2014

Por horas mais silenciosas

por Oswaldo Giacoia Junior

Resumo

Para Espinosa, a ignorância é origem não apenas do erro e da confusão mental, mas também do medo e da superstição. Daí a tendência humana – demasiado humana – para imaginar causas fictícias para uma série de fenômenos, o que predispõe à obediência cega, servil e interesseira, motivo pelo qual ele escreve que “certamente a sorte do homem seria outra se estivesse em seu poder tanto falar quanto calar. Mas a experiência ensina que nada está menos em seu poder do que sua língua. Tampouco é possível governar seus apetites.” Da citação, conclui-se que há uma relação direta entre ignorância e falatório, pois o contexto da citação foi exatamente o do problema da crença no livre arbítrio. “O homem acredita que é livre por estar consciente das suas volições e apetências, e nem em sonho ocorrem-lhe as causas delas”; por isso, a verdade ficaria “para sempre oculta ao gênero humano, se a matemática, que não se ocupa de finalidades, mas apenas da essência das figuras e respectivas propriedades, não desse a conhecer aos homens outra norma da verdade” – escreve ainda Espinosa. Em outras palavras, a imensa massa histórica de teorias e doutrinas a respeito da liberdade da vontade não passa de “flatus vocis” – ou jogos retóricos –, inspirada na ficção das causas imaginárias, insuflada pelas paixões cujas verdadeiras relações são ignoradas. Ora, tais paixões originam-se na vontade de poder, pois a ficção de causas imaginárias permite estabelecer contratos com as potências da natureza, sacralizados pelos cultos e rituais, por meio dos quais as forças naturais são imaginariamente postas a serviço dos desejos humanos. Trata-se de uma lógica parecida com a que comanda os delírios infantis de onipotência.

Na segunda metade do século passado, Michel Foucault já diagnosticava a imensa proliferação de discursos que circulavam por todos os vasos capilares das sociedades capitalistas configuradas segundo os modelos de produção e circulação de riquezas oriundos da revolução industrial. Foucault pensava nos discursos sobre o sexo e a sexualidade, que, ao contrário do que parecia a uma hipótese histórica “repressiva”, não cessou de multiplicar-se nas sociedades ocidentais desenvolvidas, desde, pelo menos, o início da modernidade. O século 17 seria “o início de uma idade de repressão, própria às sociedades denominadas burguesas, e da qual não nos teríamos ainda inteiramente libertado.” Segundo Michel Foucault, o sexo, se é possível estendê-lo a todas as esferas da vida, caracteriza as sociedades atuais não pela disciplina, mas pelo espetáculo. Não se para de falar porque não se pode calar. E isso porque desaprendeu-se não somente a solidão como a profundidade do silêncio, misteriosa potência visceral. Com efeito, a sorte da humanidade seria outra (e melhor), se o homem soubesse fazer silêncio.

O barulho de nosso incessante falatório superficial e vazio obliterou o silêncio. Com isso, perdeu-se o senso para o valor metafísico do poder calar-se. Isso porque, em primeiro lugar, só pode fazer silêncio um ser dotado de linguagem; do contrário, seria incapaz disso. Em segundo lugar, porque o silêncio afina e apura a capacidade para a escuta em profundidade, a partir da qual pode se desenvolver uma autêntica abertura para ser com os outros, para além da tagarelice. Com Heidegger e com Nietzsche pode-se aprender também que o silêncio reticente, entendido em sentido positivo, pode ser tanto uma poderosa arma de resistência aos controles sociais como também uma modalidade outra de subjetivação. “Então novamente me falaram sem voz: ‘Ó Zaratustra, quem tem montanhas a mover, move também vales e baixadas… Que sabes tu disso? O orvalho cai sobre a relva quando a noite é mais silenciosa…’ Então, novamente me falaram como num sussurro: ‘As palavras mais quietas são as que trazem a tempestade. Pensamentos que vêm com pés de pomba dirigem o mundo’.”


Numa de suas severas críticas à ignorância, por ele considerada uma fonte de erro, confusão mental, medo e superstição, constituindo, por isso, uma forte propensão – demasiado humana – para imaginar causas fictícias e inclinar-se à obediência cega, servil, mesquinhamente interesseira, Spinoza escreve: “Certamente que a sorte da humanidade seria mais feliz se estivesse igualmente na potência do homem tanto falar como calar-se. Mas a experiência ensina suficiente e superabundantemente que nada está menos em poder dos homens que a sua língua e não há nada que eles possam menos fazer que governar seus apetites”[1].

A passagem transcrita proporciona alguns pontos de apoio para inserção neste novo capítulo no Ciclo Mutações: um deles diz respeito à relação entre ignorância e falatório; nessa perspectiva, pois não se pode deixar de considerar, em primeira instância, que a passagem citada foi extraída justamente de um contexto argumentativo no qual se coloca em foco o problema da crença na liberdade da vontade humana, entendida em termos de libero arbitrum indiferentiae: “[…] os seres humanos têm a opinião de que são livres por estarem cônscios das suas volições e das suas apetências, e nem por sonhos lhes passa pela cabeça a ideia das causas que os dispõem a apetecer e a querer, visto que as ignoram”; e, desse modo, a verdade ficaria “para sempre oculta ao gênero humano, se a matemática, que não se ocupa de finalidades, mas apenas da essência das figuras e respectivas propriedades, não desse a conhecer aos homens uma outra norma da verdade”[2].

A massa histórica de teorias e doutrinas a respeito da liberdade da vontade não passaria de flatus vocis, jogo retórico, inspirado na ficção das causas imaginárias, fantasia insuflada pelas paixões, cuja dinâmica extrai sua força da ignorância das verdadeiras causas. Ora, outro ponto a ser destacado é que o fogo dessas paixões não procede de outra fonte senão da vontade de poder, pois a ficção de causas imaginárias torna possível estabelecer contratos com as grandes potências da natureza, pactos sacralizados nos cultos e rituais, por meio dos quais as forças naturais poderiam ser postas, num plano imaginário, a serviço dos desejos humanos – em suma, segundo uma lógica parecida com a que comanda os delírios infantis de onipotência do pensamento.

Essa elucidação spinoziana para o consórcio produtivo entre superstição, imaginação e vontade de poder enseja o recuo crítico ideal para uma reflexão sobre o contemporâneo, um salto para seu interior. Pois, se dermos crédito à abalizada consideração de Nietzsche, o “atual”, a “contemporaneidade”, consiste essencialmente numa peculiar relação com o presente, que só pode ser estabelecida em regime de desconexão e defasagem – daí a atualidade de um olhar que retorna a Spinoza. Pertencer realmente ao próprio tempo, ser verdadeiramente contemporâneo, é algo que só pode ocorrer com quem não coincide ponto por ponto com seu tempo, mas está, em certa medida, descolado dele; contemporâneo é quem não se mantém dócil e conformado às pretensões e exigências de seu presente. O contemporâneo é, nesse sentido, essencialmente inatual. De certo modo, esse afastamento é o anacronismo do extemporâneo, que, no entanto, justamente por causa disso, torna-se mais capaz do que os outros de perceber e de apreender traços fundamentais do seu tempo. A contemporaneidade exige, portanto, uma relação singular com a época, pela qual aderimos a nosso tempo e, simultaneamente, tomamos máxima distância relativamente a ele – uma relação paradoxal, que adere ao presente, ao recusá-lo. Aqueles que coincidem de um modo absoluto com a própria época, porque concordam integralmente com ela, não podem ser contemporâneos; e isso porque, em virtude de uma coincidência imediata e não refletida, não conseguem ver sua época, não podem manter seu olhar fixo nela.

É sob essa ótica que pretendo manter o olhar fixo sobre nossas sociedades ocidentais tecnologicamente hiperdesenvolvidas, que obedecem cegamente ao comando anônimo de uma compulsão à tagarelice, tanto mais paradoxal quanto, ao que parece, essas mesmas sociedades consi deram-se modernas, esclarecidas, civilizadas, cultas, leigas, liberadas das crenças supersticiosas; sua autocompreensão, enfim, as representa como genuínos frutos sazonados das forças emancipatórias brotadas do espírito ilustrado. O saber humano acumulado ao longo da história estaria hoje, em sua totalidade, isonomicamente colocado ao alcance de qualquer internauta, irradiando suas luzes numa extensão sem precedentes, em ritmo de absoluta democratização do acesso à informação. Nesse horizonte, tudo se passaria, assim, como se aquilo que Spinoza denominara “ignorância das verdadeiras causas” fosse apenas uma pálida e remota figura arcaica, pois que as variáveis de nosso cenário cultural distinguem-se por contornos infinitamente mais esclarecidos, complexos e sofisticados. Portanto, somente a partir do distanciamento crítico propiciado por um ponto de vista “inatual” podemos nos alçar à compreensão do contemporâneo, de seu falatório e ignorância.

Nessas coordenadas, “a ignorância das verdadeiras causas” não pode em absoluto ser remetida a nenhuma dificuldade comunicacional, ou deficiência de verbalização, já que, desde a segunda metade do século passado, podemos constatar um imenso e variado formigamento de discursos produzidos para circular indefinidamente, transmitindo-se por todos os vasos capilares das sociedades capitalistas, tal como estas se configuram segundo os moldes de produção e circulação de riquezas derivados da revolução industrial. Ao diagnosticar essa proliferação discursiva, Michel Foucault pensava prima facie em discursos sobre o sexo e a sexualidade, que, ao contrário do que parecia a uma hipótese histórica “repressiva”, não cessaram de multiplicar-se e a seus efeitos, pelo menos desde o início da modernidade.

Para Foucault, é ingênua a crença que considera o século XVII como “o início de uma idade de repressão, própria às sociedades que denominamos burguesas, uma era da qual não nos teríamos ainda inteiramente libertado”[3]. Sexo e sexualidade seriam objeto de um poderoso interdito, como se, para dominá-los “no real, fosse necessário primeiramente reduzi-lo(s) no nível da linguagem, controlar sua livre circulação nos discursos, caçá-lo(s) das coisas ditas e extinguir as palavras que o(s) tornam sensivelmente presente(s). E esses mesmos interditos temeriam, diríamos, nomeá-lo(s)”[4]. Apesar disso, no entanto, ao contrário das aparências dominantes, o que se verificou de fato historicamente, ao longo dos séculos desde então, foi “em torno e a propósito do sexo, uma verdadeira explosão discursiva. Sobre o sexo, os discursos – os discursos específicos, diferentes, a uma só vez, por sua forma e seu objeto – não cessaram de proliferar: uma fermentação discursiva que se acelerou desde o século XVIII”[5].

Sabemos a conclusão a que conduzem as pesquisas arqueogenealógicas de Foucault: a imensa proliferação de discursos sobre o sexo, aquele autêntico dever de loquacidade de uma sociedade aparentemente vitoriana, que não cessou de fazer multiplicar as vozes que confessavam incessantemente os segredos mais recônditos do sexo e suas perversões, faz parte justamente do dispositivo da sexualidade, o elemento dinâmico das relações entre, por um lado, formas de saber, com seus regimes próprios de verdade, e, por outro lado, os efeitos de poder e dominação política.

O modelo disciplinar ajustava-se integralmente às necessidades de organização da produção, de gerenciamento biopolítico da sociedade civil, nos tempos da consolidação da sociedade industrial burguesa, que sucedeu à forma jurídico-política clássica da soberania. As modernas sociedades capitalistas ocidentais constituíram-se, em maior ou menor medida, como sociedades disciplinares, como sociedades de disciplina, controle e adestramento. “Mas as disciplinas, por sua vez, também conheceriam sua crise, em favor de novas forças que se instalavam e que se precipitariam depois da Segunda Guerra Mundial: sociedades disciplinares é o que já não éramos mais, o que deixávamos de ser”[6].

Se, de acordo com o diagnóstico feito por Michel Foucault a respeito do dispositivo da sexualidade, a era vitoriana não sucumbiu a uma repressão do discurso sobre o sexo, mas, ao contrário, era instada a falar disso o tempo todo, nossas sociedades experimentam uma intensificação dessa compulsão a falar, de modo ampliado, porém; discorremos agora sobre tudo, de tal modo que nossas cidades seriam muito mais bem descritas como verborrágicas sociedades de espetáculo e exibição, do que como sociedades disciplinares. Coube a Agamben a reatualização da noção de dispositivo, de modo a ajustá-la aos nossos dias:

Chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes. Não somente, portanto, as prisões, os manicômios, o panóptico, as escolas, as confissões, as fábricas, as disciplinas, as medidas jurídicas etc., cuja conexão com o poder é em um certo sentido evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares e – por que não – a linguagem mesma, que é talvez o mais antigo dos dispositivos, em que há milhares e milhares de anos um primata – provavelmente sem dar-se conta das consequências que se seguiriam – teve a inconsciência de se deixar capturar[7].

A constelação transnacional, a que nos estamos moldando, é formada por complexos e inimagináveis circuitos virtuais de comunicação em tempo real, dispostos em redes de extensão e alcance planetários, nas quais circulam informações incessantemente, sob o imperativo categórico das redes sociais: compele comunicare; imperativo ao qual respondem personal computers, tablets, twitters, blogs, telefones móveis e câmaras televisivas onipresentes, acoplados a cartões magnéticos que processam eletronicamente créditos e débitos, siglas, usernames, códigos etc., que delineiam nossas formas de subjetivação como consumidores e usuários permanentes do que quer que seja: desde rituais sagrados a formas mais grosseiras de entretenimento mercantil.

E, no entanto, sob a ilusão do controle integral, um elemento patológico, próprio de toda compulsão, dá o tom dominante nesse falatório e agitação intermináveis, um elemento que resulta em regressão espiritual. Não podemos deixar de falar, porque, ao mesmo tempo, não podemos mais guardar silêncio; não podemos nos calar por vontade própria e autocontrole; incapazes de manter silêncio, não podemos suportar a solidão, e por isso desaprendemos a ouvir em profundidade a voz do silêncio, a escuta originária que precede e articula linguagem e discurso. Por causa disso, agarramo-nos desesperadamente ao ininterrupto ruído circundante e tranquilizador, entregamo-nos sem pudor a toda distração e anestésico, à voraz tagarelice universal, que não discrimina nem seleciona os últimos resquícios de nossa decência e impotência visceral.

De modo que o trecho de Spinoza, citado no início, conserva para nós não apenas seu vigor, senão que também adquire certo matiz de realística profecia: a sorte da humanidade seria outra (e melhor) se estivesse em nosso poder a capacidade de controlar a própria língua, e de guardar silêncio. Mas, na sociedade espetacular, somos concitados a viver o tempo todo falando tudo – o que inclui um quimérico, conveniente e incógnito nós-mesmos – nossas vidas se conectam em redes de loquacidade compulsória, perfeitamente controladas. Numa entrevista concedida a Peppe Salvà, publicada no Ragusa News, no dia 16 de agosto de 2012, Giorgio Agamben esboçou o seguinte quadro: uma cidade cujas praças e estradas são controladas por videocâmaras não é mais um lugar público: é uma prisão.

De par com a ostensiva monstruosidade dos sistemas prisionais de exceção, o recente affair Edward Snowden, funcionário do serviço de inteligência norte-americano e, ao mesmo tempo, denunciante da espionagem oficial e clandestina exercida globalmente pelo governo de Washington, oferece mais um exemplo assustador do tortuoso modo de funcionamento das tecnologias políticas de nossos dias. A mesma sociedade cuja história cultural é construída sobre a base das garantias individuais e das liberdades públicas, que protege como direito intangível e inalienável a liberdade de expressão, a privacidade dos cidadãos, pratica sistematicamente a pilhagem de bancos de dados registrados em sistemas informáticos tanto por particulares como por organismos, agências estatais e empresas privadas e públicas; e o faz por razões de Estado, tanto por motivos estratégicos de segurança nacional, quanto para “proteger o mundo livre” contra o terrorismo internacional. Garantir constitucionalmente em cláusulas pétreas o direito ao sigilo inviolável e à privacidade das comunicações, ao mesmo tempo em que se justifica a espionagem global e permanente como ação estratégica necessária de política internacional, dá no mesmo que multiplicar a tagarelice, sem ter nada a dizer, uma vez que, nos dois casos, defrontamo-nos com um paradoxo implantado no coração do sistema global vigente.

Trata-se, mutatis mutandis, da mesma ilógica que Foucault identificara em funcionamento no estado nazista. A obsessiva preocupação biopolítica com a proteção da pureza do povo, assegurando-a pela eliminação planificada do perigo de contágio, converte-se em seu contrário, ao levar à necessidade de submeter a própria população às consequências rigorosas dessas mesmas medidas de saneamento. Esse desatino assumiu historicamente a forma da aporética confluência entre um Estado absolutamente racista, absolutamente assassino e absolutamente suicida. “Isso se sobrepõe necessariamente, e resultou, é claro, ao mesmo tempo, na solução final dos anos 1942-1943 (pela qual se quis eliminar, através dos judeus, todas as outras raças das quais os judeus eram a um só tempo o símbolo e a manifestação) e depois no telegrama 71, pelo qual, em abril de 1945, Hitler dava ordem de destruir as condições de vida do próprio povo alemão”[8]. Em ambos os casos, fica claro que a mesma loquacidade pretensamente justificadora leva a uma impossibilidade de distinção entre proteção e destruição e, mais genericamente, entre guerra e paz; uma vez que a garantia da paz coincide com o estado de beligerância permanente e com a escalada armamentista tecnologicamente potencializada, mesmo depois do fim da política de blocos e da hegemonia planetária do parlamentar-capitalismo.

Nesse cenário, tudo se passa, portanto, como se estivéssemos obliterados para o silêncio, aturdidos pelo barulho do incessante falatório superficial e vazio, como se tivéssemos perdido o senso metafísico do silêncio. Cujo valor remete, entre outros, a dois motivos que pretendo explorar aqui: em primeiro lugar, porque só é capaz de silêncio um ser que pode falar, que tem linguagem; quem nunca diz nada, assim como quem nada tem a dizer, também não pode guardar silêncio. Silenciamos, portanto, quando o fazemos, porque permanecemos reticentes, porque nos guardamos para dizer algo, algo que temos a dizer e que consideramos ter significação e importância.

Ser dono definitivo de mim, era o que eu queria, queria. Existe uma receita, a norma dum caminho certo, estreito, de cada uma pessoa viver – e essa pauta cada um tem -, mas a gente mesmo, no comum, não sabe encontrar; como é que sozinho, por si, alguém ia poder encontrar e saber? Mas esse norteado, tem. Tem que ter. Se não, a vida de todos ficava sendo sempre o confuso dessa doideira que é. A gente quer se afastar de si próprio… pra isso é que o muito se fala. O senhor sabe o que é o silêncio? É a gente mesmo, demais[9].

Esse “norteado” que a gente mesmo, no comum, não consegue encontrar, porque sozinho, por si só, não se pode saber, é que o silêncio é também uma forma autêntica de comunicação de um Si-Próprio com os outros, com os companheiros de travessia da vida, com os semelhantes, próximos e distantes; nessa acepção, o silêncio é o elemento complementar de uma escuta em profundidade, torna alguém apto a entrar em conversa com outrem a respeito de algo. Heidegger, por sua vez, para designar essa função originária do silêncio como forma de linguagem, emprega a expressão Erschweigen: sustentar (guardar, manter) silêncio perante alguém, como uma modalidade de expressar-se justamente na reticência e na reserva, nas quais tem lugar uma apuração da capacidade de ouvir, sobre cuja base silenciosa pode se construir um autêntico estar com os outros.

Tal silêncio é a postura reticente que nos subtrai da teatralidade e do faz de conta de um cotidiano falsamente empenhado em resolver problemas e apresentar soluções pretensamente eficazes, porém cegas e ilusórias a respeito de sua própria encenação e da verdadeira natureza dos problemas. É dessa reticência que advém uma autêntica capacidade de ouvir, que é condição para um genuíno estar com os outros, bem como de um retornar a si, resgatar-se da dissipação nos entretenimentos e da alienação do cotidiano. Não por acaso, Ser e tempo apresenta a voz da consciência, que interpela o Ser-O-Aí e o convoca para suas possibilidades supremas e extremas, para sua indelegável condição de ser para a morte, como um chamamento silencioso:

A consciência discorre única e constantemente no modus do calado. Assim, ela não somente nada perde de sua perceptibilidade, mas força o Dasein intimado e despertado a manter-se calado sobre si mesmo. A falta de uma formulação verbal do apelado no apelo não lança o fenômeno na indeterminação de uma voz misteriosa, mostrando somente que entender “o dito no apelo” não deve se prender à esperança de uma comunicação e de algo semelhante[10].

Um olhar em sobrevoo para nossas sociedades atuais tecnologicamente desenvolvidas não nos faz ver mais “corpos dóceis e úteis” de operários disciplinados e adestrados para a extração do máximo rendimento de suas forças; no entanto, para onde quer que olhemos o que vemos são homens e mulheres controlados em suas formas ou territórios de subjetivação, tanto mais controlados lá onde, em aparência, fazem-se passar, pelo discurso e gestuália, como emancipados e rebeldes contestadores. Nesse panorama, talvez possamos descobrir no silêncio, nessa inaudita afinação da habilidade para ouvir e para comunicar-se genuinamente com outrem, uma (ainda que tíbia) forma de resistência à avalanche dos discursos e às técnicas de dominação e controle.

Talvez Foucault e Deleuze não tenham vivido para vislumbrar e trazer à luz, pela força da crítica, algumas novas modalidades de resistência cujos contornos apenas agora começam a se esboçar em nosso horizonte histórico. Deleuze, no entanto, havia afirmado: “Será que já se pode apreender esboços dessas formas por vir, capazes de combater as alegrias do marketing? Muitos jovens pedem estranhamente para ser ‘motivados’, e solicitam novos estágios de motivação permanente: cabe a eles descobrir que estão sendo levados a servir, assim como seus antecessores descobriram, não sem dor, a finalidade das disciplinas. Os anéis de uma serpente são ainda mais complicados que os buracos de uma toupeira”[11].

Não é difícil entender essa metáfora que convoca a serpente ao lado da toupeira; a serpente é o símbolo do capitalismo da sobreprodução, cuja linguagem numérica é feita de cifras que liberam o acesso à informação ou travam e rejeitam esse mesmo acesso, isto é, operam a inscrição nos bancos de dados nos quais são inseridos os indivíduos participantes das modulações e trocas flutuantes, a surfar, infinitamente divisíveis, pelos circuitos das amostragens, nos cômputos de dados ou nichos de mercado. A toupeira é o símbolo do animal político que habita as sociedades de confinamento, esse modelo social que convive ainda conosco, os animais colhidos nos anéis de serpente do controle.

Mesmo que sejam mais complicados que os buracos de uma toupeira, também nos anéis da serpente sempre podemos ainda guardar silêncio, reticência como forma de resistência. Na sociedade dos últimos homens, o sentido de autodeterminação consiste na invenção da felicidade para o maior número possível, proporcionando uma vida agradável e segura, sem grandes riscos e sofrimentos, para o que foram encontradas fórmulas eficazes e estreitas, de que muito se fala. Quanto a isso, escreve Nietzsche, “não há muito a objetar, desde que a estreiteza não vá ao cúmulo de exigir que tudo deve se tornar política nesse sentido, que todos devem viver e agir segundo esse critério. Pois antes de mais nada é preciso permitir a alguns, mais do que nunca, que se abstenham da política e se coloquem um pouco à parte: a isso também os impele o prazer da autodeterminação, e também algum orgulho que talvez derive do fato de calar quando são em demasia ou em geral apenas muitos os que falam”[12].

Para Nietzsche, um sinal confiável e mesmo um critério da força e da potência de uma pessoa encontra-se em sua capacidade de manter-se sob domínio, de poder falar e calar, que com prazer comporta-se para consigo mesmo com severidade e dureza, porque tal silêncio é o contrário da impotência, é antes o recolhimento, a meditação concentrada para a enunciação do que vem das profundezas. “Então novamente me falaram sem voz: ‘Ó Zaratustra, quem tem montanhas a mover, move também vales e baixadas… Que sabes tu disso? O orvalho cai sobre a relva quando a noite é mais silenciosa…’ Então, novamente me falaram como num sussurro: ‘As palavras mais quietas são as que trazem a tempestade. Pensamentos que vêm com pés de pomba dirigem o mundo’”[13]. Nessa perspectiva, como modo de resistência, o silêncio pode criar também novas formas de subjetivação, como o próprio Zaratustra.

Na célebre entrevista-testamento, Heidegger não deixa qualquer dúvida a respeito daquilo que pensa sobre a eficácia do falatório ou a seriedade do ativismo, que animam a crença nos poderes de ação ou intervenção filosófica sobre o curso do mundo. Para ele, por meio de um pensar não metafísico, seria possível uma atuação apenas mediata, jamais direta e imediatamente transformadora do presente estado de coisas vigente em nossas sociedades. O fator que causou mal-estar e irritação nos entrevistadores, e ainda hoje nos incomoda e intriga, é a crítica da pretensa autossuficiência demiúrgica do discurso e da ação, da onipotência tecnológica da fabricação.

A uma nova forma de pensar compete apenas a preparação de uma reticente disposição de espera.

A preparação da disposição poderia ser a primeira ajuda. O mundo não pode ser o que é e como é por meio do homem, mas também não sem o homem. De acordo com meu modo de ver, isso está ligado a que aquilo que eu designo – com uma palavra há muito traditada, equívoca e hoje desgastada – “o Ser” precisa do homem para a sua manifestação, custódia e configuração. Vejo a essência da técnica naquilo que denomino Ge-Stell (armação), uma expressão frequentemente objeto de riso e talvez inapropriada. A vigência (das Walten) da armação (Ge-Stell) significa: o homem é colocado, exigido e provocado por um poder (Macht) que se torna manifesto na essência da técnica, e que ele próprio não domina. O pensar não exige mais do que ajudar a chegar a esse discernimento. A filosofia está no fim[14].

Com efeito, para Heidegger, o pensamento autêntico consiste, para nós, em estar atento e corresponder, pela escuta e pelo silêncio, a um chamamento que nos concita para a necessidade do inútil, daquilo que não é instrumentalizável, que não pode ser transformado em variável de cálculo na espiral de mobilização de todas as coisas para fins de valorização, produção, provisionamento, estocagem, distribuição, comutação, consumo e reprodução infinita do mesmo ciclo – aquilo que Heidegger denominou armação (Ge-Stell): a figura ou o aspecto assumido pelo ser dos entes na escalada planetária da tecnologia. Na fúria desencadeada da armação, a sobrevivência das sociedades contemporâneas está na dependência direta da atualização permanente de seu potencial tecnológico, o que pode também resultar numa compulsória e devastadora pilhagem do planeta, a que corresponde uma crescente desertificação da natureza humana. Devastação/ desertificação (Verwüstung) é a palavra de Heidegger para esse acontecimento epocal, que determina uma era da história do Ser e a face de nosso mundo. Não se compreende nem se enfrenta essa devastação da Terra e do homem por meio de censura, de condenação moral ou de conclamação a novas tecnologias de controle sociopolítico. A tarefa urgente do pensamento em nossos dias consiste em estar consciente da usura do tempo, ter boa vontade e disposição para com o inútil, o não mobilizável, o que não pode ser submetido ao desgaste por meio do processo da própria valorização. Para Heidegger, a técnica moderna traz à luz e torna manifesto seu estatuto de exploração, um extrair na “forma do desafio (Herausforderung), que estabelece para a natureza a exigência de fornecer energia suscetível de ser extraída e armazenada enquanto tal”[15]. Como modo da poiesis, a técnica moderna dispõe os entes como objetos num processo reiterativo formado por extração, transformação, preparação, armazenamento, distribuição, comutação, consumo, desgaste: numa circularidade sem começo nem fim.

O nosso presente é aquele em que enfim tornou-se visível que a essência da vontade de poder coletiva e anônima que anima a modernidade contém um elemento originariamente hostil, persecutório: “Se, portanto, o homem, ao pesquisar e observar, persegue a natureza enquanto uma região de seu representar, então ele já é convocado por um modo de desabrigamento que o desafia a ir ao encontro da natureza enquanto um objeto de pesquisa, até que também o objeto desapareça na ausência de objeto da subsistência. Assim, a técnica moderna, enquanto desabrigar que requer, não é um mero fazer humano. Por isso, devemos também tomar aquele desafiar, posto pelo homem para requerer o real enquanto subsistência, tal como se mostra. Aquele desafiar reúne o homem no requerer. Isto que é reunido concentra o homem para requerer o real enquanto subsistência. […] Denominamos agora aquela invocação desafiadora que reúne o homem a requerer o que se descobre enquanto subsistência de armação (Ge-Stell), como fabricação”[16].

Essa é a hybris da subjetividade moderna, que transforma todos os entes – inclusive o próprio homem – em elementos disponíveis, em parcelas calculáveis, num processo contínuo de produção e consumo (desgaste) de tudo o que existe, cuja única estabilidade consiste na intensificação dos dispositivos de transformação, disponibilização e circulação, em cuja dinâmica homens e coisas perdem a essência em que repousam, não podem mais conciliar-se com aquilo que são, e passam a ser tragados na voragem devastadora do desgaste dos materiais.

A malignidade desse desgaste alcança seu ponto extremo precisamente na aparência enganadora de seu oposto, a saber, “quando ela se instalou na aparência irrefletida de um estado do mundo assegurado para colocar diante do homem, como meta suprema de sua existência, um standard de vida satisfatório, cuja efetivação tem de ser garantida”[17]. A garantia de realização desse pretenso ideal de bem-estar, prosperidade, segurança e conforto parece ter como condição um estado de paz consolidada. No entanto, o que efetivamente ocorre é que, em nosso tempo, a paz é apenas a perpetuação da guerra por meio da política, a própria paz constitui uma peça integrante da dinâmica compulsória da devastação.

A despeito do formigamento incessante dos discursos, e malgrado todas as “boas intenções” de seus agentes e promotores, o humanismo contemporâneo enreda-se em dar seguimento à completa objetivação da natureza, transmudando a essência e a destinação do homem de “pastor do ser”, preocupado com o cuidado dos entes, na “mais importante matéria-prima” a ser mobilizada e consumida na voragem do desgaste (Vernutzung) universal das coisas e dos homens.

Quando tiver êxito o domínio da energia atômica, e este êxito ocorrerá, então se iniciará um desenvolvimento totalmente novo do mundo técnico. O que conhecemos hoje como técnica cinematográfica e televisiva, como técnica de transportes, das comunicações, como técnica médica e de nutrição, representa, supostamente, apenas um estágio inicial e grosseiro. Ninguém pode saber as reviravoltas que estão por vir. Enquanto isso, o desenvolvimento da técnica se dará em um curso cada vez mais rápido e não poderá ser detido em parte alguma[18].

O credo antropocêntrico e humanista é uma ilusão ingênua e perigosa, pois concebe a tecnologia como instrumento à disposição e controle da racionalidade humana. Para Heidegger, “nenhum indivíduo, nenhum grupo humano, nenhuma comissão de relevantes estadistas, pesquisadores ou.técnicos, nenhuma conferência de dirigentes da economia e da indústria consegue frear ou direcionar o curso histórico da época atômica. Tudo se passa como se o homem de hoje, em face do pensamento meramente calculatório, renunciasse a inserir o pensamento meditativo num papel determinante”[19]. Heidegger confia na potência silenciosa da meditação: embora não tenha a mesma eficácia instrumental do pensar calculatório, a meditação preocupada não deixa de ser determinante, nem se esgota em reverência ao fato; a palavra serenidade não é sinônimo de resignação. Com ela, Heidegger pensa um agir amadurecido, liberado da insânia compulsiva do ativismo, do falatório vazio e pomposo vigente na esfera pública contemporânea.

Como disse Adauto Novaes:

O que tanto se fala? Estamos entrando na civilização de falastrões em facebooks, twitters (escritos na cadência da fala), celulares, conversas online? A linguagem técnica domina a fala e põe em lados opostos os números, a percepção e experiência do mundo? George Steiner, em Linguagem e silêncio, escreve: “O alfabeto da ciência econômica moderna não é mais a palavra, mas sim a tabela, o gráfico, o número.[…] Grande parte da sociologia atual é iletrada, ou, para ser mais preciso, antiletrada. […] Quando tem de permanecer verbal, toma emprestado o que pode do vocabulário das ciências exatas. […] Graças à matemática, as estrelas saem da mitologia para figurar na tabela do astrônomo”. Qual é a importância do silêncio para a criação de obra de arte e de obra de pensamento? Como enfrentar o paradoxo: se é graças à fala que o espí rito se desenvolve e assim pensamos e, ao pensar, voltamo-nos contra a fala prosaica e nos livramos das evidências pronunciadas?[20].

É justamente esse paradoxo que dá a pensar hoje em dia.

Por essa razão, talvez seja hoje irrecusável o diagnóstico heideggeriano segundo o qual um dia compreenderemos a essência da devastação precisamente lá onde a terra e o povo não foram afetados pelos efeitos mais destruidores de uma guerra:

Onde, portanto, o mundo resplandece no brilho da ascensão, das vantagens e dos bens que proporcionam a felicidade, onde os direitos humanos são respeitados, e a ordem civil burguesa é sustentada, sobretudo onde está garantido o aporte provisional para a saturação permanente de um bem-estar sem perturbação, de modo que tudo é calculado e inserido no âmbito do útil aproveitável e aí permanece. Onde sobretudo o inútil (das Unnotige) inibe o curso dos dias, e traz consigo as temidas horas vazias, nas quais o homem torna-se tedioso para si mesmo[21].

Numa época em que a essência da subjetividade mostra-se dramaticamente na sublevação do homem, indívíduos, grupos, nações e blocos, que se instalam autosuficientemente sobre si mesmos para afirmar-se como o fundamento e o parâmetro, torna-se necessário e urgente reaprender a pensar. Pois, se vivemos atualmente uma confluência entre o nacional e o internacional, não há como deixar de reconhecer, em ambos, no plano das nações e da ordem internacional, a persistência da vontade de poder e da subjetividade, da qual irrompe “laboração naquela forma de vida por meio da qual se prepara a devastação da Terra, que, finalmente, é instalada como o incondicionado. A única lei da devastação é que o útil seja o supremamente útil e o unicamente útil”[22]. Nisso estão de pleno acordo as nações e a ordem internacional.

Porque são capazes de guardar silêncio e dispor-se para ouvir, os filósofos e os poetas são pessoas capazes de sentir e mensurar o sofrimento que nasce da privação do pensamento; eles têm consciência da importância que existe em pensar a necessidade do inútil como a suprema dignidade do homem; pois os poetas e pensadores são as sentinelas, que se encontram sempre à espera daquilo que, em meio ao perigo extremo, traz a salvação. “Lá onde há o perigo, lá vigora também aquilo que salva”, escreveu o poeta Hölderlin. Nesse sentido, pensadores e poetas oferecem-se como os postigos, as portas de entrada para o acontecer do que sempre está a caminho, em correspondência, como abertura acolhedora desse acontecer que deles se apropria. A suprema dignidade humana na poesia e na filosofia consiste em que no poetar e no pensar o homem, ao despojar-se da insurreição arrogante da subjetividade e da Vontade, abandona-se, com inteira confiança, ao poder não querer, à plena liberdade da pobreza, que consiste em não carecer nem depender mais de manter abaixo de si algo em que possa firmar-se e manter-se sempre em segurança.

No poetar e no pensar o homem, em silêncio, habita a linguagem – a casa do Ser. Nessa morada, na clareira do presente, ele habita também o tempo do desnecessário, e, de posse de sua essência como mortal, pode manter-se em correspondência com os prenúncios dos destinamentos que sempre se encontram a caminho. “Os maiores acontecimentos e pensamentos – mas os maiores pensamentos são os maiores acontecimentos – são os últimos a serem compreendidos: as gerações que vivem no seu tempo não vivenciam tais acontecimentos – elas passam ao largo deles. Ocorre algo semelhante no reino das estrelas. A luz das estrelas mais distantes é a última a chegar aos homens; e enquanto ela não chega, os homens negam que ali haja estrelas”[23].

Nossa dificuldade maior reside na impossibilidade de falar adequadamente de si próprio, de ser contemporâneo de si mesmo. Por causa disso, só podemos nos colocar à altura de nosso próprio tempo como má consciência, ou seja, na condição paradoxal de extemporâneos. Nas pegadas desse lnsight nietzschiano, Giorgio Agamben chegou a uma compreensão essencial desse paradoxo. Temos pouquíssimas palavras para enunciar a compreensão justamente de nós mesmos, e só podemos fazê-lo na fratura da extemporaneidade, a saber, denunciando a impostura e a inautenticidade de nosso próprio tempo.

No firmamento que olhamos de noite, as estrelas resplandecem rodeadas por uma espessa penumbra. Tendo-se em conta que há no universo um número infinito de galáxias e de corpos luminosos, a sombra que vemos no céu é algo que, segundo os cientistas, requer uma explicação. Gostaria de falar agora da explicação que a astrofísica contemporânea dá para essa sombra. No universo em expansão, as galáxias mais remotas se afastam de nós a uma velocidade tão grande que sua luz não pode chegar a nós. O que percebemos como a sombra do céu é essa luz que viaja extremamente veloz até nós e, no entanto, não pode nos alcançar, porque as galáxias das quais ela provém se afastam a uma velocidade superior à velocidade da luz. Perceber essa luz que tenta nos alcançar, e não pode, na escuridão do presente: isso significa ser contemporâneo. Daí vem que ser contemporâneos é, antes de tudo, uma questão de coragem: porque significa ser capazes não apenas de manter o olhar fixo na sombra da época, mas também perceber nessa sombra uma luz que, dirigida até nós, se afasta infinitamente de nós. Isto é: chegar pontualmente a um encontro ao qual só é possível faltar[24].

Se o nosso tempo, o presente, não nos é contemporâneo, mas sim o que é mais afastado de nós, de modo tal que não podemos alcançá-lo, então tudo o que sobre ele podemos falar é o que Clarice Lispector diz sobre silêncio: “Ouve-me, ouve meu silêncio. O que falo nunca é o que falo e sim outra coisa. Capta essa outra coisa de que na verdade falo porque eu mesma não posso. Lê a energia que está no meu silêncio. Ah tenho medo do Deus e do meu silêncio. Sou-me”[25].

Notas

  1. Baruch Espinoza, Ética III, Proposição II, Escólio, trad.Joaquim Ferreira Gomes. Coleção Os Pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 186.
  2. Idem, Ética I, Apêndice, trad. Joaquim Ferreira Gomes. Coleção Os Pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 122.
  3. Michel Foucault, Histoire de la sexualité I: la volonté de savoir, Paris: Gallimard, 1976, p. 25.
  4. Idem, ibidem.
  5. Idem, p. 26.
  6. Gilles Deleuze, Conversações, trad. Peter Pál Pelbart, São Paulo: Editora 34, 1992, p. 219.
  7. Giorgio Agamben. Qu’est-ce qu’un dispositive?, trad. Martin Rueff, Paris: Payot, 2007, p. 31.
  8. Michel Foucault, Em defesa da sociedade, São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 311. Na nota de rodapé n. 5 desta página, lê-se: “Hitler, já em 19 de março, tomara disposições para a destruição da infraestrutura logística e dos equipamentos industriais da Alemanha. Tais disposições estão anunciadas em dois decretos, de 30 de março e de 7 de abril. Sobre esses decretos, cf. Albert Speer, Erinnerungen, Berlim: Propylaen Verlag, 1969, Foucault certamente leu a obra de Joachim Fest, Hitler, Frankfurt, Berlim, Viena: Verlag Ullstein, 1973 (trad. francesa, Paris: Gallimard, 1973)”.
  9. João Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas, São Paulo: Círculo do Livro, Editora Nova Fronteira, 1984, p.319.
  10. Martin Heidegger, Ser e tempo,§ 56, trad. Fausto Castilho, Campinas/Petrópolis: Editora da Unicamp/Vozes, 2012, p. 751.
  11. Gilles Deleuze, op. cit., p. 225.
  12. Friedrich Nietzsche, Humano, demasiado humano, trad. Paulo César de Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 2000, v. 1, aforismo 438, p. 237, trad. ligeiramente modificada.
  13. Friedrich Nietzsche, Assim falou Zaratustra, trad. Paulo César de Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 138.
  14. Rudolf Augstein; Georg Wolff, “Nur noch ein Gott kann uns retten”, Der Spiegel. Hamburgo: 1976, vol. 23, pp. 193-219.
  15. Martin Heidegger, A questão da técnica, trad. Marco Aurélio Werle, Cadernos de Tradução n. 2, São Paulo: Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, 1997, p. 57.
  16. Idem, ibidem, p. 65.
  17. Martin Heidegger, Abendgespriich in einem Kriegsgefangenenlager, em: Feldweg-Gespriiche, Gesamtausgabe, Frankfurt/M: Vittorio Klostermann, 2007, Band 77, p. 214.
  18. Idem, Gelassenheit, Pfullingen: Verlag Günther Neske, 1992, p. 1
  19. Idem, ibidem, p. 20.
  20. Adauto Novaes, Mutações – O silêncio e a prosa do mundo, programa da conferência, Rio de Janeiro: Artepensamento, 2013, p. 7.
  21. Martin Heidegger, op. cit., p. 216.
  22. Idem, ibidem, p. 235.
  23. Friedrich Nietzsche, Além do bem e do mal, trad. Paulo César de Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 174.
  24. Giorgio Agamben, O que é contemporâneo?, trad. Vinicius Nicastro Honesko, Chapecó: Argos, 2009.
  25. Clarice Lispector, Água viva, Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p. 34.

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