2003

Retorno ao poder teológico-político?

por Fernando César Teixeira França

Resumo

A aurora do século XX estabeleceu antinomias políticas, tais como comunismo e liberalismo ou social-democracia e nacionalismo. Foi, portanto, mais recentemente que a velha religião reivindicou espaço nessa nova “ordem mundial”. Não que ela estivesse ausente e agora emergisse do sono para reencantar o mundo. Na verdade, a religião sempre integrou o cotidiano de grande parte das civilizações. O que há, então, agora? O transbordamento dela sobre a política. O islã avança, sobretudo na África e Europa. Há os fundamentalismos judaicos por trás do nacionalismo e da política agressiva de Israel. Mas não só, pois há que se computar, nesse sentido, o mercado do sagrado nos Estados leigos e democráticos ocidentais. Inúmeras seitas oferecem não só a salvação da alma, mas – mais importante – a felicidade material neste mundo. O preço? A adesão ao “status quo”. Estranho retorno – pensa quem ainda ouve ecos do Iluminismo. Mais ainda se observada a igualdade entre religião e demais instituições civis. O clube desportivo e o templo. Eis instituições indiferenciadas aos olhos do poder público. Ora, liberdade de religião e culto – não é isso que se lê na constituição? E é isso que, pelo bem das minorias religiosas, deve-se defender. Do contrário, o que há é uma teocracia. Mas e o laicismo político?

Ao longo do século XIX – com a difusão do Positivismo, sobretudo –, a religião já não é mais ingrediente moral indispensável à coesão social. O Estado é, pois, como que obrigado a procurar novas formas de eticidade. É diante dessa solicitação tácita que a Igreja buscará legitimar juridicamente parte de suas normas. Com efeito, a burguesia sente dificuldade para superar a identificação prática entre religião e política. Daí, o acontecimento público ungido por um sacerdote. Que expediente seria mais eficaz no sentido de agregar valor moral a algo que se destina à consciência coletiva?

No limite, é o que se observa na sociedade norte-americana, em que “almas cheias de um espiritualismo exaltado, quase feroz, fundam seitas bizarras, que se esforçam por abrir caminhos extraordinários para a felicidade eterna […] Surpreender-me-ia, num povo unicamente preocupado com o seu bem-estar, o misticismo não fizesse progressos imediatos” (Alexis de Tocqueville).

Pois sim. É exatamente no interior da cultura materialista mais exacerbada que nasce o espiritualismo mais exaltado e violento. Isso porque a religião é, mais do que um alucinar-se, como afirma Marx. Ela é necessária, importante. Afinal, se falar de fé, mistério, sentido da vida e da morte etc. é irracional, é preciso, então, ser irracional – eis a crítica de Tocqueville ao Iluminismo.

E, nisso, Tocqueville não está só, já que, só no âmbito da cultura germânica, há Savigny e Hegel. Para aquele, o cristianismo seria o representante dos universais na cultura dos Estados nacionais. Já, para Hegel, a religião constituiria, para a consciência de si, as moralidades social e estatal. Assim é que, para ele, religião e Estado seriam indissolúveis.

Aqui, Espinosa, é incontornável. Isso porque introduziu na questão teológico-política dois conceitos fundamentais: o de necessidade e o de liberdade – ou autoridade e transgressão. E isso de modo que não constituam antinomias, mas contradições inscritas no coração de sua filosofia. É compreensível, pois, que para Espinosa, pensador crítico, política (assim como filosofia) e religião devam permanecer separadas.

Assim também pensa Claude Lefort, uma vez que consciente da importância da religião na tarefa de fundar simbolicamente a própria convivência comum, isto é, de proclamar o lugar de onde emergem os princípios institucionais, tematizando e pondo à prova os fundamentos e as finalidades (explícitas ou não) a que se propõem as sociedades.

As perspectivas são, claro, diferentes; afinal, se Espinosa estava imerso na realidade teológico-política, Lefort, pensador atual, chama a atenção para o retorno dela.

O que com a leitura de tais autores fica claro é que, por mais que se advogue o Estado laico, não se pode atribuir à religião o estatuto de erro ou inverdade, carregada que é de valor simbólico.

Quando se expulsa o mito por uma porta, a razão sai por outra.


RELIGIÃO E INSTITUIÇÃO SOCIAL

O século XX, desde cedo, acostumou-se a acreditar que o principal conflito político existente era aquele que opunha ideologias rivais. Comunismo, liberalismo, social-democracia, nacionalismo etc. aparecem como os reais protagonistas subjacentes às disputas político-sociais. Contudo, mais recentemente, um outro ator parece retornar e reivindica espaço nesta nova “ordem mundial”: a religião. Não que ela estivesse ausente e agora emergisse de um sono, reencantando o mundo. Na realidade, a religião nunca cessou de informar e formar o cotidiano da maioria dos homens. De um modo velado ou explicitamente anunciada, a religião sempre dotou de conteúdos precisos a vida comum, remetendo-a a um para além da vivência, retirando-a simplesmente das determinações sociais e históricas. Acontece que o estreito espaço da vida privada em que a modernidade confinara a religião parece não mais contê-la, pois o reduto da privacidade dos lares já não comporta a demanda social pelo sagrado. O Islã avança, sobretudo pela África e Europa, impondo um tipo de socialização que tende para uma atitude específica das instituições políticas, para um Estado que se manifesta em matéria religiosa, privilegiando grupos, assumindo princípios e incorporando doutrinas na própria legislação, cuja política externa se realiza em hostilidade para com os rivais doutrinários de outros credos. Há os fundamentalismos judaicos por trás do nacionalismo e da política agressiva de Israel. É o “eterno” conflito palestino-israelense no Oriente médio, é também a explosão de violência das inúmeras etnias sufocadas sob o jugo do império russo; e que tem na guerra que se seguiu à desagregação da Iugoslávia um exemplo de atrocidades que julgávamos pertencer ao passado das Cruzadas e das guerras inquisitoriais de religião nos inícios dos tempos modernos. Mas não há somente o ressurgimento de um confessionalismo estatal que converte política externa num assunto religioso-doutrinário. Há, também, as inúmeras e variadas seitas e novas igrejas que vêm povoando o mercado do sagrado nos Estados leigos e democráticos do Ocidente. Oferecem do apaziguamento da consciência à salvação da alma, da felicidade material neste mundo à crítica suicida do status quo. Por tudo isso, a religião retorna à cena propriamente política. Não contente em ser mera instituição administradora da privacidade de indivíduos singularizados, o discurso sobre o sagrado e do sagrado se abre para a esfera pública e reivindica poder para opinar e construir novos ordenamentos político-sociais.

Estranho e inesperado retorno, afirmariam aqueles que, na esteira do Iluminismo, sempre professaram a vitória histórica do Estado leigo e a consequente permanência meramente residual da experiência religiosa ao âmbito privado. Ora, a teoria moderna do Estado leigo funda-se numa concepção secular e não sagrada do poder político, entendido como uma atividade autônoma em relação aos confessionalismos religiosos. Estes são colocados para habitarem um mesmo plano institucional e adquirem igual liberdade para exercer influência política, na medida de seu peso social. De tal modo que o Estado leigo que se concretizou ao longo do século XIX, na esteira das reivindicações inauguradas pela Revolução Francesa, não professa uma ideologia irreligiosa ou anti-religiosa, antes procura salvaguardar a autonomia própria da esfera pública de todo conteúdo doutrinário derivado das religiões. O que não impede a institucionalização religiosa e sua inserção na política, mas com a fundamental diferença de que se ela o faz é sob a divisa de uma instituição civil em igualdade com as demais, não retirando qualquer privilégio do conteúdo religioso professado. O clube desportivo e o templo são igualmente beneficiados pelo fisco municipal, por exemplo. São instituições indiferenciadas aos olhos do poder público, a semelhança da forma institucional garante tratamento paritário independente de qualquer conteúdo considerado em si um privilégio.

No Estado leigo, a relação entre temporal e espiritual, entre o conteúdo da norma e o conteúdo da fé, não gera contraposição, mas sim autonomia recíproca entre momentos distintos do pensamento e da atividade humana. Da mesma forma, a separação entre Estado e Igrejas não deve implicar um confronto entre dois poderes, já que o espaço em que atuam é diferente e incomensurável, se bem que possua intersecções. Liberdade de religião e de culto, impedindo estruturas de privilégios ou de controles, constitue a garantia da autonomia do poder civil em relação a toda forma de controle exercido pelo poder religioso. Como correlato da autonomia do poder civil, deve existir autonomia das Igrejas em suas relações com o poder temporal, que jamais poderá impor aos cidadãos qualquer ortodoxia confessional. Esta autonomia recíproca (do poder civil perante as Igrejas e vice-versa) interessa não apenas ao Estado, mas, sobretudo, garante a sobrevivência das religiões minoritárias que aí encontram condições para o exercício da liberdade religiosa.

O Estado leigo se configura, portanto, como contraponto aos regimes teocráticos, nos quais a Igreja subordina o Estado a seus desígnios. Mas também rejeita os regimes que submetem a Igreja ao controle absoluto do Estado, reduzindo-a a um ramo da estrutura administrativa estatal. A separação política e jurídica entre Estado e Igreja tem como corolário necessário o direito ao exercício recíproco da liberdade, da fé e da associação política. Assim, o laicismo político afasta tanto os regimes que pretendem impor uma religião de Estado, como aqueles que professam uma irreligião de Estado.

Ao longo do século XIX, sobretudo com a difusão do positivismo, difunde-se uma consciência da inutilidade da religião para o convívio social e desaparece a identificação entre religião e moralidade, principal veículo de que se nutria a legitimação simbólica dos poderes instituídos. O Estado é forçado, então, a procurar em outros lugares a fonte da própria eticidade. As novas relações entre Estado e Igreja se construíram, em grande medida, também sobre esta busca de uma eticidade pública apartada da simbologia teológica. Diante de uma solicitação tácita e velada, a Igreja procurará recriar situações que de fato correspondam ao período histórico precedente, ou seja, impondo normas de conduta à sociedade civil e solicitando ao Estado que as converta em valor jurídico (parte considerável do direito de família ainda vigente nos países de maioria católica, por exemplo, procura satisfazer preceitos morais diretamente extraídos da religião).

O problema torna-se diferente quando a cultura filosófica de um modo geral é solicitada a elaborar novos princípios sobre o valor moral dos atos praticados pelo Estado, enquanto, por assim dizer, expressão da sociedade civil. As classes políticas emergentes com o capitalismo, frequentemente imbuídas de um espírito leigo de origem burguesa, sentem dificuldade em superar uma identificação prática entre religião e política, outrora bastante ativa. Assim, para solenizar certos acontecimentos públicos, é comum que se solicite aos sacerdotes com maior projeção social a realização de um rito religioso. A classe dirigente sabe que esta é uma maneira eficaz para atribuir valor moral a um evento político perante a consciência coletiva. Resquícios, sem dúvida, de práticas cotidianas do Antigo Regime, para o qual o político retirava sua legitimação simbólica profunda do comércio que mantinha com o teológico.

Por vezes, pode ocorrer que as classes dirigentes façam com que o Estado extraia tão-somente de si a força para a legitimação de seus atos. Nestes casos, o Estado, através de uma peculiar forma de auto-afirmação, apresenta-se como fonte exclusiva de eticidade, o que gera o perigo de um confessionalismo às avessas. Uma irreligião cívica absoluta corre o risco de se converter em “religião do Estado”. As concepções da classe dirigente, ao se imporem como norma que se legitima exclusivamente pelo local de onde emanam, sentem a irresistível atração para se identificarem com a força simplesmente, e é aberto o caminho tortuoso na direção do totalitarismo.[1] Excetuando-se o fenômeno totalitário, que carrega especificidades a exigir um exame exclusivo, é possível notar que o retorno da religião à cena política, para além da mera ação institucional a que se confinara, ocorre através de dois caminhos: um propriamente intrínseco à cultura ocidental contemporânea, e outro extrínseco a ela.

Externamente, a religião retorna como portadora de conteúdos a exigir uma nova instituição social; é o caso do Islamismo, segundo o qual a teologia está inextricavelmente associada ao campo jurídico. No Islã, a lei religiosa, a sharia, abrange tanto a vida religiosa propriamente quanto as regras de convivência social. É dela que se extraem os conteúdos normativos gerais e mais importantes que regulam o ordenamento político-social. E como é central no pensamento e na cultura islâmicos a idéia de unidade (unidade en] todos os planos, do divino ao social, do artístico ao pessoal), pode-se aquilatar o peso da influência religiosa na criação de uma ordem civil e na estruturação do poder. É preciso, contudo, afastar a avaliação fácil que vislumbra no Islã o renascimento de um puro irracionalismo pré-moderno e obscurantista. Afinal, a vida intelectual no mundo islâmico não acabou com Averróes, e prossegue viva, oferecendo contribuições importantes para a cultura e o pensamento contemporâneos. Na realidade, queremos acentuar que o que está em jogo no Islã é uma forma de sociabilidade que persegue a ideia de unidade, e na qual a religião fornece os princípios e a simbologia necessários a esta finalidade. Algo semelhante ocorre com o fundamentalismo judaico, pois este, assim como o islâmico, se apresenta como religião revelada, isto é, são religiões que se estruturam impondo a unidade dos princípios que instituem a lei, que estabelecem o saber e que governam o poder. Nada mais distante ao caminho seguido pelo Estado leigo no Ocidente. Daí, deste sentimento de profunda alteridade, provém a dificuldade que encontramos para avaliar as instituições islâmicas, e/ou judaicas, e as práticas sociais por elas informadas. O resultado é uma ambigüidade que oscila da crítica preconceituosa à sedução sem critérios pelo que é diferente.

Mas a religião retorna ao espaço público no Ocidente, também, a partir de uma dinâmica intrínseca à própria cultura leiga.

“Encontram-se aqui e ali, na sociedade americana, almas cheias de um espiritualismo exaltado e quase feroz, que quase não se vê na Europa. De vez em quando, surgem seitas bizarras, que se esforçam por abrir caminhos extraordinários para a felicidade eterna. As tolices religiosas são lá muito comuns. Isso não nos deve surpreender. Não foi o homem que deu a si mesmo o gosto pelo infinito e o amor àquilo que é imortal. Esses instintos sublimes nunca nascem de um capricho de sua vontade: têm o seu fundamento imóvel na sua natureza; existem a despeito dos seus esforços. O homem pode embaraçá-los e deformá-los, mas não os pode destruir. (…) Se o espírito da grande maioria do gênero humano viesse a concentrar-se apenas na procura dos bens materiais, certamente haveria uma reação prodigiosa na alma de alguns homens. Eles se atirariam perdidamente ao mundo dos espíritos, temendo ficar embaraçados nos obstáculos demasiado estreitos que o corpo lhes deseja impor. Por isso, não seria de admirar se, no seio de uma sociedade que só pensasse na terra, encontrássemos pequeno número de indivíduos que desejassem olhar apenas o céu. Surpreender-me-ia se, num povo unicamente preocupado com o seu bem-estar, o misticismo não fizesse progressos imediatos.”[2]

Já no século XIX, Tocqueville notara a atração da cultura hedonista e materialista norte-americana por um espiritualismo exaltado. Na sociedade cuja paixão dominante é o desejo de adquirir bens materiais, há ocasiões em que a alma de inúmeros indivíduos rompe com estes laços terrenos e se lança impetuosamente ao céu. É certo que Tocqueville atribui esta fuga, por vezes bizarra, à incompatibilidade gerada por uma sociedade excessivamente terrena e materialista que, além de não saber lidar com uma fruição essencial (natural aos seres humanos), não lhe atribui espaço: o gosto pelo infinito e o amor pelo que é imortal. Em outras palavras, a cultura democrático-capitalista valoriza apenas o que está no mercado terreno, impedindo e sufocando a demanda especificamente humana pelo infinito, pelo imortal. Ora, esta demanda reprimida retorna recalcada na forma de uma explosão, na procura alucinada por aquilo que não é deste mundo. É no interior da cultura materialista mais exacerbada que nasce o espiritualismo mais exaltado e violento. Como se a preocupação desmedida com o corpóreo e imediato gerasse a sua negação completa através de uma religiosidade desvairada que exclui tudo o que é deste mundo.

Antes de Freud, Tocqueville apontara o mal-estar próprio de uma cultura unidimensional que elegera como ídolos o lucro, o mercado e o consumo, relegando ao esquecimento o anseio por uma troca com coisas que não são deste mundo. E contra Marx, seu contemporâneo, Tocqueville vira na religião algo mais que um perder-se, que um alienar-se. A possibilidade real de alienação existente na experiência religiosa não elimina a necessidade e a importância de sua presença para os homens. Na realidade, o texto de Tocqueville aponta para outro interlocutor: a crítica de origem iluminista que se convertera num positivismo e que acusa de irracionalismo os fiéis em geral, menosprezando os motivos da religiosidade. Se falar de religião é falar de fé, mistério, sentido da vida e da morte etc., então o homem religioso (fanático ou moderado) não é simplesmente um homem irracional. Na dimensão própria a estas indagações, este homem lida com o mundo através de uma racionalidade que é irredutível, que é incompossível à racionalidade tecnocientífica. A religião não pode ser considerada a base irracional de outras práticas culturais ausentes na modernidade. Ela é, antes de tudo, um modo particular de ordenação do sentido da existência e das finalidades do sujeito. Fazer da religião ignorância, mero artifício de evasão ou alienação, pode nos conduzir a preconceitos e ilusões perigosas ao convívio social. Pois, como notara Tocqueville numa linguagem própria ao século XIX, a religiosidade é um sentimento “natural” do homem, faz parte de seus “instintos”; denegá-la implica desconsiderar a força que a gerou e que pode, então, retornar com as feições bizarras da negação, da destruição de tudo o que existe.

É certo que a história dos EUA não cessa de registrar exemplos de movimentos religiosos e seitas cuja lógica interna conduz à negação da ordem civil, à autodestruição e à violência cega. Com ares de espanto e incômodo, a imprensa descobre todo dia algum grupo que se apresenta como negador-reformador do mundo, a partir da experiência de um conteúdo religioso qualquer. Se este grupo persegue sua coerência, termina por confrontar-se violentamente com o Estado; mas, caso decida amenizar suas críticas, institucionaliza-se e cai no concorrido mercado do consumo religioso. De certo modo, a cultura capitalista da acumulação possui um caráter de excesso e imprevidência que tende a excluir tudo o que não se coaduna com sua moral utilitarista. Enquanto esta cultura, que é nossa também, dissolve-se em consumo, apatia política e filosofias de boudoir, seitas e novas religiões faturam em cima do vazio moral, sobretudo das elites, ampliando o contingente de novos crentes. Tanto é assim que notamos várias regras do jogo em operação na cultura contemporânea. Em algumas delas, a mercadoria não consegue se fazer substituir por valores como honra, altivez, dignidade, lealdade, fidelidade etc. O que não podemos permitir é que o pensamento criativo e crítico aceite se confinar aos estreitos limites do discurso econômico ou informático, desprezando a reflexão política ou moral. Nem todos somos obrigados a nos converter a este credo utilitarista e a suas formas específicas de racionalidade. Tocqueville chamou-nos a atenção para o fato de que existe uma “desrazão”, desvairada ou não, que quer dizer algo que não podemos deixar de ouvir. Esta “desrazão” se apresenta como tal na medida em que não só manifesta e responde a uma demanda propriamente humana por signos que ultrapassam a mera vivência cotidiana, como a ela responde.

Mas Tocqueville não está só em sua preocupação com o retorno desvairado do sentimento religioso na cultura capitalista; seu Democracia na América (1840) se insere numa longa tradição de pensamento que parte do princípio segundo o qual o Estado nada pode em matéria puramente espiritual, e a Igreja nada pode em matéria temporal. De certa forma, ele vai mais longe dentro desta tradição ao tentar conciliar seu liberalismo político lato sensu à doutrina cristã.

“Não tenho nem direito nem vontade de examinar os meios sobrenaturais de que Deus Se serve para fazer chegar uma crença religiosa ao coração do homem. Neste momento, encaro as religiões apenas de um ponto de vista puramente humano; procuro saber de que maneira podem mais facilmente conservar o seu domínio nos séculos democráticos em que estamos ingressando. (…) Maomé fez descer do céu e colocou no Alcorão não somente doutrinas religiosas, mas também máximas políticas, leis civis e criminais, teorias científicas. O Evangelho, pelo contrário, fala apenas das relações gerais do homem com Deus e com os outros homens. Fora daí, nada ensina e em nada obriga a crer. Basta apenas esta, entre mil outras razões, para mostrar que a primeira destas duas religiões não poderia dominar prolongadamente nos tempos de luz e de democracia, ao passo que a segunda está destinada a reinar nestes séculos como em todos os outros.”[3]

Não é necessário fazer teologia para descobrir que o poder em matéria religiosa está diretamente relacionado à natureza das crenças professadas, das formas pelas quais estas se exteriorizam e do tipo de obrigações que impõem. Ora, o conteúdo da crença religiosa pode e deve ser avaliado pelo pensador politico, pois é dele que se deduz a forma pela qual a religião, já institucionalizada, influenciará a constituição do regime sociopolítico de uma dada comunidade. Assim, é o conteúdo próprio ao Islamismo que indica sua incompatibilidade com os regimes democráticos. A influência que emana do Alcorão pretende caminhar além dos domínios da crença, encaminhando-se para as esferas do poder, do direito e do saber. É a lógica operante intrínseca a uma religião que nos permite avaliar a sua capacidade para invadir e moldar a tessitura da vida social. Tocqueville nota, a este respeito, que o conteúdo do Islamismo persegue um ideal de unidade incompatível com os regimes democráticos. A atração pela unidade, pelo UM, torna-o avesso às instituições democráticas, pois estas só sobrevivem na medida em que separam a ordem do poder das ordens do saber e da lei.

Buscar uma unificação dos procedimentos específicos a cada uma destas ordens gera uma sociedade avessa à diferença internamente produzida; e a percepção de que se há um OUTRO, este é transferido para o que está fora, convertendo-se no exclusivamente externo. Daí a facilidade com que as seitas radicais de tradição islâmica elegem seus inimigos em outras culturas e religiões.

Evidente que esta tendência não é absoluta. Não se trata, evidentemente, de acusar o Islã de antidemocrático e terrorista; o que já se tornou lugar-comum em países como EUA e França. Pretendemos, ao seguir os passos de Tocqueville, mostrar que o conteúdo das religiões guarda determinações que influenciam as formas de institucionalização de uma sociedade. No centro destas formas está sempre um problema fundamental: como se relacionam a apropriação e o exercício do poder, a produção da verdade e a escolha das normas que regulam a convivência? Numa palavra, até que ponto poder/saber/lei retiram da religião os elementos que produzem as relações e as determinações recíprocas? No caso do Islamismo, há uma tendência à unidade, à busca por uma reciprocidade entre estas ordens a partir de uma fundamentação religiosa. Em contrapartida, Tocqueville enxerga no Cristianismo uma tendência oposta. O conteúdo do Evangelho não autorizaria uma unificação entre “máximas políticas, leis civis e criminais, e teorias científicas”. As esferas do poder, da lei e do saber manter-se-iam desvinculadas, facilitando o florescimento de instituições democráticas. Além disto, a doutrina cristã se dirige à universalidade dos homens, o que, por sua vez, facilita o desenvolvimento de uma cultura igualitária. Segundo Tocqueville, este conteúdo universalista, aliado a uma preocupação exclusiva com o exercício da piedade (do homem com Deus, e dos homens uns com os outros), torna o Evangelho mais adequado aos séculos democráticos que ele vê, então, serem inaugurados.

Entretanto, não se pode esquecer que o próprio Cristianismo sofreu influências do estado social e político em suas crenças religiosas. Mas aqui, ao elogiar o espírito universalista e transcendente do Cristianismo, Tocqueville parece apenas se preocupar com a expansão do Cristianismo sob as ruínas do Império romano. Ora, a existência do Império facilitara o aparecimento de uma cultura universalista, acima das diferenças e idiossincrasias regionais, sob a invasão das tribos bárbaras. O próprio direito romano se adaptou aos novos tempos da conquista a fim de incorporar povos e etnias diferentes entre si, fornecendo instrumentos para regrar o convívio da babel a ele submetida. A derrocada do Império permitiu, de certo modo, que o poder temporal universal fosse sucedido por uma universalidade espiritual que, paulatinamente, reivindicaria poderes. É aqui que Tocqueville supõe, mas não explicita, uma profunda transformação histórica central para seu raciocínio que recupera um Cristianismo “mais adequado” à democracia. Referimo-nos ao processo histórico de longa duração que culminará, ao fim da Idade Média e inícios da Moderna, na construção de um poder teológico-político. Este se situa nos antípodas do Estado Leigo. Na verdade, a tradição do laicismo político, à qual Tocqueville se filia, constrói-se historicamente como negação do poder teológico-polftico. Assim, aproximar o Cristianismo da democracia, como quer Tocqueville, torna-se uma ideia possível e sustentável historicamente apenas naquele momento em que o exercício do poder já logrou uma relativa autonomia das instituições religiosas, ou seja, após a crítica e derrocada do teológico-político. Antes das revoluções burguesas e dos movimentos socialistas, propugnar um conteúdo religioso que se adequasse à ordem civil soaria uma recaída, uma tentativa de reviver o passado do Antigo Regime.

Mas Tocqueville não é o único a proferir este discurso aparentemente anacrônico. Muitos pensadores do século realizam este retorno à doutrina religiosa a fim de pensar um conteúdo ético para a vida pública na nova sociedade capitalista. Savigny e Hegel, para nos situarmos apenas no âmbito da cultura germânica, também realizaram este retorno. Savigny, no volume VIII de seu Sistema de Direito Romano Atual, ao discutir o problema do conflito de leis no espaço — problema específico às relações entre Estados, ao direito internacional moderno —, aponta dois fatores que forneceriam as bases para a constituição de um ordenamento jurídico supranacional, o qual estaria encarregado de resolver os conflitos internacionais (privados e públicos) com um mínimo de perturbação da ordem social. Em primeiro lugar, o direito romano teria fornecido as bases para um sistema legal internacional homogêneo que garantiria o respeito pelas diferenças culturais de cada região.

Em segundo lugar, o Cristianismo teria inoculado na cultura dos Estados nacionais valores universais que operariam como elementos de aproximação durante a resolução dos conflitos. Hegel, por sua vez, já em 1817, afirmara na Enciclopédia (cf. parágrafo 552) que a religião forma, para a consciência de si, a base sobre a qual se erige a moralidade social e a moralidade do Estado. Para, logo em seguida, criticar o erro de nossa época ao pretender separar e isolar em espaços estanques a religião e o Estado. Erro porque, segundo Hegel, religião e Estado são indissolúveis, na medida em que a religião ultrapassa o elemento individual subjetivo, assim como a moralidade do Estado não pode ser apenas buscada na solidez de seu conteúdo próprio.

Tocqueville, Savigny e Hegel promovem este retorno ao Cristianismo, pois estão preocupados, cada qual à sua maneira, com as formas de constituição de uma eticidade para a vida pública estatal. Se a antiguidade clássica buscara os elementos para uma ética do poder numa piedade cívica — numa religiosidade que se confundia com o exercício da cidadania, tal como ocorrera entre os gregos —, os modernos lutaram para demolir um regime que, fundado no poder teológico-político, tendia para um “fechamento”, para uma organicidade que concebia o espaço público como extensão de um corpus mysticus identificado com o corpo do rei soberano.[4]

Ora, a ruptura com o teológico-político, na esteira das revoluções que abalaram o Antigo Regime, criou o problema de se saber de onde e como retirar elementos para uma ética realmente pública. O poder leigo busca legitimação, e é neste momento que a constituição propriamente simbólica de uma sociedade revela toda sua pertinência. Afastado da religiosidade, o Estado sente dificuldades para revestir seus atos de uma celebração que o legitime perante a maioria. O Estado já laicizado buscará esta legitimação nos resquícios religiosos presentes na memória da coletividade. A própria construção do Estado-Nação, com seus pais fundadores, heróis e fatos históricos, cumprirá, em parte, esta função. Não por acaso, o século XIX é conhecido como século dos historiadores, tal a importância sociocultural-institucional adquirida por estes intelectuais; momento de edificação dos nacionalismos, período no qual se identifica a história de povos dispersos com a biografia da Nação.

“De maneira geral, dever-se-ia concluir que se os pensadores que procuravam a verdade religiosa da revolução política, da qual eram testemunhas (revolução democrática, pois é disso que se tratava), tornaram-se estranhos à sensibilidade de nossa época, é porque não tinham o discernimento do novo. Porém, convém deter-se nessa conclusão e ironizar-lhes as quimeras? Não poderíamos indagar se os que viviam à memória do Antigo Regime e da Revolução, que ainda estavam ligados à fratura entre um mundo em desaparecimento e um mundo em aparecimento, cujo pensar era habitado por uma interrogação sem limites quero dizer: que ainda não detinham uma suposta definição das coisas a conhecer, a definição da política, da religião, do direito, da economia, da cultura —, se eles, afinal, não possuíam, mesmo se se equivocassem, um singular poder de captar uma dimensão simbólica do político, o qual mais tarde terá sido soterrado, e que o discurso burguês já soterrava sob um suposto saber acerca da ordem real da sociedade?”[5]
A experiência da fratura entre dois mundos possibilita uma interrogação ilimitada, da qual jamais deveríamos nos ter afastado. Tocqueville, Savigny, Hegel e tantos outros vivenciaram este momento crítico no qual o novo ainda buscava formas e conteúdos para aparecer e se expressar. O esforço do pensamento destes autores revela um empenho que é o de uma época: buscar conteúdos e formas de expressão para as instituições sociais que nascem com a nova sociedade burguesa. E como eles vivem a experiência da ruptura, da fratura entre dois regimes (o que não se resume a meras formas de governo), o pensar não é habitado por certezas que convertem movediças indagações na solidez do que é considerado simplesmente um fato, um dado. Lefort localiza aqui o principal interesse evocado por estes autores, pois seria um esforço inútil se o pensamento prosseguisse apenas para concluir que Tocqueville procura anacronicamente vincular o Cristianismo a um liberalismo difuso; ou que Savigny, na contracorrente iluminista, preocupa-se com o legado dos valores cristãos na formação de um direito internacional; ou que a teologia presente na obra de Hegel faz mais uma aparição, quando este defende a religião como fundamento para a construção de uma ética do Estado. Estas leituras empobrecem, na medida em que fixam em proposições estáticas o que na origem era esforço de reflexão, indagação dirigida seu tempo. E mais, obscurecem a experiência da fratura entre dois mundos que é testemunhada através dos e nos textos destes autores; o que para Lefort é fundamental para que se perceba a dimensão simbólica originária do político.

O político — expressão singularizada através da grafia masculina do termo que também em francês é feminino — aponta para a dimensão instituinte de uma sociedade em toda a sua complexidade; aos princípios geradores das diversas formas de sociedade. O que não significa que o político, na acepção lefortiana, possua uma extensão simplesmente mais vasta que o conflito das forças sociais denominado “a política”. De certa maneira, é neste aspecto preciso que Lefort recupera a tradição multissecular que marca a história da filosofia política. Pois, a despeito das interrogações sobre a essência do homem, ou sobre a passagem do estado de natureza ao estado de sociedade, esta tradição partia da ideia de que a diferenciação das sociedades se faz a partir do regime que lhes é próprio. O espaço nomeado como sociedade só faz sentido se nos referirmos a seu esquema diretor, ao modo singular de sua instituição, enfim, aos princípios geradores que articulam as várias dimensões e relações entre grupos e indivíduos, bem como entre suas práticas, crenças e representações. Na falta desta referência ao modo primordial e sui generis de instituição do social, o pensamento tende a objetivar as várias relações, a conceder-lhe uma dimensão exclusiva e auto-referenciada. Daí que, ao separarmos o que é próprio à ordem da política (no sentido conferido pela ciência política moderna), da economia, do cultural, do jurídico, do religioso, esquecemos que tal abordagem analítica só é possível com o nosso regime, isto é, a distinção analítica que positiva as múltiplas relações sociais só adquire sentido com uma dimensionalidade originária do social, que é a nossa especificamente. Foi a modernidade europeia que nos legou a constituição de um mundo em que economia, política, justiça, cultura etc. são domínios separados de fato, e de direito circunscritos a saberes distintos.

Reabrir a discussão sobre as demandas do religioso na política, e vice-versa, passa por este modo singular para captar a dimensão simbólica no político. Ora, é disso que faz testemunha o esforço intelectual dos grandes pensadores do século XIX. Buscar a verdade religiosa no seio da revolução política da modernidade não é indício de anacronismo, nem motivo para ironias, é, sim, o testemunho de que estes autores, por não deterem “as definições das coisas mesmas” — o que é próprio a um momento revolucionário, a um momento de ruptura entre dois mundos —, dirigem-se para a dimensão instituinte do social, para as operações simbólicas do político. Lefort nos alerta, contudo, que em muitos casos isto é captado de modo oblíquo, pois não se mostra, à primeira vista, como o cerne das preocupações destes autores. Se há equívoco aparente na ordem das razões linearmente percebida nos textos, é porque não nos situamos no nível das dúvidas que moviam as inquietações destes autores. O texto, portanto, não deve ser lido como um estático repositório de conteúdos. Impelir tais conteúdos ao movimento significa capturar, em seu autor e a partir dele, a indagação original que gerou o próprio texto, ultrapassando tanto a postura interpretativa que objetiva as ideias (o que leva o intérprete à busca das incoerências do texto), quanto a postura que subjetiva a obra (que se resume numa psicologia ou numa determinação das condições materiais de vida do autor).

A leitura dos trabalhos de Lefort sobre o Antigo Regime e a revolução democrática, que ele aloja como inauguradora de nossa modernidade, nos faz atentar para a importância do retorno da religião na vida pública deste final de século. Ora, se a modernidade se constituíra, em grande medida, na e a partir da cisão entre as instituições políticas e religiosas, este retorno questiona os princípios diretores do nosso regime social. O que nos faz refletir sobre a presença simbólica na dimensão instituinte de tudo o que para nós é simplesmente dado, a começar pelo Estado e as formas de regramento da vida pública.

Uma breve incursão ao século XVII de Spinoza permitirá a recuperação de algumas importantes questões. Com efeito, Spinoza e o seu Tratado teológico-político se situam nas origens heroicas do processo histórico de crítica e abandono do Antigo Regime. Heroísmo porque Spinoza escreve num tempo em que as ideias divulgadas poderiam decidir sobre a vida e a morte de seu autor. Originalidade, porque Spinoza é um autor para o qual o pensar sem limites, necessário à apreensão da dimensão simbólica do político, compõe o núcleo de sua tarefa de desmontagem crítica do teológico-político. Ao fazê-lo, ele nos indica um estilo de interpretação da Bíblia que mobiliza a presença do simbólico na constituição mesma de uma comunidade ao longo do tempo. Assim, o interesse de Spinoza é duplo. Em primeiro lugar, é um autor que escreve assumindo como tarefa a demolição do poder teológico-político, e seu discurso se perfaz como crítica às leituras então consagradas do texto sagrado. Mas, além disto, ele aponta um conteúdo positivo, há o horizonte de uma nova instituição a ser alcançada. Estes dois caminhos são trilhados com a preocupação consciente de deslindar os mecanismos que permitem a uma dada instituição social se perenizar, ou seja, a dimensão instituinte que nos permite atentar para a presença do simbólico é constantemente buscada através da memória do que já é instituído. Um exame, ainda que conciso, do Tratado teológico-político poderá nos auxiliar na busca de elementos para pensar a necessidade da presença do imaginário religioso na constituição de um regime social.

O TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO

A obra de Spinoza traz consigo uma tradição interpretativa em que se percebe um ponto comum com o qual concordam partidários e adversários do “spinozismo”. Ambos consideram-na atravessada por uma contradição intransponível que comprometeria a coerência e o rigor pretendidos por seu autor. Encontraríamos a expressão máxima desta contradição no esforço sistemático de Spinoza para definir liberdade a partir do conceito de necessidade. Esta tentativa impossível de conciliação, segundo os comentadores, comporia o núcleo da contradição que invalidaria todo o sistema. Esta avaliação, entretanto, é tributária, malgrado a consciência de inúmeros leitores de Spinoza, de uma tradição milenar de pensamento no Ocidente que opõe o reino da necessidade (o determinismo da natureza e suas leis mecânicas, afirmariam os modernos) ao reino da liberdade e finalidade (a vontade humana). Aceita esta oposição, torna-se inconsistente uma filosofia que, não distinguindo rigorosamente necessidade de liberdade, termina oferecendo uma definição que mescla os dois reinos. Ora, uma leitura não prevenida pelas antinomias do “problema insolúvel do spinozismo” consegue perceber que este é um tema central na obra spinoziana, o que gera as suas indagações, e não o que é tomado como objeto a pedir explicações. Ou seja, Spinoza tematiza a origem da oposição entre liberdade e necessidade para demonstrar que o seu fundamento está numa dupla imagem: a representação mais acabada do conceito de necessidade está nos decretos naturais e/ou divinos, enquanto a liberdade é identificada com a imagem de uma vontade transgressora, com a vontade que perverte tais decretos. Daí o conceito de necessidade trazer inevitavelmente consigo uma imagem política através da qual se converte na imagem da autoridade, do comando inexorável, da causalidade intransponível. Por outro lado, o conceito de liberdade passa a se confundir com a imagem da transgressão, ou melhor, da capacidade para transgredir; o que, por sua vez, sintetiza a representação da desobediência feita pela política e pela teologia. Em suma, o necessário se relaciona com tudo o que existe por um outro, em um outro, isto é, a pedra lançada de um penhasco cai até o rio porque este é o desígnio da natureza, de uma lei natural, forças extrínsecas à pedra mesma. Já a liberdade consiste em poder decidir se se quer, ou não, lançar a pedra do penhasco até o rio, a liberdade torna-se vizinha da vontade.

“O discurso spinoziano elabora, em sua construção, um contradiscurso, isto é, um exame do deslizamento dos conceitos metafísicos de necessidade e de liberdade para as imagens políticas da autoridade e da desobediência. É o subsolo político-teológico (isto é, ideológico) que torna necessidade e liberdade conceitos irreconciliáveis, de sorte que a elaboração de um novo discurso metafísico, ético e político, no qual os termos sejam reciprocamente determinados, supõe o contradiscurso ou a crítica. Seria interessante indagar por que, durante três séculos, os intérpretes de Spinoza não puderam perceber esse trabalho crítico e mantiveram como uma contradição de sua filosofia aquilo que o filósofo não se cansara de apontar como obstáculos para a liberdade individual e política.”[6]

Os estudos spinozianos neste século procuraram, de um modo geral, enfrentar este problema. A recuperação do teor crítico dos textos de Spinoza veio acompanhada de um redimensionamento do papel da obra, seja na dinâmica própria à história da filosofia, seja em relação a sua inserção no desenvolvimento histórico da modernidade europeia. Com efeito, a obra de Spinoza possui notável projeção tanto no desenvolvimento da metafísica europeia quanto na evolução do pensamento político europeu. Mas ela guarda esta dupla dimensão como uma necessidade interna gerada por suas próprias indagações, não se resumindo, portanto, em simples produto dos diversificados interesses de seu autor. Há, deste modo, um sentido político imanente à reflexão metafísica, o que nos é revelado pelo conjunto da obra. Seu derradeiro texto é o Tratado político, que permaneceu inacabado. Ele fora precedido pelo Tratado teológico-político (composto entre 1665 e 1670), e pela Ética, obra de uma vida inteira que obteve redação final entre 1670 e 1675. Com o TT-P, e sobretudo após a Ética, Spinoza radicaliza uma crítica apenas esboçada nos textos anteriores (o Breve tratado e o Tratado da reforma do entendimento): trata-se de afastar o dedutivismo neoplatônico e renascentista, bem como as várias formas de emanacionismo, segundo as quais os múltiplos seres que constituem o universo dimanam de um ser único. Se no início o esforço intelectual parecia desenvolver os conteúdos de uma ética ainda panteísta e partidária de um certo ascetismo, as obras de maturidade mostram que Spinoza sempre procurou uma ética positiva, uma ética não apartada do mundo, enfim, uma ética política. Nas primeiras obras, contudo, as relações entre natureza e divindade, assim como as relações entre homem e sociedade, guardam certo caráter imediato, impedindo que a teoria promova uma mediação precisa com o concreto, o que permitiria pensar a atividade política. Pode-se afirmar que o abandono da indiferenciação e do caráter imediato próprio à tradição panteísta permite a Spinoza se dedicar à elaboração de uma dialética positiva que se dirige ao mundo, ao múltiplo, em sua superfície e possibilidades. É o que acontece na Ética e no TT-P, na medida em que o determinismo causal é conduzido para o indeterminismo, uma física baseada no impulso para a produção do mundo é pensada como a fonte da diversificação do horizonte material e humano. A liberdade do indivíduo passa a ser definida como potência constitutiva inserida nesta causalidade universal. O Ser figura-se em sua potentia, que é o que sustenta a concepção do conatus como impulso de todo o ser para a produção de si mesmo e do mundo, como esforço para perseverar na existência, poder para expandir-se e realizar-se plenamente. A expressão da potência de um Ser é sua cupiditas, que, por sua vez, é a tendência interna do conatus a fazer algo que conserve ou aumente sua força. Assim, a cupiditas (o desejo do homem) investe-se de maneira constitutiva no mundo das paixões e das relações históricas.

A metafísica de Spinoza expõe este longo e complexo processo, que, sem dúvida, guarda dificuldade de compreensão. Aqui nos interessa, sobretudo, marcar o percurso na direção do mundo, isto é, há uma positividade radical do horizonte ético e político do homem acentuada no desenrolar da obra. Os textos políticos de Spinoza retomam e concluem esse processo metafísico. No conjunto da obra, a política é inerente à metafísica. Talvez esta característica ajude a explicar a dificuldade secular na interpretação de Spinoza. Com efeito, sua obra ocupa posição de destaque, seja na história do pensamento metafísico europeu, seja na história do pensamento político moderno na Europa. Ela, na verdade, inova nestas duas tradições, porque teve o grande mérito de conceber a imanência de uma na outra; o que, por sua vez, ocorria na própria história européia de então, e demoraria alguns séculos para se tornar visível aos historiadores. Com efeito, durante a gênese e consolidação do Estado Moderno na Europa (notadamente durante os séculos XVII e XVIII), há um predomínio da metafísica, isto é, os instrumentos e as categorias fundantes do pensamento político são retirados da metafísica, assim como é a própria metafísica que informa a sensibilidade e os comportamentos, as aspirações e os compromissos assumidos pelo pensamento político e pela cultura em geral. A discussão metafísica impõe o rendilhado a partir do qual se desenha a cultura da burguesia européia nascente. Lê-se a política na metafísica, assim como o discurso metafísico se perfaz em ideologia a sustentar as linhagens teológicas do Antigo Regime. A dificuldade expressa pela leitura dos intérpretes de Spinoza é solidária, portanto, da dificuldade para se romper a carapaça ideológica que só vislumbra dados ali onde há indagações; dificuldade porque converte o que são possibilidades, o que são projetos, em fatos.

A obra de Spinoza difere das demais produzidas no século XVII, na medida em que o testemunho que nos oferece de sua história compõe o núcleo de suas interrogações. Ou seja, a mesma dinâmica de relações que vemos na realidade histórica é reproduzida de forma consciente por sua obra de pensamento não como fato, mas como problema, como índice da reflexão. De certa forma, todos os grandes autores revelam sua grandeza nesta capacidade de acolher o seu tempo e, sobretudo, devolver-lhe uma imagem diferente daquela simplesmente vivenciada pelos atores sociais. Com Spinoza, contudo, este recolhimento do tempo não é mero produto do efeito da obra acabada posteriormente retomada e dissecada por seus intérpretes. Ao contrário, ele é o centro das indagações que geraram a própria obra. Tanto é assim, que o exame das categorias metafísicas, absolutamente centrais para a modernidade, como necessidade e liberdade, se faz mediante uma crítica que deslinda, subjacente a elas, as imagens teológico-políticas do comando e da desobediência. A obra acolhe a indeterminação de sentido da realidade, fazendo da ideologia de uma época o núcleo de suas investigações. Não se trata de mais uma imagem reflexa ao real, pois, ao assumir como problema ab initio o que é vivido simplesmente como dado a pedir explicações, Spinoza desvela o mecanismo ideológico fundamental na modernidade que deduz o político do metafísico; a categorização metafísica de uma produção transcendente do mundo, por exemplo, revela sua necessidade na imagem teológica de um poder externo, soberano e absoluto, assim como a idéia de um contrato que limita o direito natural (pura expressão da liberdade como transgressão da vontade individual) mostra-se como uma hipótese que obscurece, ou invalida, rigorosamente, a opção pela democracia. O contrato torna-se, então, a justificativa metafísica para a necessidade da alienação social; na verdade, esta é considerada a expressão acabada daquele. Em suma, “a verdadeira política moderna, no decorrer da ascensão da burguesia, é a metafísica — é sobre esse terreno que devem trabalhar os historiadores do pensamento político…”[7]

Se este é o objetivo dos historiadores contemporâneos, Spinoza já produzira uma crítica contundente durante a gestação do poder metafísico-político. A grandeza de sua obra advém, diferentemente das demais do mesmo período, do fato de “reproduzir” conscientemente no discurso a dialética que se operava na realidade histórica. Reprodução que não é mera adequação do intelecto ao real, ou vice-versa, sendo antes a recuperação, para o discurso, daquilo que opera contraditoriamente na realidade, produzindo-a na reflexão. Algo análogo ao esforço de Marx em O capital, que busca fazer coincidir a contradição do real com a contradição exposta no discurso, de forma que a leitura da exposição contraditória nesta última permita compreender o modus operandi da realidade histórica. A obra spinoziana nos remete a seu tempo, mas, ao fazê-lo, expõe a necessidade do seu ser assim, reabrindo criticamente a mera experiência ao impedir que esta se converta em ação cega, ainda que refletida. Ela desenvolve, portanto, um quadro metafísico sobre o terreno do ser prático, pois foi aí que a cultura moderna nascente encontrou sua expressão mais acabada. E assim, ao revelar a inerência do discurso metafísico à cultura moderna, Spinoza esfacela a aparente solidez dos pressupostos em que esta se assentava. Sua metafísica converte-se em crítica política, e o pensamento político invoca uma concepção renovada do que sejam necessidade e liberdade: experientia sive praxis.

O TT-P, por sua vez, teve a ousadia de pensar o mundo constituído (a totalidade da instituição social e sua dimensão instituinte, isto é, suas virtualidades históricas) a partir de uma região considerada inacessível: a região do sagrado. Spinoza nota que é em torno desta região que giram todos os problemas de ordem prática. Sua tese fundamental é a de que filosofia e religião devem permanecer separadas, são esferas autônomas, no que repete alguns de seus contemporâneos (Galileu, Descartes, Hobbes). E mesmo antes, autores como Marsílio de Pádua, Guilherme de Ockham e Giordano Bruno já haviam se pronunciado sobre a necessidade da autonomia do pensamento diante da religião. A originalidade do esforço de Spinoza, contudo, está na radicalidade com que retoma esta tese, pois a separação que reivindica não é de natureza meramente estratégica, a fim de evitar ou minimizar a presença da Igreja instituída na produção do conhecimento; a separação proposta é de natureza política e surge ancorada em uma reflexão que procura explicar os móveis subjacentes à organização social. A análise de Spinoza examinará, então, O Livro em que se fundamentam as leis, ou seja, a origem do fundamento e da legitimidade do poder. A Bíblia éno século XVII, a principal fonte de legitimação dos poderes instituídos, e a principal origem da discórdia entre os europeus, pois os poderes instituídos se digladiam ferozmente em nome do Mesmo Livro Sagrado. Este é um problema que ocupou inúmeros pensadores nos inícios da modernidade, ou, como o texto da piedade e da fé universais poderia gerar tantas guerras e discórdias? A inovação de Spinoza, contudo, não está propriamente na escolha do objeto, mas no tratamento que lhe será dedicado.

Ora, o TT-P, ao procurar separar filosofia e teologia, inaugura o método histórico-crítico de leitura da Bíblia. No conjunto, esta interpretação se constrói a partir de três argumentos básicos: 1) a Bíblia não é um texto especulativo, mas religioso, moral e político; 2) como consequência, pede uma interpretação específica que compreenda sua linguagem, a fim de que se busque o sentido dos relatos narrados (como circunstâncias em que foram produzidos e conservados, personagens e situações históricas a que nos remete, e, principalmente, a finalidade e o tipo de destinatários originalmente visados), mas jamais demanda um leitor que se preocupe com a racionalidade do que é afirmado, como se O Livro guardasse uma única verdade intemporal; 3) os critérios para alcançar o(s) sentido(s) do texto devem ser encontrados no próprio texto, isto é, não há critérios exteriores que possam ser aplicados sem violentar o texto, pois a leitura crítica que o texto sagrado exige deve ser-lhe imanente, tendo como únicos recursos a filologia e a história, já que se trata de um documento narrativo calcado numa experiência histórica, e não um texto especulativo a enunciar verdades universais.
Este método de leitura evidencia a origem das disputas sobre o texto sagrado, assim como demonstra a necessidade do paradoxo de um texto voltado para a beatitude que só fez provocar ações marcadas pelo ódio e pela violência. O TT-P mostrará, então, que o nascimento do discurso teológico se deve à disputa travada entre os leitores pela interpretação “mais correta”, pela “verdadeira” interpretação que permitiria explicar toda a realidade. A Bíblia converte-se, para estes intérpretes, no tabernáculo que conteria a verdade universal, mas que permanece soterrada sob a camada dos signos lingüísticos empregados na sua confecção. A língua, também sacralizada, torna-se, simultaneamente, o veículo da verdade do mundo e seu instrumento de ocultação, aguardando a iluminação por meio de um único e correto ato interpretativo. As disputas em torno dos critérios da “boa” leitura do texto garantiriam a certeza do conteúdo dele extraído. E como a Bíblia é também fonte de legitimação da lei, a disputa hermenêutica se torna uma disputa política, no sentido forte do termo, pois daquela se retiram os fundamentos a sustentar toda ação instituinte do social. Teologia e política se imbricam originariamente no próprio ato da interpretação do texto. O projeto spinoziano visa à eliminação de tal equívoco, para tanto começando pela crítica dos métodos de leitura do texto Sagrado até então empregados. Se a ideologia que sustenta o poder teológico-político principia pela sacralização da hermenêutica, a crítica dessacraliza a interpretação, expondo sua face humana de disputa pelo poder.

Mas a teologia não nasce apenas das disputas sobre a “verdadeira” interpretação do conteúdo da Bíblia. Há ainda a superstição das massas que se aproximam d’O Livro de forma exclusivamente apaixonada em busca de um reconforto para dissabores da transitoriedade cotidiana. Assim, há um duplo investimento na origem da formação do poder teológico-político: de um lado, a ambição teológica dos doutores (ideólogos) em busca de poder que racionaliza O Texto, convertendo-o no fundamento da ordenação do mundo (legitimador da lei que institui e que regula), e, de outro lado, a multidão que lê a Bíblia segundo suas próprias paixões e seguem arrastadas pela superstição, cuja origem é o temor gerado pelas inconstâncias da fortuna. No entrecruzamento da leitura teológica — ávida de poder — com a leitura do vulgo — apaixonada e errante —, o poder teológico-político cria suas mais duradouras raízes, e o livro da comunhão universal entre os homens transforma-se no fomentador da violência e da guerra. O novo método interpretativo proposto por Spinoza afastará estas duas posturas, a fim de buscar o sentido do que se está lendo, e não a revelação da “verdade” sobre este e sobre o outro mundo, o que se imagina estar nele oculta. Este novo leitor deverá saber manipular a língua original em que o texto foi escrito, a história do povo que o produziu e a própria história do texto, já que este foi escrito em diferentes momentos, por autores distintos que possuíam intenções variadas diante de platéias também variadas. Esta nova leitura pretende afastar o perigo da multidão supersticiosa e dos teólogos ávidos de poder, revelando a íntima relação que os une e que gera uma forma específica de dominação: o poder teológico-político.

No interior da obra spinoziana, o TT-P ocupa posição estratégica. A análise do mundo não se esgota no exame da necessidade com que o todo (a substância) atua e se autoproduz, nem no estudo das contingências com que as manifestações de seus modos (a diversidade dos seres existentes) se realizam, opondo as diferentes capacidades de preservação dos seres (conatus). Ora, há também a realidade dos homens que, mesmo não sendo modos finitos, têm a capacidade para se autopropor fins, isto é, podem forjar para si constituições distintas. Este é o local do politico, no sentido lefortiano do termo. O político aponta para múltiplas e específicas determinações que não emergem diretamente, sem mediações, da produção genético-dedutiva dos seres apresentada no livro I da Ética. Trata-se de um modo de figuração que mesmo distante de uma dedução racional more geometrico guarda uma racionalidade a exigir uma abordagem diferenciada. Esta abordagem tematiza o binômio servidão/liberdade, cujas definições defluem da Ética: servidão é a impotência para reger a própria vida diante da natureza e dos outros indivíduos, enquanto a liberdade é a autonomia, certa capacidade adquirida para se tornar independente em face da fortuna, o que nos é apontado como ideal construído pela razão. Esta é a originalidade do projeto spinoziano. Com efeito, Spinoza não abdica do postulado da racionalidade do real; entretanto, isto não implica uma dedução das leis resultantes do contrato que institui a comunidade. Esta compartimentação hobbesiana do problema é afastada, pois não se procura nem uma física do social (o que Hobbes considerava impossível), nem um discurso sobre o politico que se deixe seduzir completamente pela lógica da força. A. política não é considerada a instância produtora da liberdade porque traduziria uma razão ínsita qualquer que fosse; em vez disso, é a instância que permitiria garantir as condições para o homem se libertar, pois através dela a razão adquire uma particular capacidade para se expressar. Sem ser propriamente uma ruptura na ordem da totalidade, a política se define como tentativa de limitar e orientar a produção e constituição da natureza, afirmando-se como uma modalidade diferente na ordem dos seres, uma criação propriamente humana capaz de garantir a potencialização do conatus coletivo através da multidão organizada.

O capítulo IV do TT-P começa distinguindo as leis da natureza das leis dos homens. Apesar de Spinoza considerar que os homens “estão determinados por leis universais da natureza a existir e a agir de uma certa maneira[8], esta distinção é necessária por dois motivos: 1) enquanto parte da natureza, o homem participa da potência desta; assim, podemos considerar as leis que derivam da necessidade da natureza humana como dependentes da potência da mente humana; 2) devemos definir e explicar as coisas a partir das suas causas próximas, para não nos perdermos em considerações genéricas sobre o encadeamento das causas, distanciando-nos da compreensão das coisas singulares. Aliás, de um modo geral ignoramos este encadeamento entre as singularidades da história humana, sendo necessário que os consideremos na prática como impossíveis — é impossível um conhecimento absoluto da história, porque esta, além de particular, está eivada de possibilidades. O primeiro motivo nos mostra que não há continuidade entre as leis naturais e as leis humanas, sendo ambas absolutamente distintas; já o segundo procura afastar eventuais devaneios metafísicos ao se analisarem as relações humanas particularizadas e sua história, evitando transferir para a história dos homens o local de revelação do absoluto. As complexas redes de conexões que se estabelecem no mundo dos homens mostram que a suposição da possibilidade objetiva não se restringe a uma questão de método, antes fazendo parte da necessidade com que se efetivam o existir e o agir humanos. A história, a política e a religião não são consideradas negativamente, como se marcadas pelo insuficiente entendimento finito, por oposição à atuação plena que se processa mediante o entendimento infinito. Na verdade, o humano é encarado como positividade, pois a ausência de um domínio total das situações é ser conforme a essência dos homens, conforme o seu domínio sempre relativo das conexões entre o existir e o agir.

Spinoza não abandona a postura adotada na Ética quando considera a ordem da possibilidade: a lei é “uma regra de vida que o homem prescreve a si mesmo ou aos outros em função de determinado fim”.[9] A finalidade das leis pode ser considerada, então, a partir da razão, ou a partir das paixões e interesses. Para a razão, a finalidade da lei só pode ser o verdadeiro conhecimento de si mesmo enquanto modo de ser da substância absolutamente infinita. Mas esta compreensão está demasiado distante da maioria dos homens. Estes vivem suas vidas quase exclusivamente no plano das paixões e dos interesses, e neste plano a obediência é garantida ao se revestir as leis de uma outra finalidade, prometendo recompensas a quem as observa e penalidades a quem as infringe. A lei que procura o amor intelectualis Dei — a lei compreendida sob o prisma da razão ou da intuição na Ética — é dita divina; já as leis humanas contingentes se referem aos desejos e temores e nos conduzem à esfera da política.

A lei divina é universal, produto da dedução more geometrico da única substância infinitamente infinita, enquanto a lei dos homens é sempre particular. A primeira não obriga a cerimônias, pois, nutrindo-se apenas de noções comuns, dispensa o apelo e a fé nas narrativas históricas. Ela se dirige ao sumo bem. A segunda vive da imaginação, por isso se nutre da fé, sendo sempre particular. Para suprir a falta de conhecimento intelectual das coisas, ela forja imagens que se corporificam em rituais e cerimônias. Seu objetivo é a segurança do indivíduo e da coletividade, portanto bens circunstanciais e passageiros. A confusão entre elas só pode se estabelecer quando se permanece refém exclusivo da imaginação. É o caso do teólogo ávido de poder que intelectualiza o Texto Sagrado, e das massas que vêem n’OTexto respostas para seus temores, imersas que estão na superstição. Quando isto ocorre, confunde-se Deus com um soberano, a ciência com a obediência, liberdade e necessidade tornam-se termos antagônicos, e as leis destinadas a garantir a estabilidade do Estado e o direito dos cidadãos ganham uma nova destinação: a salvação individual. No plano exclusivo da imaginação, a tendência é revestir as leis humanas de uma transcendência para torná-las mais eficazes — aliás, a própria expressão “lei divina” é uma espécie de contaminação de sentido, uma perigosa metáfora, pois o termo “lei” é mais propriamente empregado para designar a regulação das relações sociais, e não as necessidades naturais.

É preciso, contudo, evitar uma leitura iluminista radical de Spinoza. De fato, ele não propõe uma “correção intelectual” do vulgo através de uma propagação de conhecimentos que criaria instituições adequadas à verdadeira finalidade da vida humana. Isto equivaleria a propor a eliminação da imaginação. Nesta utópica sociedade plenamente iluminada, as leis e as cerimônias não seriam mais necessárias, pois todos viveriam conforme os ditames exclusivos da razão. Ora, o ideal iluminista não só desconhece o homem, como projeta uma sociedade na qual só poderiam viver filósofos, e ainda mais, filósofos destituídos de corpos. Spinoza, ao contrário, considera uma positividade na imaginação. Esta não é a falta, o outro vazio da razão, mas antes a fibra de que são tecidas as instituições reguladoras de toda a vida social. O imaginário é que permite a vinculação entre os indivíduos, consolidando a unidade e a dinâmica de um Estado. Eliminar a imaginação é o mesmo que pretender manter vivo um homem excluindo seu corpo. O imaginário é coextensivo à vida social, o estofo em que se produzem as relações entre os grupos, enfim, o elemento próprio da política, na expressão de Léo Strauss.

“A imaginação, efeito das afecções corpóreas, move-se numa região de signos indicativos que assinalam a situação presente de nosso corpo, mas que são tomados como expressão da natureza íntima das coisas, sem relação conosco. Isto imprime aos signos uma característica própria: a instabilidade (tantas cabeças, tantas sentenças). No entanto, o signo surgira exatamente com a função de conjurar a dispersão espacial das coisas e a fragmentação temporal dos acontecimentos. Sua função era essencialmente estabilizadora. Para realizá-la, será preciso que ele ultrapasse a dimensão indicativa e se torne imperativo. Graças à memória, de um lado, e às paixões tristes do medo e da esperança, de outro, a imaginação converte os sinais em regras, preceitos, normas e valores. Nascem os universais abstratos, dotados de força interpretativa. No entanto, um imperativo não se sustenta por si só, uma vez que”, Spinoza, “os homens são inconstantes por natureza e não temem nem esperam sempre as mesmas coisas. A estabilização definitiva exige a determinação da própria origem do mandamento e do valor, origem que deve ser portadora de propriedades fixas e imutáveis, transmissíveis a seus decretos. Os signos imperativos se convertem em signos revelados, e sua fonte é o poder divino.”[10]

A imaginação é uma forma de conhecimento que se realiza na exterioridade, isto é, ela ignora as premissas de suas próprias conclusões porque desconhece as causas que a geraram. Surge primeiro como efeito das afecções corporais, que, ao produzirem signos indicativos das coisas, transferem-nos para estas, e, numa ilusão realista, passa a acreditar que o signo representa a essência da própria coisa. E como há pluralidade de signos, à ilusão realista vem acrescentar-se uma instabilidade de significações conferidas ao mundo. Ora, a mera aglutinação de seres dispersos em uma comunidade exige uma certa estabilização dos signos num imaginário comum. Este imaginário comum possui a dupla tarefa de aglutinação da materialidade dispersa entre os homens e de fixação de uma memória coletiva que permita acolher os acontecimentos vividos numa só teia significativa. Neste momento, o signo que apenas apontava para o mundo passa a organizá-lo, reinventando-o; numa palavra, adquire força imperativa. Esta conversão do signo indicativo de algo em preceito, em norma, em valor que organiza a polissemia, é uma operação da própria imaginação. Mas a memória que acolhe o que está disperso no espaço e fragmentado no tempo sofre, por sua vez, a ação da fortuna, passando a transferir para esta a finalidade que o seu próprio desejo forjou. E como somos incapazes de compreender a totalidade das conexões entre os fatos e circunstâncias, tornamo-nos presas do medo e da esperança, pois imaginamos que um desígnio superior trama os acontecimentos por vir. Assim, a imaginação passa constantemente da região do ser para a região do dever ser, e vice-versa. Esta confusão cria outra ilusão correlata: a idéia imaginativa segundo a qual a história humana, assim como a natureza, opera segundo fins, como se a natureza e a história também desejassem e, por isto, agissem segundo finalidades. Medo e esperança se nutrirão desta idéia, desta inconstância, ante os desejos de uma “vontade superior”.

Resta, porém, mais uma operação. Vimos que a instabilidade dos signos não cessa, nem mesmo quando estes se convertem em imperativos, em valoração normativa organizadora. A instabilidade é a marca definidora da imaginação. Na tentativa de realizar uma estabilização definitiva e evitar o relativismo instável das opiniões auto-excludentes (o “tantas cabeças, tantas sentenças” tende a se converter no “minha cabeça, minha sentença”), a imaginação cria outra ilusão: a de que a própria origem da norma e do valor é dotada de fixidez e imutabilidade. Ou seja, as operações imaginativas seguem sempre produzindo relações e gerando instabilidades significativas. Mas isto é insuportável para a imaginação, porque pode destruir a estabilidade exigida para a manutenção de uma comunidade. O último recurso que então lhe resta é forjar uma origem fixa e imutável para os imperativos, ou seja, já que as normas e os valores não conseguem retirar de si mesmos a força para evitar as múltiplas afecções corporais que os relativizam, projeta-se uma origem que, por ser exterior e superior ao mandamento, torna-se irresistível. O mandamento, portanto, adquire sua força imperativa desta origem emanadora, e o signo que fora meramente descritivo converte-se em imperativo porque emanado de uma fonte divina.

As ideias imaginativas realizam um movimento de pura heteronomia e alienação, pois começam exteriorizando disposições originadas no corpo e, após uma breve reinteriorização sob a forma de normas e valores, retornam à via exterior, depositando neste Ser Superior e externo a origem que é fundamento da ordenação do espaço e do tempo comuns. Este Ser transcendente, na medida que é produto da imaginação, também é por ela afetado. Passa, então, a adquirir características que lhe são peculiares. Deus, a fonte garantidora da estabilidade, revela-se instável. A imaginação forja-lhe por derradeiro uma vontade onipotente e caprichosa. Esta vontade demandará um conhecimento de seus desígnios, pois é preciso evitar a sua ira e satisfazer seus desejos para que permaneçamos em harmonia e não sejamos molestados por qualquer desgraça. A religião institucionalizada nasce neste momento preciso, como resposta à demanda por um conhecimento iniciatório da Vontade Suprema. As cerimônias e ritos, enfim, toda a liturgia é uma consequência natural. E como estamos diante do fundamento da lei, a religião, assim concebida, apenas realiza sua tendência imanente, transformando-se em teocracia.

A crítica spinoziana ao poder teológico-político unifica os elementos presentes em sua metafísica, em sua teoria do conhecimento, em sua teoria da linguagem e em sua antropologia. Ela trabalha simultaneamente com uma série de distinções: entre o Deus das Escrituras e o Deus sitie natura da Ética, entre imaginação e intelecto, entre paixão e ação, entre servidão e liberdade. Todas estas distinções promovem uma crítica ideológica, na medida em que desvendam o imaginário e o seu modus operandi. Esta análise das opera imaginativas — do signo indicativo a imperativo, do imperativo ao revelado, e da revelação às leis e valores exteriormente fixados — não tem o intuito de eliminar a capacidade imaginante, nem persegue o ideal de uma tutela da imaginação pelo intelecto. Para Spinoza, só uma paixão pode combater outra, de nada valendo a atividade do intelecto que expõe idéias verdadeiras diante da capacidade imaginante.[11]

O exame do imaginário distinguirá nos mecanismos de produção da força imaginante a fraqueza das ideias imaginativas. Isto nos permite revelar os modos pelos quais a heteronomia penetra em todas as esferas da existência: criando uma moral vítima da superstição, que confunde passividade e liberdade e que termina condenando os afetos; instituindo uma política tirânica que reduz os cidadãos à solidão de indivíduos vítimas do medo de castigos e esperançosos por alegrias vazias, isto é, transformando cidadãos em multidão indiferenciada e servil, por vezes explosiva em busca de uma inconsistente estabilidade para o fundamento; produzindo um conhecimento apartado de seus pressupostos, isto é, gerando a teologia e a metafísica.

Em suma, o discurso de Spinoza se perfaz como contradiscurso ao desvendar a heteronomia na moral, na política e no saber; para tanto, é preciso compreender os elementos presentes no modo de operar da imaginação para que se possa diferenciar o que é força corporal e o que é fraqueza espiritual. Esta reavaliação das operações do imaginário não aponta para sua negação nem para seu aprisionamento nas celas do intelecto, mas para uma nova forma de instituição social que garanta a expressão livre das opiniões e pensamentos sem comprometer a paz social nem apelar para um fundamento transcendente da fé, do saber e da lei. Para Spinoza, esta instituição é a democracia.

Não nos interessa aqui discutir a concepção spinoziana da democracia. Ao contrário, a crítica à produção ideológica dos produtos da imaginação ajuda-nos a dialogar com a interpretação, feita por Lefort, do que denomina “a revolução democrática”. Com efeito, à medida que Lefort vai se afastando da concepção marxista de revolução — denunciada como ficção incoerente, pois estabelece um corte radical entre passado e presente, o que se desdobra na quimera de uma sociedade inteiramente transparente a si mesma —, o tema da democracia é retomado numa perspectiva histórica, isto é, passa a ser examinado como um longo processo iniciado na modernidade e que invade nosso mundo, provocando uma desincorporação do poder e uma ruptura entre as esferas do saber, da lei e do poder. Estas transformações foram e são tão drásticas e profundas, que adquiriram, de um texto a outro, o qualificativo “revolucionário”. Assim, a ideia de revolução, originalmente afastada, já que eivada da ficção marxista, retorna como importante ferramenta conceitual na análise das novidades geradas desde a modernidade (o que abarca, além das revoluções ditas burguesas, como a Revolução Inglesa do século XVII e a Revolução Francesa do XVIII, a experiência totalitária e a democracia liberal de massa neste século). A leitura de Spinoza nos auxilia, na medida em que ele discute o problema da fundação, da instituição social, sem cair na armadilha ideológica, propriamente moderna, que opõe o direito natural dos seres humanos dispersos ao contrato social gerador da comunidade política. A recusa desta oposição permite que Spinoza examine as relações entre a soberania do Estado e a liberdade individual como uma tensão necessária, evitando a mera contraposição que se esmera em definir os limites, a graduação permitida para a invasão de uma esfera na outra. Nem o liberalismo lockeiano que esconde o fundamento da limitação da soberania estatal num direito natural humano pré-social, ou melhor, proto-social; nem o desvario hobbesiano que se deixa seduzir pelo apelo da força do Estado para conjurar o medo do indivíduo diante de seu vizinho; Spinoza elimina a figura do Contrato Social para mostrar que o direito natural dos indivíduos, dado universal pois expressão da potência de cada um (da multidão de conatus), constitui-se em direito público, atravessando o antagonismo social sem precisar negá-lo ideologicamente sob uma ou outra forma de conduta transcendental, mas assumindo-o de pleno direito. A multitudo torna-se potência constitutiva, e o direito natural revela sua face propriamente pública. A justiça aparece a cada momento no qual, na medida em que, percorrendo o cenário do antagonismo sem suprimi-lo ideologicamente ou sufocá-lo pela repressão totalitária, os indivíduos, ao contrário, aceitam-no como legítimo e originário ao buscar uma forma de instituição que retire do próprio antagonismo a força que impele à organização coletiva.

A PRESENÇA DO SIMBÓLICO

“Um fato é que as instituições políticas se cindiram há muito tempo das instituições religiosas; outro fato é o retraimento das crenças religiosas para a esfera privada. Observa-se este fenômeno mesmo lá onde o catolicismo continua sendo uma religião dominante. Uma ressalva se impõe, é verdade, quando se considera o exemplo dos países europeus rendidos à dominação totalitária. Embora suscite reflexão, esse exemplo será, provisoriamente, negligenciado, para nos ater à constatação geral. Aqueles dois fatos guardam um sentido por si mesmos? É possível dizer que a religião simplesmente se dissipou perante a política (para só sobreviver em sua periferia) sem perguntar o que outrora significou o investimento da religião na ordem política? Ou, então, não seria preciso supor que esse investimento fora tão profundo que se tornou irreconhecível exatamente para quem considera esgotados seus efeitos? Não se poderia admitir que, a despeito das mudanças advindas, o religioso se conserva sob os traços de novas crenças, novas representações, de tal modo que possa retornar à superfície, sob formas tradicionais ou inéditas, quando então os conflitos seriam bastante agudos a ponto de rachar o edifício do Estado?”[12]

Há, já notamos, certa aproximação entre as elaborações de Spinoza e de Lefort: ambos são pensadores políticos que apontam uma irredutibilidade do teológico ao político, e, ao mesmo tempo, um investimento recíproco entre as duas esferas. Teologia e política devem se afastar para que o espaço de convivência social não se feche, não crie a paranóia da perseguição dos hereges, afastando de seu seio qualquer forma de alteridade. Por outro lado, teologia e política reclamam para si, cada qual a seu modo, a tarefa de fundar simbolicamente a própria convivência social, isto é, proclamam-se o local de onde emergem os princípios da instituição social, numa palavra, ambas se situam na dimensão instituinte da sociedade, tematizando e pondo à prova os fundamentos e as finalidades (explícitas ou não) a que se propõem as comunidades humanas. Irredutibilidade e investimento recíproco — a partir desta percepção inicial, Spinoza e Lefort desenvolvem suas análises do teológico-político.

Mas há, também, uma diferença profunda entre as perspectivas destes dois autores. Enquanto Spinoza, imerso no cotidiano do poder teológico-político, conclama a um afastamento urgente entre os dois planos, Lefort, homem do século XX, nos chama a atenção para o retorno do que se imaginava afastado. Ora, é preciso considerar todo o peso destes três séculos a separar as duas reflexões. A evidente diferença temporal entre ambos solicita uma compreensão mais atenta, pois o primeiro pensa ao contato com o início das transformações que desembocariam na revolução democrática da modernidade, e o segundo tem a experiência desta revolução como passado, e mais, conheceu o limite paradoxal a que ela nos pôde conduzir, o horror do totalitarismo. É por isso que o tema do retorno é inevitável para Lefort, enquanto para Spinoza o tema do afastamento é central. Na verdade, com Lefort notamos que o tema do afastamento entre o teológico e o político deve ser visado em função do retorno de seus investimentos recíprocos. De qualquer modo, ambos introduzem sutilezas essenciais que apontam os limites da tradição moderna que concebeu o Estado leigo e a presença do discurso racionalizante na conformação das instituições sociais após a modernidade.

Para Lefort, perguntar-se pelos laços, considerados indissolúveis, entre a religião e a política não tem o objetivo de enunciar uma mera diferença de seu discurso diante do pensamento politico contemporâneo, ou ainda veicular uma retomada nostálgica de antigas discussões que opunham a religiosidade ao livre-pensar, as trevas da crença à luminosidade da razão. Ao contrário, segundo Lefort, pensar a permanência do teológico-político nos sensibiliza para um problema que fora absolutamente central na tradição da filosofia política, mas que atualmente é negligenciado e esquecido pela moderna ciência da política: a dimensão do político, isto é, a dimensão instituinte do social. Em outros termos: o que comanda a adesão dos homens a um dado regime[13], a uma maneira de ser em sociedade? Aquém das profundas diferenças entre as construções teóricas, a tradição multissecular da filosofia política sempre se perguntou sobre o que identifica o regime de uma comunidade humana, de uma koinonia. Ela sempre buscou compreender o que é este mise-en-forme que torna possível a coexistência humana e explica, de certo modo, a multiplicidade das formações sociais no tempo e no espaço. É esta referência primordial a um modo de instituição do social que afasta o modo próprio da filosofia política da ciência política que se pratica em larga escala atualmente. Esta supõe sempre e necessariamente a ficção de uma sociedade posta antes da própria sociedade, a positividade considerada natural de que há aí diante de nós uma sociedade que demanda esclarecimentos. Assim, por exemplo, quando se atribui um estatuto de realidade às relações de produção e à luta de classes, ou à função que ocupam as relações de força, esquece-se que a própria ideia de uma divisão social que separou a economia da política, por exemplo, só é definível, e portanto pensável, quando os termos que compõem a divisão forem determinados em suas relações; e quando as próprias relações, devido à sua inscrição comum neste espaço, indicarem uma sensibilidade comum a este. Quando se pensa a ordem do econômico, a ordem da política, a ordem jurídica etc. e suas inter-relações, é porque concebemos — tal qual uma evidência natural — a ideia de uma dimensão originária do social que as separa em planos distintos. Supor que esta dimensão é um puro dado a pedir explicações, como o faz a ciência política, nos inibe de considerá-la em sua forma originária, em sua forma política, ou seja, a partir da história que a fez ser tal como é.

Como a exigência de conhecimento da filosofia é de outra natureza, a separação, advinda historicamente, entre o religioso e o político deve ser encarada de forma a evitar tanto os relativismos históricos como os evolucionismos. Com efeito, a indagação que se dirige ao sentido da laicização característica da cultura contemporânea não pode se limitar a compreender como religião e política se articulam ou desarticulam no exame de uma história empírica, relatados e sopesados os fatos particulares, as idiossincrasias de cada momento e lugar. Este trabalho, embora necessário, corre dois riscos — sobretudo naqueles momentos em que o historiador abandona o exame pontual do documento e se pergunta sobre o sentido geral do processo: a) achatar-se a história na percepção da pura diferença intrínseca, ou seja, se hoje é assim, ontem foi completamente diferente, concluindo que os homens são radicalmente diferentes no tempo, e só nos resta fazer jus à fragmentação temporal, exaltando a percepção da mera diferença; b) ou, então, combinam-se e congregam-se as várias transformações numa teoria evolucionista ou dialética, como queiram, para, enfim, nela visualizar a construção rumo a uma sociedade racional porque laica. Ora, se no primeiro procedimento o significado da separação é dissolvido na percepção da mera ruptura histórica, criando-se a percepção de uma história mosaico de descontinuidades, no segundo o significado da separação é estabelecido a partir da referência a uma norma do desenvolvimento histórico ou das estruturas socials; se o conceito (a norma) que explica as transformações históricas foi posto a priori ou é deduzido a posteriori em função da última transformação conhecida na história mais recente, não nos interessa examinar aqui, pois é o procedimento idêntico que importa apontar. Antes de visar a instituição social, importaria acentuar a racionalidade que nos explicaria a passagem necessária de uma formação social a outra.

“O filósofo se encontra em outra situação. Quando pensa sob o nome de politique os princípios geradores de uma sociedade, ele inclui os fenômenos religiosos, de imediato, em sua reflexão. Isso não quer dizer que, a seus olhos, o político e o religioso nunca possam coincidir. Ele tem em mente a ideia de que não se poderia separar o que diz respeito à elaboração de uma forma política — em virtude da qual são fixadas a natureza e a representação do poder, a natureza e a representação da divisão social (divisão entre classes e grupos) e, simultaneamente, são agenciadas as dimensões de uma experiência do mundo — do que diz respeito à elaboração de uma forma religiosa — em virtude da qual o visível atesta uma profundidade, os vivos são designados por meio da relação com os mortos, a fala dos homens encontra sua garantia em um acordo primordial, os direitos e os deveres são formulados em referência a uma lei originária. Em suma, tanto o político quanto o religioso põem o pensamento filosófico em presença do simbólico — não no sentido conferido pelas ciências sociais, mas sim no sentido em que um e outro comandam, por meio de suas próprias articulações, um acesso ao mundo.”[14]

Reencontramos aqui a abordagem spinoziana do teológico-político. A filosofia, ao se acercar do político, inclui necessariamente o fenômeno religioso, pois não há como separar o tratamento da elaboração de uma formação (mise-en-forme) política da elaboração de uma formação (mise-en-forme) religiosa. Isto porque tanto o político quanto o religioso põem a reflexão filosófica diante do simbólico, diante das articulações que permitem um acesso ao mundo. Spinoza reconheceria aí a presença necessária do signo gerado pela imaginação, esta forma de conhecimento do mundo própria às afecções corporais e inerente à multiplicidade de conatus; esta forma de conhecimento primordial, no duplo sentido que este adjetivo comporta, ou seja, daquilo que se organiza ou ordena primeiro e que, portanto, é a fonte e princípio, mas também, daquilo que é básico e principal a compor o tecido de todas as relações humanas. O político e o religioso procuram, cada um a seu modo, dotar de conteúdo estável e de certa sistematicidade a produção imaginativa. Mas o fazem, por sua vez, também imaginando, ou seja, operando com os recursos imaginativos que tendem à alienação, a um perder-se na exterioridade de seus próprios procedimentos. Daí a origem de todos os problemas, pois a imaginação ao organizar o mundo não se reconhece em sua atividade, ou melhor, ela logo percebe que a força de convicção demandada por suas obras não consegue se sustentar sozinha por muito tempo. Posta à prova do tempo, diante, de um lado, das inconstantes forças superiores do acaso e, de outro, dos medos atomizados em cada um, a imaginação experimenta a fragilidade de seus empreendimentos. Sua tendência será, portanto, a de ocultar a origem geratriz de todo conteúdo imaginante, transferindo-o para uma exterioridade que adquirirá o papel de fundador do mundo e do ordenamento social. Diante do medo na solidão e da potência superior da incomensurável roda da fortuna, a imaginação exterioriza os seus temores, aglutinando-os numa figura difusa que, por ser apreendida “de fora”, retorna autônoma e capaz de mobilizar a suprema força, o poder absoluto.

Embora operem analogamente — no simbólico —, isto não significa que inexistam conflitos entre o teológico e o politico. Ao contrário, sabemos que com a distinção entre ambos, efetuada na modernidade, é que a filosofia passou a reivindicar autonomia, isto é, passou a reivindicar o direito de procurar o seu fundamento através de seu próprio exercício. É com a laicização da cultura que a filosofia realiza o seu desígnio de uma reflexão radical e autônoma. Por outro lado, não devemos deduzir desta operação um apagamento do religioso, ou o seu confinamento aos limites da vida privada. Para além do consentimento da relatividade dos pontos de vista, o pensamento filosófico precisa preservar a experiência de uma diferença em relação às elaborações religiosas, porque isto põe os homens em relação com sua própria humanidade, a ponto de impedir que esta se feche e se reduza a um dado conteúdo. Tematizar a dimensão instituinte do social por meio de uma indagação constante ao imaginário produzido e solidificado em realidade é o que pode nos resguardar a experiência de uma abertura.

“Que a sociedade humana só tenha uma abertura para si mesma quando apanhada em uma abertura não feita por ela, isso, justamente, é o que diz toda religião, cada uma à sua maneira, assim como a filosofia, e antes dela, embora em uma linguagem de que esta não possa se apropriar.”[15]

A filosofia, assim, encontra-se dividida em sua crítica à religião, pois se ela deve afastar o valor de verdade que os conteúdos derivados da prática religiosa almejam veicular, também não pode postular o mero erro, a inverdade absoluta, destes mesmos conteúdos, sob pena de ela mesma se tornar uma religião. Não nos esqueçamos de que a Revolução Francesa instaurou a “religião” da Razão e os cultos “religiosos” à Razão; a Razão foi entronizada como divindade dos tempos modernos, as festas cívicas substituíram os ritos religiosos, isto tudo sob os auspícios de parcela expressiva da cultura iluminista que viera novamente preencher o lugar do divino, após o haver criticado severamente como manifestação mais acabada da superstição e das trevas a ameaçar a mente humana e o convívio social. Para Lefort, o filósofo, ao se acercar do tema e questionar o sentido da separação historicamente produzida entre o teológico e o político, acaba encontrando na religião um modo de figuração, um modo de significar as relações humanas que aponta para um excesso, para um plus, do tempo empírico e do espaço no qual se travam as próprias relações sociais. Isto é o trabalho da imaginação em toda a sua força, colocando em cena (mise-en-scène) um outro tempo e um outro espaço, que terminamos por experimentar como nosso tempo e nosso espaço. O que, por sua vez, não se restringe a mero produto da atividade humana, a um simples reflexo de uma operação cuja origem alocaríamos, por exemplo, nas relações de produção, ou nas relações de forças de uma dada formação social; num local absolutamente visível, que, além de permeável ao pensamento, explicaria o ser assim de tudo o mais que existe. Com efeito, a religião nos faz perceber o que há de iniciativa e criatividade humanas (os sinais da invenção humana do divino), e também sua provação (os sinais de uma decifração do divino, ou seja, em linguagem filosófica, do excesso de ser em relação ao aparecer). A filosofia não pode ignorar a religião para não se afastar do trabalho instituinte da imaginação, tornando esta última um puro objeto do conhecimento, um já-dado em cujo exterior pudéssemos nos situar para domar-lhe os impulsos. Caminho tortuoso que conduziria a um regime visando ao completo fechamento em torno de si, à eliminação de toda forma de alteridade gerada social ou imageticamente.

“Por mais fundamentada que seja sua reivindicação do direito de pensar, que o subtrai a toda autoridade instituída, o filósofo não apenas tem em mente a idéia de que a sociedade que se esquecer de seu fundamento religioso viverá na ilusão de uma pura imanência a si mesma e apagará, imediatamente, o lugar da filosofia, mas também pressente que a filosofia está ligada à religião por meio de uma aventura da qual ela não possui a chave principal. De tal sorte que, se julga chegado o fim do Cristianismo, ainda lançará mão do nascimento de uma nova fé, não podendo desprender seu próprio saber de um saber primordial, latente, partilhado em comum. Assim, recusa-se a admitir o fato histórico da separação entre religioso e político, a despeito da aparência. Ele se contrapõe àqueles que crêem-no estabelecido, por não terem a justa noção do que é o político.”[16]

NOTAS

  1. A progressiva “dessacralização” da sociedade moderna ao longo do século XIX e parte do XX, descrita por Weber, conduziu tanto a um laicismo liberal quanto a um laicismo totalitário. Foi justamente nas sociedades mais secularizadas que ideologias totalitárias encontraram espaço para se expandir. Como se a perda dos valores sociais tradicionais permitisse o florescimento de uma concepção que, apesar de fruto do Estado leigo, levasse à derrocada este Estado e esta cultura política da qual nascera. 
  2. Tocqueville, A. A Democracia na América, Edusp, São Paulo, 1977, p. 408-9. 
  3. Tocqueville, op.cit., p. 334. 
  4. Cf. Kantorowicz, Ernst. Os dois corpos do rei, São Paulo, Cia das Letras, 1998. 
  5. Lefort, C. Pensando o político, Paz e Terra, 1991, p. 251. 
  6. Chaui, M. Cultura e democracia, ed. Cortez, São Paulo, 1989, p. 25-6. 
  7. Negri, A. “Spinoza” em Dicionário de obras políticas, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, p. 1.133. Apesar de ter nos chamado a atenção para as vinculações históricas específicas à obra de Spinoza, não esposamos a tese central de Negri, segundo a qual a filosofia spinoziana possuiria “duas fundações”: a primeira expressa nos primeiros textos até o TT-P e que revelaria influências de um panteísmo de características neoplatônicas; a segunda, visível nas últimas obras, na qual a política se tornaria “a alma da metafísica”. A relação entre ambas é mais sutil, como procuramos mostrar, e atravessa toda a obra como uma indagação reiterada, apesar de advir de abordagens diferenciadas. 
  8. Spinoza, B. Tratado teológico-político, trad. Diogo Pires Aurélio, Imprensa Nacional, Lisboa, 1988, p.165. 
  9. Spinoza, Tratado teológico-político, op.cit., p. 166. 
  10. Chaui,M. Da realidade sem mistérios ao mistério do mundo, Brasiliense, SP, 1983, p.84-5. 
  11. “Nada do que uma ideia falsa tem de positivo é suprimido pela presença do verdadeiro enquanto verdadeiro” (Ética, IV, proposição 1). A ontologia spinoziana só pode ser levada a suas últimas consequências se compreendemos a positividade da potência criadora da imaginação. Daí deriva-se a impossibilidade de negá-la ou subsumi-la em pura racionalidade. E como a presença do verdadeiro é insuficiente para eliminar o que a imaginação produziu, o projeto político de Spinoza se afasta do ideal do filósofo-rei de Platão ou do ideal do povo-filósofo-rei de Rousseau. Ele busca garantir que a potência da imaginação não esmague ou impeça a potência da razão para se manifestar, uma inversão da tradição racionalista em política, portanto. 
  12. Lefort, C. Pensando o político, Paz e Terra, RJ, 1991, p. 251-2. 
  13. O termo “regime” é empregado aqui no sentido que adquiriu na expressão Antigo Regime, ou seja, como complexo de relações — culturais, políticas, econômicas, jurídicas, religiosas etc. — que preenchem de conteúdos específicos e tornam possível a vida de um dado agrupamento social ao longo do tempo. 
  14. Lefort, C., Pensando o político, op.cit., p. 258-9. 
  15. Lefort, C., op.cit., p. 259. 
  16. Lefort, C., op.cit., p. 261. 

    Tags

  • acontecimento público
  • adesão
  • advogar
  • África
  • agregar valor moral
  • alexis de tocqueville
  • almas
  • âmbito
  • antinomias políticas
  • ausente
  • autor
  • autoridade
  • bem estar
  • burguesia
  • caminhos extraordinários
  • civilizações
  • claro
  • Claude Lefort
  • clube desportivo
  • coesão social
  • começo
  • comunismo
  • conceitos fundamentais
  • consciência coletiva
  • consciência de si
  • constituição
  • constituir
  • contradição
  • cotidiano
  • cristianismo
  • crítica
  • cultura dos estados nacionais
  • cultura germânica
  • democracias ocidentais
  • diferente
  • dificuldade
  • ecos
  • erro
  • espaço
  • Espinosa
  • espiritualismo exaltado
  • espiritualismo mais exaltado e violento
  • estado
  • Estado laico
  • estados leigos
  • estranho retorno
  • Europa
  • exacerbação
  • Expediente
  • explícitas
  • falar de fé
  • felicidade eterna
  • felicidade material
  • feroz
  • filosofia
  • finalidades
  • fundamentalismos judaicos
  • fundamentos
  • fundar simbolicamente a convivência comum
  • Hegel
  • identificação prática entre religião e política
  • Igreja
  • igualdade
  • Iluminismo
  • imerso
  • implícitas
  • importante
  • incontornável
  • indiferenciados
  • indissolúveis
  • inscrita
  • instituições civis
  • interior da cultura materialista
  • inverdade
  • irracional
  • islã
  • Israel
  • legitimar juridicamente
  • leitura
  • liberalismo
  • liberdade
  • liberdade de religião e culto
  • limite
  • mais do que um alucinar-se
  • Marx
  • mercado do sagrado
  • minoria religiosa
  • mistério
  • misticismo
  • mito
  • moralidades social e estatal
  • morte
  • nacionalismo
  • necessária
  • necessidade
  • norma
  • nova ordem mundial
  • novas formas de eticidade
  • olhos do poder público
  • pensador atual
  • pensador crítico
  • perspectiva
  • política
  • política agressiva
  • por à prova
  • povo
  • proclamar o lugar de onde emergem os princípios institucionais
  • progressos imediatos
  • propor
  • questão teológico-política
  • racional
  • razão
  • realidade teológico-política
  • reencantar o mundo
  • reivindicação
  • religião
  • retorno do teológico político
  • sacerdote
  • salvação da alma
  • Savigny
  • século XX
  • seitas
  • seitas bizarras
  • sentido da vida
  • separadas
  • social-democracia
  • sociedade
  • sociedade norte-americana
  • solicitação tácita
  • sono
  • status quo
  • superar
  • tematizar
  • templo
  • transbordamento religioso sobre a política
  • transgressão
  • unção
  • universais
  • valor simbólico
  • velha religião