1996

Romance e libertinagem no século XVIII na França

por Raymond Trousson

Resumo

No final do século XVII, a palavra libertinagem se livrou do peso religioso e contestador para conotar, principalmente, uma depravação moral, uma busca do prazer. O romance libertino do século XVIII é um romance de boas maneiras, produto de uma concepção aristocrática da existência, um romance de sedução e de tática que nada tem em comum com romances licenciosos ou eróticos. A literatura libertina é transgressora na medida em que é um empreendimento de libertação, a reabilitação do prazer contra as proibições. Libertinos e libertários se encontram, assim, unidos.Retrato de uma aristocracia desocupada, o romance libertino se situa na maioria das vezes nos domínios da libertinagem mundana de uma sociedade fechada e regida por valores imperativos.

E qual é o papel da mulher no romance libertino? No grupo feminino, vários papéis. Jovem, a mulher é uma presa, vítima de um jogo onde muitas vezes será responsabilizada pela decadência dos costumes. Com mais idade, encontra seu papel como iniciadora de um homem mais jovem ou torna-se ajuizada por necessidade, encarregada de encarnar a virtude. Caça ou caçadora, a mulher, no romance libertino, quando entregue ao jogo da libertinagem, só pode jogar mascarada, recorrendo a fingimentos e astúcias.

No grupo masculino, também encontramos um certo número de tipos: o jovem que faz sua estreia no mundo, objeto de uma iniciação teórica e prática; o janota, que tem aventuras galantes mas é demasiado superficial para pensar em humilhar suas conquistas e inconsitente para pretender dominá-las; e, finalmente, o roué, sedutor, hábil, ponderado, inteligente que não se aproxima das mulheres para agradá-las ou amá-las mas para dominá-las.

O libertino, diferente do devasso não se importa com a posse física. A libertinagem não é um fim em si, mas um meio de ação sobre o mundo e uma maneira de aumentar a própria consciência do ser. “Conquistar é nosso destino” diz Valmont, de Liasons dangereuses (Laclos).

Em oposição ao sentimentalismo, a arte de viver libertina adota o epicurismo como moral e regra de conduta, é econômica na paixão e pródiga no prazer. Na sociedade mundana, onde circula o libertino, a linguagem é soberana. A linguagem oculta a vacuidade do pensamento e a futilidade da existência, reveste as coisas de decência e é o meio da mentira polida. Os libertinos falam. Fala-se para subjulgar o outro, para sentir-se existir.

No romance libertino, a ética do roué é uma ética as avessas que substitui a moral convencional. No lugar da sinceridade, espontaneidade, modéstia, lugares comuns da educação clássica, a hipocrisia, o cinismo, a dominação e a fatuidade. Esse esquema sentimental é também um modelo para a história se compararmos a degradação do sentimento autêntico (no plano individual) à degradação de toda a sociedade, empobrecida de seus valores passados.

A sociedade onde se desenvolve a libertinagem é o contrário de uma sociedade permissiva. A libertinagem só tem sentido num mundo em que persistem as interdições e tabus que o libertino se vangloria de inflingir.


Seria bem difícil, para não dizer impossível, expor em uma hora a história do romance libertino na literatura francesa do século XVIII. Esse gênero literário, que conhece sua primeira obra-prima em 1736 com Les égarements du coeur et de l’esprit [Os descaminhos do coração e do espírito], de Crébillon filho, e a última em 1782 com Les liaisons dangereuses de Choderlos de Laclos, seduziu inúmeros autores, célebres ou não: Duclos, Godard d’Aucour, La Morlière, Voisenon, Boyer d’Argens, Fougeret de Monbron, Chevrier, Dorat, Andréa de Nerciat, Vivant Denon e alguns outros. Em vez de propor um sobrevôo superficial desses autores ou resumos de suas obras, achei mais eficaz tentar abordar em seu conjunto o fenômeno da sociedade e do romance libertinos, que foi de fato fenômeno único nesse século, e daí tentar separar as linhas de força, as características essenciais e as constantes — em suma, traçar algumas grandes avenidas no conjunto da temática para revelar suas principais características e mostrar como e por que ela foi uma das mais importantes no universo intelectual, social e sentimental que precede a Revolução Francesa.

Proveniente do latim libertinus, “liberto”, que o direito romano opõe ao homem nascido livre,[1] o termo aparece pela primeira vez em francês sob a pena de Calvino para designar os dissidentes oriundos das seitas protestantes do Norte da França. Ele lhes censura por considerarem as religiões reveladas como imposturas humanas, afirmarem que a única moral é a da natureza, e interpretarem a seu bel-prazer a palavra sagrada. Não contentes em blasfemar desse modo, praticam ainda uma escandalosa liberdade de costumes baseada na negação do pecado e completam esse anarquismo moral com o apelo à comunhão dos bens. São portanto libertinos ao mesmo tempo no plano intelectual e no plano dos costumes. O deviacionismo religioso vê-se assim muito cedo associado à depravação dos costumes e à promiscuidade, e até mesmo a tendências anarquistas, demolidoras da ordem social.

O sentido amplia-se rapidamente e libertino e ateu não tardam a se tornarem sinônimos. Ateus e materialistas se confundem: o libertino não é mais apenas o membro de uma seita, mas todo espírito irreligioso.

Essa significação pejorativa acentua-se ao longo do século XVII, quando se desenvolve, no plano filosófico, o movimento dito “libertino”, que agrupa, em torno de Théophile de Viau ou Cyrano de Bergerac, ateus, deístas e livres-pensadores. São eles que denunciam Bossuet, por exemplo, ou Molière, ironicamente, Tartufo. É também a imagem de Don Juan, emancipado da Igreja e achincalhando toda moral. Por ser a irreligiosidade fonte de imoralidade, o libertino de espírito é portanto ao mesmo tempo um libertino de costumes, um devasso e um depravado, já que o descrente não poderia ter moral.

Em 1683, no entanto, Pierre Bayle, em Pensées diverses sur la comète, vem romper essa velha aliança entre religião e moral ao sustentar que mesmo os ateus podem ser virtuosos. Bayle separava assim religião e moral, libertinagem de espírito e libertinagem de costumes. Depois dele, o libertino, o espírito forte, o livre-pensador, serão os chamados “filósofos”, e a libertinagem designará, através de acepções cada vez mais flutuantes, toda frivolidade ou desregramento de conduta, evocará impudor e dissipação. Após a morte de Luís XIV, os libertinos da Regência ilustrarão antes a propensão à devassidão que uma atitude filosófica de contestação.

UM CONCEITO VAGO

A história do termo mostra-o suficientemente: desde o século XVI foram associados os conceitos de irreligiosidade e de imoralidade, ou seja, de impudência intelectual e de impudência dos costumes.

A qual dessas tendências se deve vincular o romance libertino do século XVIII? Se associamos a libertinagem à corrente de pensamento irreligioso definida no século precedente, reencontramos a concepção originária de um longínquo século XVI: a reivindicação da liberdade de pensamento. Mas essa definição apresenta um sério inconveniente.

Com efeito, enquadrar a libertinagem num racionalismo militante significa fazer desaparecer como perfeitamente secundário todo elemento erótico e assimilar a maior parte dos grandes autores do século XVIII, Montesquieu, Diderot, Voltaire e, obviamente, Sade. A libertinagem se reduziria assim a uma ficção, pretexto para desvelar um além ideológico. Não é o romance que é libertino, mas a filosofia libertina que toma as aparências do romance.

No entanto, vimos que a palavra, sobretudo ao final do século XVII, livrou-se do peso religioso e contestador para conotar principalmente uma depravação moral, a busca do prazer.

Se a libertinagem remete à depravação dos costumes, à exaltação da carne, devemos ligá-la então à longa tradição dos contos licenciosos, com o risco de remontar até aos fabliaux da Idade Média? Seria negligenciar o problema da expressão, pois o romance galante, em Crébillon ou Voisenon, por exemplo, jamais renuncia à decência verbal: literatura da litotes e da perífrase, alusiva e sugestiva. De Crébillon a Laclos, há uma “libertinagem de boas maneiras” que opera a passagem da literatura licenciosa à literatura de sedução.

Costuma-se portanto admitir que “o romance libertino à francesa” é de fato um romance de “boas maneiras”, produto de uma concepção aristocrática da existência. Essa literatura, longe de resvalar no licencioso, desenvolve antes de mais nada uma “arte de alta estratégia”, romance de sedução e de tática, que nada tem em comum “com os romances e os poemas galhofeiros, licenciosos ou eróticos”. Reaparece assim a importância do tom, do estilo, do nível de linguagem: um romance libertino zela pela elegância da expressão, pela delicadeza dos termos, enquanto o romance licencioso ou pornográfico descamba na crueza e na vulgaridade.

Seja como for, a libertinagem, não importa a forma em que se apresente, conserva algo de transgressivo — o libertino só se realiza ao infringir princípios que supostamente assegurariam o bom funcionamento da sociedade. Mesmo reduzida à emancipação sexual, à impudência dos costumes, ela permanece um empreendimento de libertação, nem que seja pela reabilitação do prazer contra as proibições: libertinos e libertários se juntam.

Trata-se assim tanto de um materialismo primário, expresso de maneira brutal, como de concepções mais elaboradas, em que a literatura da libertinagem mundana se impôs como a categoria de mais prestígio, artisticamente mais elaborada, psicologicamente mais sutil, e da qual Crébillon, Duclos, Denon e Laclos oferecem certamente os mais belos exemplos.

Enfim, se o romance às vezes pretendeu, no século XVIII, pintar o quadro da vida humana, a verdade é que esse quadro se resume com frequência a uma miniatura que representa uma aristocracia desdenhosa e desocupada, cuja evocação não tem muito a ver com o projeto realista. Em seu Essai sur les romans, Marmontel surpreende-se com a seguinte constatação: “É estranho que entre tantos escritores que, em seus romances, quiseram nos descrever seu século tão poucos tenham saído do círculo dos costumes libertinos”. Isso ocorre exatamente porque o romance libertino se situa na maioria das vezes nos domínios da libertinagem mundana, nos quais adquire seu estatuto e suas cartas de nobreza.

O MICROCOSMO DA MUNDANIDADE

Esse princípio da mundanidade continua sendo portanto o de uma sociedade fechada, regida por regras imperativas. O próprio libertino é um ser exclusivamente social, só existe no e através do grupo, não possui outra psicologia a não ser a do comportamento social. Assim a mundanidade é ao mesmo tempo uma realidade social e uma projeção do imaginário, um mito e um tema literário.

De fato, os romancistas encontram seu material na encenação de uma sociedade da festa galante, cuja permissividade e imoralidade eletiva os fascinam. O meio evocado apresenta-se portanto como homogêneo, o de uma alta aristocracia atenta em distinguir-se da burguesia enriquecida, de uma elite que se vale de suas origens e de suas ligações com a corte, ela própria vista como entidade mítica, longínqua e prestigiosa, encarregada de dar um sentido à existência dos que a compõem. Os heróis são alheios aos problemas materiais ou às preocupações econômicas.

Portanto, podem antes de mais nada dispor livremente de seu tempo. “Entrei no mundo aos dezessete anos”, explica Meilcour, o protagonista dos Égarements, “e com todas as vantagens capazes de nele se fazerem notar. Meu pai havia me deixado um grande nome, cujo brilho ele próprio aumentara, e eu esperava de minha mãe bens consideráveis.” Do mesmo modo, em Duclos, o conde de * * * estava “destinado por [seu] nascimento a viver na corte”. Não é surpreendente que o burguês esteja ausente desse mundo, do qual aliás o afastam seu sistema de valores e sua concepção do sentimento, que o tornam refratário à libertinagem. O aristocrata sorri do burguês e de seu respeito à virtude, o burguês tem repugnância pelos jogos licenciosos, mesmo em arte. Um Diderot condena em Fragonard a brincadeira maliciosa ou o academicismo da libertinagem de Boucher. Quanto ao povo, se aparece nessa literatura, é unicamente sob suas formas domésticas — cocheiro, lacaio, mensageiro ou camareira.

Se esse mundo é socialmente fechado, fechado é também o espaço no qual se manifesta. A natureza está ausente. As festas têm lugar na cidade, universo mineral, ou sob os lambris dourados dos salões. Ali todos se conhecem, cada um está sob o olhar dos outros: ninguém pergunta se tal ação é louvável ou não, mas o que dela pensará o “público” onipresente. O homem do mundo está sob o olhar desse público como outrora o devoto sob o olhar de Deus. Os mesmos desocupados se encontram também na Comédie, no Opéra ou no jardim das Tulherias, ou mesmo num piquenique, mas esses lugares não têm realidade topográfica nem decorativa, são simples extensões do salão original. À maneira dos antropólogos, os romancistas cercam uma sociedade e o jogo das inter-relações que a constituem. Sociedade singular, no entanto, de biótopo artificial, desprovida de atividade econômica, prolongada pela endogamia e que esgota suas forças inúteis na futilidade.

Também há pouca preocupação com o pitoresco, com a descrição de personagens ou de lugares. Os próprios objetos, mais do que familiares, são funcionais ou simbólicos: o cetim de seda convida à galanteria, o sofá ou a otomana à volúpia, na alcova as almofadas substituem as poltronas numa intenção inequívoca. O único lugar considerado digno de uma descrição atenta é o lugar erótico, e veremos a que grau de refinamento ele pode chegar em Point de lendemain. La Morlière demora-se com complacência nessas descrições. A alcova de Zobéide ou de Lumineuse é uma armadilha para os sentidos: pesadas tapeçarias, biombos, iluminação filtrada, paredes revestidas de espelhos e painéis decorados de aventuras galantes, frivolidades ao gosto de Boucher ou de Fragonard. Sustentada pela imagem, a libertinagem adquire os traços de uma devoção epicurista, de um culto à felicidade sensível. Os pequenos aposentos de Lumineuse estão ordenados como um templo onde o catecúmeno admitido à contemplação da divindade avança passo a passo, do peristilo ao sacrário — o leito de amor.

Percorrendo círculos concêntricos, da periferia distante de um camarote no Opéra ou do jardim das Tulherias, a aventura culmina naquele ponto. Pintura de um pequeno mundo circunscrito, de uma sociedade elitista. O romancista evoca uma entidade chamada “o mundo” ou “a excelente companhia” para estudar seu funcionamento, seu sistema de relações e seus valores. Ele se ocupa menos em descrever uma sociedade do que em transmitir a imagem que essa sociedade pretende projetar dela mesma.

Chega-se assim não ao afresco, mas à pintura de gênero, que pretende menos sondar a natureza humana do que descrever as condutas sociais num círculo restrito. No prefácio dos Égarements, Crébillon afirma “pintar os homens como eles são”, mas apenas como eles são numa certa sociedade apresentada abusivamente como “o quadro da vida humana”, mas que fascina o público como um verdadeiro mito.

OS ATORES

Assim como o espaço no qual evoluem, o número dos atores da libertinagem mundana é restrito, a rigor reduzido mesmo a dois interlocutores, como em La nuit et le moment ou em Le hasard au coin du feu, de Crébillon. O pessoal romanesco compõe-se portanto de tipos facilmente identificáveis, e não de personagens vigorosamente individualizados.

A mulher, caçadora ou caça, é onipresente nesse mundo. Algumas passaram a idade da libertinagem e tornaram-se ajuizadas por necessidade, encarregadas de encarnar a virtude ou de representar uma época tristemente terminada, guardiãs de valores esquecidos, como mme. de Rosemonde, em Laclos.

Simples objetos de desejo, as figuras femininas são na maioria das vezes intercambiáveis: o sedutor de Duclos as ordena por classes sociais ou por caracteres, como os moralistas. Diante do homem que raciocina e calcula, a elas se confia de bom grado o apanágio da sensibilidade e, consequentemente, a capacidade de sofrimento, chegando-se às vezes a atribuir-lhes a responsabilidade pela decadência dos costumes. É o ponto de vista do conde, em Duclos: “Que as mulheres não se queixem dos homens, eles são apenas o que elas os fizeram”.

Mesmo virtuosa e decidida a permanecer fiel a seus deveres, a mulher é com frequência vítima de um jogo engenhosamente conduzido dentro do qual ela acreditou, erradamente, ser capaz de deter-se a tempo. Quando, sob o falacioso pretexto da amizade e da confiança, iniciam uma troca de correspondências habilmente solicitada pelo libertino, a heroína de Crébillon, em Les lettres de la marquise M* * * , a ajuizada mme. de Syrcé, em Donat, ou a devota mme. de Tourvel, em Laclos, estão longe de imaginar a que abismos as conduzirá sua imprudência. Em semelhantes casos, quanto mais virtuosas, tanto mais predispostas a seu papel de vítima numa luta desigual. Raras são aquelas, como mme. de Merteuil ou a Juliette, de Sade, que fazem da libertinagem uma ação refletida e um empreendimento de dominação.

Claro que a mulher nem sempre é inocente e virtuosa, podendo, em vez de vítima das manobras masculinas, tornar-se sua cúmplice. Mas ela permanece prisioneira das regras e das conveniências, amarrada à prudência: o que assegura a glória do sedutor provoca sua queda. Em Point de lendemain, mme. de T* * conduz o jovem Damon aonde ela quer sem renunciar às aparências do decoro, e, em La Morlière, Zobéide fica muito aborrecida que o cândido Angola não tenha se aproveitado do clássico fingimento do desmaio.

No confronto entre os sexos, o homem, diante da opinião, avança de rosto descoberto, apregoa suas vitórias, enquanto a mulher só pode jogar mascarada. Assim elas têm que recorrer, insiste Fougeret de Monbron, ao fingimento e à astúcia: “Tal é portanto nossa condição que, não podendo desobedecer a nossos tiranos, somos obrigadas a recorrer à perfídia e ao disfarce. […] Eles nos querem modestas, castas, discretas, piedosas: colocamos a máscara de tudo isso. […] Ao acariciar nossos senhores, nós os estrangulamos”.

Entre o homem e a mulher, como entre as classes sociais, a desigualdade diante do amor e do prazer deve engendrar uma relação de senhor e escravo na qual a mulher só pode defender-se através da dissimulação e do artifício. Essa necessidade da dissimulação, o autor das Liaisons dangereuses a analisou muito bem:

Toda convenção entre dois sujeitos desiguais em força só produz, só pode produzir um tirano e um escravo; segue-se […] daí que, na união social dos dois sexos, as mulheres, em geral mais fracas, tiveram que ser em geral oprimidas. […] Percorra o universo conhecido e encontrará o homem forte e tirano, a mulher fraca e escrava. […] Elas perceberam enfim que, sendo mais fracas, seu único recurso era seduzir. […] Praticaram a penosa arte da recusa, mesmo quando desejavam consentir.

Na sociedade, ambos podem parecer desempenhar o mesmo papel, mas a simetria é apenas aparente. Lá onde o homem anuncia aos quatro ventos sua vitória, a mulher deve saboreá-la na mentira e no segredo. Se o homem aspira à reputação de invicto, a mulher só pode ambicionar a de invencível. “Para chegar a isso”, confessa mme. de Merteuil, “os homens que não me agradavam foram sempre os únicos cujas homenagens fingi aceitar. Eu os empregava com utilidade para obter as honras da resistência, enquanto me entregava sem temor ao amante preferido. Mas, este, minha fingida timidez jamais lhe permitiu seguir-me no mundo, e assim os olhares do círculo sempre se fixaram sobre o amante infeliz.” Mas, se a marquesa é um ser raro, ela partilha, uma vez descoberta, a sorte comum: Valmont tomba, pelo menos, com a espada na mão, enquanto ela é vaiada nos salões por aquelas mesmas que talvez jogassem o mesmo jogo, o que equivale, para uma mulher do mundo, à morte social mais ignominiosa.

Descobrir nas heroínas de romances libertinos precursoras do feminismo triunfante, vivendo como iguais do homem e animadas da mesma vontade de potência, parece portanto difícil. Certamente algumas mulheres revoltadas contra sua subjugação podem se mostrar impiedosas em suas réplicas, como mme. d’Ercy em Sacrifices de l’amour, de Dorat, e, em Diderot, mme. de la Pommeraye ou mme. de la Carlière, mas o universo libertino permanece androcêntrico. Jovem, a mulher é uma presa, com mais idade e experimentada, espera-se dela a iniciação do homem jovem. Como a moda está nas mãos das mulheres, convém ser lançado por elas, que, paradoxalmente, se esforçarão por formar da melhor maneira, aqueles que se tornarão os inimigos de seu sexo.

O grupo masculino compõe-se igualmente de um certo número de tipos. O primeiro, clássico, é o do jovem que faz sua estreia no mundo e será, se julgado digno de tanto, o objeto de uma iniciação teórica e prática. Nos salões evolui também — sobretudo caricaturado por La Morlière — o janota, que a Encyclopédie chama “um inseto ligeiro que brilha em seu ornamento efêmero e sacode suas asas empoadas”. Marionete subjugada ao conformismo mundano, ele se submete à lei de um mundo inteiramente voltado para o exterior. Tem aventuras galantes, como o Thémidore de Godard d’Aucour, mas é demasiado superficial para pensar em humilhar suas conquistas e demasiado inconsistente para pretender dominá-las.

Muito diferente é o comportamento do roué, personagem infinitamente mais sutil e mais inquietante, tático da sedução, Maquiavel dos salões. Versac, em Les égarements, é o seu protótipo.

Esse tipo de homem reina sobre o mundo com uma aparente negligência de desocupado. Hábil, ponderado, inteligente, conhecendo perfeitamente a sociedade, jamais se afasta dela para correr atrás das mulheres, à maneira do herói de Godard d’Aucour ou dos personagens de Nerciat, da mesma forma que uma fera não se afasta de seu terreno de caça. Das mulheres, não se aproxima nem para agradá-las nem para amá-las, mas para tornar-se seu senhor graças a uma comédia habilmente conduzida: “Somente parecendo submisso a tudo o que elas querem”, diz Versac, “é que se consegue dominá-las”. Para conservar sua reputação, é essencial que ele jamais fracasse em seus empreendimentos. Vencido, vinga-se cruelmente, como o duque de Dorat. Mas a arte exige também que o libertino considerado mestre prove sua virtuosidade assaltando apenas cidadelas asperamente defendidas, e ele busca uma vítima digna de si como o matador escolhe um touro perigoso numa ganadería. É exatamente o que quer Valmont, em Laclos: “Ah! que ela se renda, mas que combata; que, sem ter a força de vencer, tenha a de resistir, que saboreie devagar o sentimento de sua fraqueza e seja obrigada a confessar sua derrota. Deixemos o furtivo caçador à espera do cervo que ele surpreendeu; o verdadeiro caçador deve forçá-lo”.

O que distingue esse tipo do janota não é apenas seu saber e sua experiência. Enquanto o janota é inconsistente, o libertino confirmado caracteriza-se, sob uma aparência negligente, por seu método, sua vontade e sua energia. “Jamais, desde sua juventude adulta”, dirá de Valmont mme. de Volanges, “ele deu um passo ou disse uma palavra sem ter um projeto.” As vicissitudes do encontro são substituídas por uma reflexão elaborada, um plano de batalha, um planning da sedução. O duque de Les malheurs de l’inconstance, em Dorat, ocupa-se de cinco ou seis casos simultaneamente e se diz sobrecarregado de intrigas: “Não consigo dar conta da quantidade de minhas ocupações”, escreve ele a um amigo, “tenho necessidade de um momento um pouco tranquilo”. Como Versac, ele aprendeu a dominar-se, a dissimular sentimentos e emoções, a manter-se em perpétua representação. Curiosamente, a existência desses desocupados acaba por exigir uma verdadeira ascese: com eles, o passatempo mundano da libertinagem torna-se um absorvente labor. Ele joga suas redes, prevê suas rupturas, medita seus lances como um jogador de xadrez, deleita-se com o prazer de prejudicar e destruir.

Esse libertino, diferentemente dos devassos mais grosseiros de Margot, em Fougeret, ou de Félicia, em Nerciat, não se importa verdadeiramente com a posse física, e nada indica que seja dotado de um temperamento particularmente exigente. Não é um Casanova, nem mesmo um, sensual, mas sim um cerebral e um guerreiro. No mundo em que se impõe, a mulher é seu inimigo natural, ela é que deve ser humilhada e subjugada, submetida de novo à ordem masculina. Para tanto, cumpre estudá-la pacientemente, analisá-la a fundo: como diz Dorat em Les malheurs, “não se trata de amá-las, mas de conhecê-las”.

Com efeito, a libertinagem não é um fim em si, mas um meio de ação sobre o mundo e uma maneira de aumentar desmesuradamente a própria consciência de ser. “Conquistar é nosso destino”, diz Valmont. A glória é tão importante ao libertino quanto ao herói corneliano, seu gozo é ser visto e reconhecido como mestre, ele quer, como Versac, “tornar [sett] nome célebre”. Sua ação é um erotismo posto a serviço de uma vontade nietzschiana de potência aliada a um “sadismo” inteiramente cerebral que encontra um prazer cruel na observação das reações de suas vítimas.

O NOVO MAPA DO AMOR

Nesse mundo fechado, no qual não penetra nenhuma realidade ou obrigação do mundo exterior, a grande, a única questão é o amor, a forma mais intensa da relação mundana, por reunir admiração e desejo, complacência e sedução, prazer de dominar e gosto da transgressão.

Mas, rejeitando o ideal precioso do século precedente, o libertino concebe o amor como um “comércio” que não poderia durar sem cansar, como explica o conde de Duclos: “Os amantes se unem porque se gostam e se convêm, e se deixam porque cessam de se gostar, e porque é preciso que tudo acabe”. Secura do coração, impotência de amar que talvez traduzam como epifenômeno um mal-estar mais secreto diante da desagregação dos antigos valores espirituais.

Pois não se trata, aqui pelo menos, da satisfação brutal dos apetites. O amor é um jogo a ser jogado segundo regras. Fazer durar o jogo é aumentar o prazer. Assim, o antes é que é bom, não o depois. No universo libertino, contam apenas os obstáculos e a vitória, porque os espíritos indiferentes só podem encontrar o prazer no inédito e na dificuldade vencida.

O libertino desempenha um papel e se aplaude como um ator que domina um texto difícil. Nada entrega de si. O essencial é precisamente não se deixar conhecer, portanto possuir e enfraquecer. A arte suprema é fingir com perfeição o que não se sente: “Estar apaixonado sem sentimento, chorar sem estar comovido, atormentar sem ser ciumento: eis aí os papéis que deveis desempenhar”, diz Versac, em Crébillon. Convém no entanto protestar que se ama com paixão, com furor, já que a palavra mascara decentemente o desejo e o amor escusa a queda. Para não passar por um homem sem modos, o libertino respeita portanto as convenções, avança por gradações insensíveis, propondo a amizade, a confiança, àquelas que, como ele, tampouco acreditam nisso. Ao cabo da viagem, as mulheres concedem sem resmungar o que a natureza, talvez, não as inclinasse a dar. Em Duclos, mme. de Persigny tem um amante para seguir a moda, mas sem experimentar o menor desejo: “Sem os favores [o amante] se retira, é preciso consentir que ele os tenha”.

Convém aliás distinguir amor e gosto. O primeiro, fazendo os amantes se entregarem inteiramente um ao outro, é exclusivo, permanente, portanto egoísta e anti-social. O segundo, ao contrário, é de bom-tom, participa da legitimidade das trocas sociais, é o que se deve a uma bela mulher para não cair na indelicadeza. Confundir amor e gosto é um erro de iniciante. Crébillon exprimiu isso com perfeição numa passagem célebre, no início de La nuit et le moment:

As pessoas se gostam, se juntam. Entediam-se uma com a outra? Deixam-se com a mesma pouca cerimônia com que se juntaram. Tornam a gostar uma da outra? Juntam-se de novo com a mesma vivacidade, como se fosse a primeira vez que se encontrassem. Deixam-se mais uma vez, e nunca ficam de mal. É verdade que o amor não teve nenhuma participação nisso tudo; mas o amor, o que era, senão um desejo que se comprazia no exagero, um movimento dos sentidos que aprouve à vaidade dos homens transformar em virtude? Sabe-se hoje que somente o gosto existe; e, se as pessoas dizem ainda que se amam, é menos por acreditarem nisso do que por ser uma maneira mais polida de solicitarem reciprocamente aquilo de que têm necessidade.

Trinta e cinco anos mais tarde, Vivant Denon não dirá outra coisa na primeira página de Point de lendemain. Feliz sistema, que não exige uma absurda fidelidade e, ao contrário, autoriza o capricho.

Em oposição ao sentimentalismo, a arte de viver libertina adota o epicurismo como moral e regra de conduta, faz da secura do coração um meio de autodefesa, prega a economia na paixão e a prodigalidade no prazer. No século precedente, o libertino pretendia emancipar-se da tutela divina; o libertino moderno deseja permanecer livre diante do amor e exorcizar a paixão. Para permanecer livre, o amor deve ser uma coisa à-toa, glória da lista acrescenta-se a capacidade de enganar, de manter simultaneamente várias ligações. É o que explica Thémidore em L’histoire de la felicito, de Voisenon, ou Versac, em Les égarements. Apoteose da virtuosidade, da grande audácia, uma vez que se trata de tornar público o que cada conquista deve ignorar. Virtuosidade também na arte de romper. Nos romances, o libertino prevê a ruptura no momento mesmo em que estabelece a ligação, conferindo a ambas o máximo de brilho.

Numa sociedade fundada na aparência e na mentira, o sentimento sincero e profundo está excluído ou arruína aquele que tem a infelicidade de experimentá-lo. É que o libertino confirmado não busca conhecer senão para se tornar mestre, e ele encontra seu prazer não na posse física, mas no jogo da inteligência e da dominação. Impiedoso, o celerado metódico quer humilhar a mulher. E ele a sacrifica sem remorso à sua glória, a ruptura pública consagrando sem equívoco a desonra da vítima. “O sucesso não é nada”, lê-se em Dorat, “é a publicidade que eu quero.”

O SER E O NADA

Pervertido por uma ordem social corrompida, dirá Rousseau no Discours sur l’inégalité, o homem nada mais tem em comum com seu estado primitivo. Do mesmo modo, a sociedade em que floresce a libertinagem mundana revela-se puro artifício, construção postiça em que nada subsiste da natureza humana original.

Essa sociedade mundana é ainda uma sociedade da fala, do discurso ininterrupto, mas de uma fala igualmente desnaturada. De fato, se a linguagem é aqui soberana, longe de instaurar uma comunicação ou uma compreensão, ela é ao mesmo tempo a imagem sonora de um vazio e um instrumento de opressão e de alienação.

Às atitudes convencionadas, aos comportamentos forçados se junta, com efeito, o uso de um jargão inteligível apenas aos iniciados que reflete esse mundo e veicula seus pseudovalores. Também aqui, o exemplo de Versac é esclarecedor. Num salão, nos jardins, no Opéra, convém antes de tudo jamais parecer pensar. O homem do mundo estará atento para em nada se aprofundar, para falar apenas de coisas sem consequências, não se deter sobre nenhum assunto, borboletear sempre de uma ideia a outra. A linguagem torna-se assim uma finalidade em si, esvazia-se de qualquer mensagem.

Falatório e vacuidade do pensamento talvez sejam apenas a afetação de um círculo de pessoas preocupadas com a singularidade. Traduzem também a sufocação de uma classe ociosa, desmobilizada, improdutiva e consciente de girar em vão, produto da história e de uma política absolutista de sujeição da aristocracia. Reunindo cenas esparsas em diversos romances, compor-se-ia sem dificuldade a jornada da mulher de bom-tom. Retornando ao amanhecer de um baile e de uma ceia, ela só abre os olhos por volta do meio-dia, inquieta-se com o tempo que faz, bebe sem apetite uma taça de chocolate. Depois suas auxiliares atarefam-se em torno dela, preparando cremes e pintas, maquiagem branca e carmim, propondo enfeites, e madame deixa-se vestir atrás de um biombo enquanto um elegante conta-lhe as novidades do dia. Finalmente pronta, ela recebe fornecedores e vendedores de livros que a abastecem de panfletos e anedotas escandalosas. Virão o passeio, as visitas, o espetáculo, e a ceia e o amanhecer…

Esse mundo tão bem evocado por La Morlière vive no terror do tédio, da tomada de consciência que lhe faria abrir os olhos sobre seu nada. Um carrossel de ociosos gira sem parar e toma-se o maior cuidado para que pareça estar sempre se divertindo: “Eles projetavam mil jantares”, lê-se em Angola, “grandes festas que jamais aconteceriam, permaneciam na rua até as nove da noite com um ar de mistério, e partiam ainda mais misteriosamente para passar o resto da noite a se entediar em seu quarto”. Lúgubre comédia, que é o avesso da festa galante. Um personagem de Voisenon confessa: “Fica-se acordado no temor de despertar demasiado cedo no dia seguinte”. O tédio ronda, e escapar dele é a única ocupação desse “bando absurdo e frívolo”.

A busca do prazer é antes de tudo busca de mudança, de renovação, tanto na ordem do sentimento como na das ocupações suscetíveis de preencher a jornada. Daí a importância, na libertinagem mundana, do tema capital da inconstância. A consciência da mobilidade do desejo leva à conquista de novos parceiros, e ela própria é projetada sobre o movimento geral do universo, flutuante e mutável. Expressão da animalidade fundamental do homem, a filosofia da inconstância, nos libertinos, não tarda a romper com conveniências sociais, como o casamento e a família, que impõem limites ao desejo.

Como se pode observar, jamais se fala de Deus no universo da libertinagem mundana. É verdade que esses personagens ignoram a especulação filosófica: sua atitude reflete apenas um ceticismo implícito que descarta a hipótese divina e a inquietude metafísica. Laclos limita-se a observar, em nota: “O leitor deve há muito ter adivinhado, pelos costumes de mme. de Merteuil, quão pouco ela respeitava a religião”. O libertino confirmado não crê em nada exceto em si mesmo, e restringe o problema da existência à existência social. Diferentemente do libertino do século anterior, não julga mais necessário provocar um Deus que de modo nenhum o preocupa.

Também aí, algo mudou, desta vez na percepção do tempo e da duração, portanto do ser. O cristão da Idade Média não distinguia existência e duração: tinha o sentimento de sua própria permanência, voltada para Deus, sua origem e seu fim. Com o Renascimento desperta a percepção de uma atividade autônoma, que engendra sua própria duração pela diversidade de seus movimentos. A partir do século XVII, a consciência concebe-se reduzida a uma existência em que a duração não é mais que um “rosário de instantes”, no qual cada momento deve ser preenchido. Incansavelmente o presente se furta, relançando o espírito numa corrida em que somente a renovação dos desejos dá o sentimento de existir. Doravante o indivíduo deve salvar-se do não-ser, não pelo recurso à transcendência, mas pela intensidade dos sentimentos e das sensações, cuja multiplicidade funda por sua vez a duração. Ser é sentir, portanto ser causa de si mesmo. Para ter acesso à plenitude é preciso multiplicar e diversificar as sensações, relançar-se de desejo em desejo, e assim renovar incessantemente os objetos do desejo. Antes de ser o traço de uma sociedade “permissiva”, mobilidade e inconstância são de fato necessidade psicológica e manifestação de uma inquietude ontológica, fuga diante do nada ameaçador.

A instabilidade, a impossibilidade da permanência no desejo e no sentimento fazem portanto parte da condição humana. Como haveria de ser de outro modo num universo cujo princípio é a mudança? Consciente do caráter ilusório da duração, o libertino erige o instante intenso como norma da relação amorosa, teorizando assim a inconstância. “A constância é apenas uma quimera”, diz um personagem de Crébillon, “ela não existe na natureza, e é o fruto mais tolo de nossas reflexões.” Em Mémoires sur les moeurs, mme. de Retel observa igualmente: “O objeto se consome, o amor se extingue”. Os libertinos o dizem, mas os filósofos o pensam também. Casamento e uniões definitivas são absurdos, sustenta Diderot no Supplément au voyage de Bougainville. O ser é fugaz, como o mundo no qual ele se insere.

Gozo, logo existo: o prazer é a prova da existência. Mas ele não poderia ser, na libertinagem mundana, simples satisfação dos apetites animais. A mundanidade tem precisamente por função disfarçar o epicurismo instintivo sob a máscara do decoro e da cortesia; a hipocrisia social exige um código das relações amorosas, a galanteria traduz o amor sen, sual em formas prescritas.

A linguagem contribuirá para isso. Ela já ocultava a vacuidade do pensamento, a futilidade da existência. Servirá também à mentira polida. Embora “eu te amo” signifique na realidade “eu te desejo”, as conveniências exigem que as fórmulas sejam respeitadas. Ninguém se engana com essas palavras, mas recorre-se a elas porque disfarces e falsos obstáculos mantêm em forma o capricho. A linguagem, com seus desvios, não serve para tornar as coisas menos claras, mas apenas para revesti-las de decência, para oferecer à moral o compromisso do código amoroso. E tanto mais quando a interdição de dizer o corpo em sua totalidade — a não ser no erótico e no pornográfico — torna obrigatória a litotes, a perífrase, o não-dito, a ponto de separar o significante do significado.

Assim preparados, os libertinos do mundo elegante fazem o que podem para afastar o tédio, para escapar ao nada. Primeiro eles falam. Como no teatro de Samuel Beckett, silêncio e repouso são sinônimos de morte: fala-se para subjugar o outro, mas também para sentir-se existir, e busca-se o incessante diálogo porque a prática solitária da palavra não é suficiente para garantir a existência. A seguir é preciso mexer-se, agitar-se, agir sobre às outros. Por isso o lugar por excelência do divertimento, inclusive no sentido pascaliano, parece ser a festa, triunfo do instante, com seus artifícios e suas máscaras, seu brilho e a reunião de prazeres, tentativa derrisória de eternizar o instante, de fixar o fugaz, de emitir a nota mais aguda do grito da existência. Em vão: apagados os lustres, o tédio e o vazio reaparecem. La Morlière descreverá cruelmente o fim dessa excitação artificial: “Dispersada a multidão, todos se desmascaravam, o branco e o carmim da maquiagem se desfaziam sobre os rostos pintados, deixando transparecer peles lívidas, murchas e varicosas, que ofereciam aos olhos o espetáculo desagradável de uma coqueteria deteriorada”.

Decididamente, nada salva, nada transcende nem justifica o mundo exausto da festa libertina. Ele não tem continuidade e não cria nada. Os pais estão ausentes e, simbolicamente, essas inumeráveis ligações, funda-das apenas no prazer, permanecem estéreis: em Dorat, mme. de Syrcé morre e seu filho não vê a luz; em Laclos, Cécile aborta. Sem passado, porque separado dos valores de outrora, o libertino é também sem futuro, porque incapaz de criá-lo. Portanto, não lhe resta senão agitar-se sempre, conquistar e subjugar para dar uma aparência de sentido a uma existência desprovida dele no plano espiritual e no plano histórico: o ruído e o furor para se precaver contra o absurdo.

AS ESTRUTURAS ROMANESCAS

Se tende à pintura dos costumes, o romance libertino também se apresenta como um romance de formação em que a libertinagem, integrada ao sistema social, constitui uma fase inelutável da educação. O propósito, idêntico em Duclos, Crébillon ou Voisenon — na Histoire de la félicité —, em Dorat ou Nerciat, sublinha o alcance pedagógico da narrativa. A fórmula clássica “Entrei no mundo…” corresponde, para o nascimento social, ao não menos clássico “Nasci…” das memórias tradicionais.

À intenção pedagógica do narrador que pretende, por seu exemplo, tornar-se útil às gerações vindouras, corresponde, no interior da narrativa, a aprendizagem do herói. Este penetra como ignorante num círculo cujas leis e regras não escritas lhe preexistem e que a ele cabe assimilar. Levado pela mão por preceptores que detêm as chaves do código social, ele é antes de tudo passivo. No início, pelo menos, não é ele que vai atrás das mulheres, mas estas que o solicitam. Não sendo suficiente o ensino teórico, o iniciante é conduzido à experiência por uma mulher mais velha: “Você tem necessidade de uma mulher que o ponha no mundo”, explica Versac a Meilcour.

A partir daí, o que se acompanhará é menos a história de um destino individual, particularizado, que uma espécie de esquema organizador e um ritual. O herói é “um homem distinto” e “um homem tal como são quase todos no começo da juventude”. Esse segundo nascimento adquire o valor simbólico de uma nova Gênese. Saído do Éden da inocência infantil, colocado diante da árvore do Conhecimento, o protagonista é exposto à tentação e vive a agregação ao “mundo” como uma queda. Nada de surpreendente, portanto, que as situações não se renovem muito: trata-se aqui menos de inventar que de praticar, como em música, a arie da variação sobre um tema dado, de utilizar as técnicas de desvelamento e de retardamento.

Se o noviço submete-se à iniciação, um mestre a outorga: o jovem está sob a tutela de um praticante confirmado que o beneficia com seu saber. Uma ética às avessas, a do roué, substitui a moral convencional segundo a qual ele viveu até então: em vez da sinceridade, da espontaneidade, da modéstia, lugares-comuns da educação clássica, a hipocrisia e a representação de um papel, o cinismo e a prática do ridículo estudado, a dominação e a fatuidade. Sob esse aspecto, o célebre discurso de Versac é o verdadeiro manifesto da libertinagem mundana.

Pois o roué tem também vocação pedagógica e pretende fazer escola, formar discípulos, transmitir seu saber, fazer com que o aluno atinja um absoluto da libertinagem. Nem todos os seus êmulos chegarão à mesma perícia, seja por incapacidade e falta de dons, seja porque alguns, em. Duclos, Voisenon ou Dorat, saberão se afastar da libertinagem e reencontrar o caminho dos valores autênticos.

Com efeito, a queda não é irremediável e o iniciado não se torna necessariamente a réplica de seu espírito mau. Os grandes réprobos — Versac, o duque, em Dorat, ou Almair, em La Morlière — não se corrigem, mas a história do iniciante pode ser a de seus erros e tropeços de juventude. Como a cortesã, o libertino pode se redimir, quando, após uma série de erros instrutivos e aventuras degradantes, o herói chega à redenção por um retorno a si mesmo.

Após tantos encontros enganadores e conquistas nas quais só pôs em jogo sua vaidade, ocorre de o libertino experimentar um sentimento de amargura e decepção. Falta-lhe um não sei quê que o faz avaliar a inanidade de sua existência. É o que sentem os atores da comédia frívola. “Senti um vazio em minha alma”, diz Meilcour. Quando Angola consegue sair por um instante da agitação febril da corte, descobre “em si mesmo um vazio espantoso”. Após ter agido por uma vez desinteressadamente, o conde de Duclos murmura: “Encontrei um vazio em minha alma que todos os meus falsos prazeres não podiam preencher”. E o Thémidore de Voisenon: “Essa pretensa felicidade que eu buscava se desvanecia sempre que julgava possuí-la”. É sobretudo o pressentimento de um fracasso, a aspiração confusa por outra coisa, a nostalgia de um desconhecido. Por esse viés, uma metafísica do sentimento se reintroduz no universo cerebral da libertinagem.

O gosto não é o amor, o herói acaba por dar-se conta disso ao cabo de uma experiência decepcionante. A busca se desenrola segundo um roteiro imutável. O iniciante idealiza primeiro a mulher, longínqua e intocável. Quando a verdade sobre ela lhe é revelada, a idealidade transforma-se em degradação: ao saber adquirido corresponde a mutilação do imaginário, ao domínio social um amesquinhamento individual. Assim deçepcionado, premido por um desejo sempre insatisfeito, já que as mesmas experiências se repetem indefinidamente, o herói sofre a privação à espera do objeto, talvez inexistente, que a preencheria.

Ora, o amor verdadeiro, do qual ele se afastou por vaidade ou apetite sensual, não está ausente do romance libertino. Com frequência o objeto ideal está presente desde o início, mas no limiar do labirinto social, extraviado pelos preceptores imorais, o herói não tendo sabido reconhecer seu valor ou dedicar-se a alcançá-lo. Ele foi desviado da verdadeira busca, lançado nas falsas pistas da mundanidade. Angola é salvo assim que toma consciência de seus sentimentos por Zobéide, e outros passam pela mesma experiência. Hortense de Théville está presente desde as primeiras etapas dos Égarements; o herói de Mémoires sur les moeurs conhece logo de início mme. de Canaples; o de Malheurs de l’inconstance ignora a felicidade de possuir lady Sidley; em Voisenon, Thémidore chega a se casar com aquela cujo valor ele é incapaz de apreciar. A todos foi preciso primeiro viver uma série de provas que pudessem levá-los à sua perda definitiva, a imagem do espírito bom se esfumando à medida que se envolviam na conquista e na frivolidade.

Esse amor, obviamente, não é o da mundanidade, portanto da falsa aparência e da secura de coração, mas, ao contrário, o que requer pureza, sinceridade, delicadeza, nobreza de alma. O próprio Valmont sofrerá a sedução do amor verdadeiro, assim como o duque de Dorat, que confessa ter escapado “com dificuldade ao ridículo de uma paixão séria”. Endurecido, o roué experimenta apenas uma tentação fugaz, logo dominada, mas o herói reconhece enfim o apelo do sentimento autêntico.

Esse novo amor, que se opõe à vã retórica mundana, é o único capaz de reconduzir à autenticidade e à ordem natural, de satisfazer a aspiração ao não sei quê e de preencher o vazio. A verdade estava alhures: o jogo mundano tinha menos por objetivo proporcionar ao herói o domínio da libertinagem que acumular obstáculos para sua verdadeira realização. Esse amor verdadeiro é proposto como o raro vestígio de uma época terminada. Duclos escreve em Mémoires sur les moeurs: “O amor sempre foi muito raro, ao menos o que merece o nome de sentimento; no entanto estou convencido de que o era menos outrora do que hoje”. Uma nostalgia desse outrora paira sobre a libertinagem.

Esse esquema sentimental constitui também um modelo para a História, a degradação do sentimento autêntico exprimindo, no plano individual, a de toda uma sociedade decaída, empobrecida de seus valores passados.

Por isso mesmo há a tentação de situar a libertinagem mundana numa perspectiva sociológica. Confinada nas esferas da aristocracia, ela traduziria o esgotamento da mentalidade e da existência feudais na descrição de uma classe que busca compensar seu definhamento e lutar, ainda que por um minuto, contra a decadência que a ameaça. Compensação e logro, o universo da libertinagem seria o produto da ideologia nobiliária ameaçada de ruína. O roué, em seu apetite de dominação, confere-se como que uma ilusão de autoridade ao simular derrisoriamente nas alcovas sua força política e social desaparecida. A vocação conquistadora é o resíduo e a perversão do ideal nobiliário e cavaleiresco refugiado na guerra amorosa, o poder desaparecido não existe mais senão como simulacro mundano.

Reduzida à atividade mundana à qual a condenou o absolutismo, a nobreza se veria assim obrigada, ao observar estritamente o ritual que lhe é reservado, a parodiar seus próprios valores de outrora. O jogo lhe permitiria reivindicar sua identidade e sua singularidade, oferecer-se uma espécie de revanche, ao mesmo tempo antiburguesa e antiabsolutista, o rigoroso enclausuramento do mundo libertino significando uma ideologia da pureza. Veríamos do mesmo modo por que a sociedade em que se desenvolve a libertinagem é o contrário de uma sociedade permissiva. A libertinagem só tem sentido num mundo em que persistem as interdições e os tabus, que ela se vangloria de infringir. Código singular, porém, cujo absurdo Versac denuncia ao mesmo tempo em que o enuncia, e que fracassa em fazer-se passar por uma ética. A “ciência do mundo”, vã em si mesma, só se adquire pelo disfarce de si próprio, pela prática engenhosa de ridículos que constituem a “singularidade” às custas do perpétuo tormento que o libertino se impõe para deformar sua própria natureza. Por mais que Versac enalteça seus méritos, ele tem um olhar lúcido sobre eles; no momento mesmo em que expõe as razões de sua superioridade, confessa que ela se exerce na futilidade. Assim considerada, a libertinagem mundana seria de fato o apanágio do absolutismo decadente. Ancorada no Antigo Regime, do qual exprime os ideais e os valores, essa literatura seria subversiva na medida em que denuncia a vacuidade e a artificialidade a que foram reduzidos esses ideais e valores. Traduzindo um sentimento de fracasso e de renúncia histórica, a libertinagem mundana participaria de uma literatura crepuscular.

A nostalgia do amor verdadeiro, simbólica, traduziria assim os lamentos de uma classe despojada, não do prestígio, mas do poder, e que busca reatar com os valores de outrora. Como a reação feudal tentava reafirmar seus direitos olhando para o passado, esse mesmo passado lhe fornecia arquétipos da consciência nobiliária, entre os quais o mito cavaleiresco, situado numa Idade Média legendária, ou a pintura de um amor idealizado, mais próximo, valorizado no tempo do preciosismo e da Fronda. Funcionando num duplo registro, o romance da libertinagem mundana conteria ao mesmo tempo a pintura da degradação dos valores aristocráticos e a sugestão de que esse declínio não é inelutável caso se saiba retomar os valores de outrora.

Mas nele encontramos também — seria isto, ao contrário, o índice de uma demissão mais acentuada? — a aspiração final à retirada do mundo, maneira talvez de escapar à submissão pelo desengajamento. Longe do turbilhão mundano, quer-se remediar a divisão do ser e do parecer: “O desgosto”, diz o conde em Duclos, “afastou-me do mundo que a dissipação me havia feito procurar”, e os personagens de Voisenon pensam do mesmo modo. Retirar-se em suas terras com uma mulher, unido a ela por um sentimento durável, mais terno que apaixonado, não longe de amigos seletos, zelar pela educação dos filhos, praticar um pouco o bem a seu redor, como em Dorat preparar o dote de uma filha educada — reaver algo de patriarcal. Sabedoria burguesa ou vocação de uma aristocracia resignada? A necessidade de uma arte de viver, meio-termo justo entre uma sociabilidade escravizadora e uma solidão inumana, conduz a uma “sabedoria dos castelos” que consiste em reaproximar-se de si, em recompor o ser esfacelado, versão laicizada, moderadamente epicurista, da antiga renúncia cristã ao mundo e a suas pampas.

Tradução de Paulo Neves

Nota

[1] Sobre a história da palavra libertino, ver G. Schneider, Der Libertin. Zur Geistes und Sozialgescbichte des Burgertums im 16. und 17. jahrhundert, Stuttgart, 1970. Sobre a evolução do romance libertino, permitimo-nos remeter à nossa obra: Romans libertins du XVIII siècle, Paris, Laffont, 1993 (coleção Bouquins).

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