Razão de Estado
Resumo
A ascensão das monarquias e os conflitos de poder, no século XVI, levam a discutir a “razão de Estado” e suas três condições: 1) medidas excepcionais são necessárias; 2) um fim superior justifica os meios empregados; 3) o segredo deve ser mantido. Contra Maquiavel, o jesuíta Giovanni Botero propõe, em 1588, uma razão de Estado fundada nas virtudes cristãs. O pressuposto doutrinário é a unidade de “cabeça” e “corpo” derivada de Tomás de Aquino e Aristóteles (conforme a imagem tradicional do piloto e do barco). Essa política tem por princípios a ordem e a obediência, e seu modelo, o mesmo que orienta o Estado português, é a Igreja católica romana, protótipo de monarquia absoluta e racional. Segundo Botero, “Estado é um domínio firme sobre povos, e razão de Estado é o conhecimento de meios adequados a fundar, ampliar e conservar esse domínio”. A virtude maior do príncipe católico é a prudência, a lei positiva evidenciando o que o homem já conhece em sua consciência. Contra Lutero, que justificava o direito divino do príncipe em consequência da natureza corrupta dos homens, a tese romana é a da graça que permite, apesar do pecado, reconhecer na alma a vontade de Deus. Mas é um equívoco supor que a política católica, por afirmar a ética, seja mais justa ou menos autoritária que a “maquiavélica”. O príncipe de Botero deve, como no Evangelho, eliminar a fruta podre do cesto de frutas sadias, deve conhecer os instrumentos de controle que envolvem a violência para garantir a segurança contra inimigos internos e externos. A lógica absolutista da “razão de Estado” implica a paz armada e a guerra.
No século XVI, as monarquias ocidentais recém-constituídas formulam e fundam em princípio o absoluto e a perenidade da sua soberania. Nas doutrinas então produzidas sobre o poder, sutis e pesadonas de erudição teológico-retórica, o estabelecimento de uma ligação necessária e sacralizada do Estado ao soberano é central. Dissolvida a unidade da cristandade, os temas laicos se desatam e simultaneamente convergem na demanda de um princípio, uma auctoritas, que os unifique, dotando dos atributos da transcendência o poder temporal que os rege. As grandes monarquias — a Espanha, a França, a Inglaterra — disputam com o papa a palavra do Pai, potentia absoluta. Agora, o alargamento dos horizontes geográficos e o encontro de estranhas raças de gentios também transformam a concepção tradicional de “natureza humana”. A questão da moral, debatidíssima, mais e mais inclui a descrição de costumes exóticos. Como numa pré-história da antropologia, pergunta-se na Europa se o índio é homem, capturando-se as respostas nas malhas de uma teologia reciclada. Proliferam então os textos do gênero “espelho de príncipes”, de que são exemplares O Príncipe, de Maquiavel, e Da razão de Estado, de Botero. O poder é um artifício ou uma natureza? Surge da força e da astúcia, como querem maquiavélicos, de um pacto, como afirmam católicos, da vontade imediata de Deus, como pregam luteranos e anglicanos? O Príncipe está acima da força coercitiva das leis? A força coercitiva da legalidade tem sempre a força diretiva da legitimidade? A política prescinde da moral? E, se tudo se subordina à vontade absoluta de Um, o que é a vontade, o que é a liberdade, o que são os direitos dos súditos?
Conflitos de deveres, conflitos de poderes evidenciam um conceito de Estado no mínimo atormentado, como escreve Robinet. A “razão de Estado” que os disciplina terá as cores das nuances opostas que tingem a razão.[1]
Em um ensaio brilhante e decisivo, Jean-François Courtine demonstra que no século XVI e ainda no XVII a instituição do político e a fundamentação da soberania permanecem essencialmente uma questão de herança. A disputa pela verdade da natureza do poder é “principial”, pois trata-se de determinar o princípio que fundamenta a autoridade do Príncipe, como discussão da autoridade em seu princípio. Por outras palavras, a discussão do poder sempre produz um princípio fundador que lhe garante a legitimidade.[2]
Na constituição do tema da “razão de Estado”, nuclear nas doutrinas políticas então produzidas, é decisivo o recurso a teologemas neotestamentários, com que se reinterpretam as doutrinas políticas tradicionais, agora apropriadas pelos novos interesses de príncipes católicos, luteranos, anglicanos, calvinistas, maquiavélicos, galicanos, tacitistas… Postulando uma instância autônoma e transcendente que fundamenta o poder e legitima a priori a autoridade real, os conflitos políticos são formulados como oposições de teologia a teologia.[3] Obras como a República, de Platão; o De officiis, de Cícero; os Annales, de Tácito; a Cidade de Deus, de santo Agostinho; o Etimologias, de Isidoro de Sevilha; os textos do Direito Romano, relidos pelo viés de obras medievais, como o Policraticus, de John de Salisbury, e as obras de santo Tomás de Aquino, como o De regno, que incorporam a tradução latina de 1260 da Política, de Aristóteles, são as principais referências das doutrinas do poder monárquico absolutista.
Em todas elas, a expressão “razão de Estado” é usada para significar o imperativo em nome do qual, alegando o interesse público, o poder absoluto transgride o direito. Via de regra, a ação é acompanhada de três alegações ou condições: as medidas excepcionais são necessárias; um fim superior justifica os meios empregados; o segredo deve ser mantido.[4]
Como técnica de conquista, conservação e ampliação do poder, a “razão de Estado” visa à manutenção da unidade interna do reino, entendido como um corpo de ordens e estamentos fortemente hierarquizado, garantindo sua soberania contra inimigos externos. “Razão de Estado” é, então, uma entidade extrínseca e superior ao poder, o “bem público” ou o “bem comum”, em nome de que o poder absoluto age.[5]
Nos inúmeros tratados do século XVII, que retomam a síntese das obras de Maquiavel, Guicciardini, Bodin e Tácito feita pelo jesuíta Giovanni Botero em seu Della ragion di Stato, de 1588, discutem-se a natureza da hierarquia, o conselho externo dos privados de Príncipe e o conselho interno da prudência, a fama dos grandes e a murmuração de vulgares, as ocasiões, as medidas e os meios, astutos e virtuosos, de controle de ministros e magistrados, de senhores e servos, os modos de manter a plebe ocupada com trabalhos, divertimentos, castigos e festas…
As versões neoescolásticas, sempre seduzidas pelo realismo político da obra inimiga de Maquiavel, propõem então a “verdadeira razão de Estado”, fundada nas virtudes cristãs, constituindo outras codificações rivais do poder como “irracionalidade”, “excepcionalidade”, “imoralidade” e “falsidade”.[6] Na Summa politica, oferecida em 1650 ao príncipe d. Theodosio de Portugal, seu autor, Sebastião César de Meneses, bispo conde de Coimbra, define “razão de Estado” como uma arte virtuosa — uma técnica — de governo das “cousas públicas e comuas”. Diferenciando-a da ética e da econômica, que se ocupam de coisas particulares e domésticas, Sebastião César afirma que as três se subordinam entre si, de modo que a ética é requerida para a econômica e esta, para a política, que as inclui, sendo “a mais nobre” das três.[7] O livro de Martim de Albuquerque, A sombra de Maquiavel e a ética tradicional portuguesa, é um estudo exemplar dessa constituição católica de Maquiavel como “político”, termo então também sinônimo de “falso”.[8]
Meinecke informa que a expressão “razão de Estado” aparece usada pela primeira vez em 1547, com o sentido moderno de “excepcionalidade”, na obra do humanista Giovanni della Casa.[9] No início do século XVI, a noção foi sistematizada por Maquiavel, cuja obra se tornou o divisor de águas das doutrinas sobre o poder e a “razão de Estado”. Ainda que não tenha utilizado a expressão, a partir de sua obra ela passou a ser entendida como uma regra permanente do Estado, cuja única lei seria a da necessidade da própria conservação.
Ao contrário de Maquiavel, que se baseou na experiência imediatamente empírica da luta política das cidades italianas, as versões católicas se caracterizam antes de tudo por discutirem o princípio transcendente que funda, conserva e amplia a ação política, como é o caso da obra influentíssima de Botero, que reatualiza a expressão medieval “ratio Status”. Tradicionalmente, não significava o princípio de exceção “maquiavélico” combatido pelos católicos, mas nomeava um princípio permanente de ação do poder que teoricamente se conformava à justiça, definida de modo cristão como a paz dos vários interesses unificados no “bem comum”. Na Antiguidade, santo Agostinho já havia escrito na Cidade de Deus que onde não há justiça não há República.
Para definir o poder absolutista como monopólio da violência militar, jurídica e fiscal, Botero pressupõe o modelo de uma corte, “lugar geométrico das hierarquias”,[10] que centraliza o poder e que simultaneamente é difundido para todas as ordens políticas do reino como padrão da excelência humana. A tríade cortesã de “discrição, prudência e paciência”, já debatida por Castiglione em Il libro del cortegiano, e que se torna fundamental na política do XVII hoje classificado como “barroco”, especifica o tipo do Príncipe perfeito, exemplificado por Botero com vários nomes, entre eles d. João II, de Portugal, Afonso de Aragão e Francisco I. Distinções especiosas de sagrado e profano, de puro e impuro, de bastardo e legítimo modulam os exemplos de acordo com virtudes, conveniências e decoros.
De modo geral, o pressuposto doutrinário das versões católicas e luteranas da “razão de Estado” é a unidade de integração das partes do “corpo” à “cabeça”, discutida por santo Tomás de Aquino no Comentário do livro V da Metafísica de Aristóteles. Neste, uma rede cerrada de metáforas organicistas figura a sociedade política como um corpo de ordens e estamentos subordinados a um só, conforme o modelo do corpo humano definido escolasticamente, em que o tronco e os membros se submetem à cabeça. Outra alegoria corrente na representação da “política católica” e de outras é a do navio conduzido por um piloto firme através do mar tempestuoso até um porto seguro. Ao mesmo tempo em que luta contra os perigos que ameaçam o barco, o bom piloto o conduz ao porto seguro. Alegoria transparente: o bom governante atravessa as crises visando a finalidade superior do governo.
A metáfora do “corpo” é substancializada nos textos neoescolásticos dos séculos XVI e XVII; no caso de Portugal, é apropriada na doutrina do “pacto de sujeição” do “corpo místico do Estado” feita por Suárez no De legibus, tornando-se um dos fundamentos do direito absoluto e do direito ordinário também no Brasil, onde regula o exclusivo monopolista[11] e a ação jesuítica. Como os trabalhos de Alcir Pécora vêm demonstrando, Vieira sempre leva em conta, ortodoxamente, a hierarquia do “pacto de sujeição” quando cuida dos negócios de índios e cristãos-novos, holandeses e V Império, fazendo com que a “razão de Estado” dependa da ocasião, um conjunto de concursos que favorecem o livre-arbítrio numa causa livre, e também demonstrando que a capacidade de aplicação de medidas exatas no momento oportuno depende, por vezes infelizmente, das circunstâncias das pessoas e dos meios históricos e instrumentos objetivos disponíveis. O conhecimento dos fins é inútil, quando faltam os meios; e ministros de Estado excessivamente astutos, pródigos em inventar medidas e meios, quase nunca os aplicam para os fins honestos do “bem comum” porque, na medida mesma em que são astutos, desdenham o honesto e só querem o útil quando ele é o próprio.[12]
É a doutrina médica dos quatro humores que dá receitas para a decisão quando se trata de escolher ministros. Dos temperamentos, é o moderado que mais convém para o poder, pois a mistura do humor sanguíneo com o melancólico tempera o excesso de agitação do sangue. A moderação marca a presença senhoril, inclinando-a à justiça, à magnanimidade e à clemência. Flegmáticos são mais para servir que para mandar, pois trazem o entendimento assombrado por suspeitas. O temperamento moderadamente colérico mescla bens e males: sujeito às alterações do humor, é variável, e menos grave do que pede a majestade de um Príncipe. Quanto ao melancólico, não faz o Príncipe tão majestoso, como se requer, nem de ânimo grande, como se necessita, mas o torna engenhoso, ainda que parcimonioso e calado. E, se o engenho do ministro é muito agudo, não se resolve no menos fácil e conveniente, porque é mais afeito a novidades que a resoluções prudentes. Um ministro de grandes partes ofende-se de obedecer a um homem incapaz de grandezas. O conselho de ministros não deve exceder a inteligência do Príncipe.[13]
No Comentário, a constituição do reino como “corpo político” por santo Tomás relaciona-se ao terceiro modo da unidade dos corpos. Segundo a concepção, a perfeição do corpo humano resulta da integração harmônica dos diversos membros, que são instrumentos para um princípio superior, a alma. A unidade do corpo pressupõe duas coisas básicas, a pluralidade dos membros e a diversidade das funções, numa integração das partes que é ordem. Por analogia, o corpus hominis naturale (o corpo natural do homem) é proposto como termo de comparação com outros “corpos”, como a sociedade entendida como um “corpo político”. Santo Tomás faz a comparação por meio do termo caput (cabeça) definida como sede da razão, estabelecendo uma analogia de proporção: Deus:mundo:cabeça:corpo. Transferindo o esquema para a sociedade, deduz que cabeça:corpo::rei:reino.
Como princípio regente da sociedade — que analogicamente é “corpo” de “membros”, “partes”, “ordens”, “estamentos” —, o rei é “cabeça” ou “razão suprema” do reino. Dirige-o racionalmente, como a cabeça dirige o corpo. Assim, se a ação da cabeça tem por fim a harmonia e a ordem racionais do corpo, a ação do rei tem por fim a harmonia e a ordem do corpo político. E, se a função de cada parte do corpo é servir de instrumento ao todo, do mesmo modo cada súdito individual ou cada ordem do reino devem integrar-se hierarquicamente, como obediência.[14]
No De regno, II, 2, santo Tomás afirma que o bem de qualquer ação pressupõe sua adequação ao fim para o qual é feita. Governar um ser é conduzi-lo como convém ao fim requerido pela sua natureza. Aqui, novamente aparece a antiga tópica retórica do piloto e do barco: costuma-se dizer que um navio está governado quando a habilidade do piloto o conduz sem danos para o porto pelo caminho reto. Mantendo-se a analogia, assim como uma coisa está ordenada para algum fim extrínseco, como o navio que deve atingir o porto, do mesmo modo o ofício de quem governa consistirá “não só em conservar intata a coisa nela mesma, mas, além disso, em conduzi-la a seu fim”.[15]
A questão do fim implica que se especifique o fim “de toda a multidão e […] o do indivíduo”. Se o fim do homem fosse um bem qualquer que existisse nele mesmo e se, do mesmo modo, o fim último da multidão a ser governada fosse o de adquirir um tal bem e manter-se nele e, ainda, se esse fim último consistisse na vida e na saúde, isso seria encargo de um médico. Contudo “o fim da multidão agrupada em sociedade é o de viver segundo a virtude”. Os homens se reúnem para levar juntos uma vida boa, o que não podem conseguir vivendo isolados. Como apenas a vida segundo a virtude é boa, a vida virtuosa é, portanto, o fim da sociedade humana. No entanto, o homem que vive segundo a virtude está ordenado para um fim ulterior que consiste no gozo de Deus; logo, é preciso que a multidão humana tenha o mesmo fim que o indivíduo. O fim último da sociedade não é viver segundo a virtude mas, pela vida virtuosa, atingir o gozo de Deus.[16] Essa concepção é o pressuposto doutrinário de Botero, que ensina ao Príncipe a boa navegação católica pelos mares da heresia.
Imediatamente após a sua publicação em italiano, em 1588, a obra de Giovanni Botero teve dezenas de traduções em várias línguas, principalmente espanhol, e circulou na península Ibérica durante todo o século XVII, tornando-se um dos fundamentos da “política católica” do Estado português. Esquematicamente, pode-se dizer que a “política católica” defendida por ele é aquela que já havia sido fundamentada nas doutrinas jusnaturalistas dos juristas dominicanos e jesuítas da Segunda Escolástica do século XVI, como Molina, Bellarmino, Ribadeneyra, e que ainda seria retomada por Suárez na primeira década do XVII. É uma defesa ultramontana do poder espiritual do papa, ameaçado então pelas pretensões de reis adeptos da teoria luterana do “direito divino” ou pelos próprios reis católicos, disputando a jurisdição nos assuntos espirituais, que até então tinha sido atributo de Roma.
Caracterizando-se pelo antimaquiavelismo, pelo antiluteranismo e, genericamente, pela luta contra as heresias, como lembra o historiador português Luís Reis Torgal, em Portugal a “política” afastava-se da perspectiva de tolerância e conciliação, à moda do galicanismo francês, sendo definida e praticada antes com um sentido de cruzada ou de defesa integral do catolicismo e da monarquia absolutista, doutrinada como tendo origem divina indireta e resultando da mediação “popular”, segundo um pacto de sujeição e a hierarquia dos privilégios decorrentes.[17]
A obra de Botero faz apologia desses princípios teológico-políticos reciclados pela jurisprudência católica na sacralização do Estado monárquico. Na medida em que nos séculos XVI e XVII regiões do que hoje é a Itália estavam sob o domínio da Espanha, e Portugal também fazia parte, nesse tempo, do que se poderia chamar com Torgal de “bloco católico europeu”, era rotineiro o intercâmbio entre cidades italianas e a península durante a União Ibérica, entre 1580 e 1640, quando Portugal foi espanhol, estendendo-se para as colônias americanas, Nova Espanha, Peru e Brasil. Os conceitos de Botero estão presentes em vários autores espanhóis e luso-brasileiros do XVII, mesmo quando sua obra não é explicitamente citada. E isso talvez ocorra porque ela é, antes de tudo, uma espécie de compêndio de uma jurisprudência ou de “bons usos” de casos exemplares, virtudes, esquemas de ação e modelos para o bom governo católico, que também se encontram em outros discursos contemporâneos ou anteriores, então ensinados nos cursos de direito canônico das universidades de Coimbra e Salamanca.
Como um elenco de esquemas exemplares propostos para que o Príncipe se encaminhe para as coisas úteis e se afaste das prejudiciais, ouvindo a voz da razão iluminada pela luz natural da Graça inata que o faz distinguir o bem do mal nas ocasiões de livre-arbítrio, Da razão de Estado é composto de dez livros, divididos em capítulos de extensão e distribuição irregulares — por exemplo, o livro IX tem 23, o livro III tem quatro. Formulando conselhos, o texto se inclui num gênero que provavelmente surgiu nas cidades republicanas da Toscana — em luta no século XIII contra as políticas do imperador e do papa —, chamado de speculum principum, espelho de príncipes ou leal conselheiro, e que durou até à Ilustração, no século XVIII. O gênero consiste num conjunto de aconselhamentos ético-políticos que visam à formação do Príncipe perfeito, definido como um misto de virtudes guerreiras e letradas.
No primeiro capítulo, à moda aristotélica, Botero começa pela definição do tema, a “razão de Estado”: “Estado é um domínio firme sobre povos, e razão de Estado é o conhecimento de meios adequados a fundar, conservar e ampliar um domínio deste gênero”.[18]
Reconhecendo que, para se falar de modo absoluto, a noção de “razão de Estado” refere-se às três partes da sua definição — “fundar”,“conservar” e “aumentar” a dominação —, reconhece também que ela implica uma hierarquização das medidas do poder. Assim, a “razão de Estado” implica mais estreitamente a conservação que as outras funções de fundação e aumento do poder. A ideia principal de que a conservação é mais importante implica, por definição, também o conservadorismo da “política católica”. Das outras duas, a ampliação é mais importante que a fundação do poder. Logo, dispõe a exposição sobre “razão de Estado”, em ordem decrescente: conservação, ampliação e fundação do poder.
A “razão de Estado” supõe o Príncipe, como “artesão”, e o Estado, como “matéria” do poder. Ambos precedem a fundação e a ampliação, por isso Botero reconhece que o meio de fundar e o de aumentar são a mesma coisa: “O começo e os lugares são da mesma natureza”. Outra distinção básica, que também aparece na doutrina do Direito português do Antigo Regime, é a que divide o poder em absoluto e ordinário.
O que se faz por “razão de Estado” são coisas que não podem ser reduzidas à razão ordinária e comum e que, por isso, estão acima do direito comum. A “razão de Estado” é, no caso, uma entidade mais ampla, corporificada no tema do “bem comum”, no qual o interesse particular e o interesse geral teoricamente se fundem com harmonia. Nesse sentido, mesmo as medidas tomadas pelo Príncipe em nome da “razão de Estado” não visam um alvo diverso do interesse de particulares, mas a manutenção da harmonia deles entre si e com o interesse superior da comunidade.[19]
Desse modo, a doutrina da “razão de Estado” implica imediatamente as questões da natureza do poder e da pessoa do Príncipe. Ele é legibus alligatus (obrigado pelas leis) ou legibus solutus (acima das leis)? Reciclando a noção aristotélico-cristã de “virtude” para responder à questão, Botero propõe antes de tudo não o que o Príncipe deve fazer, mas o que deve saber, formulando os temas tradicionais da prudência política. Nesse sentido, acaba por propor a equivalência de “política” e de “razão de Estado”, não considerando que, logicamente, a “razão de Estado” seria antes uma parte da “política”, como diz a crítica de Naudé.
A proposta do que o Príncipe deve saber é feita segundo o provérbio medieval, encontrável na obra de Salisbury, de que um rei iletrado é um asno coroado. Mas com outra diferença: em Salisbury e outros autores antigos, o saber letrado do Príncipe reduzia-se praticamente ao conhecimento das Escrituras. Agora, o conhecimento das letras inclui vários saberes, como a história, a poesia, a filosofia moral e conhecimentos técnicos úteis para a administração e a guerra. Trata-se, dessa maneira, de compor o elenco dos saberes que formam o bom soberano. Se o Príncipe deseja manter o Estado obtendo honra, fama e glória, deve acima de tudo cultivar o elenco completo das virtudes cristãs. Outra vez, é clara a oposição a Maquiavel, que propõe que o objetivo do Príncipe é efetivamente a honra, a fama e a glória, mas que o meio de obtê-las não precisa ser virtuoso:
É necessário, para isso, que possua ânimo disposto a voltar-se para a direção a que os ventos e as variações da sorte o impelirem, e, como disse mais acima, não partir do bem, mas, podendo, saber entrar para o mal, se a isso estiver obrigado. O Príncipe deve, no entanto, ter muito cuidado em não deixar escapar da boca expressões que não revelem as cinco qualidades acima mencionadas, devendo aparentar, à vista e ao ouvido, ser todo piedade, fé, integridade, humanidade, religião.[20]
Supondo-se a determinação teológica da metáfora do Estado como corpo e da finalidade para a qual ele se orienta, a noção geral da reação católica é a de que o governante se subordina ao poder espiritual representado de modo absoluto pelo papa. No entanto, como cabeça do corpo político, o rei não tem nenhum superior: ele é legibus solutus, legibus absolutus (livre das leis), pois na sua pessoa mortal, pecadora e falível encarna-se a pessoa pública do “povo”, que se alienou do poder num pacto de sujeição. A pessoa pública é imortal e infalível. É um equívoco entender que, ao dizer: “L’État c’est moi”, um Luís XIV referia-se à sua pessoa particular, como um déspota asiático, porque sua fala refere justamente a instituição da sua pessoa pública, como um monarca absolutista investido do poder que estava na comunidade agora subordinada ou súdita.
O rei-cabeça do corpo político do Estado mantém a justiça e a paz do “bem comum”, que teoricamente é o fim último da “razão de Estado”. No caso, é a Política de Aristóteles que permite distinguir entre uma forma correta de governo, interessada no “bem comum”, e formas viciosas e tirânicas nas quais domina o interesse particular. Um dos principais argumentos nacionalistas da guerra da Restauração portuguesa no século XVII foi o de que era justa, pois os reis espanhóis eram tiranos que governavam Portugal sem que a população tivesse consentido em alienar-se do poder num pacto de sujeição a eles.
Segundo os juristas da Contrarreforma seguidos por Botero, o poder político pertence a priori e por direito natural (perius naturale) ao povo, constituído como “estado de natureza” anterior ao momento da transferência do poder para o Príncipe. O estado de natureza é “um único corpo místico”, como escreve Suárez, em que todos têm “uma única vontade unificada”. Na passagem do estado de natureza para a sociedade política, constitui-se a lei positiva que impõe a lei natural.
Contra a doutrina luterana do direito divino dos reis, a doutrina católica exposta por Botero em Da razão de Estado defende que a autoridade política é instituída de iure humano (por direito humano). Trata-se de uma quasi alienatio, pois a transferência do poder que estava no povo para o rei é interpretável, analogicamente, pelo modelo jurídico da escravidão, como se dá em Suárez. Pela transferência do poder, o Príncipe não tem superior: não há ninguém que possa obrigá-lo a nada: é legibus solutus, livre do poder coercitivo das leis, mas deve seguir a lei natural para que seu governo seja legítimo. Doutra forma, torna-se tirano, podendo ser destronado e mesmo morto.
A absoluta submissão de todo o povo ao Príncipe define a soberania. Se o Príncipe é legítimo, o povo abre mão da liberdade para receber os privilégios, concedidos conforme a posição natural dos membros do corpo político na hierarquia. A “razão de Estado” afirma, pois, que a primeira virtude de todas é a obediência. A desigualdade é natural, porque foi instituída e sacramentada no pacto de sujeição. Toda iniciativa individual ou de grupos contra ela é por definição uma blasfêmia ou heresia que deve ser extirpada. Em Portugal e na Espanha, como se sabe, quase sempre o principal argumento da “razão de Estado” católica foi o fogo.
Aqui também se faz a distinção fundamental entre a pessoa física do rei e a soberania encarnada por ele. O rei tem dois corpos: a persona personalis (mortal, falível) e a persona idealis (persona ficta, persona mystica), imortal, infalível, sagrada — acima das leis ou absoluta. Assim, também há dois poderes: o poder ordinário, organizado nos limites do ius privatum, como direito privado ou common law, que legisla os interesses particulares dos súditos, e o poder absoluto. O ofício da justiça e dos juízes é recitar o direito — ius dicere — mas não o de dar a justiça ou fazer a justiça — ius dare, que é atributo do rei.
A doutrina exposta por Botero implica, desse modo, também o dirigismo pedagógico do Estado e o civismo. Catolicamente, a função do Estado é organizar o estado da coisa pública de modo ótimo, como ratio publicae utilitatis (razão da utilidade pública). Aqui é central mais uma vez a máxima “O Príncipe está acima das leis” (princeps legibus solutus est), no sentido de que suas ações, enquanto pessoa pública infalível e imortal, mas nunca como pessoa particular, mortal e falível, visam o interesse comum. Ele está acima das leis (solutus, absolutus), porque também obedece à força diretiva delas quando as impõe a todos. O modelo teológico-político dessa dupla pessoa do Príncipe é, como demonstrou Kantorowicz em The king’s two bodies, o da dupla pessoa de Cristo, ao mesmo tempo homem e Deus.[21]
Como escreve santo Tomás, o Príncipe — sua persona idealis (mystica ou publica), não o homem particular que foi feito Príncipe — é legibus solutus, acima das leis. Isso porque, não podendo dar ordens a si mesmo, está livre da força de coação da lei, mas ao mesmo tempo está subordinado a ela por sua força de direção. Por isso, segundo a “razão de Estado” católica, enquanto controla o corpo político de seu Estado na esfera temporal, teoricamente a Igreja continuaria guiando as almas de seu reino na esfera espiritual. Nas versões cristãs, principalmente nas católicas, o modelo que fornece os critérios teóricos do poder absolutista e da “razão de Estado” é o da infalibilidade absoluta do papa como vigário de Cristo ou vice-Cristo. Kantorowicz o diz de modo lapidar:
Sob a autoridade do papa enquanto princeps et verus imperator, o aparelho hierárquico da Igreja romana […] mostrou uma tendência a tornar-se o protótipo perfeito de uma monarquia absoluta e racional sobre uma base mística, enquanto, simultaneamente, o Estado manifestou mais e mais uma tendência a tornar-se uma quase-Igreja e, sob muitos aspectos, uma monarquia mística — sobre uma base racional.[22]
Obviamente, a partilha das atribuições na administração do rebanho não é pacífica, pois a autoridade do princípio primeiro do poder é o principal objeto das disputas. É o caso de James I, da Inglaterra, pretendendo também a jurisdição sobre o espiritual porque luteranamente autorrepresentado como rei governando por direito divino.
Esquematicamente, podia-se dizer que as versões católicas da “razão de Estado” lutam contra as concepções políticas que, no século XVI, abolem a noção de moral como fundamento do poder. Elas se baseiam na verità effetuale della cosa, “a verdade efetiva da coisa”, como Maquiavel escreve no capítulo XV de O Príncipe, ou na noção de “pecado original” e “predestinação”, como Lutero propõe em suas teses de 1517.
Nesse sentido, é fundamental que se distingam “pensamento de Maquiavel” e “maquiavelismo”. É que, passe a redundância, a reação católica constrói uma interpretação negativa da obra de Maquiavel para com ela validar a doutrina neoescolástica do Estado, o que implica uma reordenação prática e teórica dos modos de concebê-lo e também de alguns tipos e categorias, como o Príncipe, a paz, a guerra, os pobres, a plebe, as letras. Uma das principais inovações de Maquiavel é, talvez, o modo como propõe a guerra.
Na doutrina cristã tradicional de santo Agostinho e santo Tomás, o estado natural ou normal das sociedades é a paz, definida como um resultado do autocontrole dos apetites individuais, como amizade e concórdia dos grupos que formam o todo, tendo-se em vista o “bem comum”. Santo Agostinho escreve que mesmo na guerra a finalidade superior da paz deve ser constante. Esta também é a tese de Botero, que, em parte do livro VII e no VIII de Da razão de Estado, tratando dos modos de “ampliar o Estado”, inova a doutrina quando propõe a economia dos negócios e da exploração de recursos humanos e materiais como condição da paz. Sua tese, ensinada em Coimbra, também fundamentou doutrinariamente a expansão colonial portuguesa.
A partir provavelmente do século XII, como acontece na obra de John de Salisbury, o conceito de necessitas (necessidade) do Direito Romano passou a ser incorporado às doutrinas do governo para justificar as medidas de exceção, segundo o axioma “A necessidade não conhece lei”. De modo geral, como no texto de Salisbury, necessidade e ratio Status se opõem, e isso porque o estado de justiça continua sendo associado à noção de normalidade da paz. Então, necessidade relaciona-se a estados de exceção, como a guerra. Feita por necessidade, a guerra suspende a paz ou a justiça, podendo-se, no entanto, falar de guerras justas e guerras injustas, conforme a finalidade com que são feitas.
Quando a mesma guerra passa a ser teorizada não como algo excepcional mas como o termo que define a realidade efetiva das coisas em sociedade, necessidade torna-se a determinação primeira da política; e como “a necessidade não conhece lei”, a moral cristã torna-se supérflua.
A partir do século XVI, dois amplos conjuntos polêmicos passaram a incluir a noção ambígua de necessidade na conceituação de “razão de Estado”. De um lado, subordina-se necessidade à moral; de outro, declara-se a autonomia política de necessidade, constituída como livre de qualquer vínculo moral. Dois amplos campos de questões são delineados. Discute-se, num deles, se a segurança do Estado torna lícito o ato ilícito e, noutro, define-se a relação do Estado e da lei, segundo os temas da soberania, da legalidade, da legitimidade e do fundamento último do poder, Deus ou a necessidade. Paralelamente, a ação política e a moral comum são discutidas segundo os temas da virtude e da falsidade.
Maquiavel pressupõe a fundamental maldade da natureza do homem: a guerra de todos contra todos define as sociedades que observa e ele a teoriza por meio das noções de fortuna, de ociosidade e decadência, com que recupera a ideia romana da virtus, a virtù, definindo-a em termos cívicos de valor. Seu pensamento em O Príncipe e nos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio não deveria ser confundido com o “maquiavelismo”, contudo, no sentido que hoje damos ao termo, o de técnica da hipocrisia ou do engano. Isso porque seu pensamento só se torna um pensamento “maquiavélico”, no sentido negativo do termo constituído por seus inimigos, quando não se considera que sua obra não é propriamente uma teoria geral do poder político mas, antes de tudo, um discurso adequado à experiência imediata da realidade histórica das cidades italianas renascentistas agitadas pelos golpes de Estado de condottieri, pelas lutas de aristocratas e republicanos, de patrícios e plebeus, e em contínuo conflito contra a dominação espanhola, francesa e papal.
O Príncipe, por exemplo, faz a teoria do que Maquiavel chama “o príncipe novo”, ou seja, o novo tipo de governante que chegou ao poder pela força das armas, como César Bórgia, e que poderia, quem sabe, unificar a Itália.[23] Quando os capítulos XV, XVI, XVII e XVIII, por exemplo, são lidos como uma teoria geral, o pensamento de Maquiavel é deslocado do seu contexto especificamente italiano, passando a ser interpretado como uma técnica geral da tirania, definida em termos tradicionais, nas interpretações religiosas dele, como falta de ética. O “maquiavelismo” é, antes de tudo, um produto dos inimigos de Maquiavel, que capturam seu pensamento em categorias teológico-políticas como as de “Deus”, “pessoa humana”, “luz natural”, “Graça” e “moral”, apagando na operação o fato de que, pela base, a questão teológica e a moral estão postas de lado pela sua obra, que nem sequer admite a classificação de “moral/imoral”, pois é regida por outro sistema de pressupostos.
Assim, por exemplo, a concepção cristã tradicional do poder, de fundamento platônico, entende a política teleologicamente, como uma técnica ou uma ação que levam tanto o governante como os governados a um fim superior. Por exemplo, a “justiça” em Salisbury, a “salvação da alma” em santo Tomás, ou o “bem comum” da monarquia absolutista católica. A hipótese de Maquiavel é “pragmática”, pois propõe critérios para resolver praticamente, aqui-agora, as questões do poder. Como muitos de seus intérpretes demonstram, ela é histórica e valoriza o artifício, diversamente da concepção teleológica tradicional, que é atemporal, fundada metafisicamente na unidade pressuposta de Deus e, por isso, naturalizada como trans-histórica.[24]
Nas Histórias florentinas (V, I), conforme a noção renascentista que entende a história como movimento pendular de ascensões e decadências, Maquiavel escreve que a virtù produz o repouso, que o repouso produz o ócio, que o ócio produz a desordem, e que esta causa a ruína dos Estados, para outra vez, do meio das ruínas, renascer a virtude, e da virtude, a glória e a prosperidade. É principalmente o ócio especulativo que leva à ruína. Como as letras o pressupõem, cultivá-las também significa defender a paz. Como diz em O Príncipe, não há engano mais perigoso nem mais seguro do que esse para introduzir a ociosidade nos Estados. As letras reduzem à ociosidade o repouso conquistado pelas armas e ela leva ao esquecimento das virtudes guerreiras. É oportuno viver a paz com o pensamento constante da guerra para impedir que a ociosidade corrompa o Estado.
A ideia do valor humano como valor épico ou guerreiro é romana e é pensando na unidade da Itália, como dizia Meinecke, ou na expulsão dos exércitos estrangeiros do solo italiano, que Maquiavel a inclui na teoria do “Príncipe novo”. Segundo ela, o Estado é um artifício construído, mantido e ampliado ou pelas leis ou pela força e, quando resultante desta, pela astúcia da raposa e pela crueldade do leão bem dosadas, como se pode ler nos capítulos XV-XVIII de O Príncipe.
O novo tipo de governante maquiavélico, o “Príncipe novo”, é o guerreiro-caudilho-cortesão renascentista, dotado de técnicas precisas de controle e manutenção do poder. A grande inovação de Maquiavel é a substituição da distinção tradicional, que opunha o Príncipe justo ao Príncipe tirânico, pela distinção de “Príncipe antigo” e “Príncipe novo”. Como propõe Sellenart, é uma distinção temporal e não mais jurídico-moral, ou seja, uma distinção histórica, baseada nas evidências da política real, e não mais na lei abstrata.[25]
Na obra de Botero, a “razão de Estado” articula-se à “política” contra tal pano de fundo. Entendida como um programa para obter, manter e ampliar o poder, catolicamente a política implica o controle e a condução da vontade pela teatralização de princípios teológico-políticos dados como naturais ou substanciais. Entre eles, o “pecado original” e a “Graça”.
Contra Lutero, o Decretum de peccato originali, do concílio de Trento, tinha afirmado que o pecado original não destrói a natureza humana nem a lança irremediavelmente ao mal, porque são mantidos o livre-arbítrio e a lei natural da Graça inata. Tratou-se então de fornecer as normas dos factibilia, as coisas factíveis, e dos agibilia, as coisas agíveis. Segundo a doutrina, o fazer é uma arte que se aprende, no sentido de uma técnica, da mesma forma que o agir é um saber formalizado como um hábito do entendimento prático, que leva ao conhecimento dos primeiros princípios da ação. Em ambos os casos, a tese católica pressupõe a definição escolástica da sindérese,[26] ou a “centelha de consciência” pela qual, conforme santo Tomás de Aquino, o homem sabe que faz o mal mesmo quando se abandona à paixão. A sindérese opera na prudência, que é a principal virtude do Príncipe católico, pois lhe permite ajustar eticamente as normas universais do direito à ocasião particular da experiência.
Em Trento também se afirmou que o homem tem capacidade inata e volitiva para entender a lei natural inscrita em sua consciência por Deus; mas, como é criatura decaída, também tem necessidade de leis convenientes para governar-se.[27]
No mundo católico, a necessidade de se fazer a conexão entre a lei natural da Graça inata, inscrita na alma humana por Deus, e a lei positiva, que os homens instituem para governar-se, leva à afirmação de que a lei positiva deve ter a autoridade de uma lei genuína para ser legítima, como em Botero. Ou seja: a lei positiva deve evidenciar — in foro externo — a lei superior que todo homem já conhece em sua consciência — in foro interno — pela sindérese.
Aqui se acha o cerne da doutrina da “razão de Estado” católica sistematizada por Botero, pois é a relação de lei natural e lei positiva que lhe permite fazer a distinção entre Príncipe cristão e Príncipe tirânico, maquiavélico ou luterano. Como dizia o cardeal Bellarmino, uma lei civil justa é sempre uma conclusão da divina lei moral. Suárez o repete, quando escreve que, se um reino surgir baseado em meios injustos, o governante não possui nenhuma autoridade legislativa legítima.
O mesmo princípio é corrente nas letras do século XVII, que denunciam como “imoralidade” aquilo que passa por lei e não tem força legítima, porque não se caracteriza pela justiça da lei natural, infringindo a lei positiva tida como expressão adequada da lei da Graça. O abuso dos privilégios — seus excessos para mais e para menos — , o desvio de dinheiros públicos por ministros, a usura, a simonia, a heresia, a idolatria, o sexo contra naturam e, principalmente, as iniciativas individualistas dissociadas do interesse do “bem comum” são vícios que devem ser exemplarmente castigados e extirpados. Como o fundamento primeiro da crítica é Deus, obviamente não há nela nenhum sentido de superação do presente em nome de utopias progressistas. O abuso é denunciado para repropor-se o costume dos bons usos codificados.
Aqui se encontra também a razão doutrinária da sacralização do poder na representação do século XVII. Uma vez que a lei natural é vontade de Deus, os preceitos das leis positivas da Bíblia não podem diferir dos preceitos da lei natural. Na sociedade verdadeiramente cristã — que é a católica quando é um católico como Botero que escreve sobre a “razão de Estado” — as leis positivas legítimas incluem todos os preceitos e proibições feitos por Deus nos Dez Mandamentos. Logo, como expressão da lei natural, vontade de Deus, as leis positivas do Reino são sagradas, concluindo-se imediatamente que a “razão de Estado” é um segredo de Estado, que exclui a participação dos súditos nas decisões.
As discussões europeias da “razão de Estado” também se rebatem nos negócios da invasão da América e dos massacres do gentio por espanhóis e portugueses. É o caso do Demócrates, de 1550, o tratado sobre as justas causas da guerra contra os índios, escrito pelo teólogo dominicano Juan Ginés de Sepúlveda, que foi convocado pelo imperador Carlos V, na última sessão do concílio de Trento, para discutir a questão, então muito polêmica na Europa culta, da legitimidade dos massacres organizados pelos espanhóis no México e no Peru.[28]
Sepúlveda era adepto da tese aristotélica da “escravidão por natureza” e defendia a noção teológica tradicional de que toda sociedade legítima se fundamenta no conhecimento de Deus, por isso validou a ação espanhola, como se sabe.
Segundo sua tese, o desconhecimento de Cristo por parte dos habitantes da América evidenciaria a ilegitimidade do poder de astecas, incas e outros. Os índios não poderiam viver uma vida de “genuína liberdade política e dignidade humana” por não terem a verdadeira religião revelada. Interpretando as sociedades indígenas como natureza abominável, inferior e distanciadíssima de Deus, Sepúlveda legitimou a conquista espanhola como “guerra justa” contra infiéis inimigos da fé cristã. Por exemplo, citando uma citação de Ezequiel, 3, feita por são Jerônimo — “o que fere os maus naquilo em que são maus e tem instrumentos de morte para matar os piores é ministro de Deus” —, também alegou que a escravização dos indígenas significava, desde que fossem convertidos ao cristianismo, a salvação de suas almas, que doutra forma estariam condenadas ao inferno.[29]
No mesmo concílio de Trento, sua tese foi declarada herética por juristas jesuítas e dominicanos, que estabeleceram uma analogia entre ela e a tese de Lutero de que toda sociedade política legítima deve ser fundada na divindade. Numa das teses de Wittenberg, de 1517, Lutero afirmara que, devido à corrupção do pecado original, a natureza humana ficou incapacitada de reconhecer a vontade do verus Deus absconditus, o verdadeiro Deus oculto. Dessa maneira, também teria ficado incapacitada de distinguir o bem do mal e, assim, de reproduzir um reflexo da justiça divina adequado à ordenação virtuosa da vida.
A conclusão luterana, lógica e autoritária, é a de que os poderes que existem e que devem necessariamente existir são diretamente ordenados por Deus aos homens, para que possam remediar com eles a insuficiência moral da sua natureza corrupta. Sua implicação política imediata é a doutrina do “direito divino dos reis”, segundo a qual o estabelecimento da sociedade política é diretamente ordenado por Deus. Governando por “direito divino”, o rei é infalível, fazendo concorrência ao papa, pois também administra os negócios do espírito. Da perspectiva de Roma, obviamente a tese foi intolerável e a resposta papal foi a reafirmação da “Graça inata”, segundo a qual os homens, apesar de pecadores, mantêm-se aptos para reconhecer na alma a vontade de Deus.
A tese católica afirma que o poder resulta de uma convenção humana. Por exemplo, contra a pretensão de ser rei por direito divino, defendida por James I da Inglaterra, Suárez afirma na Defensio fidei, em 1617, que é certamente correto dizer que todo poder provém de Deus, mas não que Deus confere imediata e formalmente o poder ao rei. Escolasticamente, Deus é “causa próxima e universal”, mas não “causa próxima e imediata”, quando confere o poder.
Segundo os juristas católicos, Lutero e Maquiavel podem ser identificados porque ambos rejeitam a lei natural da Graça inata como base moral apropriada para a vida em sociedade. Ainda segundo eles — e o mesmo argumento se acha em Botero — é falsa a ideia de Maquiavel de que a finalidade primeira do poder é a conservação do Estado e de que, para tanto, é lícito usar de todos os meios, justos e injustos, bons e maus, como “razão de Estado” definida pela necessidade, assim como é falsa a ideia de Lutero de que o homem é incapaz de distinguir o bem do mal e de que, por isso, o Príncipe governa por “direito divino” para impor a lei e a ordem enquanto “razão de Estado” definida como segredo inviolável.
Contra Sepúlveda, os padres defenderam que qualquer sociedade humana segue a lei natural de Deus, mesmo quando não conhece a Revelação de Cristo, pois existe a Graça inata como um aconselhamento moral ainda para as sociedades mais bárbaras. O selvagem que faz sacrifícios humanos ou que come carne humana continua homem, enfim, e tem alma, que por caridade deve ser salva da abominação. Como escreve Vitoria, é ilegítima a conquista que se baseia na noção de que o poder é uma doação da Graça divina. Las Casas usa o mesmo argumento na defesa dos índios. No Brasil, ele pauta a ação de Nóbrega, em oposição ao bispo Pero Fernandes Sardinha, adepto de Sepúlveda que foi comido pelos caeté do Nordeste, achando-se também nos sermões e cartas do Maranhão de Vieira.
A partir do século XVI, a noção de “razão de Estado” refrata, assim, aspectos institucionais novos ou valores políticos diversos dos medievais, quando se propõem com ela a subordinação do interesse privado ao bem público ou “bem comum” e a possibilidade de suspensão das leis positivas em nome da necessidade. A apropriação direta ou indireta, explícita ou implícita, da obra de Maquiavel nas doutrinas produz também várias ideias modernas, como a da subordinação da moral à política, a da desimportância da moral em questões políticas e, ainda, a da conveniência do uso da moral quando é útil para se atingir determinado resultado prático.
No caso específico da Espanha e de Portugal, visando-se o resultado prático, ocorreram várias adaptações dos comentários que Justo Lípsio editou em 1589 dos Annales, como o Tácito español, edição de todas as obras do autor publicada em 1614 por Baltasar Álamos de Barrientos,[30] ou as Empresas políticas: idea de un Príncipe político-cristiano, que Saavedra Fajardo editou em 1640.[31] Uma vez que também concebem o Estado como um “corpo político”, os tacitistas costumam comparar a política à medicina, prescrevendo os remédios, purgas e venenos eficientes para manter, como diz Barrientos, a “igualdade de humores” que assegura a saúde do “bem comum”. Principalmente as passagens de Tácito que tratam do governo de Tibério são apropriadas. Por exemplo um lema atribuído a ele — Qui nescit fingere nescit vivere (“Quem não sabe fingir não sabe viver”) — torna-se corrente na definição da “dissimulação honesta”, técnica católica de ocultar as verdades do Estado, oposta à “simulação”, técnica “maquiavélica” de fingir o que não existe, como escreve Accetto em seu tratado de 1641.[32] Como um meio camuflado de agir conforme a realidade observada por Maquiavel e não segundo a universalidade da lei divina, tentou-se evitar, com o uso de Tácito — uma espécie de “Maquiavel de bolso” para católicos —, as acusações de “maquiavelismo”, identificado também a luteranismo em Portugal.
Não se trata, na oposição das “razões de Estado”, da diferença entre uma visão moral da política e uma visão imoral da mesma, pois o contraste essencial é o de duas moralidades inimigas, como adverte Skinner.[33] A reação católica pressupõe a verdade divina como fundamento absoluto da ética. Como Maquiavel descarta Deus em política, a “razão de Estado” católica o constitui como “mal”, “falta de bem” ou “imoralidade”. Sua obra tem outros pressupostos, contudo, e não se deixa reduzir ao Bem católico.
Também é um equívoco supor-se que, por afirmar a ética, a política católica seja “democrática”, mais “justa” ou menos autoritária que a “maquiavélica”. A estrutura fundamental de referência da “razão de Estado” católica é, como propõe Robinet, “a trilogia das primordialidades diferenciadoras da ipseidade divina”, ou seja, as três primordialidades que afetam o Ser absoluto por meio da sua própria reflexão sobre Si Mesmo, ou as virtudes da Trindade, a Potência do Pai, o Amor do Espírito e a Sabedoria do Filho.[34]
Na aliança ou na guerra com Roma, a Potência subordina as outras duas primordialidades a si alegando, por exemplo, que é por Amor que a desigualdade ou a violência do Estado são naturais, ou obrigando a Sabedoria a subordinar-se ao objetivo preestabelecido do “bem comum”. É, por exemplo, o que se observa na perseguição a cristãos-novos e judeus, na legislação da escravidão ou nos negócios da catequese do índio, todos eles eticamente regulados, todos eles virtuosamente prescritos.
Assim, quando se faz a teoria da violência do Estado, um dos principais textos a que os juristas do XVI recorrem e que aparece na discussão da “razão de Estado” por Botero é o de John de Salisbury, Policraticus, de 1159. Nele, encontra-se a definição cristã, tipicamente medieval, do Príncipe como tipo cuja política é guiada pela ética. Embora livre da lei, ele é o escravo dela e da equidade, quando assume em sua pessoa a pessoa pública e derrama o sangue alheio inocentemente. Segundo Salisbury, a razão da violência exercida pelo Príncipe é a conveniência de que todos os que vivem numa comunidade política (in politicae rei universitate) se conformem à lei. Não só a conveniência mas principalmente a necessidade de observar a lei é o que se impõe a todos que vivem em sociedade — a menos que possa existir alguém a “quem pareça ter sido concedida a liberdade de ser injusto”, o que é impossível. Por isso, quando se diz que o Príncipe está livre dos laços da lei (legis nexibus absolutus)[35], isso não significa que lhe é permitido cometer ações injustas, mas que deve cultivar a equidade, o interesse do Estado (rei publicae utilitatem) e em todas as coisas preferir a vantagem de outrem à sua vontade privada, não por temor do castigo, mas por amor da justiça. Nos negócios públicos, a vontade pessoal do Príncipe não pode querer nada, a não ser aquilo que a lei e a equidade mandam ou aquilo que o interesse comum (ratio communis utilitatis) exige. Nessas matérias, a vontade do Príncipe deve ter força de julgamento; e muito justamente “o que lhe agrada tem força de lei”,[36] desde que não se oponha ao espírito de equidade. O Príncipe é o ministro do interesse público (publicae utilitatis) e o escravo da equidade, e ele assume a pessoa pública (publica persona) na medida em que pune as injustiças e os erros de todos e todos os crimes com equidade: “Não é sem razão que ele porta uma espada com a qual derrama inocentemente o sangue sem ser um homem sanguinolento, e frequentemente mata homens, sem receber a pecha de homicida”.
O Príncipe católico de Botero deve justamente conhecer os instrumentos de controle que, por definição, envolvem a violência. Por exemplo, escrevendo sobre os pobres no livro IV, 6, Botero afirma que
[…] são perigosos para o repouso público aqueles que não têm interesse nenhum por ele, isto é, os que se acham em grande miséria e pobreza, porque tal gente, não tendo o que perder, é facilmente induzida na ocasião de coisas novas e abraça facilmente todos os meios que se apresentam a ela de crescer e fazer seu lucro com a ruína de outrem […]. O rei deve, pois, assegurar-se contra esses, o que fará de duas maneiras: ou expulsando-os do seu Estado, ou fazendo com que tenham interesse pelo repouso do mesmo. Serão expulsos enviando-os para as colônias […] ou então se poderá enviá-los para a guerra […] ou então serão totalmente expulsos, como Fernando, rei de Espanha, expulsou os vagabundos e inúteis aos quais deu prazo de dois meses. Far-se-á com que tenham interesse obrigando-os a fazer alguma coisa […].[37]
Por isso, como em outros autores católicos, o termo política é entendido por Botero como uma arte ou uma técnica que garante a segurança da República (respublica) contra inimigos externos e internos, lançando mão de vários expedientes. O fim último da política é cuidar da concórdia interna do reino, mantendo a paz apesar das divergências e conflitos de interesses — e principalmente por meio deles, nas novas sociedades de corte em que o rei centraliza o poder, neutralizando a aristocracia pela manipulação de suas rivalidades formalizadas nos privilégios.
O tema principal da discussão católica da “razão de Estado” é o dos meios de realizar virtuosamente o “bem comum”. É pela concórdia, responsabilidade de cada “membro” em relação aos demais, que se pode obter a coincidência dos interesses particulares quanto ao fim do todo social unificado. Porque também pode ser tiranicamente imposta à força, a concórdia não é suficiente. Logo, é preciso que os apetites individuais sejam reduzidos a uma unidade comum, a da “tranquilidade da alma”, tal como proposta na obra de Sêneca, como autocontrole das paixões. O que também é obtido por meios externos, como a propaganda, a milícia, os castigos exemplares, a censura, a educação e as artes. A teologia católica pressupõe que a alma humana é perfectível porque o homem é mortal.
A reciclagem teológico-política do estoicismo também implica a noção de que a paz é o modo perfeito da união do corpo político, como conformitas e proportio, ou conformidade e proporção dos apetites. A virtus unitiva, a virtude que dá coesão ao todo, é sempre o amor do “bem comum”, figurado por Botero com a metáfora aristotélico-estoica da amizade. O diplomata espanhol Diego Saavedra Fajardo cita Botero: “É o império união de vontades na potência de um; se estas se mantêm concordes, vive e cresce; se se dividem, cai e morre, porque não é outra coisa a morte senão uma discórdia das partes”.[38]
Logo, o que o poder constitui como vício moral é imediatamente traduzido como vício político, pois a desordem na harmonia das partes individuais implica a do todo do corpo político, conforme o lugar-comum que afirma ser por caridade ou amor do “bem comum” que a “razão de Estado” elimina a fruta podre do cesto de frutas sadias. A crítica católica dos abusos pressupõe a conservação do statu quo, como crítica conservadora que se pode ler em poetas do xvii, como Quevedo, Gregório de Matos e Caviedes.[39]
Com tais pressupostos, o livro de Botero faz definições dos termos da conceituação de “razão de Estado” proposta no primeiro capítulo, especificando espécies de poder e de regimes políticos, quais os impérios que duram mais, se os grandes, os pequenos ou os médios, fornecendo receitas de conservar, de ampliar e de fundar o Estado. Por exemplo: “Da maneira de pacificar os tumultos já surgidos”, “Do que se há de fazer depois de o inimigo ter entrado no país”, “Das maneiras de entreter o povo”, “Se o Príncipe deve armar os seus súditos ou não”…
Na perfeição do Príncipe, segundo a versão contrarreformada, concorrem principalmente a virtude e o amor de Deus, tratados por Botero já na dedicatória do seu livro, oferecido a Wolf Dietrich von Raitenau, arcebispo e príncipe de Salzburgo. Aí, Botero declara que, tendo viajado muito e frequentado várias cortes aquém e além dos Alpes, ouviu a toda hora mencionarem “razão de Estado” e os nomes de Nicolau Maquiavel e Cornélio Tácito associados a ela, o primeiro por fornecer preceitos para o governo e o segundo por descrever as artes usadas por Tibério para obter e conservar o império de Roma.
Afirmando ter lido tanto um como outro, Botero também afirma ter verificado que “Maquiavel fundamenta a razão de Estado na pouca consciência” e que Tibério ocultava sua crueldade e tirania “sob uma barbaríssima lei de majestade”:
[…] me admirava grandemente que um Autor tão ímpio e o comportamento tão cruel de um tirano fossem tão estimados que eram considerados quase como norma e ideia do que se deve fazer na administração e governo dos Estados. Mas o que suscitava em mim não tanto admiração quanto indignação era ver que uma maneira tão bárbara de governo gozava de tanto crédito que era descaradamente contraposta à lei de Deus, a ponto de se dizer que algumas coisas são lícitas por razão de Estado e outras por consciência. E não se pode dizer coisa nem mais irracional nem mais ímpia do que esta, porque quem subtrai à consciência a sua jurisdição universal sobre tudo o que se passa entre os homens, nas coisas públicas como nas privadas, mostra que não tem alma nem Deus.[40]
De modo moderno, Botero apropria-se da doutrina medieval tradicional da ratio Status com um novo valor de uso. Associando política e moral na constituição de doutrinas rivais como “barbárie”, sua “razão de Estado” é papista, absolutista e anti-herética. No seu tratado, o fim da “razão de Estado” é principalmente o da conservação pacífica e não o da ampliação guerreira do Estado; o de moderação prudente do governante, contra o oportunismo do “príncipe novo” de Maquiavel, e, principalmente, o de substituição de relações sociais baseadas em rivalidades políticas por relações pacíficas baseadas na troca econômica. Para assegurar a conservação pacífica, a moderação prudente e a paz das trocas, no entanto, a lógica absolutista da “razão de Estado” implica a paz armada e a guerra.
Notas
[1] André Robinet, “Préface”, in Henry Méchoulan (dir.), L’État baroque; regards sur la pensée politique de la France du premier XVIIe siècle. Étude liminaire de Emmanuel Le Roy Ladurie. Préface de André Robinet, Paris, Vrin, 1985, pp. I-VI.
[2] Jean-François Courtine, “L’héritage scolastique dans la problématique théologico-politique de l’Âge Classique”, in Henry Méchoulan, op. cit., p. 91.
[3] Idem, ibidem, p. 109.
[4] Michel Sellenart, Machiavélisme et raison d’État. — XIIe- XVIIIe siècle, Paris, puf, 1989, p. 5.
[5] A. Stegmann, “La place de la praxis dans la notion de ‘Raison d’État’”, in Théorie et pratiques politiques à la Renaissance. XVIIe Colloque International de Tours, Paris, Vrin, 1977, p. 484.
[6] Por exemplo, pela distinção entre prudência (virtuosa e católica) e astúcia (imoral e maquiavélica), como em Sebastião César de Meneses, Summa politica; offerecida ao principe d. Theodosio de Portugal, por Sebastião Cesar de Meneses, eleito bispo conde de Coimbra. Amsterdam, Tipographia de Simão Dias Soeiro Lusitano, 1650, p. 136: “O artificio (não falando na religião) talvez pode ser instrumento necessario para as condições de reynar; mas quando ajuda reduzido alguma vez a acto de prudencia; tanto, e muito mais destroe, feito habito de astucia”.
[7] Sebastião César de Meneses, “Introducção”, op. cit.
[8] Martim de Albuquerque, A sombra de Maquiavel e a ética tradicional portuguesa; ensaio de história das ideias políticas, Lisboa, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa/ Instituto Histórico Infante Dom Henrique, 1974.
[9] Meinecke, Der Idee der Staaträson in der neueren Geschichte (1924); L’idée de la raison d’État dans l’histoire des temps modernes, Genebra, Droz, 1973, p. 48.
[10] Emmanuel Le Roy Ladurie, “Monarchie classique”, in Henry Méchoulan (dir.), op. cit., p. XIV.
[11] Cf. Francisco Suárez, De legibus, iv, 4, 11: “Tal transferência de poder da República para o príncipe não é delegação mas quase alienação ou um perfeito abandono do poder que estava na comunidade […] assim, quando um homem particular se vende e se entrega a outro como escravo, esse dominium é pura e simplesmente instituído pelo homem. Com efeito, estando suposto esse contrato, o escravo é obrigado, por direito divino como por direito natural, a obedecer a seu mestre. Da mesma forma, o poder (potestas), tendo sido transferido ao rei, este é feito por ele superior ao reino que o deu a ele, porque, dando-se a ele, o reino se submeteu como súdito (se subjecit) e privou-se da liberdade anterior, como se conclui, guardadas as proporções, do exemplo da escravidão”.
[12] Cf. Alcir Pécora, “Vieira, o índio e o corpo místico”, in Adauto Novaes (org.), Tempo e história, São Paulo, Companhia das Letras/Secretaria Municipal da Cultura, 1992, pp. 423-61; “As artes e os feitos ou A secretaria do Império”, in Adauto Novaes (org.), Artepensamento, São Paulo, Companhia das Letras, 1994, pp. 163-88; Teatro do sacramento; a unidade teológico-retórico-política dos sermões de Antônio Vieira, São Paulo/Campinas, edusp/edunicamp, 1994.
[13] Sebastião César de Meneses, op. cit., passim.
[14] Idem, ibidem, p. 124: “E se a cabeça he a mais nobre, e sensivel parte do corpo humano, tambem o Principe he a parte mais superior, e sensivel do corpo político”.
[15] Santo Tomás de Aquino, De regno, II, 2, in Opera omnia, Roma, 1979, t. 42, pp. 449-71.
[16] Idem, ibidem.
[17] Luís Reis Torgal, “Introdução”, in João Botero, Da razão de Estado; coordenação e introdução de Luís Reis Torgal; tradução de Raffaella Longobardi Ralha, Coimbra, Instituto Nacional de Investigação Científica/Centro de História da Sociedade e da Cultura da Universidade de Coimbra, 1992, pp. XIII-XIV.
[18] João Botero, op. cit., p. 5.
[19] António Manuel Hespanha, Poder e instituições na Europa do Antigo Regime; colectânea de textos, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, p. 28: “O poder político não visa, deste modo, interesses qualitativamente diferentes dos interesses dos particulares; antes pelo contrário, se se pode falar dum objectivo que caracteriza o poder é o de visar exclusivamente a salvaguarda destes direitos (daí que se fale, a este propósito, dum ‘Estado-que-mantém-os-direitos’ ou ‘Estado jurisdicional’ — Rechtsbewahrungsstaat ou Jurisdictionsstaat)”.
[20] N. Maquiavel, O Príncipe; trad. Lívio Xavier, São Paulo, Abril Cultural, 1973, cap. XVIII, pp. 80-1.
[21] Ernst Kantorowicz, Les deux corps du roi; essai sur la théologie politique au Moyen Âge, Paris, Gallimard, 1989.
[22] Ernst Kantorowicz, “Mysteries of State”, in Selected studies, p. 382, citado por Jean-François Courtine, op. cit., p. 118.
[23] Michel Sellenart, Machiavélisme et raison d’État, Paris, puf, 1989, pp. 36-49.
[24] Cf. Claude Lefort, “Réflexions sociologiques sur Machiavel et Marx: la politique et le réel”, in Les formes de l’histoire, Paris, Gallimard, 1978; Harvey C. Mansfield Jr., Maquiavelo y los principios de la politica moderna; un estudio de los Discursos sobre Tito Livio, México, Fondo de Cultura Económica, 1986; Michel Sellenart, op. cit.; Quentin Skinner, The foundations of modern political thought, Cambridge, Cambridge University Press, 1978, 2 vols.
[25] Michel Sellenart, op. cit., p. 47.
[26] Santo Tomás de Aquino, Summa theologica, 2o, I, 79, artigo XII: “Synderesis dicitur instigare ad bonum et murmurare de malo in quantum per prima principia procedimus ad inveniendum et iudicamus inventa” (Fala-se que a sindérese instiga ao bem e murmura contra o mal quando procedemos pelos primeiros princípios para inventar e julgamos as coisas inventadas).
[27] Francisco Suarez, op. cit., IV, 4, 11: “[…] os homens individuais ordinários acham difícil entender o que é necessário para o bem comum e dificilmente fazem qualquer tentativa para atingi-lo por si mesmos”.
[28] Lewis Hanke, Aristóteles e os índios americanos, São Paulo, Martins, s. d., pp. 80-3.
[29] Cf. Juan Ginés de Sepúlveda, Tratado sobre las justas causas de la guerra contra los índios, México, Fondo de Cultura Económica, 1987.
[30] Baltasar Álamos de Barrientos, Tácito español ilustrado con aforismos, Madri, Sánchez, 1614, citado por Charles Davis, “El tacitismo político español y la metáfora del cuerpo”, in Augustin Redondo (org.), Le corps comme métaphore dans l’Espagne des XVIe et XVIIe siècles; du corps métaphorique aux métaphores corporelles. Colloque International (Sorbonne et Collège d’Espagne, 1-4 octobre 1990), Paris, Presses de la Sorbonne Nouvelle, 1992.
[31] Diego Saavedra Fajardo, Empresas políticas: idea de un Príncipe político-cristiano; ed. Quentin Aldea Vaquero, Madri, Nacional, 1976, 2 vols.
[32] Torquato Accetto, Della dissimulazione onesta; presentazione di Giorgio Manganelli, 2a ed, Gênova, Costa & Nolan, 1990.
[33] Cf. Quentin Skinner, “The revival of thomism”, in The foundations of modern political thought, Cambridge, Cambridge University Press, 1978, 2 vols., vol. II, pp. 135-73.
[34] André Robinet, op. cit. p. IV.
[35] CF. a expressão do Digesto, I, 3, 31.
[36] Digesto I, 4, 1: “Quod principi placet legis habet vigorem’’.
[37] João Botero, op. cit., IV, 6.
[38] Diego Saavedra Fajardo, Corona gothica, castellana y austriaca, Madri, 1670, p. 223.
[39] Como aparece num poema atribuído a Gregório: “Desejo, que todos amem, / seja pobre, seja rico,/ e se contentem com a sorte,/ que têm, e estão possuindo”. In Gregório de Mattos, Obras completas de Gregório de Mattos; crônica do viver baiano seiscentista. Ed. James Amado, Salvador, Janaína, 1968, 7 vols., vol. I, p. 28.
[40] João Botero, op. cit., p. 2.