Poesia: a paixão da linguagem
por Paulo Leminsky
Resumo
Hoje se fala muito em paixão, mas é porque ela está faltando. Vivemos uma época de sensação, não de paixão, incompatível com o tempo urbano-industrial. Paixão virou coisa em extinção, como a jaguatirica e o jacaré. No entanto é ela que abastece o pensamento selvagem, a experiência criativa da poesia que é paixão pela linguagem, pela materialidade da palavra. Lembrar que há dois sentidos da palavra paixão: um passivo (a Paixão de Cristo), outro ativo (a paixão revolucionária). Mas o verbo grego “Paskho”, do qual o termo se originou, designava antes um experimentar junto que não é necessariamente ruim ou negativo (como diz Eurípedes neste verso: “Bem sofreram as naves”). É desse modo que o poeta é um sofredor: sofredor da língua, em primeiro lugar, com suas formas sociais e históricas dadas, impostas, e na qual ele deve fazer cintilar nem que seja um centímetro de liberdade. Para isso ele precisa devolver os golpes que recebe, precisa fazer poesia de invenção ou de vanguarda, ser capaz, por exemplo, de quebrar a palavra “fragmento” e de intitular um livro Frag. As línguas amam seus poetas mais atrevidos, mais criativos, porque neles realizam seus possíveis. É verdade que poesia não vende (mas é bom que não venda, que resista a se tornar mercadoria). Por quê? Porque poesia é amor entre sons e sentimentos que antecede a nossa ideia mesma, ocidental, de amor, surgida como esporte aristocrático com os trovadores do século XII. E se amor sempre foi dado de graça, pode alguém comprar amor?
Trago pra vocês uma porção de raciocínios que fiz lá no meu silêncio, na Cruz do Pilarzinho, em Curitiba, um silêncio tão denso que dá pra cortar com a faca. De noite, quando um cachorro late, os outros cachorros fazem psiu. A Funarte e o Adauto me convidaram para dizer alguma coisa dentro desse Ciclo, e eu fiquei pensando, por que essa mania pela palavra paixão hoje? Os livros têm paixão no nome, os filmes têm paixão no nome: o Domingos Pelegrini editou um livro chamado Paixões; a Alice Ruiz, um livro de poemas chamado Paixão chama paixão; o Affonso Romano de Sant’Anna, um livro chamado Paixão e política; um filme do Bruno Barreto se chama Além da paixão. Por que a palavra paixão está na moda? Acho que não é a paixão que está na moda, é a palavra paixão que está na moda. Como detetive, cheguei à conclusão, às avessas, de que não é que a nossa época seja muito apaixonada. Se a gente está valorizando tanto isso aí, é porque está faltando. Hoje, você fala em boi de um jeito que não se falava há três meses atrás, porque o boi está faltando, não porque esteja sobrando, de um modo geral, dentro do quadro brasileiro. Se vocês olharem, bem assim numa leitura contextual da civilização, o momento em que a gente está vivendo, a gente está vivendo uma época da sensação, não da paixão. A paixão me parece incompatível com o tempo urbano-industrial. A nível de performance profissional, imaginem, por exemplo, um programador de computadores apaixonado. Isso só pode conduzir a erros incríveis. Já se o sujeito trabalhar na construção civil e estiver apaixonado, arrisca-se a cair do oitavo andar. É bem mais grave do que um erro contábil. Enfim, erros contábeis e cair do oitavo andar são coisas que podem acontecer a um trabalhador apaixonado dentro da sociedade urbano-industrial. Acho que isso aqui que a Funarte está fazendo é de alta importância, exatamente porque chama a atenção sobre uma espécie em desaparição, que é a paixão, que é que nem tucano, peixe-boi, aquele peixe-boi rosado que o Cousteau andou entrevistando lá na Amazônia. É o boto. O boto rosado, o mico-rei. A paixão é que nem o mico-rei, o tucano, o tamanduá-bandeira, é a jaguatirica, o jacaré brasileiro, essas coisas estão todas em extinção. É por isso que a gente hoje as está recuperando sob forma sígnica de seminários, e ela comparece com tamanha frequência no nome de obras como quem diz assim: por favor, paixão, venha. Não sou professor, não sou nenhum teórico, sou um artista, um poeta que procurava refletir sobre o que fez, mas nunca deixei que esse meu tesão por refletir sobre o que faço prevalecesse. Não sou teórico no sentido como a universidade entende. Sou uma espécie de pensador selvagem, assim no sentido que se fala em capitalismo selvagem. Vou lá, ataco um lado, ataco o outro lado, meu pensamento é um pensamento assistemático, como, aliás, eu acho, é o pensamento criador. O pensamento que alimenta e abastece uma experiência criativa tem que ser pensamento selvagem, não pode ser canalizado por programas, por roteiros, tem que ser mais ou menos nos caminhos da paixão. Daí essa coisa assim maluca de fazer poesia que é uma coisa que não dá nada pra ninguém. Se você pesar e medir à luz da lógica desse mundo, como dizia Jesus, é loucura. Eu vou dedicar agora quarenta anos da minha vida pra desenvolver uma intimidade com a palavra que, realmente, não vai me dar nada materialmente. A poesia, ela traz consigo esse caráter assim meio de, como é que eu vou dizer? Uma coisa meio masoquista. Você se dedicar dez anos a vender banana, montar uma banca para vender banana ou repolho, você vai ganhar muito mais do que fazendo poesia. A poesia não te dá nada em troca. Chego, às vezes, a suspeitar que os poetas, os verdadeiros poetas, são uma espécie de erro na programação genética. Aquele produto que saiu com falha, assim, entre dez mil sapatos um sapato saiu meio torto. É aquele sapato que tem consciência da linguagem, porque só o torto é que sabe o que é o direito. Então, o poeta seria, mais ou menos, um ser dotado de erro, e daí essa tradição de marginalidade, essa tradição, moderna, romântica, do século XIX pra cá, do poeta como marginal, do poeta como bandido, do poeta como banido, perseguido, enfim, em condições, digamos, socialmente adversas, negativas. Pensando nas relações entre poesia e linguagem, entre paixão, poesia e linguagem, formulei a coisa de que a poesia seria uma manifestação, sobretudo, de paixão pela linguagem, por causa do próprio caráter substantivo da poesia. Um poema não é como um conto, não é como um romance. Um conto, um romance são transparentes, deixam o olhar passar até o sentido. Na poesia, não. O olhar não passa, o olhar para nas palavras. Um romancista, um romancista típico, um ficcionista, pra ele, a palavra não é o valor fundamental, sua música, sua forma, suas relações com outras palavras não é essencial. O essencial é a escrita que ele está contando. Grandes ficcionistas não se pode dizer que foram grandes escritores, o caso, por exemplo, de Balzac. Balzac era um grande romancista, mas você não pode dizer que era um grande escritor, não um grande escritor no sentido de, por exemplo, um Flaubert, um grande escritor, como Joyce é um grande escritor ou que Beckett é um grande escritor, porque não está preocupado com os valores da palavra, ele está preocupado apenas em criar uma janela, uma transparência através da qual você visse o enredo correndo. Então, o poeta, a poesia, se é que ela tem alguma razão de ser, e eu acho que tem, estaria nisso. A atividade poética é uma coisa voltada para a palavra enquanto materialidade, a palavra enquanto uma coisa do mundo. O poeta é, na sua óbvia paixão pela linguagem, porque um poema propriamente não tem um significado, ele é o seu próprio significado. Por isso, os poetas são intraduzíveis. O poeta teria, em relação à linguagem, uma transa apaixonada e essa relação podia se manifestar de duas formas, uma forma masoquista e uma forma sádica. Essa paixão assumiria, em primeiro momento, uma forma masoquista. O poeta seria uma vítima da linguagem, a linguagem exerce uma violência sobre ele e ele sofre essa violência. Num outro momento, no momento sádico do processo, o poeta, o artista, o escritor, o criador, passaria a ser algoz, a ser carrasco da linguagem, e daí a inverter o jogo. Estava fazendo uma perquirição etimológica da palavra paixão e cheguei a algumas conclusões que gostaria de socializar com vocês. Mais ou menos, o seguinte: a palavra paixão tinha, a princípio, um sentido passivo, depois, adquiriu um sentido ativo. A palavra paixão você diz assim: a Paixão de Cristo, quer dizer, aquilo que Cristo sofreu, aquilo que ele padeceu. Hoje, você diz a paixão revolucionária de Trotski. A paixão, aqui, no caso, não é uma coisa passiva, é uma coisa ativa, é uma coisa que move. Então essa ambiguidade entre uma coisa que, de repente, foi passiva e, de repente, se tornou ativa. “Ele fez isso por paixão a ela”, quer dizer, paixão aqui, no caso, significa uma coisa ativa, é o que leva a fazer, não é um sofrer. E daí vi que a palavra paixão em português vem do latim, mas existe uma palavra indo-europeia, nas línguas indo-europeias, que significaria uma espécie de você ser objeto de uma ação, e esse verbo, essa palavra, não teria passado propriamente pro português, não do jeito como eu estou pensando. Em grego, por exemplo, existe um verbo que é o verbo “PASKHO”, na primeira pessoa do presente do indicativo, “ego paskho”, quer dizer, “sofro uma determinada ação”, o infinitivo seria “PASKHEIN”. Desse verbo vem a palavra “patético”. A palavra “patético” é do grego, não do latim, mas ela é, num estágio histórico anterior, aparentada. A gente diz que isso é “patético”, ele tentou ser patético. Patético significa tentar sensibilizar alguém. Em grego, esse é o sentido do adjetivo “patético”. Essa mesma palavra está em simpatia, antipatia e empatia. Sofrer junto, experimentar junto, simpatia, sentir junto; antipatia, sentir contra. Esse verbo, em latim, é o verbo patior passivus sum, pati, donde vem propriamente a palavra “paixão”. Esse verbo, que deve ter existido em indo-europeu antigo, não passou pro português enquanto tal. Comentando com um amigo agora, nós não temos um verbo que designe o ato de você ser passivo de uma ação. Em português, temos a palavra sofrer, mas a palavra sofrer já vem carregada de uma conotação de dor, de uma conotação de dor que, no original, esse radical não tinha. Cheguei a pensar assim, é o lado yin do verbo fazer. Fazer é yang. Então existiria, um dia, existiu em indo-europeu antigo, um verbo que seria o yin do verbo fazer, mas que não trazia consigo uma conotação de dor, nem negativa, nem, como é que eu vou dizer?, depreciativa. Era apenas você ser objeto de uma coisa. Meu dicionário de grego traz numa série de citações de clássicos, um verso do tragediógrafo Eurípides que fala: “eu pathei naos”. “Eu” aí é o “eu” de bom, “eu” de euforia, eufemismo, aquele prefixo grego que significa “bom”. “Pathei” é verbo e “naos” são as naves. Tinha havido uma tempestade, e as naves tinham sofrido. Então, ele diz assim: Bem sofreram as naves. Não, não é sofreram, porque sofreram já quer dizer que alguma coisa de ruim aconteceu e aí não, aí, no caso, não. É um verbo que significa o lado yin do verbo fazer. Eu faço alguma coisa, e aquilo sobre o qual eu faço isso, “pathei” isso. Mas não é “sofre”. Em português, a palavra “sofrer” já traz a conotação negativa. Então, como a gente está em sofrimento, sofre pra cá, sofre pra lá, me ocorreu que o poeta tem um momento no qual ele é um sofredor da língua, uma vítima da língua. Isso começa na própria circunstância, por exemplo, da história de cada um. Quando você nasce, já nasce como falante de uma língua. Quando eu nasci, eu não sabia, quando nós nascemos, a gente não sabia, e daí, lá pelos quatro, cinco anos de idade, seis, sete, a gente vem a saber que fala uma língua chamada portuguesa. Ninguém nos perguntou antes que língua a gente gostaria de falar. Quando você vê, você é passivo em relação àquela língua sobre a qual, como todas as formas sociais, você não tem poder. Você já chegou numa língua na qual você diz, por exemplo, no indicativo: eu estou, tu estás, ele está. Você não pode dizer: eu estejeto, tu estejermes, eles estejarando. Isso você não pode fazer. Não há Guimarães Rosa que tenha poderes, o próprio Rosa que leva isso a extremo limite, e os concretos, aquelas tentativas de romper com isso. Mas há um limite além do qual você não pode ir. As formas são sociais, dizia Lukács. E isso realmente é a grande intuição de Lukács. O social na arte é a forma, o conteúdo é por conta de cada artista. Cada um, você põe o conteúdo que você quiser, agora, a forma não depende de você. Você entra dentro do jogo dela ou você não vai ser nem reconhecido. Uma pessoa que diga assim: eu sou um grande poeta, tive uma ideia incrível, o meu negócio é pegar catálogo telefônico, corto com tesoura cada página, grudo e penduro tudo na parede, etecétera e tal, são poemas incríveis, eu sou um poeta revolucionário. Então, você vai dizer pra ele: desculpe, mas você não é poeta. Mas como não é poeta? Não, não é, porque poeta não corta página do catálogo telefônico, depois cola no papel, pendura na parede e se chama de poeta. Existe uma, como é que eu vou dizer? Uma convenção social em relação às formas da arte. Todo artista é limitado já a priori por uma língua e por um estoque de formas. Qualquer coisa que você faça fora ou contra isso é por tua conta e risco. Então, quando o poeta chega, quando o artista chega, pra mim poesia é a arte feita com palavras, então, quando você chega já existe uma série de coisas que te torturam. Você não pode ir além da língua portuguesa, você não pode ir além dos limites gramaticais da tua língua, estilísticos, semânticos, sintáticos, morfológicos. Há uma limitação social toda. Então, existe toda uma certa ilusão de liberdade, de expressão, mas é preciso ver no interior de quanta escravidão se dá essa liberdade. De repente, um pequeno centímetro de liberdade vai adquirir uma cintilância extraordinária, exatamente porque uma língua, uma arte é um código de escravidões, alguma coisa de que a gente é vítima. Pegue o caso, por exemplo (vou fazer um ligeiro desvio), o caso do destino histórico de dada língua. Vocês já imaginaram a desgraça que é escrever em português? Sometimes, I wonder. Quem é que sabe português nesse planeta, fora Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Macau? Você já nasce, inclusive, com um destino histórico. Ninguém pode criar uma obra tão forte que, realmente, coloque o seu idioma, assim, na berlinda das nações, isso aí não dá. Então, de repente, alguém diz: o maior poema do século XX é um poema épico incrível escrito por um basco. Em que língua? Escrito em basco! Ninguém vai tomar conhecimento do poema, esse cara dançou. Ele deveria ter escrito esse poema em inglês, em russo, em chinês, uma coisa que tivesse uma melhor cotação no mercado internacional. Então, você é vítima sobretudo do pedigree histórico, e isso não depende de você. Quando Shakespeare, no século XVII, em inglês, escreveu as suas peças, a Inglaterra estava num processo de ascensão acelerado de grande potência mundial, e isso não é depor contra Shakespeare. O gênio dele esteve à altura desse momento, mas nós não podemos ignorar o fato de que a projeção de Shakespeare, entre outras coisas, se deve à projeção da Inglaterra, da cultura inglesa. Você não pode ser muito maior que sua tribo. O Juruna não pode ser maior que a tribo xavante. Não adianta bater com a cabeça na parede, chorar, etecétera, não adianta despacho, nada, nada, nada vai resolver. Isso é um trabalho assim que é a história. O artista sozinho, os artistas não podem resolver, a gente já nasce numa língua periférica, escrever uma coisa em português e ficar calado mundialmente é mais ou menos a mesma coisa. Nos Estados Unidos, o português é estudado assim como o subúrbio do Departamento de Línguas Hispânicas, que já não é visto com bons olhos. Os livros dos escritores brasileiros, lá, ficam assim, nunca estive lá, mas me contaram que é assim, é o fundinho dos espanhóis. Tem Vargas Llosa, todo mundo, tem Guimarães Rosa e Drummond juntos. Como é que você pode alterar isso? É um quadro que você já encontra, o poeta sofre. Nós, poetas, escrevemos numa língua que é mais que basco, mas é menos que espanhol, convenhamos, em nível planetário é. É mais que basco e mais que catalão, mas é menos que espanhol. Em alemão, isso ia ter uma audiência incrível. Então a gente sofre, há um momento em que você sofre, e sofre essa pressão, esse quadro todo te martiriza. Eu acho, é possível uma atitude que devolva isso, uma atitude que eu chamei de sádica quando o sujeito começa a devolver os golpes. E essa atitude estaria, mais ou menos, ligada à ideia de experimental, de invenção ou de vanguarda, como se queira que seriam aqueles modos de ser artísticos já codificados no século XX, o modo de ser específico do século XX. A vanguarda é o classificado do século XX. Esses modos seriam modos subversores, modos nos quais o erro, por exemplo, passa a ser incluído e englobado como fator de criação. O erro é recuperado, em nível de língua, em nível de linguagem também. Então, você pega a palavra depois das vanguardas dos anos 50, 60, que houve no Brasil, poesia concreta, práxis, poema processo, aquelas vanguardas que mexeram com o tecido das coisas. Depois disso, tudo se tornou lícito. Quer dizer, você pode partir uma palavra pelo meio. Pega a palavra fragmento, joga fora a parte mento e dá nome prum livro de Frag. Esse livro seria impensável há quarenta anos, um livro chamado Frag, não havia lugar para ele. Agora há lugar, você partiu a palavra, tirou um pedaço dele e transformou um fragmento num frag. E assim por diante com tudo aquilo que foi feito, não só pela poesia dita de vanguarda, concreta, subversão no espaço, a subversão na colocação na página, mas a subversão interna também. De repente, se tornam lícitas certas coisas como, por exemplo, a prosa de Guimarães Rosa. Já nem falo do Guimarães Rosa do Grande Sertão, falo do Guimarães Rosa, por exemplo, de Primeiras estórias, onde ele é até mais subversivo em algumas passagens, no qual realmente se entrega a toda sorte de violações em relação aos sinais de trânsito da linguagem, não só da linguagem literária mas até da linguagem enquanto veículo de comunicação entre os falantes da língua portuguesa. Nesses momentos, o artista, o criador, passa a devolver aqueles golpes que tinha sofrido no início, no qual era uma vítima da língua. Agora, passa a ser algoz, passa a torturá-la, a quebrá-la, passa prum outro momento de sua paixão. Gostaria de colocar, pra coroar isso, uma coisa utópica, que seria o momento, digamos assim, de amor entre o poeta e a língua. As línguas amam seus poetas porque, nos poetas, se realizam os seus possíveis. Um Fernando Pessoa, um Maiakóvski, um Pound, um Cummings, um Cabral, um Khliebnikov, um Augusto de Campos são poetas que conduzem sua língua aos extremos limites de expressão dela, quase assim na fronteira, no abismo do incomunicável. Então, as línguas amam seus poetas como se fossem seus filhos mais atrevidos, e os poetas devolvem, evidentemente, aquele amor de filho pela mãe, dá vontade de estrangular, não é mesmo? E então eu imagino se seria possível, fico me perguntando se seria possível um momento, digamos assim, de amor, entre o poeta e a língua, a língua e o poeta. Aí viria a questão de perguntar se pode existir um amor sem sadismo nem masoquismo. Eu não sei. Não sei porque, inclusive, o amor é um sentimento muito recente. Não sei se vocês já se deram conta, mas o amor é uma coisa que nasceu, era um esporte muito praticado pela aristocracia provençal no século XII, o amor tal qual nós entendemos, o amor idílico, esse amor, por exemplo, que sustenta as novelas da Janete Clair, no horário das oito, o amor da fotonovela, esse amor presente na nossa vida hoje de um modo quase obsessivo, a tal ponto que chega assim: bem, você será feliz no trabalho e no amor. O amor e tal, isso pareceria uma coisa assim absolutamente anômala pra um romano, pra um grego ou pra um xeque árabe. A gente tende de repente a achar que as nossas coisas são universais. O amor não é uma coisa que nasceu com a espécie humana, quando o homem deixou de ser macaco e desceu da árvore. O amor nasceu, tal qual nós o concebemos hoje, com seus rituais, o amor idílico, o amor entre um homem e uma mulher, um homem e um homem, uma mulher e uma mulher, no sentido idílico, romântico, erótico e sexual. Foi uma coisa que foi cultivada pelos poetas provençais, na aristocracia da nobreza provençal no Sul da França no século XII, o amor cortês. Daí, sai toda a poesia portuguesa com as cantigas de amigo, D. Dinis, ele era o conteúdo, a substância da poesia dita provençal na origem de toda a poesia europeia e, portanto, da nossa moderna, dos séculos XI, XII, XIII pra cá. Era um esporte, amar era um esporte aristocrático que depois se popularizou. É o caso por exemplo do boxe. No começo, era um esporte só da nobreza inglesa, hoje é coisa de porto-riquenhos, negros de Nova York, houve um processo de ascensão e de democratização e de generalização daquilo. Não que o homem e a mulher, a mulher e o homem nunca tenham sentido aquela coisa um pelo outro, mas na Antiguidade isso era considerado uma espécie de maldição. A gente encontra nos poetas gregos, nos poetas latinos, Catulo, Propércio, Tíbulo, que a paixão, aquele aluguelzão mesmo, era como uma espécie de feitiço. O inglês tem expressões de “bewitched”, “encantado”, “eu estou encantado com essa garota”, quer dizer, há toda uma ligação entre magia, bruxaria e esse aluguelzão que a gente estava falando. Que leva as pessoas a ficarem juntas? A poesia seria cúmplice, desde o começo, desse sentimento que se chama amor. Eu acho que é uma coisa perfeitamente lógica, natural, porque a poesia, se vocês olharem bem, ela é o amor entre os sons e os sentimentos. Ela já é na sua substância, intrinsecamente, ela já é amor, já é aproximação, no sentido que é amor entre os sons e os sentidos, num sentido que a prosa não é. É por isso que a poesia não morre. Por que essa coisa tão inútil que não consegue sequer se transformar decentemente em mercadoria num mundo mercatório, esse mundo em que vivemos? Qualquer editor principiante sabe: poesia não vende. Existe este hiato, realmente poesia não vende, e é bom que não venda! Sabe aqueles que reclamam dizendo, é um absurdo, um país como o nosso, não sei o quê, tchê, tchê, pá, pá, e poesia não vende. Vamos nos rejubilar. Poesia não vende. Poesia é um ato de amor entre o poeta e a linguagem. E esse é um território como se fosse assim uma reserva ecológica do mercado em que vivemos que resiste ao fato de se transformar em mercadoria. Não é uma infelicidade e nenhuma inferioridade da poesia escrita, falando da poesia escrita, da poesia, escrita, da poesia livro, a dificuldade dela em se transformar em mercadoria é uma grandeza. Quem não entender isso não entendeu a verdadeira natureza da poesia, ela é feita de uma substância que é, basicamente, rebelde à transformação em mercadoria. A gente pode criar um mundo assim, o império total da mercadoria, tudo pode ser vendido, coisas, sensações, as coisas mais incríveis, os momentos mais emocionantes. Uma coisa, porém, não pode ser transformada em mercadoria, que é o amor. Amor é dado de graça, alguém pode comprar amor? Pode-se comprar sexo de outra pessoa, mas o amor a gente sabe que é o último reduto que resiste à transformação em mercadoria. Então, eu acho que realmente a paixão do poeta pela linguagem, da linguagem pelo poeta, é coisa que tem amplas implicações sociológicas, históricas, transcendentais… Que vocês acham? Passei no teste?
DEBATE
Paulo Leminski: Me pintou um hoje de manhã no hotel: hotel é aquela coisa terrível. Você fica dentro daquele caixotinho, todos são iguais, como as mulheres, né?
Público: Ahn?
Paulo Leminski: Como os homens também. Vocês não dizem: ah, os homens são todos iguais? Deixa ver se consigo me lembrar. Dizia uma coisa descabeladamente romântica, assim: Meu coração lá de longe/ faz sinal que vai voltar/ mas meu peito escreve em bronze/ não há vaga nem lugar/ para que me serve um negócio/ que não para de bater/ até parece um relógio/ que acabou de enlouquecer/ pra que serve quem chora/ quando estou tão bem assim/ o vazio vai lá fora/ cai macio dentro de mim?
Ouvinte: Queria que você falasse um pouco aí, de novo, o que você falou do amor…
Paulo Leminski: Pega na mão, meu Deus, manda bilhetinho, guarda a flor dentro do livro, essa coisa, esse ritual todo…
Ouvinte: Então, é uma reserva ecológica, tá? Então, te pergunto, há duas concepções, dois lados do amor. Tem o amor como auréola proibida e há uma concepção que eu não sei donde vem, mas acredito que vem mais ou menos, esteja vindo aí da Revolução Francesa, Revolução Russa e batendo com a revolução imperialista.
Paulo Leminski: Meu Deus do Céu!
Ouvinte: Que é o amor total. Vamos dizer assim, um amor que uma crítica mais atual seria assim um amor com um egoísmo a dois. Amor, hoje em dia, um egoísmo a dois, quer dizer, de uma certa maneira, um amor capitalista, uma coisa fechada, surrealista, dadaísta, comunista, o diabo a quatro. Agora, vou colocar o seguinte: esse amor, ele foi recuperado pela burguesia. Teria sido, vamos dizer assim, transformado não numa mercadoria mas numa relação, numa troca, num negócio tipo imobiliário, numa coisa que seria mais ou menos uma espécie de egoísmo a dois, transformado numa solidão a dois. Os poetas e revolucionários do início do século pra cá pregam dizendo que a contradição básica é que existe um outro amor, o amor total, ou seja, um amor que seria pela humanidade, um amor, que você falou, por exemplo, o amor da relação do poeta com a linguagem, uma coisa que é maior, mais generosa, como é que você veria isso?
Paulo Leminski: Vejo isso dentro do horizonte das utopias. Esse amor de que estou falando, ele é tão genérico, tão vasto que a arte é apenas um testemunho dele. Acredito que esse amor total pode existir mas, de repente, um homem e uma mulher, um homem e um homem, uma mulher e uma mulher, se encontram e ali nasce uma eletricidade única. Isso se coloca no plano do mistério. Existe realmente alguma coisa, um clique tal só quem já sentiu sabe. O amor é uma anomalia engraçada. Estava conversando com um amigo meu, que é um brilhante médico e psiquiatra, e interessado por esses assuntos, eu dizendo pra ele o seguinte: não existe nenhuma disciplina científica que tenha o amor como objeto. O amor não é estudado nem pela psiquiatria, nem pela psicanálise, nem pela psicologia social. O amor é uma coisa que você vai ter que procurar nos artistas, na televisão, no cinema, e, principalmente, na poesia. Se a espécie humana desaparecesse, e seres intergalácticos descobrissem a Terra, um dia, e dissessem: esquisito, viveram seres aqui, estranhos e tal, e eles pareciam ser afetados por uma coisa gozada chamada amor. E se esses seres extraterrenos quisessem reconstituir um quadro do que seja o amor eles teriam que recorrer aos poetas. Saber como o amor nasce, a primeira paixão, o amor à primeira vista, a continuação da paixão, o auge da paixão, a loucura da paixão, o fim da paixão, o fim do amor, isso eles teriam que ir buscar nos poetas, porque não existe nenhuma ciência, com toda a sua ambição totalitária, aquela ciência ocidental que nasceu do Órganon de Aristóteles, ela englobou todos os territórios, todo o real, todo o real, ele é um objeto do saber que cabe dentro de uma coisa que a gente chama ciência, né? O quadro das ciências. Ora, o amor não cabe dentro desse quadro. Não conheço nenhuma ciência que tenha o amor como objeto. Essa coisa que você falou, eu acho importantíssima, e isso me preocupa e me interessa como hippie e como socialista. Interessa essa coisa dum amor total, dum amor coletivo, dum amor geral, mas isso não vai acabar com a existência daquela outra coisa. A música popular também é um veículo de tradução e expressão desse sentimento único.
Uma ouvinte: Fala mais alguma coisa sobre o poeta ser algoz da palavra.
Paulo Leminski: Bem, será algoz no momento em que contrariar as tendências da linguagem. Em que ele pegar a palavra e parti-la. Em que pegar uma tradição herdada, e pegar alguma coisa recebida e ele realmente for assim craque o suficiente para alterar aquele quadro e impor a sua marca, que é uma característica do século XX, nessa arte do século XX, as vanguardas. Mas é uma coisa que já começa no final do século passado, do Simbolismo pra cá, Mallarmé, Rimbaud já começaram uma agressão, o poeta começa a devolver. O grande motor seria o próprio surgimento da Revolução Industrial, o mundo industrial, ele propiciou essa possibilidade de o artista devolver a agressão, a submissão às formas, de dinamitar as formas, uma lógica meio terrorista líbia.
Ouvinte: Posso? Paixão, caixão, paixão. Num fundo mercantilizante, o culpado é sempre o chinês, o sultão árabe, ver Limite do Mário Peixoto, os surfistas não são poetas. Isto é uma pergunta, certo? Para a associação paixão/loucura, vai aí o meu remédio: sentir “a visão da extração da pedra da loucura” do Borges, as similidades, acoplar com as flores, o craque é pensar o amor como coisa, como tendo uma possível substância. Se extraio alguma substância será sempre uma metáfora como a pedra filosofal. É isso aí.
Paulo Leminski: Isso foi a favor ou contra? Diz, diz no microfone que daí fica… Fica mais soviético assim.
Ouvinte: O problema é que sou pequenininha. Queria que você falasse um pouquinho sobre o amor entre sons e sentidos, e gostaria, se fosse possível, de fazer também uma comparação, já que você falou em arte numa maneira geral, e, para a poesia, existe uma gramática, à qual você disse que todo poeta estaria preso…
Paulo Leminski: Com certeza.
Ouvinte: Dentro de qualquer tipo de arte, seja ela música, seja pintura ou escultura, o poeta, o artista, aquele que atemporalmente faz alguma coisa que fique, ele também fica um pouco preso a essa gramática, não fica? Mas há também uma relação de amor. Não há?
Paulo Leminski: Só há.
Ouvinte: Então gostaria que você explicasse melhor, se pudesse. Esse amor entre sons e sentidos e dentro também das outras artes, já que você abordou arte de uma maneira geral.
Paulo Leminski: Posso tentar.
Ouvinte: Esse, esse amor também, porque eu acho que sem a paixão não existe uma obra de arte, é fundamental. O amor, o amor paixão. Para que o artista possa colocar sua emoção.
Paulo Leminski: Bem, vejo essa coisa de amor entre sons e palavras, entre sons e sentidos, como um resultado da própria materialidade do fazer poético, no qual, não importa, ou importa menos, você apresentar sentidos do que você trabalhar. Os sentidos terão que vir depois de uma materialidade, digamos, musical, ou plástica, icônica, como se queira, da palavra. O sentido virá depois disso, senso é apenas prosa empilhada em versinhos, como está cheio o Brasil. Há figuras, pessoas que passam por grandes poetas, não apenas prosadores, que colocam a sua prosa e a dividem, arbitrária e farsisticamente, no papel como um verso. Mas um verso é uma entidade artística. Vamos fazer verso, tudo bem, mas tem que saber fazer um verso, uma unidade musical imagética. Se não, vai fazer jornalismo, vai fazer teses de sociologia. Poesia tem o seu específico. Desconfio que a coisa do amor entre sons e sentidos estaria nisso, o poeta produz uma coisa na qual a intimidade entre a materialidade do som da palavra e o sentido que ele passa é muito mais íntimo do que no caso da prosa, onde essa materialidade não importa. Citei o caso de Balzac, que seria um romancista genial, mas não é um grande estilista como Flaubert, ou como o próprio Stendhal, o caso de um Guimarães Rosa, de um Joyce, daqueles que tratam a própria prosa como objeto de arte, uma prosa na qual a palavra é trabalhada como matéria-prima artística. A coisa de amor entre os sons e os sentidos, esse ato de amor se passaria na mente do poeta na hora em que ele cria, naquele lugar os sons e os sentidos praticam um ato de amor. Poesia é isso, um ato de amor, intrinsecamente, substancialmente.
Ouvinte: Acho que a paixão é coisa que você faz sem pensar, só sentimento. Acho que pra você fazer pelo menos uma boa poesia, não sei nem se isso existe, acho que você não pode estar tomado pela paixão porque, senão, tudo que você colocar no papel, quanto mais emocionado você esteja, quanto mais entregue ao seu caos interno, à sua emoção, é você… Melhor seria o seu poema. Acho que a palavra mais adequada seria o amor. Não consigo entender que um poeta possa fazer hoje uma poesia sem entender o momento em que está vivendo. Ele pode até usar a paixão como um veículo pra isso, ele tem esse dom, certo? Mas não pode fazer só apaixonadamente a poesia. Acho que é mais um ato de amor com a palavra, como você disse, onde muitas vezes você tem a ver um pré pra isso, você não pode simplesmente se entregar à paixão.
Paulo Leminski: Há formas sociais que te impedem de fazer isso. Em 1891, a paixão pela poesia no Brasil se confundia com a paixão, por exemplo, pelo soneto, pela forma do soneto. Era uma forma social, você nasceu em 1891, poesia entre outras coisas é o soneto. Bilac era Deus neste país como foi, durante décadas, o mestre consumado do soneto. Então, aquela porra daquela caixinha, quatro versos, quatro versos, três, três, aquilo realmente exerceu uma tirania durante mais de quase meia década, cinquenta, sessenta anos no Brasil, tem gente fazendo soneto até hoje. De repente, o amor pela poesia se confunde com o amor pela forma do soneto. A ideia de que a poesia possa ser puro transbordamento de emoções conflita com esse dado de que ela vai ter que ter uma forma e as formas são sociais. Não existe transbordamento em estado puro. Os surrealistas propuseram escrita automática. Você pega um papel e começa a escrever o que lhe vier na cabeça. Acontece que a escrita automática é mais pobre do que qualquer soneto. André Breton, quando fez o primeiro texto em escrita automática era genial, o segundo que o fez é um idiota, porque realmente aquilo está feito já. Não existe nada mais parecido com um texto escrito em escrita automática do que um outro texto em escrita automática. Aquilo que pareceria ser um momento da maior liberdade passa a ser o momento simplesmente do maior igual, o momento do diferente passa a ser o momento do idêntico. Nada mais fácil do que pegar dez pessoas e mandar pôr no papel tudo o que lhes vier na cabeça, não controle nada, nem ligue para ponto, vírgula, nada, vai mandando pau, pá-pá-pá, que nem num sonho, que nem num delírio, mas dez delírios são iguais que nem dez ovos. O que fez a marca, o distintivo, é a forma, e essa forma não é nossa, esta forma existe dentro do nosso quadro social. O soneto existia antes da gente nascer. Depois que passarmos desta para melhor, o soneto continuará existindo, ele é maior do que nós. O soneto, a forma do soneto é maior do que os poetas. Ela sobrevive a eles, como uma presença social, como uma pressão social, é aquele momento de masoquismo, em que o poeta sofre, você tem que sofrer essa pressão social. Não consigo sequer enxergar a ideia de que a poesia seja um transbordamento do coração, porque esse transbordamento vai ter que ser feito através de tamanhas substâncias coletivas tão acentuadas, tão nítidas, que, no fundo, o seu individual vai ser mínimo dentro disso. É por isso que a prática das artes, sob um certo aspecto, é, como é que eu vou dizer? São cerimônias. Como missas, novenas, procissões. É uma repetição de gestos socialmente codificados.
Ouvinte: Então o poeta está preso à forma…
Paulo Leminski: A gente está preso, preso mesmo, preso à forma, como preso à língua portuguesa. Minha formação poética vem dos anos 60 pros 70. Vi, por exemplo, aparecer nos anos 1970, em particular, uma tendência poética brasileira generalizada que ainda não acabou, a chamada poesia marginal, alternativa, uma poesia, como é que eu vou dizer, de manga da camisa, poesia feita assim sem nenhuma aparência de rigor formal, uma poesia que se queria a contestação de todo um rigor formal. Mas isso sozinho não resolve. Hoje eu sinto, por exemplo, que se desenvolve uma tendência no sentido da recuperação de um certo rigor formal pra caracterizar o próprio fazer poético, que tem meio como padrinho o João Cabral de Melo Neto, que acho que qualquer um concordaria é o maior poeta brasileiro vivo, escrito, no papel, porque cantado, pra mim, é Caetano Veloso. João Cabral de Melo Neto seria uma espécie de patrono dessa recuperação de um rigor poético e a própria música popular, porque a música marca o lance da métrica, e o lance da rima como alguma necessidade. Impossível fazer uma letra absolutamente irregular e sem rimas. Aqui, temos conosco, hoje à noite, nosso amigo Antônio Cícero, irmão e parceiro da Marina, cujo trabalho vejo como uma coisa muito exemplar nesse sentido, porque ele faz por exemplo, enquanto letrista, uma letra, como é que eu vou dizer, em máxima sensibilidade, em nível de compreensão da música, o ouvido tem um tempo e o olho tem outro. E ele faz também uma poesia do olho, que é uma poesia rigorosa, quando escrita. A poesia do Antônio Cícero procura recuperar esses valores, por exemplo, de artesanato, que me interessam, e que eu acredito vão caracterizar a minha produção poética, não sei até quando. Já faz muito tempo que venho no sentido da recuperação desse rigor. Sob alguns aspectos, estou farto da incompetência técnica dos anos 1970.
Ouvinte: Concordo com o que você disse que o poeta não pode ser maior que sua tribo. Ao mesmo tempo em que eu concordo com isso, acho que nem por causa disso o poeta deve deixar a sua tribo castrar, vamos dizer assim, sua criatividade. Tenho a impressão de que, às vezes, certos poetas apaixonados fazem novas tribos, eles não são tão ligados verdadeiramente, só em certos esquemas gramaticais. Sinto assim, a gramática do poeta seria a gramática da sua criatividade. Às vezes, ele pode ser até maior que a sua própria tribo.
Paulo Leminski: Ele seria apenas o melhor que a sua tribo pôde produzir naquele momento, mesmo quando parecesse que está sendo maior do que a sua tribo. Um Guimarães Rosa, um João Cabral de Melo Neto são possibilidades do povo e da cultura brasileira, não caíram do céu nem foram trazidos por um disco voador. É uma somatória de coisas brasileiras que possibilita, de repente, o surgimento de um grande artista, de um Hélio Oiticica, de um Glauber Rocha. Não creio que ele, que alguém, seja maior. É que você, realmente, representou naquele momento, naquela tua coisa, um máximo, mas um máximo da tua tribo. Reconheço que criei uma espécie de determinismo, alguém podia dizer assim: mas se eu aprender outras línguas, por exemplo? Se eu romper a barreira da minha língua e invadir outra, tipo Conrad? Ele era polaco, chamava-se Korzeniówski, saiu da Polônia, foi para a Inglaterra, se britanizou por completo e virou um grande escritor da literatura inglesa. Mas não vejo que isso seja exequível de um modo geral. Não vejo como eu poderia me tornar um grande poeta em língua ucraniana. Você, mais ou menos, expressa uma comunidade.
Ouvinte: Queria te perguntar ainda sobre essa relação com a palavra. Tenho estudado esse assunto em relação à carta de amor. É mais ou menos o inverso disso que você disse aí. Aquele que escreve a carta de amor, ele, na verdade, não quer escrita, ele detesta a escrita, ele escreve pra dizer “eu escrevo para que tu ouças”.
Paulo Leminski: Deve ser.
Ouvinte: O riso, essas coisas que a gente não pode remeter. Então ele não gosta da escrita, é uma relação muito difícil. Com essa materialidade da escrita na verdade, ele escreve é pra reapropriar-se da presença do outro distante, essa coisa toda. Então, existe toda uma paranoia mesmo em relação à circulação disso, porque já estava previsto um destinatário. Tenho lido assim as cartas de amor. Em Kafka, em todos eles assim há uma verdadeira paranoia em relação a correio. O correio não está funcionando, não sei o quê. Já contratei três pessoas pra trazerem as cartas por aí.
Paulo Leminski: É lamentável.
Ouvinte: Todo esse problema da circulação. E além do mais do registro. Isso tem que ser registrado, então submete a carimbo, selo, toda uma institucionalização da palavra.
Paulo Leminski: Você botar uma carta de amor no SEDEX hoje…
Ouvinte: Então tudo isso, essa escrita é uma escrita, quer dizer, ele não gosta da escrita. Você falou o contrário. A relação de poesia com o poeta seria de paixão. Quando ele falou de transbordamento, transbordamento estaria mais pra carta de amor.
Paulo Leminski: Mesmo uma carta tem uma forma precisa, “venho por meio desta dizer que meu coração é seu”.
Ouvinte: Você está adulterando o que digo.
Paulo Leminski: Não há álibi possível. Escrevi uma resenha, a semana passada, sobre Os Cantos do Ezra Pound, em que falo dessa coisa que ele trazia em si uma proposta de transbordamento. O poema dele se chama Cantos. Na realidade, é em prosa, porque o verso é um princípio de racionalização. Não há paixão que resista a um bom decassílabo. O dia em que eu botar tudo em decassílabo, realmente a sinceridade foi pro brejo.
Ouvinte: É aquele que pode substituir a presença do outro, né?
Paulo Leminski: É aquela coisa da relação entre o vivido e a obra, ela é mediatizada, todo escritor projeta a imagem de um emissor que pode não coincidir com ele. Daí, realmente, o negócio extraordinário do Fernando Pessoa de ter explicitado isso através daquele mecanismo de heterônimos, porque é realmente isso. O escritor, que escreve, a pessoa Jorge Amado, o cara, o escritor, o autor, o emissor Jorge Amado e sua obra são três momentos, e não dois. Não sei, sai direto da vida pra obra. Entre a vida e a obra, há uma mediatização, que é a primeira obra que todo artista tem que criar, a sua persona, o seu personagem, que você quer encarnar. É esse personagem que será o emissor da tua obra. A obra será sempre o momento segundo depois da criação. Tem muitas pessoas talentosas que acabam não dando em nada, porque não conseguiram criar seu personagem, quer dizer, aquele que será, realmente, o emissor da sua obra.
Ouvinte: O que eu queria te perguntar é se tem alguma transitividade nessa relação.
Paulo Leminski: Transitividade de quem pra quem?
Ouvinte: Do poeta. Na relação do poeta com a linguagem, nessa relação apaixonada.
Paulo Leminski: Essa é a ideia.
Ouvinte: …tem, claro. Só pra atingir um terceiro. Eu queria saber, na poesia, se está presente essa coisa do destinatário.
Paulo Leminski: Na literatura, o destinatário é sempre problemático. Você invocou, inclusive, um exemplo que é, exatamente, o oposto da literatura. A carta de amor teria como diferença em relação a um poema de amor o fato de ter um destinatário preciso. Não acredito muito no escritor que você diz assim: pra quem você escreve? Ele diz: bem, eu escrevo pra fulano, beltrano, sicrano. Eu escrevo para a classe operária consciente da faixa salarial de sete salários até doze. Ninguém escreve desse jeito, isso é jornalismo. Não é literatura. Não é a alta produção verbal. A alta produção verbal já traz implícita em si uma espécie de indeterminação em relação ao seu destinatário. Vamos dizer assim: pra quem Guimarães Rosa escreveu a “Terceira margem do rio”? Pra Deus. Pra humanidade. Qual é a linguagem que não se escreve, qual é a linguagem onde a poesia nunca chega? Aqui, a gente tem que fazer a distinção língua/linguagem. Décio Pignatari é um teórico que vem insistindo muito na diferença, é o idioma, a língua oral, acústica, que a gente aprende com a mãe, com o leite materno, a língua materna. A linguagem são as outras, a linguagem visual, a gestual etc. Essa distinção é semioticamente bem, bem clara hoje. A linguagem verbal é o lugar do pensamento simbólico por excelência, quer dizer, do pensamento, as palavras são símbolos. E num sentido em que a cor não é, por exemplo. A língua, o idioma, é o único veículo do conceito. Você não pode emitir conceitos com cores, você não pode emitir conceitos com gestos, você não pode emitir conceitos com borrões de luz, só as palavras são veículos de conceitos, o conceito que Aristóteles dizia ser a grande arma do pensamento para captar a lógica da realidade. Durante muito tempo, compartilhei de uma certa ilusão que se deve à minha admiração por Décio Pignatari, a da ideia de se combater o logocentrismo, a palavra no centro das coisas e tudo o mais em volta. As outras manifestações de linguagem ficariam submanifestações e o idioma como a manifestação por excelência. Durante muito tempo, realmente, defendi isso, hoje, já não acho mais. Acho hoje, com a maior clareza do mundo, que existe um específico do idioma, da linguagem com a palavra que não tem paralelo, e nem outras linguagens. A palavra pode falar de um quadro, um quadro não pode falar das palavras. As palavras podem falar de um espetáculo teatral ou de um espetáculo de dança, um espetáculo de dança não pode falar de palavras. As palavras têm uma espécie de estatuto metalinguístico, um estatuto crítico, um estatuto de dizer sobre, que é seu específico. Acho que foi uma espécie de ultraesquerdismo icônico, oh, boa expressão. Foi um ultraesquerdismo icônico que vivi durante muito tempo, de pensar assim, de colocar uma espécie de horizontal dada em todos os códigos, em todas as linguagens. Hoje, não, hoje eu acho que a linguagem verbal tem um intransferível, um específico. A própria poesia que faço, a que procuro fazer hoje, é uma poesia não imagética, não melopaica, quer dizer, não musical, quer dizer, não excluindo esses valores, mas uma poesia, sobretudo, feita de pensamento, quer dizer, raciocínios. Minha poesia, meus amigos, as pessoas que leem as coisas que venho fazendo, vêm observando constantemente que, num poema, eu procuro, a poesia numa girada de pensamento, não propriamente numa explosão de cores ou de imagens. O redondo rolar daquele pensamento que sai, e a loucura lógica dele é que a sua poeticidade. Qual é a linguagem que não se escreve? Tirando os idiomas, todas as outras não se escrevem, faz-se outras coisas. E qual é a linguagem onde a poesia nunca chega? A pergunta é maior do que eu. O que não é hermético é novela das sete.
Ouvinte: Gostaria de criar uma polemicazinha agora. Eu acho que é saudável, né? Aqui no Rio, eu vejo o Rio de Janeiro uma espécie de coração e São Paulo, a cabeça, uma coisa meio esquizofrênica isso que estou falando, mas me passa muito isso. São Paulo pensa paca e o Rio sente. De certa maneira, as coisas que acontecem no Brasil são muito direcionadas por essa dualidade que ainda persiste. O Rio é um exemplo pro Brasil sempre e eu gostaria de falar isso para você como carioca. E como paulista; quer dizer, não um paulista, mas uma pessoa que está vivendo num mundo de São Paulo cultural. Não fiquei satisfeito com a tua resposta quando fiz aquela colocação do amor total. Você colocou que eu tinha posto as coisas como uma utopia, utopia dos comunistas, socialistas e tal, eu acho que não é bom. Acho que o próprio espaço da paixão amorosa é um espaço utópico no mundo que a gente vive. Queria colocar uns exemplos, eu, pessoalmente, faço cinema. Então, pra mim, poesia não tem nada a ver com palavra, entendeu? Isadora Duncan fazia poesia com o corpo e eu faço poesia com a imagem. Então, de maneira nenhuma aceito, posso aceitar, que a poesia, a poética, seja colocada dentro dos limites da linguagem verbal, da língua. Eu acho que a poesia hoje, dentro de uma concepção moderna, é uma coisa que abrange a manifestação de libertação do ser humano, seja através do teatro, da música, do cinema. Pasolini é um puta poeta, não só escrevendo como também criando cenas e imagens. Estudei durante seis anos muito a vida de um paulista e fiz um filme sobre ele, que é o Mário de Andrade, um puta poeta muito pouco falado pelas ditas vanguardas modernistas, porque ele escrevia muito moderninho, não escrevia com manga de camisa. Então, ele foi assim meio relegado. Hoje em dia, felizmente, já existem vários trabalhos, há muita gente reavaliando a poética do Mário, que ela é muito mais importante e profunda do que aparentemente pareceu nestes últimos anos. Estudando o Mário, eu descobri que o Mário foi um exemplo do cara que morreu de amor, mas de amor pelo seu povo, pelo seu país, pela sua cultura. O seu amor era muito mais total, volto a essa palavra, do que amor, essa relação de filigrana entre uma pessoa e outra. Esse amor gerava conhecimento, ele nascia de um conhecimento. Um outro cara que eu também fiz um filme é o Câmara Cascudo. Um cara como o Câmara Cascudo morre, os jornais dão uma notinha desse tamanhinho, escondidinho, um cara que deveria ter estátua em praça pública, devia ser lido, recitado. O caso do Câmara Cascudo é um caso típico, pra mim, fortíssimo, do amor total. A atitude dele foi muito mais poética do que milhões de poetas que eu conheço, porque ele dedicou a vida dele inteira ao conhecimento da cultura do povo brasileiro. É um cara que ia lá pra feira conversar com o feirante, ia bater um papo com a puta, o violeiro, a vida dele foi dedicada a isso, a resgatar essa cultura, fortíssima, que existe, mas que não sai no Caderno B do Jornal do Brasil. E poderia citar inúmeros exemplos, um outro amigo meu pessoal, Glauber Rocha, que, pra mim, foi outro cara que morreu de amor por esse país, foi engolido que nem Macunaíma. Volto a insistir, existe uma dialética, uma contradição fundamental entre o amor burguês, egoísta, discricionário, e o amor que eu chamo total. O amor que você aprende na relação homem-mulher tem milhões de relações ali envolvidas, inclusive sociais e econômicas, políticas. Uma relação um homem/uma mulher não é um feitiço que cai do céu, eu gostei dela, tô apaixonado porque baixou um santo. Isso tudo faz parte de um projeto, de uma prática de vida, de amadurecimento. Acho que era muito importante eu colocar isso porque, de repente, a discussão começou a cair assim num negócio da técnica da poesia. Então eu falo assim, porra, eu faço meu cinema, acho que é poesia, mas eu não estou filmando, então, como é que você poderia enquadrar isso? Então o cinema não pode fazer poesia? Pode ser um mal-entendido, mas a polêmica tá provocada, tá?
Paulo Leminski: O que ele falou é verdadeiro. Eu acho que aí a gente está com um problema verbal, que é o seguinte: a palavra poesia está sendo usada no sentido de criatividade máxima, conduzida em qualquer área. Então, se diz tal pintor é um verdadeiro poeta da cor. Tal cineasta é um verdadeiro poeta do relacionamento. Mas aí você percebe logo o caráter metafórico da palavra. Quando eu falo de poesia, eu falo de um específico tal como a nossa civilização concebe. Poesia, na realidade, é uma coisa feita com palavras, tanto que a palavra poesia foi desenvolvida no âmbito das artes verbais e, depois, por uma extensão, hoje, a gente a aplica ao caso de dizer o poeta da fotografia, mas a fotografia dele tem um clima, tem uma coisa… Na falta de melhor termo, você invoca a palavra poesia. Poesia é uma palavra da área verbal e um poema é um ser feito de palavras. Quando a gente diz que uma cena tem um caráter poético e tal, é porque houve cenas iguais às que você leu em palavras. Poesia e poema são palavras da área verbal que, por extensão, a gente aplica a outras artes. Acho perfeito, porque, pra mim, ela representa uma espécie de supremo, um máximo.
Ouvinte: Você faz uma colocação, um texto seu, de que a poesia foi cooptada pela literatura a partir de Gutemberg, que na sua essência a poesia não seria literatura. Junto a isto, como você vê a provocação do Caetano quando ele diz que a poesia está para a prosa assim como o amor está para a amizade?
Paulo Leminski: Aí, tem dois assuntos. Essa coisa de que a poesia não é literatura vem do fato de que ela sempre se passa numa área limítrofe entre uma outra arte. A poesia era letra de música na Idade Média, volta a ser hoje com a música popular. Ou então, por exemplo, no caso dos poetas concretos, que trouxeram a tônica pro lance plástico, visual, a poesia como poster. A poesia como canção, a poesia como poster, ela não é mais palavra porque é a palavra atritando com uma outra coisa, é a palavra cruzando o outro código. A poesia seria o lugar onde a palavra cruzada com outros códigos se abre para outros códigos, por isso os poetas são interessados por cinema, fotografia, desenho. Isso é um fato que a gente pode constatar o tempo todo. Os prosadores não sabem nem como seus livros são feitos. Os poetas se preocupam com a capa, se vai ser em duas cores. Existe, na atividade poética, um cruzamento com outros códigos que faz com que a poesia seja mais ou menos do que a literatura, aquém ou além da literatura. Agora, quanto a essa colocação do Caetano de que a poesia está para a prosa assim como o amor está para a amizade, eu gostaria de entendê-la dentro de todo o seu mistério. Aí quer dizer que há uma espécie de confronto hierárquico, o amor seria maior e a amizade menor? Não vejo isso da parte do Caetano. Isso não é uma frase de um professor universitário, Caetano não está fazendo uma proposição científica, quando diz que a poesia tá pra prosa assim como o amor tá pra amizade. Ele jogou um verso, quer dizer, uma obra de arte, cuja força está, exatamente, na capacidade de deflagrar toda sorte de interpretações e de deixar a cabeça da gente naquele estado psicodélico que os versos do Caetano costumam deixar.
Ouvinte: Eu queria pedir a você para fazer um comentário comparativo entre a literatura ocidental e a literatura oriental sob esse aspecto de paixão. Por exemplo, no caso do haicai, que é uma forma super-rígida de três linhas e dezessete sílabas, como é que paixão cabe no haicai?
Paulo Leminski: Cabe no haicai tão bem quanto coube num soneto, durante séculos e séculos no Ocidente. Você não vai duvidar da autenticidade do amor de Petrarca por Laura porque Petrarca expressou esse amor em sonetos. Nem da autenticidade do amor de Camões por Dinanene ou qualquer uma das suas amadas porque ele colocou esse amor dentro de um soneto. As formas são sociais, sentimentos também são sociais, eles se expressam socialmente. A gente, desde o romantismo, vem vivendo uma espécie de ilusão caógena, uma tendência assim para a expressão caógena, como sendo sinônimo de autenticidade. Pra mim, um soneto ou um haicai são mais sinceros do que simplesmente um borrão de palavras desconexas colocadas no papel. A “sinceridade” é uma cerimônia.
Ouvinte: Tenho a impressão de que você tem uma preferência pela forma do haicai ou até uma certa obsessão…
Paulo Leminski: É uma das formas que pratico, uma das formas nas quais minha sensibilidade se expressa, na qual sinto prazer. Minhas intuições se dirigem pra certas formas, uma delas, a única realmente codificada na minha sensibilidade, é o haicai, que também não tem rigidez nenhuma. Meus haicais não têm aquela forma japonesa de um verso de cinco sílabas, o do meio de sete e o de baixo de cinco. Procuro manter vagamente um certo esquema de três ou quatro, mas mais guiado pela unidade da intuição do que propriamente por uma forma. Se acontecer, por exemplo, de dar certo essa métrica, essa metragem no caso de um haicai meu, é puro acaso, eu não conto versos nos dedos. Ser poeta é ter nascido com um erro de programação genética que faz com que, em lugar de você usar as palavras pra apresentar o sentido delas, você se compraz em ficar mostrando como elas são bonitas, tem um rabinho gostoso, são um tesão de palavra. O poeta é aquele que deglute a palavra como objeto sexual mesmo, como um objeto erótico. Pra mim, a poesia é a erotização da linguagem, o princípio de prazer na linguagem. Vamos evocar o esqueminha de Freud, princípio do prazer, princípio da realidade. A prosa estaria a serviço do princípio da realidade, a poesia, basicamente, do princípio do prazer. Todas aquelas pessoas que querem que a poesia sirva para alguma coisa não gostam de poesia no emprego errado.
Ouvinte: Estou um pouco preocupada. De repente, as coisas ficaram assim muito, muito arrumadas, quando você fala nas formas sociais, nós somos até obrigados a concordar com você; mas só até certo ponto. Por que você não pode esquecer que essas formas sociais, o soneto, os versos dodecassílabos…
Paulo Leminski: O haicai… elas foram, o haicai, elas são formas inventadas… Então, se nascemos em determinado momento histórico em que há determinadas formas inventadas, não quer dizer que essas formas não possam ser quebradas ou, nem sei se o termo é bom, superadas, pelo menos, que apareçam outras formas… É a vida que inventa novas formas, a gente…
Ouvinte: Somos nós com o nosso mundo, não vamos aqui reduzir isso ou aquilo. O fato é que, dentro dos nossos momentos históricos, as formas, algumas já foram inventadas no passado e nós inventamos outras no presente e outras serão inventadas no futuro. Acho que isso é uma coisa muito importante. De repente, pelo seu discurso, daria a impressão que teríamos que seguir necessariamente, isso é extremamente acadêmico e perigoso, a meu ver.
Paulo Leminski: Acho que coloquei ênfase excessiva no caráter social das formas. Na realidade, ao lado disso, existe, por exemplo, como é que eu vou dizer, todo um percurso meu que sempre estava associado com o movimento de vanguardas, de renovação, quer dizer, uma procura de invenção, do novo. Então, eu apresento o social das formas como uma praga e não como uma bênção. Realmente, por tendência, por temperamento, eu estou mais pra Kadafi do que pra Olavo Bilac. Quis apenas colocar um dado que, de repente, dentro desse contexto meio libertário moderno, a gente esquece, o quão sociais são as formas. Não estou defendendo isso, estou constatando até com certa melancolia, porque vejo isso não apenas nas artes, vejo no comportamento, na vida. Somos muito mais clássicos do que a gente imagina.
Ouvinte: Eu acredito que a questão central da criatividade na poesia, em termos da língua mesmo, da palavra, é que você tem uma forma pronta e aprende nas escolas, nas escolas de poesia. Então, como você vai quebrar esta forma em favor da criatividade de uma outra forma, de uma que significaria uma outra percepção do mundo, que é absolutamente social também, naquele momento? Quebrando uma forma, até que ponto você está de fato criando uma outra forma? Você pode cair na prosa, inclusive, e temos bons poetas que eu fico em dúvida se são realmente poetas ou se fazem bem um poema em prosa. Eu não sei bem o que é isso, você está percebendo o que estou querendo dizer?
Paulo Leminski: Essa ambiguidade é própria da própria ideia de poesia, essa ambiguidade.
Ouvinte: O quê?
Paulo Leminski: Essa ambiguidade é própria da poesia.
Ouvinte: Minha questão é que eu acho que há dificuldade real no momento em que você rompe com uma forma em função de criar uma nova forma. Até que ponto você tem um rigor, um rigor interno pra organizar a tua própria paixão e com essa paixão criar, dar a mensagem de uma nova percepção do mundo, que é formal também? É isso que eu quero dizer, porque senão cairíamos na prosa, e a poesia enquanto tal, enquanto palavras específicas, enquanto uma arte específica, se diluiria. Eu acho que a questão é muito séria.
Paulo Leminski: Essa questão dialética que ela levantou agora tem aspectos curiosos. Acho essa coisa de rompimento de código como programa uma coisa meio discutível. Você tem que romper com esses códigos quando, enfim, o impulso autêntico e sincero de dentro de você te leva a romper. Você não rompeu apenas por romper. Romper aos códigos em nome de quê? Romper por romper? A momentos de intensa criatividade e inovação costumam suceder certos períodos de um certo remanso formal porque exatamente o novo e programático se transforma no novo sistema. Isso aconteceu inclusive com a poesia concreta, a coisa mais radical que apareceu na literatura brasileira, no texto brasileiro, na segunda metade do século XX. Hoje, alguém fazer um poema concreto, com cara de poema concreto, é coisa previsível. Na realidade, a grande força de um poema concreto, em 1956, era o fato de que ele era surpresa, não estava previsto na programação. Que acontece se, de repente, essa subversão agora está incluída dentro da programação? Daí vem outro momento dialético, outro tipo de fusão, momento de síntese entre uma coisa e outra coisa. Hoje, por exemplo, eu acho que está surgindo na poesia brasileira uma recuperação de rigor, mas que não se confunde mais, por exemplo, com o rigor acadêmico antigo, é um rigor que já passou por poesia concreta, por tudo e está recuperando isso, num momento de riqueza lá adiante.
Ouvinte: (pergunta inaudível)…
Paulo Leminski: …porque ela vira mercadoria. Pra mim, o critério é quando virou mercadoria. É viável, agora não representa, não é o máximo. A partir desse momento, temos que tocar pra diante, isso aí já é mapeado, esse território. Embora eu também hoje não tenha nenhum tipo de preconceito em relação a alguém que realmente seja um artesão. Um bom artesão hoje é dificílimo de encontrar, alguém que realmente, em qualquer território da arte, não está a fim de revolucionar muito, faz seu produto dentro de quadros já meio previsíveis, mas com uma perfeição formal e com acabamento, sem o que isso que se chama cultura não existe. Cultura não é só vanguarda. Depois há um diálogo entre essas formas já aceitas e as novas formas. Isso recupera o passado, porque o futuro tem isso de maravilhoso, ele recupera o passado, quer dizer, é o surgimento de um Caetano Veloso que nos permite ouvir de verdade e como que pela primeira vez a voz de um Lamartine Babo, de um Noel Rosa, de um Ismael Silva, de um Ataulfo Alves… Assim, o ciclo se fecha, e o Ouroboros, a serpente, morde a própria cauda. Dentro do computador, passado e futuro acabaram num Grande Presente. O computador detém o passado enquanto memória. E contém o futuro enquanto programa.
Não há mais tempo. O tempo acabou. E não apenas o tempo deste nosso encontro.
No Eterno Retorno, no tempo circular do pós-moderno, não há mais lugar para a paixão. A paixão é o desejo projetado para a frente. Não há mais nada lá na frente, apenas o Apocalipse. Não há mais frente. Nosso coração e nossa inteligência têm que inventar, já estão inventando, alguma coisa para colocar em lugar da paixão. Nem que seja a saudade da paixão.