectado por Baudelaire apenas algumas décadas antes de Pessoa, AC vive a experiência dos olhares rápidos que se cruzam e se perdem para sempre, no movimento da cidade grande: “O único olhar sem interesse recebido no acaso/ Da estrangeira rápida…” (OP, p. 361) ou “a estranheza ocasional” do olhar que lhe lança um transeunte na rua (OP, p. 377).
Também como homem do século XX, AC experimenta um olhar que os séculos anteriores desconheciam: o olhar do corpo transportado em velocidade, no automóvel. “Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra” (OP, p. 371), AC vai ganhando e perdendo rápidas visões. Proust, na mesma época, registrava também as mutações da paisagem sob o novo olhar do automobilista.
Enquanto sensacionista, AC tem um olhar caleidoscópico, sob o qual cores e formas giram, superpõem-se e transformam-se, num motu continuum. Pessoa observava que a dívida do sensacionismo para com o futurismo dizia respeito mais aos quadros do que aos textos literários. Nos momentos paroxísticos de suas Odes, AC tem um olhar cubista ou futurista, um olhar que capta o objeto de vários ângulos ao mesmo tempo. As mudanças bruscas de ponto de vista e a coexistência dessas visões constituem a Ode triunfal. Na Ode marítima, o paquete que vem chegando ao porto, “perto e visível”, já está a uma “distância excessiva” para o olhar imaginativo do observador. Os múltiplos navios que vêm e vão se entrecruzam, são “vistos de perto”, “vistos de baixo”, “vistos de dentro” (OP, pp. 317-18).
A Ode marítima inteira é uma construção do olhar. O poema se inicia com a observação do navio que chega:
Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
Olho pro lado da barra, olho pro Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
(OP, pp. 314-15)
E a ode termina, uns 800 versos depois, com a visão do navio que vai:
Depois o navio a caminho da barra, pequeno e preto,
Depois ponto vago no horizonte (Ó, minha angústia!),
Ponto cada vez mais vago no horizonte…
(OP, p. 335)
Entre as duas visões do navio real, dezenas e dezenas de visões imaginárias, desvairadas, alucinadas e perversas atravessam o olhar interior desse observador que viaja pelo olhar sem deixar fisicamente o cais. Não só os navios mas os marinheiros são olhados por esse voyeur; dos marinheiros, ele deseja o próprio olhar, deseja ver o que eles veem:
Homens que têm tombadilhos, que têm pontes donde olhar A imensidade imensa do mar imenso!
[…]
Homens que vistes a Patagônia!
Homens que passastes pela Austrália!
Que enchestes o vosso olhar de costas que nunca verei!
(OP, p. 321)
Há em AC uma gula insaciável do olhar, uma ânsia de devorar com os olhos o maior número de coisas no menor espaço de tempo. Em Passagem das horas, AC procede a uma cavalgada visual que produz efeitos visuais semelhantes aos do álcool ou da droga:
Rua sem poder encontrar uma sensação só de cada vez rua
Rua pra trás e pra diante debaixo dos meus pés
Rua em X em Y em Z por dentro dos meus braços
Rua pelo meu monóculo em círculos de cinematógrafo pequeno.
Caleidoscópio em curvas iriadas nítidas rua.
Bebedeira da rua e de sentir ver ouvir tudo ao mesmo tempo.
(OP, pp. 352-3)
O mundo, para AC, é um espetáculo alucinante. O álcool e o ópio (Opiário, OP, p. 301) são por ele expressamente referidos como transformadores da visão; mas a visão alucinada lhe é tão própria e constante que o estado de drogado parece ser o estado natural de seu olhar. O eu de AC se esvai pelo olhar como numa hemorragia, se estilhaça em explosões, o prazer de olhar é orgasmático:
Ah, olhar é em mim uma perversão sexual!
(OP, p. 309)
Entretanto, essa excitação do olhar “moderno”, procurada e encontrada por AC, é finalmente vivida por ele como frustrante. O olhar da “estrangeira rápida” deixa-lhe grandes mágoas de todas as coisas serem bocados” (OP, p. 361); ter olhado a passageira do trem suburbano deixa-lhe a pergunta: “Qual foi a vida que houve nisto? Que foi isto à vida?” (OP, p. 367); o passeio de automóvel faz com que ele sinta, na velocidade, o desaparecimento rápido das coisas: a perda da rapariga imaginada à janela de um casebre, a perda de si mesmo, proporcional ao ganho quilométrico:
Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra,
Na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim…
(OP, p. 373)
A exasperação do olho, como dos outros órgãos dos sentidos, tem o seu preço de saturação e exaustão:
O cansaço inconvertível de ver e ouvir!
[…]
Queria vomitar o que vi, só de náusea de o ter visto,
Estômago da alma alvorotado de eu ser…
(OP, p. 441)
AC é o heterônimo que menos se defende, que mais se expõe, que mais se entrega à vertigem das sensações; mas é, correlatamente, aquele que precisa de bicarbonato e de aspirina (Bicarbonato de soda, OP, p. 380; “Preciso de verdade e da aspirina”, OP, p. 384). As depressões de AC são monumentais. E, na depressão, ele se revela afinal bem pouco futurista; o lastro tão português de mágoas e saudades acaba sempre por forçá-lo a despir seu disfarce modernista.
Cai a noite, cai o observador no indefectível “si mesmo”, e todas as conquistas do olhar caleidoscópico se revelam vãs. O manto negro da noite recobre as formas e as cores com que se inebriava AC, e faz com que seu olhar se recolha. A Noite, “antiquíssima e idêntica”, apaga todas as diferenças:
E deixa só uma luz e outra luz e mais outra,
Na distância imprecisa e vagamente perturbadora,
Na distância subitamente impossível de percorrer.
[…]
E um vago soluço partindo melodiosamente
Do antiquíssimo de nós
[…]
De uma oculta vontade de soluçar,
Talvez porque a alma é grande e a vida pequena,
E todos os gestos não saem do nosso corpo
E só alcançamos onde o nosso braço chega,
E só vemos até onde chega o nosso olhar.
(OP, p. 312)
E então o futurista regressa ao “antiquíssimo”, o olhar caleidoscópico se reverte e se concentra no âmago noturno do ser, “onde têm raiz todas essas árvores de maravilha”; e a ebriedade reflui em soluço e se desfaz em lágrimas.
O sensacionismo, a intensidade, a exuberância, a extravagância são, em AC, o que são a objetividade e a serenidade em Caeiro: um exercício de alteridade. Na volta de suas “viagens”, AC é o depressivo, o que está imóvel no cais ou sentado à janela, o que sabe estarem as coisas sempre uma diante da outra, irremediavelmente cindidas no espaço e irremesivelmente perdidas no tempo. Depois de possuir tudo de todos os ângulos, o olhar de AC volta para dentro e para trás, sob as pálpebras cerradas:
Encostei-me para trás na cadeira e fechei os olhos,
E meu destino apareceu-me na alma como um precipício.
[…]
E havia luar e mar e a solidão, ó Álvaro!
(OP, p. 401)
O olhar para dentro e para trás encontra sempre outra cena: a da infância. Livros de imagens coloridas, onde o mundo era mais belo; formas e cores da festa de aniversário, que hoje não festejam mais; olhares amorosos que o faziam sentir-se realmente existente:
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui…
(OP, p. 379)
O adulto do presente é o que perdeu a identidade, o que não consegue mais enxergar-se nem por seus próprios olhos nem pelos olhos dos outros, o que se gastou e se extraviou na multiplicidade e na mobilidade das formas do mundo exterior. Os temas do espelho e da máscara, da visibilidade e da invisibilidade do rosto são frequentes em AC:
Quando quis tirar a máscara
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi no espelho
Já tinha envelhecido.
(OP, p. 365)
O olhar de AC nunca efetua a relação harmoniosa do sujeito com o objeto. Pelo olhar excessivamente exteriorizado, o sujeito futurista se fratura e se dispersa; pelo olhar interiorizado, o sujeito saudoso só se vê como perdido. No simples olhar do presente, o que se patenteia é a separação, a falta de elo entre o olhar e o ver, o ver e o ser visto, o ver a parte e compreender o todo. Esse é o grande tema do mais famoso dos poemas de AC, Tabacaria:
Janelas do meu quarto […]
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por debaixo das pedras e dos seres.
[…]
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.
[…]
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície […]
(OP, pp. 362-5)
É toda a desgraça do olhar metafísico ocidental que se expõe em Tabacaria: a cisão sujeito e objeto, a difícil comunicação entre sujeitos que tendem a objetivar-se uns aos outros. Para que o universo se reconstrua, no final do poema, é necessário que um outro olhar humano retribua o olhar do Poeta: o olhar do “Esteves sem metafísica”.
Essa reconstrução do universo é melancólica (“sem ideal nem esperança”); mesmo assim é uma epifania, se comparada ao efeito de outro olhar que AC lança sobre a rua, em outro poema, o que o “esfria de pavor”:
Não, não, isso não!
Tudo menos saber o que é o Mistério!
Superfície do Universo, ó Pálpebras Descidas,
Não vos ergais nunca!
O olhar da Verdade Final não deve poder suportar-se!
(OP, p. 368)
Haveria todo um trabalho minucioso de análise a ser feito sobre a articulação das oposições sujeito-objeto, interior-exterior, olhos fechados-olhos abertos (do sujeito e do objeto), na poesia de AC; mas não cabe desenvolver aqui essa análise.
CONCLUSÃO
Olhando de fora as quatro personae pessoanas, observo o seguinte: duas dessas pessoas usam óculos, duas não. FP “ele mesmo”, o do olhar velado, usava óculos de míope; seus óculos eram também um esconderijo, uma proteção contra o olhar alheio. Caeiro, o do olhar nítido, não precisava evidentemente de óculos; não há qualquer alusão a isso nos textos dele ou sobre ele; Pessoa descreve, dele, sempre e apenas, “os olhos azuis de criança que não tem medo”, “o olhar azul que não sabia deixar de fitar”.[19] RR também, ao que consta, não usava óculos; seu olhar era distante mas agudo. AC usava monóculo, o que lhe garantia ao mesmo tempo a aparência de dândi e um olhar, que ele pretendia ter, sem profundidade.
Segundo seu biógrafo, João Gaspar Simões, as últimas palavras do homem Pessoa foram: “Dá-me os óculos”.[20] Já tive ocasião de confrontar esse modesto último pedido às famosas palavras finais de Goethe: Mais luz!”; nesse confronto, o pedido de Pessoa toma ares de paródia involuntária. No século XX, o poeta já não ocupa aquele lugar reconhecido de vidente que lhe coube no Romantismo; perdeu a auréola (Baudelaire), a supervisão, e só tem acesso à visão parcial dos fenômenos.[21]
Exemplo do poeta moderno ocidental, Pessoa conseguiu, com sua multiplicação de olhares, sintetizar os problemas filosóficos de nossa cultura greco-judaica. Num texto teórico sobre o neopaganismo, Pessoa opõe a claridade grega, o meio-dia do paganismo onde “tudo está detalhado em plena luz”, à penumbra de ocaso que nos velou os olhos, por efeito da “longa doença chamada cristianismo”. Diz ele: “Entre a sensação e o objeto dela — fosse esse objeto uma cousa exterior ou um sentimento — intercalara-se todo um mundo de noções espirituais que desvirtuara a visão direta e lúcida das cousas”.[22]
As obras de Caeiro e Reis são esforços por recuperar esse claro olhar dos gregos; FP “ele mesmo” e AC são vítimas confessas da cisão interior-exterior advinda com o cristianismo. Mas é possível articulá-los de outro modo, se considerarmos suas intenções: opondo-se a FP “ele mesmo”, os três heterônimos buscam um olhar mais nítido. Caeiro e Reis opõem ao olhar “cristão” de FP o olhar claro dos pagãos; AC opõe às brumas do olhar simbolista, que “desfoca o mundo”, o olhar acelerado do futurismo. Muito olhar para um único Pessoa!
A poesia metafísica de Pessoa se presta à reflexão sobre as posturas filosóficas a que correspondem os múltiplos olhares que nela se abrigam. Entretanto, é preciso lembrar que Pessoa não é um filósofo, mas um poeta. Os temas filosóficos aparecem em seu texto configurados num luxo de imagens, numa festa visionária poucas vezes vista na poesia ocidental.
O olhar dos múltiplos poetas-Pessoa é, como o de todos os poetas, um olhar metafórico, isto é, que transporta, que põe no que está o que não está; que vê numa “casa branca” uma “nau preta” (OP, p. 354); que, ao olhar a pacata rua lisboeta, avista “a terra inteira,/ Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido” (OP, p. 364).
Experiência feliz ou infeliz, é o olhar que produz a poesia pessoana. É a força do olhar de todos os egos em que se encarnou Pessoa que confere a sua(s) obras(s) a formidável possibilidade de gerar aquelas imagens que se inscrevem em nosso olho interior e que, num segundo tempo, aguçam o olhar míope que nós, leitores, lançamos cotidianamente ao mundo. Este é o olhar da poesia, da arte. “A arte torna visível”, dizia Klee.
Ao substituir um real visto por uma imagem dita, o poeta afina nossa percepção do real, revela o que não víamos antes, eleva diante de nossos olhos mentais um outro mundo, que concorre com o visível e o suplanta, dando uma forma e uma significação àquilo que, no mero estar-ali, é informe e insignificante.
Pessoa, como todos os escritores, escreve não para dizer o que vê no mundo, mas porque o que vê não lhe basta, e ele deseja substituí-lo por formas mais satisfatórias. O olhar do poeta deforma o mundo para o desvendar, perde-o para recuperá-lo mais nítido. A perda do objeto pelo olhar, e pela palavra em que se tenta fixá-lo, é cisão irreparável no pensamento e no discurso, mas é apenas o preço provisório da reconquista poética. Fixado na fórmula poética, o objeto atinge sua máxima visibilidade: “Os campos são mais verdes no dizer-se do que no seu verdor”, afirma o semi-heterônimo Bernardo Soares, autor do Livro do desassossego.[23]
O trabalho do poeta não consiste em reproduzir o que seu olhar captou no real, mas em produzir uma visão mais intensa. Nesse sentido, a poesia de Pessoa, como toda grande poesia, é um fantástico aparelho óptico.
[1] V. Fernando Pessoa, Obra poética, org., introd. e notas de Maria Aliete Galhoz, 2 ed., Rio de Janeiro, Aguilar, 1965, P. 655. Esta obra será doravante designada pela sigla OP.
[2] O dorso do tigre, São Paulo, Perspectiva, 1976, pp. 217-8.
[3] Jacques Lacan, Le Séminaire livre XX, Encore, Paris, Seuil, 1975, p. 79.
[4] Paul Valéry, “La jeune Parque”, Oeuvres, tome 1, Paris, Gallimard, 1957, Bibliothèque de la Pleiade, pp. 96-110.
[5] V. Merleau-Ponty, Le visible et l’invirible, Paris, Gailimard, 1964, p. 31.
[6] Da realidade sem mistérios ao mistério do mundo — Espinosa, Voltaire, Merleau-Ponty, São Paulo, Brasiliense, 1981, p. 273.
[7] Primeiro Fausto, org. e introd. de Duílio Colombini, São Paulo, Epopeia, 1986, p. 136.
[8] Op. cit., p. 79
[9] Fernando Pessoa, Páginas íntimas e de auto-interpretação, Lisboa, Ãtica, s.d., P. 233. Esta obra será doravante designada pela sigla PIAI.
[10] PIAI, pp. 320-1
[11] Op. cit., p. 220.
[12] D. T. Suzuki, Erich Fromm, Richard de Martino, Zen budismo e psicanálise, São Paulo, Cultrix, 1976, p. 27.
[13] PIAI, p. 386.
[14] PIAI, p. 322.
[15] PIAI, p. 134.
[16] PIAI, pp. 320-1
[17] Idem, ibidem.
[18] PIAI, p. 137.
[19] V. OP, pp. 246-7.
[20] Vida e obra de Fernando Pessoa — história de uma geração, 2 ed., Lisboa, Livraria Bertrand, s.d., p. 665.
[21] V. Leyla Perrone-Moisés, Fernando Pessoa — aquém do eu, além do outro, São Paulo, Martins Fontes, 1982, p. 35. (cap. II: “O gênio desqualificado”).
[22] PIAI, p. 170.
[23] São Paulo, Brasiliense, 1986, p. 398.