1998

Primeira missa e invenção da descoberta

por Jorge Coli

Resumo

A Primeira Missa no Brasil de Victor Meirelles (1859) instalou o Descobrimento de modo definitivo em nossa cultura, ao recriar o “ato fundador” da Carta de Pero Vaz de Caminha. E, como esta foi publicada pela primeira vez somente em 1817, pode-se dizer que a Descoberta do Brasil é uma invenção do romantismo do século XIX. Foi a “visão do Paraíso” da Carta de Caminha, destacando a união de índios e portugueses, que levou Araújo Porto Alegre, então mentor do jovem Victor Meirelles, a escrever-lhe estes versos: “Já que o céu te chamou Victor na terra, / lê Caminha, pinta e então caminha”. Meirelles inspira-se na Première Misse en Kabilie  de Horace Vernet que, em 1853, celebrara o domínio colonial da França na África do Norte. Mas a maneira de conceber e de pintar a cena é muito diferente entre os dois. Enquanto Vernet narra com precisão um episódio histórico, Meirelles põe a cena principal mais ao longe, num clima espiritualizado e um pouco onírico que reúne os participantes numa espécie de útero. Não há a imposição do vetor missionário de “mão única” como em Vernet. Em 1948, Portinari também pintará uma Primeira missa, mas rejeitando a integração entre índios e europeus. Um novo mito, crítico desta vez, revê a história. Mas o modelo é sempre a Missa de Meirelles, com seus valores pictóricos adequados, sem brilhos excessivos nem rigidez simétrica. A convergência rara de formas, intenções e significados faz de seu quadro uma imagem do Descobrimento que dificilmente poderá ser apagada ou substituída.


A descoberta do Brasil foi uma invenção do século XIX. Ela resultou das solicitações feitas pelo romantismo nascente e pelo projeto de construção nacional que se combinavam então. Como ato fundador, instaurou uma continuidade necessária inscrita num vetor dos acontecimentos. Os responsáveis essenciais encontravam-se, de um lado, no trabalho dos historiadores, que fundamentava cientificamente uma “verdade” desejada, e, de outro, na atividade dos artistas, criadora de crenças que se encarnavam num corpo de convicções coletivas.

A ciência e a arte, dentro de um processo intrincado, fabricavam “realidades” mitológicas que tiveram, e ainda têm, vida prolongada e persistente.

O quadro de Victor Meirelles, retratando a Primeira missa no Brasil, tal como foi descrita na carta de Pero Vaz de Caminha, é um episódio muito expressivo dentro desses processos. Ele fez, em grande parte, com que o Descobrimento tomasse corpo e se instalasse de modo definitivo no interior de nossa cultura. Assim, revela-se um excelente objeto de análise para a compreensão de procedimentos artísticos que dependem, em sua própria gênese, das contribuições originadas no projeto ideológico mais geral, na própria natureza de uma história capaz de engendrar o passado que se deseja, e na relação cúmplice entre as duas disciplinas no sentido de conferir aos construtos resultantes uma força efetiva de persuasão e de certeza.