Racionalidade e acaso
por Gerd Bornheim
Resumo
Não é errado afirmar que o maior empenho do pensamento filosófico da Grécia antiga resume-se no embate contra o acaso, pois é através dele que se dá um passo decisivo na história humana: o do reino da necessidade para o reino da racionalidade. E é a partir deste que se começa a trabalhar com a noção de “aletheia” ou verdade. Ela que consiste em desvelar a dinamicidade da natureza, numa amplitude interpretativa tal que compreende em si tudo o que “é”, inclusive os deuses.
Se tal empreitada mostra-se, de início, lenta e obscura, ela logo dá sinais de inquietação, como bem a representa a clássica técnica socrática do diálogo. À frente, um discípulo de Aristóteles, Estragão, usa mesmo o termo “machine” no que se refere a forçar a natureza a se desocultar. “Máquina” refere-se, nesse contexto, a quê? A dois tipos de artefato: o de guerra – como o aríete ou o famoso “cavalo de Troia” – e o teatral. É neste tipo que cabe se deter.
Sabe-se que o teatro grego, na época de Ésquilo – ou seja, depois de 500 a.C. –, não apenas substitui a carroça de Téspis por uma sólida estrutura teatral como desenvolve diversos artefatos, dos quais o mais conhecido é um guindaste (chamado, aliás, de “mechanè”) cujo principal objetivo era depositar, vinda do alto, a figura da deusa Tétis ou Atena sobre o palco. Fato é que todo o teatro grego passa a uma imensa máquina que, através de certos expedientes – como o reconhecimento ou a peripécia –, procura manifestar a verdade, o que se estende ao teatro medieval e seus mistérios divinos, a exemplo de um famoso jogo de cena em que são Pedro caminha sobre as águas.
Mas é só com o êxito da Revolução Industrial que a máquina assume de vez o espaço que a tornou familiar ao olhar moderno, numa mudança de sentido que se sobrepôs às suas concepções anteriores – menos no que concerne à verdade. É que, a partir de Platão e Aristóteles, passa-se da noção de “aletheia” para a de “omorosis” ou “adequatio”, ou adequação. Desde então, a verdade é constatada sempre que a ideia que o sujeito faz de determinado objeto coincide com ele. Tal concepção é, hoje, aceita como um fato natural – como se diz que é evidente que a neve é branca. A tradição, porém, nunca compreendeu de modo tão simplório tal determinação de verdade. Não apenas porque dela se destaca a cartesiana disparidade entre o sujeito espiritual que conhece e a materialidade do objeto conhecido, mas principalmente porque sujeito e objeto não oferecem, metafisicamente, nenhuma autonomia. E de fato, no passado, esse processo vinculava-se a nada menos do que à presença do Absoluto. Assim, a comunicação do conhecimento era garantida por uma religação estabelecida pela atuação do próprio Deus. Ela que sempre constituiu um tema maior da metafísica e oferece uma história pródiga em interpretações, desde a “illuminatio” agostiniana, ou seja, a presença efetiva da luz divina no ato de conhecer, até a referência menos espetacular às simples essências. Entende-se, por aí, que a verdade só se alcança através dessa conaturalidade (a “conaturalitas” ou a “similitudo” dos medievais), que estabelece, de diversos modos, a dicotomia sujeito-objeto no próprio Deus. Até porque, com a crise da metafísica, ela se desembaraça de tal mediação. Surge a pura e simples dicotomia sujeito-objeto. Há, então, a moderna revolução tecnológica e a referida transformação da essência da máquina.
Esses fatos extraordinários levam milênios para concretizar-se e manifestam todas as suas virtualidades apenas a partir do assentamento da cultura burguesa, quando um Francis Bacon, por exemplo, asseverava que o saber traz em seu bojo o poder, uma modalidade de dominação, o que se concretizaria de modo especialmente claro com o advento da moderna tecnologia. Realmente, o procedimento de construção do objeto põe-no à disposição do homem. Mais: torna-o tão dócil à manipulação que transforma o próprio planeta em objeto. Claro fica que, com isso tudo, os meios de acesso à dominação plena do objeto, ou seja, as questões metodológicas passam a desfrutar de um privilégio que, hoje, chega a dar até mesmo mostras de desmedida.
OBSERVAÇÕES PRELIMINARES
A questão proposta é a do acaso. Na tradição ocidental, o tema aparece invariavelmente ligado a um outro, o da razão: o dos limites e do alcance da racionalidade. Nem seria errôneo afirmar que o empenho maior do pensamento filosófico inaugurado na Grécia antiga resume-se em querer vencer a sujeição ao acaso. De fato, um dos traços peculiares ao homem primitivo está em deixar-se surpreender pelo acaso, em guiar-se pelo imprevisível. Já o homem racional instaurado pelos gregos entrega-se, pela primeira vez na história, a esse esforço descomunal e decisivo para a evolução do Ocidente, de tentar conjurar o mais possível as peias do acaso, estabelecendo as bases para um comércio racional do homem com o seu meio ambiente; mais precisamente: a postura racional passou a designar, de modo gradativo, um comportamento de dominação por parte do homem; elaborando racionalmente as suas relações com a natureza, o homem terminaria abocanhando as vantagens de ver subordinada a natureza aos seus desígnios pessoais. Cabe, pois, avançar que se delineia assim o projeto de base, a ideia que se explicitaria aos poucos e que preside todo o desenvolvimento da filosofia e das ciências ocidentais.
Digamos, então, arredondando um pouco as coisas, que há uma passagem do reino do acaso para o reino da racionalidade, num passo em tudo decisivo para a história do homem. E observe-se que, neste processo, o que está em causa é nada menos que a própria concepção da verdade. Sabe-se hoje que a concepção da verdade na Grécia clássica — aletheia — consistia numa manifestação ou desvelamento que se verificava independentemente do homem; era a própria dinamicidade da natureza, e de uma natureza interpretada de modo muito amplo, que compreendia em si tudo o que é, inclusive os deuses, e dotada, já por isso, de certa inteligência que a armava em função de certos fins — é essa natureza que se manifestava a partir de si mesma. E o homem, basicamente, assistia passivo a essa manifestação. A verdade, por conseguinte, equacionava-se em nível ontológico e não gnosiológico.
Entrevê-se, assim, que é principiando por essa passividade do homem que toma início o evolver do sentido da verdade. Porquanto, a ficar-se nela, jamais se poderia ter dado aquele passo do reino do acaso para o do racional. Realmente, não é difícil imaginar que aquela passividade oferecesse uma lerda e obscura trajetória, mas que, assim mesmo, logo começasse a dar sinais de inquietação, recorrendo a lances por meio dos quais irromperia a presença humana na própria intimidade do processo da verdade. E aqui também a iniciativa maior coube aos gregos. Um exemplo de um artifício para provocar o advento da verdade é, sem dúvida, a técnica do diálogo cultivada já pelos pré-socráticos e que tornou famoso o “parteiro” Sócrates. Foi também neste sentido que, em outro lugar[1] chamei a atenção para outro rico exemplo de tal tipo de ocorrência, baseado num texto de um discípulo de Aristóteles, Estragão. Assevera este texto que, se o próprio da natureza está em chegar a desvelar-se, sucede, entretanto, que, por vezes, a manifestação custa a acontecer, o que acabou levando o engenho humano a lançar mão de outros recursos, de certa tecne, para forçar a natureza a desocultar-se. E Estragão fala em machine, “máquina”. Esta palavra grega refere-se a dois tipos de artefato: existe a máquina de guerra, como o aríete ou o famoso e curioso cavalo de Tróia, e há a máquina de teatro, e é sobretudo neste segundo caso que a máquina adquire todo o seu significado. Vale a pena uma breve detença no tema.
Sabe-se que o teatro grego, na época de Esquilo, a partir do ano 500, não apenas substitui a carroça ambulante de Téspis por uma sólida arquitetura teatral, mas desenvolve também diversos tipos de máquinas, a mais conhecida das quais era uma espécie de guindaste (que se chamava propriamente de mechanè), cuja missão consistia, por exemplo, em depositar, vinda do alto, a figura da deusa Tétis, na Andrômaca, ou Atena, na Ifigênia em Táuris, sobre o palco; há autores ingleses e alemães que discutem até mesmo a maneira pela qual a deusa deveria desvencilhar-se das correias que a prendiam à dita máquina, sem perder a majestade própria de sua condição.[2]
No fundo, todo o teatro grego era uma imensa máquina que, através de certos expedientes, como aqueles analisados por Aristóteles — nomeadamente a peripécia e o reconhecimento —, tinha por objetivo tornar manifesta a verdade. Neste procedimento, a máquina desempenhava um papel muito singular: o que se desoculta é precipuamente a intercessão dos deuses. E não será mera curiosidade lembrar que tal recurso à máquina voltará a repetir-se no teatro dos mistérios medieval, exatamente com a mesma finalidade: a mostração da Justiça divina, a verdade dos mistérios de Deus; os artifícios criados pelos técnicos medievais — os maîtres des secrets, maîtres de jeux, maîtres des feux — já são bem mais conhecidos por nós do que os dos gregos, e estes homens surpreendem por sua incrível habilidade no manejo de máquinas altamente complicadas. Havia um, em Rouen, no século XIV, que se tornou famoso por mostrar são Pedro caminhando sobre as águas[3]. A história dessas sempre sofisticadas máquinas de teatro encerra o seu ciclo com o teatro jesuítico da Contra-Reforma, e sempre com a mesma determinação: a de tornar manifesta a verdade sobrenatural, como que a mostrar que o velho conceito grego de aletheia não desaparecera de todo do cenário histórico após o advento da metafísica platônica. Realmente, foi apenas depois do Barroco, com o êxito da Revolução Industrial, que a máquina assumiu de vez os espaços que a fizeram familiar aos nossos olhos, numa radical transmutação de sentido, tão radical que o antigo sentido da máquina caiu em completo esquecimento — talvez subsista apenas na produção de alguns truques para fazer divertir.
De feito, o advento da moderna indústria tecnológica fez com que o contexto em que passa a dispor-se a máquina mudasse completamente de configuração. Entretanto, tal mudança obedece a certas coordenadas que começam a ser pensadas já na antiga Grécia, e que novamente se relacionam com a questão da verdade. É que a verdade, a partir de Platão e Aristóteles, passa a ser determinada de um modo novo, verificando-se uma transmutação em sua própria essência: de aletheia, ela passa a ser omoiosis, palavra esta magistralmente bem traduzida por Cícero por adaequatio. Desde então, entende-se usualmente a verdade como sendo o resultado de uma adequação, ou seja, a verdade pode ser constatada sempre que a ideia que o sujeito forma de determinado objeto coincida com este objeto. Hoje, esta concepção da verdade tornou-se aceita como um fato por assim dizer “natural”: a evidência impõe que se possa afirmar que a rosa é vermelha. A tradição, porém, nunca compreendeu de modo tão simplório tal determinação da verdade; não apenas porque salta aos olhos a cartesiana disparidade entre o sujeito espiritual que conhece e a materialidade do objeto conhecido, mas principalmente porque sujeito e objeto não oferecem, metafisicamente considerados, nenhuma autonomia. Aliás, já a própria palavra grega e também a latina que designa a adequação põem à mostra a grande complexidade do problema; a palavra orno, presente em omoiosis, significa “igual”, e a tradução ciceroniana, antepondo à aequatio (de aequalitas, “igual”) a preposição ad (“ir para, em direção de”), sugere que o ato do conhecimento consiste num ir ao igual, na frequentação da igualdade do igual. E de fato, no passado, esse processo todo vinculava-se nada menos que à presença do Absoluto — a comunicação que é o conhecimento era garantida por uma religação estabelecida pela atuação do próprio Deus, atuação esta que sempre constituiu um tema maior da metafísica e oferece uma história pródiga em interpretações, desde a illuminatio agostiniana, a presença efetiva da luz divina no ato de conhecer, até a referência menos espetacular às simples essências; claro que tais essências ostentam o perfil de uma estabilidade genérica, que também não poderia prescindir de sua fundamentação em Deus. Entende-se, por aí, que a verdade só se alcance através dessa conaturalidade (a conaturalitas ou a similitudo dos medievais), que estabelece, de diversos modos, a dicotomia sujeito-objeto no próprio Deus.
Feitas essas observações de ordem metafísica, diga-se que, para o nosso tema, o que interessa está justamente no comportamento da dicotomia sujeito-objeto. Mesmo porque, com a crise da metafísica, a dicotomia vai desembaraçar-se daquela presença de Deus, e é dentro deste contexto que surgirá a moderna revolução tecnológica e a referida transformação da essência da máquina. A aletheia e a adaequatio, respeitadas as diferenças, oferecem um traço comum que lhes é essencial: a presença dos deuses. Mas o que distingue as duas concepções da verdade está precisamente no súbito aparecimento da dicotomia sujeito-objeto no contexto da adequação. E mais importante ainda: é que já a partir dos antigos desenvolve-se, dentro do horizonte da dicotomia, uma lenta e definitiva educação do sujeito, a par de uma revolucionária transmutação do objeto. Estes fatos extraordinários levaram milênios para concretizar-se e vieram a manifestar todas as suas virtualidades apenas a partir do assentamento da cultura burguesa, quando um Francis Bacon, por exemplo, asseverava que o saber traz em seu bojo o poder, uma modalidade de dominação, o que se concretizaria de modo especialmente claro com o advento da moderna tecnologia.
Mas este longo itinerário começou sem dúvida com os gregos. É preciso, ensinava já Platão, que o sujeito seja educado, que ele aprenda a bem orientar a sua visão, a ver corretamente (orthotes é a palavra que aparece no relato do mito da caverna), e a partir daí desenvolveu-se ao longo dos séculos um rico manancial de métodos, cujo primeiro grande monumento, até certo ponto definitivo, é o Organon, a lógica de Aristóteles — todos destinados a garantir o bem pensar, e todos apoiados em um mesmo critério fundamental: a submissão ao princípio de identidade e a exclusão de todas as formas de contradição. O sujeito passa, por tais vias, a assumir uma responsabilidade muito grande no estabelecimento da verdade. Por isso mesmo, entende-se que ele comece a ostentar uma história, a fazer-se o lugar de certos privilégios. Se nos inícios o sujeito quase desaparecia em face da presença em tudo decisória do objeto, aos poucos avolumam-se as suas funções, e, notadamente no decorrer da metafísica moderna, tudo passa a depender de seu arbítrio. Assim é que, já para Descartes, o ato de pensar impõe-se como a primeira certeza absoluta, ponto de partida para toda construção válida; além disso, o sujeito passa a presidir a constituição do objeto, decompondo e recompondo com determinados critérios o que lhe é ofertado: abandona-se de vez a esfera da coisa e penetra-se decisivamente na do objeto. Entende-se, desse modo, o acertado prognóstico de Francis Bacon. Realmente, o procedimento de construção do objeto põe-no à disposição do homem, torna-o dócil à manipulação, e abrem-se assim as portas para que o homem chegasse a transformar o próprio planeta em objeto. De fato, já não existe mais a grande natureza dentro da qual permanecia envolvido o homem — salvo, para lembrar a ironia de Marx, a de algumas ilhas-corais australianas recentemente descobertas. Claro fica que, com isso tudo, os meios de acesso à dominação plena do objeto, ou seja, as questões metodológicas, passam a desfrutar de um privilégio que, em nossos dias, chega a dar até mesmo mostras de desmedida.
Digamos, para voltar por um instante ao acaso, que se busca agora a instauração de um novo tipo de necessidade. Lembro, a título de exemplo, que a tragédia de um Édipo repousa sobre uma sequência de acasos: os acasos do encontro com o seu pai na paisagem de uma encruzilhada que tudo tornaria suspeito e que levaria ao assassinato de um suposto bandido; acasos dos encontros com Jocasta, que os levariam ao casamento e, portanto, a um involuntário incesto. E estes acidentes de percurso, aparentemente tão corretos, transmutar-se-iam na terrível necessidade que constitui o estofo último da tragédia. O imprevisível acasala-se com a desmedida, e desperta um destino que é como que um limite extremo do próprio acaso. A necessidade apresenta aqui uma natureza extra-humana, condição da própria essência da tragédia; mas é justamente tal necessidade que iria transformar-se, a ponto de tornar problemática até mesmo a possibilidade da tragédia: e é que, por razões que derivam de dentro do espaço que configura a modificação da essência da verdade, a necessidade passa a verificar-se no âmbito em que se verifica a dicotomia sujeito-objeto. Afastada dos deuses, ela se torna, antes de tudo, calculável, integrando assim os procedimentos de dominação.
A RACIONALIDADE
Detenho-me mais um pouco no tema da racionalidade para poder então voltar ao acaso. Sabe-se do extraordinário sucesso do racionalismo no decurso da filosofia moderna. A escassa crítica que se lhe fez na época, mas que despontava aqui ou ali, não conseguiu realmente prejudicar a crença na superioridade da razão, e, com um sucesso mais do que confirmado, logo surgiria a ideia de que o todo da sociedade deveria ser reestruturado em conformidade com preceitos estritamente racionais. E a maior garantia a sustentar tanto otimismo estava na ideia de que a estrutura última da realidade é racional. Foi Hegel quem deu a formulação mais concisa dessa ideia-força, ao escrever, no prefácio de sua Filosofia do direito, a bem conhecida afirmação de que “o que é racional é real, e o que é real é racional”[4]. E acrescenta o filósofo: “Nesta convicção está não só a filosofia, mas toda consciência despreconceituosa”[5]. Essa ousada convicção autorizará que se empreste o melhor do empenho filosófico à construção do sistema: em si mesma, a realidade seria sistemática, ou seja, um composto de partes racionais, racionalmente relacionadas e que constituem um todo que coincide com os limites da própria realidade, ela mesma igualmente racional[6]. A construção sistemática revela-se tão exata, que ela poderia inclusive ser deduzida, sem que o procedimento representasse o menor desrespeito à estrutura definitiva da realidade. Mas será precisamente deste ponto que arranca a crítica ao triunfalismo sistemático, e, inaugurando a filosofia contemporânea, são mil cabeças que se erguem contra a hegemonia do racional. Seja pelo voluntarismo, ou pela vivência irracional, ou pelo inconsciente, ou pela história votada ao particular, ou pela atenção ao homem enquanto singular concreto, desde a fé kierkegaardiana até o corps propre de Merleau-Ponty, tudo parece confirmar, ao menos em nível filosófico, a decadência terminante do próprio conceito de sistema.
Em verdade, contudo, por mais justas que possam ser as razões que levaram a rejeitar a ideia de sistema, a filosofia só conseguiu expulsá-la de seu próprio seio, já que, afora o pensamento filosófico, o sistema continua exibindo o impressionante vigor de sua presença, que decorre, antes de tudo, daquela mencionada aliança entre o conhecimento e o poder. Realmente, salta aos olhos que a imperiosidade do sistema conseguiu invadir — sem esquecer a sua soberania em ciências puramente formais — largos setores do mundo contemporâneo, a ponto de se poder dizer que, mais do que nunca no passado, o homem atual vive dentro do sistema; o sistema tornou-se como que coextensivo à própria realidade social: já nem se alcança imaginar o mundo sem essa incoercível tendência a tudo sistematizar. Hoje, para entender o que é um sistema, basta frequentar uma agência bancária ou um supermercado, entrar num escritório ou visitar as instalações de uma indústria, ou, simplesmente, deslizar de carro pelas ruas de uma cidade. O sistema confirma-se naquilo que sempre foi: uma racionalidade que tende a realizar a sua própria perfeição. Se o tráfego não funciona, é porque o seu sistema não foi bem elaborado. E tudo vai tão longe que cabe até afirmar que a citada frase de Hegel — que todo racional é real e todo real é racional — em ampla medida tornou-se efetiva. Tanto, que ela já pode dispensar a filosofia: agora, o sistema caminha apoiado em suas próprias pernas. Não apenas as estruturas sociais tornam-se mais racionalmente transparentes, como também a sede de dominação do sistema parece não tropeçar em entraves. O sistema se aninha até mesmo na intimidade do homem, uma grande quantidade das críticas que se fazem ao mundo contemporâneo, ao que nele funciona e ao que não funciona, decorre das exigências do sistema, perfeitamente bem assimiladas pelo comum dos mortais: o homem quer o sistema e denuncia a imperfeição assistemática.
A novidade patenteia-se aqui: o sistema se faz efetivo, torna-se uma realidade prática, um princípio de organização necessário. Avanço com mais um exemplo. A arte de morar passa por profundas transformações. Se tomarmos uma edificação residencial no estilo, digamos, palladiano, percebemos logo a perfeita racionalidade não apenas do conjunto em seu geometrismo impecável, mas também a racionalidade sistemática na distribuição dos cômodos. Ainda há vestígios do passado feudal no fato de as instalações de serviço se localizarem nos porões (Tenho em mente aqui a bela residência, de inspiração palladiana, que o arquiteto Grandjean de Montigny, da Missão Francesa, construiu para si próprio, localizada onde hoje está o parque da Pontifícia Universidade Católica, no Rio de Janeiro). Mas, no resto, a uniformidade geométrica das peças é tão perfeita que tudo se torna reversível: nada impede que as funções possam ser alternadas de um cômodo para outro: onde hoje funciona a biblioteca, amanhã pode estar a sala de jantar, ou o quarto de dormir. É como se o sistema se bastasse a si próprio, independentemente de sua relação efetiva com a prática de viver. E é exatamente neste ponto que se verifica a grande diferença em relação à arquitetura contemporânea, agora, na medida em que o sistema se transforma em efetivo, ele compartimenta racionalmente a própria conduta humana, o que acontece já a partir do momento em que o indivíduo põe os pés na soleira de sua casa. A relação e a diferença entre as peças deve ser racional, racionalizando-se por aí todo o comportamento humano. Estabelece-se, pois, uma familiaridade entre o homem e o sistema, que invade não apenas os espaços do comportamento exterior mas também os da vida íntima.
O impressionante está nesse processo de universalização. Mas, mesmo que se possa afirmar que tudo se torna sistema, não se deve daí inferir que o sistema consiga invadir ou satisfazer todos os recantos da realidade humana. Parece-me que seria interessante analisar nesta perspectiva, por exemplo, a presença da droga na sociedade de nosso tempo. Quando da primeira voga do racionalismo, no século XVII, começa a surgir a droga, parece que primeiramente com o tabaco, e tudo ainda restrito a certa elite. Já hoje, com o racionalismo a invadir as ruas, a droga como que se socializa e se multiplica, arrastando consigo até mesmo os sonhos asiáticos sempre cansados do Ocidente, que, se no princípio do século restringiam-se a intelectuais do porte de um Romain Rolland ou de um Hermann Hesse, passaram a generalizar-se após o término da Segunda Guerra Mundial.
A presença do racionalismo sistematizante é tão insidiosa que termina penetrando até mesmo onde menos se poderia esperar. Dou disso um exemplo especialmente significativo, que encontro na filosofia de Heidegger. Sabe-se que o autor de Ser e tempo encontrou a sua inspiração por assim dizer negativa num complexo de problemas que definem a metafísica tradicional, em especial a moderna, tais como o subjetivismo individualista, a hegemonia da dicotomia sujeito-objeto e a definição da verdade, e mesmo a bem-sucedida definição grega do homem, o animal racional. Contra isso tudo, e muito acertadamente, Heidegger define o homem como ser-no-mundo, e, isso posto, torna-se essencial o entendimento do que seja o mundo. Sem querer discutir os inegáveis méritos da posição heideggeriana, digamos simplesmente que o mundo não é um planeta, nem qualquer tipo de ente, não é um objeto ou o conjunto global dos objetos, o mundo é o próprio ser, o sentido dentro do qual vive o homem, e cada cultura tem o seu mundo. Se a humanidade inteira assenta sobre uma única terra, ela desenvolve, em contrapartida, uma pluralidade de mundos. A perspectiva histórica permite ver até com facilidade a profunda coesão do mundo grego, e cuja expressão artística, ou estilo, revela-se inconfundível. Portanto, o mundo, além de plural, é histórico, oferece um sentido que não permanece inamovível, e em tudo manifesta o sentido. Heidegger procura elucidar os caminhos que segue a manifestação do sentido do mundo, e para consegui-lo privilegia uma abordagem inicial bem definida: o utensílio[7].
Entenda-se o utensílio de modo amplo. Evidentemente, os instrumentos de todo tipo são utensílios, mas utensílios são também a rua, a casa, o jornal, o partido. E, numa análise sem dúvida brilhante, o filósofo mostra que todo utensílio exibe uma dupla referência: de um lado, liga-se ao homem que dispõe dele e, de outro, cada utensílio insere-se em uma ampla rede de utensílios, cujo horizonte último é o próprio mundo. Heidegger cita a palavra grega correspondente a utensílio, ta pragmata. Claro que o utensílio radica-se na práxis, e o filósofo o afirma, sem que, lamentavelmente, se detenha no tema, prenunciando já um dos grandes entraves de seu pensamento. Mas quero chamar a atenção para outra faceta do tema. Consegue Heidegger, com a sua análise do utensílio, explicitar a questão do mundo de maneira a colocar-se não apenas antes da tão longamente criticada filosofia de Descartes, mas antes também das próprias bases em que se desdobrou a metafísica ocidental?
A questão é relevante porque o que está em jogo, entre outras coisas, é aquela hegemonia da dicotomia sujeito-objeto, nas aporias da qual parece estar abandonado o mundo contemporâneo. O desaparecimento do Deus metafísico reduziu tudo à condição de sujeito ou de objeto, e mais precisamente: àquilo que a metafísica fez de sujeito e objeto. E como fica a condição do utensílio dentro deste panorama? Com outras palavras: consegue o utensílio desembaraçar a análise heideggeriana da determinação metafísica do objeto? Tenho que a resposta deva ser negativa.
Vejam-se alguns dos muitos exemplos de utensílio que aparecem no livro: a rua, o carro, a agulha. Digamos que, estruturalmente, ou formalmente, a análise seja válida. Mas sua justeza termina aí. A agulha grega é um instrumento artesanal; já a agulha de nossos dias, perfeita em seu desenho em aço inoxidável, pressupõe nada menos que a Revolução Industrial. Rua, carro, agulha não são em nada exemplos inocentes, e através deles estoura na própria urdidura do conceito de mundo precisamente aquela problemática que Heidegger se propunha superar. A análise do filósofo, no caso, não parece suficientemente histórica: o mundo de hoje é, com necessidade, caudatário da metafísica ocidental — justamente em decorrência da crise da metafísica. Rua, carro, agulha tornaram-se indissociáveis do racionalismo, da acepção metafísica de sistema. É exatamente o recurso ao utensílio que arma uma inóspita cilada, visto que o utensílio contemporâneo não pode dispensar o sistema. O que leva a dizer que hoje o mundo é um sistema racional. Talvez se encontre neste ponto uma das razões que levaram Heidegger a não dar continuidade ao seu livro. Mas é fundamental que se entenda que o impasse não está simplesmente no pensamento de Heidegger: o impasse acena precisamente para o problema que deve ser pensado. E o próprio Heidegger terminaria indicando novos caminhos para abordar a questão, como, por exemplo, a conferência de 1953, “A questão da técnica”.
O ACASO
E aí chegamos: o mundo como sistema. Ou, ao menos, tudo se passa como se estivéssemos chegando lá. O planeta passou a ser esse enorme objeto, atravessado de racionalidade e sempre mais submisso ao controle humano. E então parece que, em consequência da vitória do racionalismo, o acaso simplesmente desaparece, e já nem se percebe em que lugar ele poderia ser acomodado. Ou sim? Mas onde? Recorro ao despropósito e mesmo à estupidez: subitamente surge a imprevisibilidade de um braço infantil perdido numa floresta de botões; ou — o que se afigura cada vez mais provável — uma insanidade qualquer aproxima-se de algum telefone vermelho. E como “sistematizar” as crianças e os insanos? Mas tentemos evitar esse clima de mítico terror. O fato é o seguinte: no cerne do próprio sucesso do sistema volta a aparecer, em nosso século, a figura desconcertante do acaso, e de tal forma que incute ao racionalismo um rude revés. Realmente, hoje poder-se-ia até falar, parafraseando o sabor nietzschiano, em algo como a aurora do acaso. Senão vejamos.
O racionalismo do século passado tentou amordaçar o caos, tanto quanto vejo, de duas maneiras, e em ambas confirma-se a ironia de Pascal sobre a história e o tamanho do nariz de Cleópatra: tivesse sido ele mais curto, ter-se-ia mudado toda a face da Terra. A mais conhecida explicação do acaso é sem dúvida a de Antoine Augustin Cournot, em seu livro clássico, de 1851, Essai sur les fondements de nos connaissances[8], e o exemplo que dá nosso autor para “situar” o acaso tornou-se famoso: um acidente ferroviário em que dois trens se chocam, e morre um passageiro sentado em um vagão. Ou seja: a realidade está organizada como uma rede de inúmeras linhas causais; o acaso seria o resultado da convergência de duas ou mais dessas linhas sempre que não puder ser reduzido a uma racionalidade constante. Desse modo, o acaso se explicaria como aquilo que escapa à racionalidade generalizada, o que equivale a dizer que sua determinação última, ainda que às avessas, estaria num pano de fundo racional.
A outra explicação encontramo-la em Hegel, e também esta é tipicamente metafísica. Na introdução à Enciclopédia há uma breve referência ao acaso, brevidade que não deixa de ser índice da importância do tema; o texto diz: “O ocasional é uma existência que não tem maior valor do que um possível, que pode igualmente não ser o que ele é”[9]. Aqui também o acaso naufraga no mar da racionalidade, ele pode tranquilamente ser dispensado. A rigor, ele nem existe, coincide com o absurdo, ou com aquilo que Hegel chama de “desmaio (Ohnmacht] da natureza”[10], que coloca “limites à filosofia, e o mais impertinente seria exigir do conceito que ele apreendesse tais casualidades”[11]. No que nos interessa aqui, basta salientar que nas duas explicações dadas o acaso não vai além de uma situação-limite da realidade — de resto, facilmente descartável, quer porque o acaso não se ajusta aos parâmetros explicativos da realidade, quer porque se perde nas instâncias talvez irrecuperáveis do outro que não o ser (segundo pensa a metafísica). E, seja como for, o cientificismo do francês e o idealismo do alemão, como sói acontecer, entendem-se perfeitamente bem no que concerne à exclusão definitiva do acaso dos anfiteatros do pensamento.
Entretanto, os “limites” da filosofia passaram por um processo de revisão cujas consequências nem de longe poderiam ter sido vislumbradas por Hegel, e a “impertinência” inverteu literalmente as suas miras de tiro. Com efeito, em nosso tempo passou a desenvolver-se até mesmo uma cultura do acaso, e sua presença se faz notória em muitos setores e de diversas maneiras. Tento a seguir rastrear um mapeamento possível do assunto tal como ele se oferece à inspeção do olhar contemporâneo. Deixo, pois, de lado qualquer referência a essa espécie de dignidade maior do caos que lhe emprestavam os gregos clássicos — penso aqui em um Hesíodo: “no início teve origem o caos”, e do caos fez-se o cosmos -,[12] ou à existência do acidente bruto, que se encontra mais ou menos disseminado em praticamente tudo. Restrinjo-me à cultura do acaso tal como ela se oferece à experiência do homem de hoje.
Verifica-se em nosso tempo, dizia, uma espécie de cultura do acaso, uma educação para o acaso. Uma primeira modalidade de comportamento que busca tornar presente o acaso pode ser vista numa certa conjugação da previsibilidade com a imprevisibilidade. Tal ambiguidade encontra-se fortemente presente, por exemplo, nas práticas esportivas, a começar pelo futebol. Trata-se aqui de uma experiência que é ao menos acentuadamente contemporânea; a tradição cristã, sabe-se, não se distinguiu por maior dedicação à prática dos esportes. Apenas no século XX surgiriam novamente as grandes praças de esportes, comparáveis aos antigos circos romanos. Hoje, o culto ao corpo associado ao fenômeno do esporte de massa veio modificar substancialmente o panorama.
Um jogo é armado de maneira a garantir a máxima previsibilidade possível, sempre de olho firme nos resultados, e, em boa medida, de fato os sucessos são previsíveis. O técnico é um especialista que calcula todas as forças e os melhores efeitos. O corpo do atleta e suas resistências podem ser medidos, o tipo de talento ou aptidão de cada um deixa-se conduzir em função de estratégias calculáveis, os grupos também são organizados segundo táticas precisas, e por aí afora. Tudo se passa, portanto, como se o grau de racionalidade compatível com a organização de uma partida de futebol pudesse atingir um nível considerável — todo o afinco dos técnicos regula-se justamente por tal ideia. Essa racionalidade fortalece-se ainda mais dada a existência de regras convencionais, que devem ser obedecidas por todos. Na primeira metade do século, Brecht percebeu com muita argúcia uma certa dualidade que invade os espectadores de uma partida de boxe, o grande esporte de massa na época[13]. O dramaturgo de Na selva das cidades chama a atenção para essa estranha espécie de contradição que determina o comportamento do espectador: de um lado, uma irracionalidade que chega à beira de um certo histerismo, e, de outro, a perfeita atenção ao cumprimento das regras do jogo, acusando a presença de um espírito crítico que não adormece jamais. Um espetáculo esportivo obedece, portanto, a diversas e exigentes formas de racionalidade. Contudo, parece que a própria vida do jogo decorre da exploração dos acasos, do imprevisível, a racionalidade tropeça em ardis que configuram precisamente as virtudes do acaso: nada mais enfadonho do que um jogo restrito a artifícios racionais. De resto, a junção do previsível com o imprevisível, que abre como que por certo fascínio as portas para o acaso, é constatável em muitas formas de comportamento social, inclusive em manifestações populares de ordem política.
Outra modalidade de cultivo do acaso encontra-se na proliferação dos jogos de azar, que, também eles, tomaram um desenvolvimento em nosso tempo que corre paralelo à expansão dos meios de comunicação. Pense-se, por exemplo, nas muitas formas de loteria. Aqui, persegue-se a construção do acaso. A previsibilidade deve ser o mais possível excluída, e, se se fizer atuante, é que a construção foi malfeita. A loteria só é plenamente ela mesma na vitória absoluta do acaso. O advento de sofisticadas aparelhagens permite a multiplicação de jogos aleatórios que se perdem no infinito; nunca existiram tantas possibilidades de convívio com o acaso construído quanto hoje. Compete, assim, falar em uma cultura do acaso. Nem causa surpresa, em consequência, que essa frequentação do acaso se fizesse atuante também nas artes plásticas e nas musicais, para não falar da literatura: logo vem à lembrança o consagrado “jogo de dados”, de Mallarmé, e ter-se-ia de averiguar até que ponto o acaso não pertence à índole mais profunda de um movimento literário de proa, como o da poesia concreta. Não preciso ir além da simples enumeração, tamanha é a fartura: nas artes plásticas são exemplos de construção do acaso o tachismo, os móbiles de Caldwell, e tantas outras coisas; na música, ouve-se com frequência falar em música aleatória, e talvez se possa dizer que o jazz torna-se propriamente jazz no momento em que se desprende de suas bases não jazzísticas e se assume como pura obra do acaso.
Além do que chamei de previsibilidade e de construção, o acaso invade ainda outros campos. Fico inicialmente em maneiras de elucidação do plano ôntico, e destaco aqui apenas três ciências. A primeira é a física contemporânea.
Sabe-se do rigor da física clássica em seu determinismo racionalista, que domina os últimos séculos de toda a ciência e para o qual, evidentemente, o acaso não poderia encontrar guarida na enunciação científica. Um último eco dessa posição, encontramo-lo na famosa provocação de Einstein, no Congresso de Solvay, em Bruxelas, inconformado com os seus colegas que se entusiasmavam ao defender as relações de indeterminação: “Deus não joga dados”[14]. E a resposta de Niels Bohr veio pronta: “Mas não é nossa tarefa prescrever a Deus como ele deve reger o mundo”[15]. E, de fato, nem se percebe o que a teologia poderia fazer no âmbito da ciência, a não ser empurrando-a para o nível do “pré-conceito”. Mas foi assim que Deus, via Einstein, perdeu mais uma batalha. E observe-se que não é sem estranha surpresa que Heisenberg põe-se a “colecionar todos os argumentos para provar que as inconstantes (Unstetigkeiten) constituem um traço autêntico da realidade”[16]. A partir daí, torna-se usual falar em indeterminismo e em leis estatísticas, de probabilidade[17]. Tudo seria obra do acaso? O cosmos derivaria do caos? Ao menos para Heisenberg, não é bem assim.
Há uma palavra que aparece com certa frequência no último livro de Heisenberg, sua belíssima autobiografia, e que é, afinal, a biografia da própria física contemporânea: simetria. Permito-me citá-lo: “ ‘No princípio era a simetria’— esta frase é certamente mais correta do que a de Demócrito: ‘no princípio era a partícula’. As partículas elementares incorporam as simetrias, elas são sua expressão mais simples, mas são de fato uma consequência das simetrias”. E então segue-se uma frase decisiva para o nosso tema: “Na evolução do cosmos o acaso só entra em jogo mais tarde”[18]. Existe, portanto, o acaso, mas ele não é primeiro. Heisenberg acrescenta ainda que “[…] a teoria contém um elemento de contingência, isto é, o acaso, ou melhor: aquilo que só acontece uma vez (das Einmalige) e que não pode mais ser explicado desempenha na teoria um certo papel”.[19] Tento tornar mais claro o que diz nosso cientista com outra citação sua: “Creio que se deva fazer no domínio do contingente uma distinção fundamental entre o que só acontece uma vez (einmalig) e o ocasional (zufaellig). Pois o cosmos só existe uma vez. E assim, no início, encontramos decisões únicas (einmalig) sobre as propriedades simétricas do cosmos”[20]. O acaso, portanto, sem dúvida existe; a questão está, porém, em saber onde ele começa. Mas continuo a citação: “Mais tarde formam-se muitos sistemas de vias lácteas e muitas estrelas, e nelas incide-se nas mesmas decisões, e em certo sentido todas elas podem, justamente devido à sua abundância e repetibilidade, ser tidas como ocasionais”[21]. O impressionante é que o acaso passa a adquirir uma dimensão cósmica, e que um físico da estatura de Heisenberg empregue, no nível do infinitamente pequeno e do infinitamente grande, a palavra acaso.
Tomo um novo exemplo de outra ciência, e aqui também apoiado em um único autor: o biólogo francês Jacques Monod. Monod não teme o radicalismo. É numa linguagem decidida e sem nuances que escreve, por exemplo:
Conhecem-se hoje centenas de sequências, correspondentes a proteínas variadas, extraídas dos mais diversos organismos. Dessas sequências, e de sua comparação sistemática ajudada por meios modernos de análise e de cálculo, pode-se hoje deduzir a lei geral: é a do acaso. Para ser mais preciso: estas estruturas acontecem “por acaso” no sentido de que, conhecendo-se exatamente a ordem de 199 resíduos em uma proteína que compreende duzentos, é impossível formular qualquer regra, teórica ou empírica, que permita prever a natureza do único resíduo ainda não identificado pela análise[22].
Pode-se falar, segundo Monod, em “invariância de estruturas”, ou seja, dizer que “esta sequência atual não foi de forma alguma sintetizada ao acaso, já que esta mesma ordem encontra-se reproduzida, praticamente sem erro, em todas as moléculas da proteína considerada”[23]. Acontece que tais estruturas e suas invariâncias são segundas, e em primeiro lugar está o acaso. A “mensagem”, utilizando-se de “todos os critérios possíveis, parece ter sido escrita ao acaso”[24]. Faço mais uma citação:
Na ontogênese de uma proteína funcional, a origem e a filiação da biosfera inteira se refletem, e a fonte última do projeto que os seres vivos representam, perseguem e realizam revela-se nesta mensagem, neste texto preciso, fiel, mas essencialmente indecifrável que constitui a estrutura primária. Indecifrável porque, antes de exprimir a função fisiologicamente necessária que ela realiza espontaneamente, ela não revela em sua estrutura senão o acaso de sua origem. Mas tal é, justamente, o sentido mais profundo, para nós, desta mensagem que nos vem do fundo das idades[25].
Portanto, Monod estende a sua análise desde o elemento mais primário até a origem da biosfera, e a palavra definitiva e originária termina sempre sendo acaso.
A situação do acaso no plano ôntico pode ser alargada ainda mais se tomarmos um terceiro exemplo: a psicanálise. Há uma página na obra Nova série de conferências para uma introdução à psicanálise, de 1933, em que Freud chega a usar uma palavra sem dúvida rara ao longo de sua obra: caos. Neste texto, ele fala sobre o id (Es), sobre essa “parte obscura, inacessível de nossa personalidade”, e que “só se deixa descrever enquanto contraposta ao eu”: “Nós nos aproximamos do id com comparações, chamamo-lo um caos, uma caldeira cheia de fervilhante agitação”[26]. Claro: para o nosso tema, o id só poderia oferecer um prato copioso. O id não tem “nenhuma organização”, nele não funcionam “as leis lógicas do pensamento, e antes de tudo não vale o princípio de contradição”: “não há no id nada que possa ser equiparado à negação”, como também não se pode falar em espaço e tempo: “não se encontra nada no id que corresponda à representação do tempo, nenhum reconhecimento de uma sequência temporal”. E, evidentemente, o id não conhece a valoração, o bem e o mal, a moral[27] . Dispenso-me de fazer a distinção entre o acaso e o caos, digamos apenas que o caos é como que a acumulação do acaso.
De certo modo, Nietzsche foi o grande antecipador de toda essa temática. Ouça-se Zaratustra: “Eu vos digo: ainda deve-se ter caos dentro de si, para poder dar à luz uma estrela-bailarina”[28]. O caos desempenha agora o papel de uma força construtora, criativa. É ainda o profeta dos tempos futuros que fala: “Apiedavam-se de meus acidentes e acasos — mas minha palavra diz: deixai vir a mim o acaso; ele é inocente como uma criancinha!”[29]. Parece que, por tais caminhos, abrem-se as possibilidades para uma fundamentação ontológica do acaso. E as análises precedentes são mais do que suficientes para autorizar amplas expectativas filosóficas sobre o assunto. Mas não é bem isso o que se verifica no pensamento do século XX. Não que o tema do acaso não exista, muito ao contrário: é que ele está tão presente que quase se confunde com a natureza geral da filosofia contemporânea, ainda que a palavra acaso seja apenas uma entre outras. E não caberia inferir daí, como fez Lukács, uma tese que pretendesse generalizar o irracionalismo. São antes certas distinções tradicionais, em seu aspecto hegemônico, tais como racional-irracional, a dicotomia sujeito-objeto, o universal e o singular, que começam a ser revistas. Como também não se deve esquecer que atravessamos hodiernamente uma crise sem precedentes na história; sem precedentes, quer dizer: não se trata mais da crise particular que caracteriza a passagem de um período para o subsequente, em que este pretende superar o anterior, e sim de uma crise que assola os próprios pressupostos do todo da cultura ocidental. E já por aí se entende que as estruturas racionais muito rígidas comecem a periclitar, ou passem por processos radicais de formalização.
Mas, seja como for, não é difícil entender que o acaso não poderia deixar de se fazer atuante nas filosofias mais representativas de nossos dias — precisamente naquelas que começam a estabelecer as bases de uma especificidade do pensamento contemporâneo, em oposição não apenas à filosofia moderna mas mesmo à totalidade do pensamento ocidental. E é assim que o acaso como que ronda ou é abertamente proclamado em correntes como o historicismo, o vitalismo, as chamadas filosofias da existência, e outras mais. A ideia de normatividade sofre invectivas radicais e desfalece em sua necessidade: ou bem ela é recusada de vez, como acontece na estética, ou então torna-se ao menos suspeita, ou geradora de hipocrisia, como se observa na ética. Ou pense-se no contingencialismo de epistemólogos como Renouvier, Boutroux e Poincaré, sem esquecer os anglo-saxões, e, na Alemanha, o empirio-criticismo de Mach e Avenarius. Ou, ainda, na pré-racionalidade do élan vital, de Bergson. E como interpretar, na perspectiva do acaso, os insondáveis “mandados do ser” heideggerianos, ou o “ser selvagem” de Merleau-Ponty? Guardo-me do temerário esforço de querer catar o acaso em todas as esquinas — mas o tema é indubitavelmente avassalador e exige ser estudado.
Dou um exemplo peculiarmente significativo para o pensamento que surgiu entre as duas grandes guerras mundiais: Sartre. A intuição originária do existencialismo sartriano está precisamente no acaso, e neste particular está longe de ser uma exceção. O tema aparece já na primeira novela, A náusea, de 1938. Convém citar:
O essencial é a contingência. Quero dizer que, por definição, a existência não é a necessidade. Existir é estar aí, simplesmente, os existentes aparecem, deixam-se encontrar, mas não se pode jamais deduzi-los. Há pessoas, creio, que compreenderam isso. Mas tentaram superar essa contingência inventando um ser necessário e causa de si. Ora, nenhum ser necessário pode explicar a existência: a contingência não é uma falsa máscara, uma aparência que se possa dissipar, ela é o absoluto e, consequentemente, a gratuidade perfeita. Tudo é gratuito, este jardim, esta cidade e eu mesmo[30].
De maneira em tudo análoga à cartesiana, trata-se de uma “iluminação”, de uma intuição originária e fundante, que autoriza o asserto: “Todo existente nasce sem razão, prolonga-se por fraqueza e morre por acaso”[31]. Persegue-se, pois, uma afirmação de caráter ontológico, que diz respeito à generalidade de tudo o que existe, e que afeta de modo especialmente intenso a realidade humana. Recusa-se a necessidade, como também a existência de qualquer modalidade de sentido anterior e condicionante da ação do homem. A criatividade humana já começa por aí: ela inventa o sentido. E observe-se que, longe de validar qualquer forma de pessimismo ou de negativismo, Sartre propõe nada menos do que a instauração de um novo humanismo — fundamentado no acaso.
Um detalhe apenas aparentemente secundário: as citações feitas de textos de Sartre foram extraídas de uma novela. E é com algumas considerações sobre literatura que concluo este ensaio. Aqui também o acaso invade amplamente os horizontes. Nem há exagero em afirmar que a literatura, de modo geral, tornou-se essencialmente uma literatura do acaso. O que Sartre afirma da realidade e da existência humana estende-se também às artes e à literatura; com efeito, se tudo é contingência radical, a contingência se faz matéria-prima da literatura. O tema prende-se à derrocada do conceito de imitação enquanto contraposto ao conceito de cópia — o desaparecimento do primeiro promoveu o segundo, que sempre fora preterido. Digamos que a imitação liga-se de algum modo à necessidade, ao passo que a cópia não vai além da contingência efêmera. Destaco aqui apenas dois aspectos que permitem entender a necessidade que alimenta todo o processo da imitação — e indico o estrito suficiente para melhor aceder ao horizonte da cópia e, portanto, ao acaso.
O primeiro refere-se ao caráter essencialmente normativo de toda estética tradicional. Parte-se da convicção de que há normas bem precisas que devem presidir, por exemplo, a confecção de uma tragédia, normas que funcionam como critério, que julgam a validade de uma determinada obra. Ou melhor: as poéticas tradicionais repousam invariavelmente sobre três pressupostos indiscutíveis, dogmaticamente aceitos. O primeiro, fundamental, é que existe uma Natureza, ou uma essência, ou um mundo de Ideias divinas, que constituem a medida última e definitiva da obra de arte. O caráter necessariamente pedagógico da imitação decorre justamente dessa sua missão de presentificar o que se chama com justeza de universal concreto: os deuses e as deusas, o Cristo, a Virgem, os santos, os reis e heróis — toda a galeria de personagens que incorporavam os universais concretos e que emprestavam à arte a sua missão essencialmente educativa: os universais são modelos, exibem um caráter paradigmático destinado a educar a coletividade. A educação se processava, por conseguinte, através dos universais, e ela visava a universalização do homem. O segundo pressuposto encontra-se na convicção de que os universais podem ser imitados. Não se trata de repetir simplesmente o que se vê, ou de pôr a família do rei Édipo em cena, mas sim de estabelecer uma relação vertical entre o nosso mundo e os universais concretos, entre a desmedida de Édipo e a deusa Justiça: o nervo da imitação reside na exploração dessa verticalidade. E o terceiro pressuposto viabiliza a imitação, dita as normas que devem ser aprendidas para efetivá-la, mostra a prática que deve orientar o ensino da arte nas escolas e academias. Nem é preciso acrescentar que se parte da crença de que os três pressupostos são supra-históricos, verdades perenes e inamovíveis. O caráter necessário da arte é como que deduzido destes três pressupostos — e o acaso fica relegado às intrigas do acidental.
O segundo aspecto que permite bem entender essa dimensão de necessidade da arte decorre da presença do herói. Os aspectos puramente subjetivos e particulares do herói não devem aparecer. A dimensão estritamente individual é precisamente o que vai ser objeto da cópia, que já não oferece nenhum comércio com o universal. Hegel viu muito bem o problema: o herói integra a “substância objetiva” de uma nação, e é nesse nível que ele desempenha o seu papel; no jargão hegeliano, ele une o em-si e o para-si, é o ponto de unificação das aspirações nacionais, nele a nação encontra o seu conceito, a sua consciência coletiva. Por isso, ele é a necessidade, sem herói não há nação enquanto ideia coletivamente assimilada. Entende-se, em decorrência, que a presença do herói permaneça intimamente vinculada à problemática da imitação, e que a crise do herói e seu desaparecimento no decurso da literatura burguesa sejam fenômenos que permanecem vinculados. O dessoramento da imitação tira ao herói a essência mesma de sua possibilidade. E é então que a cópia, sempre marginalizada no passado, começa a adquirir ares de cidadania. Mas com tão sérias mudanças destitui-se de qualquer relevância aquela dimensão de necessidade inerente à arte da imitação. Assim como perde sentido também falar em função pedagógica da arte na acepção de aprendizado do universal. A literatura passa a limitar-se agora ao mundo do efêmero, esquece a verticalidade imitativa e explora a horizontalidade da cópia, ela se entrega à mostração de uma multiplicidade que se renova sem nenhum referencial absoluto.
Evidentemente, não caberia reduzir toda a arte de nosso tempo à cópia, nem mesmo ao problema da cópia — mas é na sua vizinhança que tudo se move. Sabe-se que a cópia chega a ser soberana com o naturalismo. Depois, começa a manifestar sérias e muito diversificadas formas de descontentamento: pense-se no expressionismo, ou então num autor tão insuspeito quanto Brecht com o seu realismo social. E o mesmo deve ser dito em relação à estética, é claro que as indicações de Heidegger para pensar a verdade da obra de arte a partir dos conceitos de terra e mundo transcendem o plano ôntico da cópia e instalam-se no ontológico. Esse espaço ontológico que se abre para pensar a obra de forma alguma implica uma reabilitação, mesmo camuflada, do velho conceito de imitação. E é claro, também, que a quase-totalidade da literatura atual move-se sob o patrocínio da cópia. Mas não entro nestes problemas todos. O que foi dito até aqui é suficiente para que se veja o quanto o acaso se faz presente nas artes contemporâneas — com a cópia e com a pós-cópia.
Para concluir, faço tão-só uma referência a um problema que mereceria uma ampla consideração. Tratar-se-ia de proceder ao inventário do lugar da ruptura entre imitação e cópia — justamente o interregno em que medra o acaso. Do ponto de vista da sua história, no correr dos últimos séculos de evolução da arte, imitação e cópia coexistem e até se entrecruzam, como acontece na alegoria. A imitação, progressivamente mais enfermiça, avança até fins do século passado, com o neoclassicismo e as diversas formas de academicismo, para só então desaparecer. Já a cópia começa a manifestar-se com o surpreendente viço da novidade nos inícios da cultura burguesa. Pense-se, para lembrar o que se passa nas artes plásticas, no surgimento da paisagem e da natureza-morta, coisas que nada devem à imitação. Ou considere-se este gênero destinado a conhecer um favor crescente, que é a biografia; seria simplesmente inócuo pretender que um livro como As confissões, de santo Agostinho, pudesse ser entendido tão-somente como o relato da vida de um homem particular: o que o bispo faz é descrever o seu itinerário ascensional de aproximação da santidade, na assídua vizinhança do mundo divino; Agostinho se dá como exemplo de universalização humana, e isso é imitação. Com o advento da burguesia, a biografia, já em seus inícios renascentistas, e ainda que um tanto empanada por elementos exóticos e aventuras estrangeiras, concentra-se em mostrar a existência de tal homem, datado, preso aos limites de sua singularidade, e isso é cópia.
A clareza da distinção feita, entretanto, não consegue esconder certas ambiguidades ao longo desse rico itinerário. Cito um caso. É bem conhecido o texto de Baudelaire, intitulado “Le peintre de la vie moderne“, em que o poeta faz o elogio do fugitivo: “A modernidade é o transitório”, diz ele, “o fugitivo, o contingente, a metade da arte, cuja outra metade é o eterno e o imutável”. Ao que tudo indica, Baudelaire apóia um pé na cópia (só falta a palavra acaso) e o outro na imitação, presa ao eterno e imutável. E o poeta continua: “Este elemento transitório, fugitivo, cujas metamorfoses são tão frequentes, não tendes o direito de desprezá-lo ou de dispensá-lo”[32]. Acontece que Baudelaire dá um exemplo desse elemento transitório que não deixa de ser um tanto duvidoso, principalmente se se pensar que o ensaio foi escrito no décimo aniversário da morte de Balzac. Eis o exemplo fornecido por Baudelaire: “Se ao figurino da peça, que se impõe necessariamente, substituirdes um outro, cometereis um contra-senso que só pode ser desculpado no caso de uma mascarada inventada pela moda”[33]. Ora, o efêmero, com tal exemplo, torna-se por assim dizer exterior demais. O que parece ter escapado a Baudelaire é o entendimento de que, agora, o efêmero se tornou a própria essência da arte — e o exemplo não vai além da decoração. O que se verifica, entretanto, é que tudo se fez transitório: as personagens, os temas, as situações, as próprias normas quando as há. Realmente, nosso poeta se situa numa perspectiva geral, e aspira a uma espécie de síntese entre o antigo e o moderno, ou entre o efêmero e a eternidade, como se se tratasse da possibilidade de algum tipo de novo classicismo. Não fosse assim, como entender uma declaração como a seguinte?
Infeliz daquele que estuda nos antigos outra coisa que não a arte pura, a lógica, o método geral! E, por aí permanecer em demasia, perde a memória do presente; ele abdica do valor e dos privilégios fornecidos pela circunstância; porque quase toda a nossa originalidade deriva do carimbo que o tempo imprime em nossas sensações[34].
Observe-se: este tempo, na linguagem de Baudelaire, é o lugar de uma síntese, nada tem em comum com a consciência histórica, ou com o processo que fez passar da imitação para a cópia.
Walter Benjamin, com seu agudo senso histórico, justamente em seu ensaio sobre Baudelaire, usa uma expressão muito feliz: “mimese da morte”[35]. Infelizmente, ao menos nesta passagem, Benjamin não explora a expressão, ela aparece quase acidentalmente e como que adstrita ao plano biológico da atonia. Mas Benjamin poderia ter ligado a imitação da morte a um outro tema, que, aliás, é discutido por ele neste ensaio, o da antiguidade, ou então, para falar com Proust, “o papel das cidades antigas na obra de Baudelaire”,[36] a começar por Roma e principalmente pela onipresença de Paris na obra do poeta, ou da antiguidade de Paris inscrita na modernidade. A morte poderia ser entendida então de duas maneiras. A morte se faz presente através das ruínas antigas e das quase ruínas em que todo o passado se resolverá; e, de certa maneira, cabe falar aqui em imitação (no sentido definido anteriormente), ainda que se trate apenas de qualquer coisa como uma imitação de segundo grau: contemplar hoje a ruína do passado é ver a cópia daquilo que foi — já que a vigência do imitado desapareceu. A imitação da morte preserva, porém, um certo ar de família, e a morte acaba sendo a nostalgia da antiga imitação. Mas a morte oferece ainda um outro sentido: é que, se a arte de nosso tempo tem por objetivo o efêmero, o transitório, compete à arte assumir esse efêmero em sua condição própria de efemeridade, enquanto realidade passageira; mas, neste caso, já não faz mais sentido falar em imitação. A veneração baudelairiana, sugerida por Benjamin,[37] pelas belas ruínas romanas das gravuras de Piranesi talvez nada mais faça do que acobertar a nostalgia do passado, essa mesma nostalgia que está presente também no comentarista Benjamin, como evidencia, por exemplo, o seu conhecido conceito de aura.
A nostalgia é uma moeda com duas faces. De um lado, vê-se a esfinge do passado, o desejo de manter vivo todo o mundo da imitação. Mas, do outro lado, topa-se com a brutalidade quantitativa, da cópia efêmera e repetitiva, porque já não tem fundo. No entanto, tudo bem considerado, a duplicidade da nostalgia revela-se falsa, ainda que sempre possível no reino das vivências: é que o museu imaginário abarca toda a história da arte, inclusive a arte contemporânea. E, com isso, a duplicidade nostálgica cai por terra — a imitação já não consegue ostentar a menor possibilidade de vigência. No fundo, não se trata de escolher entre a antiga imitação e que se transmutou em imitação da morte, e a cópia fugidiça, mas sim de aceitar que o passado só funciona em nossos dias como cópia, como peça de museu, e a peça de museu vive precisamente da falsificação do conceito de eternidade, ou de necessidade, característico da arte imitativa: a antiga e hoje desusada eternidade era não mais que a presentificação do instante absoluto, o esplendor da Verdade, ao passo que a eternidade do museu apenas encobre a sucessão no tempo, e mascara aquilo que toda a arte chegou a ser em nossos dias: o acaso radical. Porque a eternidade é mentira — sempre: o templo de Apolo já não se encontra em nenhuma encruzilhada, e a figura do deus é hoje necessariamente torso. Mesmo a linguagem do recentíssimo Shakespeare começa a fazer-se ininteligível, transmuda-se em fragmentos.
Que não se interprete toda a análise feita como mero elogio do acaso — o elogio só é compatível com a filosofia se for filosofia do elogio, ou seja, quando o elogio deixar de ser elogio e passar a ser coisa pensada. O que pretendi foi apenas colocar o tema do acaso enquanto problema. Contudo, espero ter deixado entrever também que cabe falar em cultura do acaso e em educação por um acaso transido de fugacidade, já que o efêmero constitui, antes de tudo o mais, o reino humano por excelência.
NOTAS
- V. “Os dois patamares”, in Revista Filosófica Brasileira, ed. UFRJ, n° 3, v. IV, 1988, p. 15. ↑
- Cf. Siegfried Melchinger, Das Theater der Tragödie (Munique, C. H. Beck, 1974), pp. 195-6. ↑
- Régine Pernoud, “Le théâtre au Moyen Age”, in Histoire des spectacles (Paris, Gallimard, 1965), p. 566. ↑
- G. W. F. Hegel, Grundlinien der Philosophie des Rechts (Frankfurt, Suhrkamp, 1970), p. 24. ↑
- Idem, ibidem, p. 25. ↑
- Veja-se nosso texto “Filosofia e sistema”, in Introdução ao filosofar (Porto Alegre, Globo, 1969), pp. 101 ss. ↑
- Martin Heidegger, Ser e tempo, trad. Márcia de Sá Cavalcante (Rio de Janeiro, Vozes, 1988), v. I, pp. 108 ss. ↑
- O livro de Cournot tem dois volumes; o acaso é discutido no volume I, parágrafo 31. Veja-se sobre o tema, de Hilton Japiassu e Danilo Marcondes, Dicionário básico de filosofia (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1990), verbete “Acaso”. ↑
- G. W. F. Hegel, Enzyklopädie der philosophischen Wissenshaften (Frankfurt, Suhrkamp, 1970), v. I, p. 48. ↑
- Idem, ibidem, v. II, p. 34. ↑
- Idem, ibidem, v. II, p. 35. ↑
- Constitui, sem dúvida, um problema interessante saber das diferenças entre a concepção que os antigos gregos tinham do caos da que se vê disseminada em nosso tempo, que o faz mais ou menos sinônimo de confusão irracional; hoje, o caos é visualizado a partir de algo como um irracionalismo radical. A acepção grega é bem mais ampla. O Dictionnaire grec-français (Paris, E. Belin, 1953), de Émile Pessonneaux, por exemplo, distingue diversos significados emprestados pelos gregos à noção de caos, e que, textes à l’appui, são os seguintes: 1) confusão dos elementos; 2) extensão infinita, no espaço e no tempo; 3) grande abertura, abismo; e 4) obscuridade, trevas, o inferno. Estes quatro itens, contudo, não esgotam o elenco dos possíveis. Nietzsche, para citar um intérprete importante, vê no caos de Anaxágoras uma imobilidade primordial, ainda alheia à ação do Espírito (Nous), antes que este provoque o “momento inicial do movimento”, origem do vir-a-ser, num tempo originário (Die Philosophie im tragiscben Zeitalter der Griechen, Leipzig, Krõner, 1930, p. 325). A recente interpretação de Jean-Pierre Vernant, Mito e pensamento entre os gregos (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990, p. 352), para dar mais um exemplo, une os itens 3 e 4: “Na origem, acha-se Caos, sorvedouro sombrio, vácuo aéreo onde nada é distinto. É preciso que Caos se abra como uma goela, para que a Luz e o Dia, sucedendo-se à Noite, aí se introduzam, iluminando o espaço entre a terra e o céu, doravante desunidos”. A acepção mais controvertida é a primeira, que fala em confusão; a contrapartida para tal confusão encontra-se na bela interpretação de Eudoro de Souza, que cito em seu núcleo: “O cosmos está para o caos como o logos está para o mito, como o produzido está para o producente. O lógico e o cósmico vinculam-se um ao outro, como um a outro se vinculam o mítico e o caótico, e os dois vínculos se identificam no que une o producente com o produzido” (História e mito, Brasília, Ed. Universidade de Brasília, 1981, p. 65). ↑
- Bertolt Brecht, Mehr guten Sport! e Das Theater ais sportliche Anstalt, nos volumes I e II, respectivamente, de Schriften zum Theater (Frankfurt, Suhrkamp, 1963). ↑
- Werner Heisenberg, Der Teil und das Ganze (Munique, DTV, 1973), p. 99. ↑
- Idem, ibidem, p. 100. ↑
- Idem, ibidem, p. 90. ↑
- Idem, Das Naturbild der heutigen Physik (Hamburgo, Rowohlt, 1955), p. 28 ss. ↑
- Idem, Der Tell und das Ganze, p. 280. ↑
- Idem, ibidem, p. 278. ↑
- Idem, ibidem, p. 279. ↑
- Idem, ibidem. ↑
- Jacques Monod, Le hasard et la nécessité: Essai sur la philosophie naturelle de la biologie moderne (Paris, Seuil, 1970), p. 110. ↑
- Idem, ibidem, p. 111. ↑
- Idem, ibidem. ↑
- Idem, ibidem, p. 112. ↑
- Sigmund Freud, Studienausgabe (Frankfurt, S. Fischer, 1969), v. I, p. 511. ↑
- Idem, ibidem, pp. 511-2. ↑
- Friedrich Nietzsche, Also sprach Zarathustra (Stuttgart, Krõner, 1956), p. 13. ↑
- Idem, ibidem, p. 193. ↑
- Jean-Paul Sartre, La nausée (Paris, Gallimard, 1938), p. 166. ↑
- Idem, ibidem, p. 169. ↑
- Charles Baudelaire, Oeuvres (Paris, Gallimard, 1956), p. 892. ↑
- Idem, ibidem. ↑
- Idem, ibidem, p. 894. ↑
- Walter Benjamin, “Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo”, in Obras escolhidas III (São Paulo, Brasiliense, 1989), p. 82. ↑
- Idem, ibidem, p. 87. ↑
- Idem, ibidem. ↑