1996

Literatura e erotismo no século XVIII francês: o caso de Teresa filósofa

por Renato Janine Ribeiro

Resumo

“Teresa filósofa” é um livro cujo fim é o defloramento. Ele que se, de início, é uma ameaça, passa a uma opção; uma festa até. É que Teresa, depois da quase prostituição e dos muitos pretendentes que cruzam seu caminho, é possuída quando o quer, ou seja, com amor, o que contrasta com os costumes da época. E isso – como ainda Teresa o quer – sem a sombra do casamento e dos filhos, também em contraste com os costumes da época.

Como é possível tal clima de conto de fadas num romance satírico?

Primeiro porque o tema do livro é o prazer – o que, aliás, é muito libertino. Depois, porque é por ser de alguma forma filósofa que Teresa vence os obstáculos.

Que filosofia seria essa?

A que estava vigente no fim do século XVII e foi muito difundida no século XVIII. Trata-se de um materialismo que integra o espírito ou o espiritual à matéria, com fins de desmistificar o que mantém o povo sob julgo social, sobretudo da Igreja. Daí a ênfase materialista, ou seja, a busca do que há de ético em tal concepção de mundo, o que, no que se refere ao sexo, é representado por Teresa.

Os paralelos são mesmo espantosos. Eles que vão de Thomas Hobbes a Montesquieu, passando por D’Holbac.

Teresa é contudo politicamente conservadora. Tanto que é recorrente no livro a ideia de que a emancipação sexual não pode por em perigo a máquina social, o que hoje soa estranho. A libertação detém-se, assim, às portas da “pólis”? A política segue imune à razão erotizada? Nesse sentido, é preciso entender alguns aspectos do Antigo Regime, como o apolitismo das classes livres de preconceitos sexuais ou o medo do impacto social de certos tipos de livro, sobretudo os de caráter religioso. O ateísmo, aliás, exemplifica bem a questão. Ele que, na época, era sinônimo de amoralidade; logo, de possibilidade de crime sem castigo. Assim, o libertino ateu (no sentido moderno) não se desfaria com facilidade da imagem do ateu (da época).

Quem sabe não seria esse o motivo da quase ausência do tema social em “Teresa filósofa”?

Em que consiste esse “quase”?

Na crítica a certas instâncias hierárquicas, como a da espada, da toga, da batina e da finança, com ênfase nestas. Tanto que se, de um lado, a batina é ridicularizada, o financista – que comprava do rei o direito de cobrar impostos – é, por outro, motivo do ódio de Teresa. Decorre disso a crítica aos costumes, sobretudo à hipocrisia.

Mas isso é lateral se comparado ao principal ensinamento filosófico do livro: o de como tornar homens e mulheres felizes no exercício do gozo sexual sem culpa.

 


1

Este é um romance que tem um tema e uma meta, o defloramento. Tudo caminha para essa finalidade, que deixa assim de ser o destino de toda mulher para se tornar, primeiro, um perigo, portanto recusado, e — depois uma opção, até mesmo uma festa. É por isso um romance com telos, se assim podemos dizer, ainda mais porque não trata de nenhum defloramento, mas de um que seja fruto do desejo e mesmo do amor: Teresa somente será penetrada quando o quiser plenamente, e pelo melhor homem possível em suas condições. Isto é, sendo ela moça bonita mas pobre e sem nobreza, não pode aspirar a um casamento, o máximo que poderá ter é um amante devotado — o que explica a alegria que sente quando o conde lhe diz que nunca há de se casar: ele só poderia ter como esposa uma mulher de seu nível social.[1]

O romance é então de amor e sexo, e não de casamento e filhos. A gravidez assusta, e é por isso que Teresa reluta tanto em abrir seu corpo ao amado. Umas poucas décadas depois desse romance, Diderot, no Suplemento à viagem de Bougainville (c. 1773), fará o elogio da ilha de Taiti, onde – invenção sua — o amor é livre, independente dos elos sociais e religiosos, mas fica claro que isso é apenas um recurso para a imaginária sociedade taitiana ter mais filhos, até porque a vida sexual é proibida aos homens e mulheres estéreis. O prazer é um meio, o mais agradável, para satisfazer esse fim: de modo que o desejo serve de instrumento a uma política de expansão demográfica, tida, no século XVIII, como uma das mais eficazes para o desenvolvimento econômico. E algumas décadas antes de Teresa filósofa, Montesquieu, nas Cartas persas (1721) de número 112 a 122, efetua a crítica do casamento indissolúvel dos católicos e da poligamia muçulmana, porque ambos fariam perder-se o desejo sexual pelo parceiro, e com isso diminuir a população do mundo; somente a monogamia dissolúvel, como a dos protestantes, soma a liberdade que precisa existir na relação de amor ao empenho que resulta de termos um único parceiro, e por isso concilia o prazer e a procriação.

Aqui, porém, não há procriação nem casamento: o tema é o prazer.

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Mas este romance de sexo tem também tudo do conto de fadas. Por quantos percalços não passa Teresa enquanto vai sendo iniciada no sexo e no amor! Poderia, como Eradice, ter caído em mãos do “infame Dirrag”,[2] poderia, também, ter sido deflorada pelo financista R; a sorte lhe traz, porém, primeiro a amizade do casal T e C, depois a dedicação do conde que, finalmente, a possui. Ela, que é perita em masturbação e que teve experiência lésbica, chega assim virgem ao amado. Como por mágica, todos os perigos são dissipados. E a mulher que é apresentada à primeira vista como vilã, que pretende corromper Teresa — a Bois-Laurier, de nome que recorda o loureiro, com seus poderes afrodisíacos —, logo deixa de ser má.

O mesmo clima de conto de fadas aparece nos happy ends que semeiam o livro: por exemplo, o do casamento de mme. C. Por que a história a faz enviuvar grávida, só para perder o filho três meses depois? Porque — isso nem precisaria ser explicado ao leitor da época, era a lei vigente —, se ela enviuvasse sem filhos, todos os bens do marido, que era rico, voltariam à família dele, mas, tendo um filho, as propriedades são do menino e, quando este morre, da mãe. Foi esse feliz concurso de acasos que deu dinheiro a mme. C.

E outro exemplo dessa sorte protetora de Teresa aparece na reden­ção que ela traz a si mesma e a Bois-Laurier uma redenção não religiosa, que não é uma renúncia ao sexo mas se produz através dele mesmo. Porque o que acontece com Teresa é em certo sentido uma repetição da história da velha libertina, só que consertada, reparada: redimida. A tal Lefort, que criou a Bois-Laurier, tratou-a como esta pretende agora fazer com Teresa, iniciando-a na prostituição. Mas, ou porque Teresa reage com vigor, ou porque é filósofa e sabe discutir as questões de sexo, ou porque tem a sorte de conhecer o conde, escapa desse destino. E, mais que isso, faz a Bois-Laurier de cafetina virar sua amiga e, o que sobretudo importa, vencer a culpa e os remorsos que a atormentavam: será feliz.

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Terá a filosofia algo a ver com essa vitória sobre os perigos? Porque, diz o título, Teresa é filósofa. Melhor dizendo, no livro todo ela é aprendiz de filosofar; ouve discursos que a impressionam, e é com base neles que pode contestar parte do que lhe diz a Bois-Laurier e, depois, repetir o que ouviu ao conde, que aprova seus dizeres e se apaixona tanto por seu espírito quanto por seu corpo. Mas não é propriamente original.

Só que é essa filosofia o que a faz escapar da perdição, a que o mau padre e o mau financista a querem levar. De que filosofia se trata, então? De um pensamento que é bastante difundido pelo século XVIII, mas que já nascera no XVII, e que conhecemos grosseiramente pelo nome de materialismo. A rigor, não importa tanto qual a fonte dessas ideias, porque elas circulam amplamente pela época; mas é espantoso ver quanto os temas reiterados no romance coincidem com os que, um século antes, Thomas Hobbes desenvolvera na Inglaterra — por sinal, um filósofo de quem, a rigor, é difícil dizer se foi, ou não, materialista. De toda forma, como Hobbes teve sua influência no século das Luzes — o barão D’Holbach, um dos principais iluministas, foi quem traduziu em francês seu livro On human nature —, pode ser mais que mera coincidência este encontro dos philosophes, ainda que na sua versão libertina, e do filósofo conhecido por sua defesa do absolutismo.

Comecemos retraçando rapidamente o que entendemos, aqui, por materialismo. Não se trata, apenas, de dizer que a realidade é de ordem material. Convém enumerar alguns pontos essenciais do que compreendemos por essa doutrina: primeiro, o que se convenciona chamar espírito ou espiritual é, na verdade, da ordem da matéria. Segundo, essa redução do espírito à matéria tem o sentido de uma desmistificação. Por meio dela, exclui-se do mundo o que era fantasma, e muitas vezes, também, o que era medo (medo dos fantasmas, literalmente; mas, por extensão, medo que os humanos têm dos frutos de sua própria imaginação, sabiamente estimulados pelo clero). Daí que, terceiro, essa libertação ou emancipação dos homens se faça contra os que têm interesse em mantê-los a ferros — os sacerdotes, por exemplo. E finalmente, quarto, daí também que a emancipação seja sobretudo das mentes e das condutas pessoais, não necessariamente implicando a contestação dos poderes vigentes ou das formas externas de comportamento (e de culto). Em síntese: não se trata apenas de uma convicção filosófica sobre a natureza última das coisas, se espiritual, se material — mas, acima de tudo, das conseqüências que no plano ético se podem retirar de tal concepção.

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Na década de 1640, Hobbes debate, com o bispo anglicano de Derry (atual Londonderry, na Irlanda), John Bramhall, se temos o livre-arbítrio ou se somos determinados, desde sempre, em todas as nossas ações. Nesses textos, que Hobbes pede a seu interlocutor que fiquem em segredo,[3] ele é bem mais explícito a esse respeito que nas suas obras dadas a público.[4] Afirma, em suma, que todas nossas ações são predeterminadas. Existe uma cadeia de causas e efeitos, que só de Deus é conhecida em sua inteireza, mas à qual nada escapa. Isso porque Ele é onipotente, e portanto nada foge a Seu poder; porque é onisciente, e desde que criou o mundo já conhecia tudo o que iria ocorrer; e, ainda, porque o filósofo concebe tudo o que acontece sob a sucessão de causa a efeito, e assim nada pode ser imprevisto ou indeterminado.

O bispo não concorda, porque assim se suprime o livre-arbítrio: que será do juízo de Deus sobre as almas? Ninguém irá para o céu ou o inferno por seus atos, mas apenas pelo arbítrio de Deus, que caprichosamente terá distribuído os homens entre eleitos e condenados. Revoltado, Bramhall publica então as cartas que recebeu de Hobbes; não se sente obrigado a guardar o segredo que o interlocutor pedia, porque o considera, simplesmente, ímpio, e merecendo ser exposto à execração pública. O filósofo então lhe responde com sarcasmo.
Alguns pontos convergem com a temática de Teresa filósofa. Um deles é o do determinismo radical. Mas, se tudo o que somos e fazemos independe de nós e já está predeterminado, então para que tanta pregação, para que tantos tentam convencer Teresa do que é melhor? Se tudo está previsto, parece que o mais lógico seria certo conformismo, uma inércia ante o que o destino nos trouxer. Mas não é assim que argumentam Hobbes e Teresa: por um lado, não se trata da ideia fatalista de destino mas de uma determinação rigorosa como a da ciência, pois tudo se explica pe­la relação de causa e efeito; cada um de nossos atos está determinado cientificamente. Por outro, se entre essas causas prevalecem as paixões, também está presente a razão, que nos ilumina sobre nossa natureza (a qual não podemos mudar); e é aliás esse o sentido dos castigos e do sistema penal: estes não servem para punir quem agiu mal ou pecou — não há mal ou pecado, a rigor, porque ninguém é livre para fazer o que não fez —, e sim para somar-se às outras causas que impeçam os homens de proce­der contra a lei. O castigo é exemplo: pedagógico, volta-se para o futuro e atua sobre o seu espectador. Não é retribuição do mal passado.

Mas uma enorme diferença entre Hobbes e Teresa está no papel conferido ao sexo, ou ao que poderíamos chamar, não houvesse certa oscilação a esse respeito no livro, a natureza. Com efeito, em algum momento ouvimos que a natureza, sendo criada por Deus, é boa (e por isso não temos que nos culpar pelo sexo); mas o que mais se repete no livro é que a natureza é simples quimera. Explica-se: para justificar o mal e o sofrimento no mundo, o cristianismo fez que eles derivassem de duas fontes, a vontade livre do homem (ou livre-arbítrio), que escolheu pecar, e a natureza, mundo criado, no qual a matéria (incluindo a carne) está sujeita à corrupção. Do livre-arbítrio nos livramos pelo determinismo radical, que reduz o papel de nossa vontade e razão a conhecer e bem usar nossa forma de ser.[5] A natureza, por sua vez, é quimera ou ente imaginário, se funcionar como uma tela intermediária entre Deus e o homem, carregada dos males de nossa condição; mas poderíamos dizer por outro lado que tudo o que é natural é bom, porque desejado por Deus. Em outras palavras, o mundo da criação não é um vale de lágrimas ou uma provação, na qual teríamos que desconfiar de tudo o que nos proporciona prazer; ele é transparente, na medida em que o prazer que nele temos é verdadeiro, desde que tomemos certos cuidados, os que dizem respeito ao bom tratamento do outro. Por isso uma psicologia, que afirma que o homem sempre busca o prazer e se afasta do desprazer, engata numa ética, a de um bom uso dos prazeres.

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O bom tratamento do outro consiste em dois pontos: não engravidar a namorada e respeitar a organização vigente da sociedade. A política de Teresa é conservadora. Várias vezes ouviremos, inclusive na conclusão, que devemos liberar nossos prazeres, mas tendo a cautela de não pôr em perigo a máquina social. Vimos que isso em nada conflita, pelo menos em princípio, com a definição simplificada que propusemos do materialismo clássico. É por isso que as mulheres decentes têm de se contentar com a solução onanista para o desejo, não podendo imitar aqueles homens como o padre T, que usam mocinhas como um penico no qual descarregam a libido acumulada.

Por aí entendemos a condição de segredo, que Hobbes pedia ao bispo Bramhall na questão do livre-arbítrio, e que em temas mais saborosos nossos filósofos solicitam uns aos outros. As ideias hobbesianas ou da filosofia erótica, embora verdadeiras, são perigosas para o vulgo. Este, se as ouvir, tenderá ao deboche. Devem ficar restritas aos que as podem conhecer sem risco — àqueles que, mesmo plenamente informados, não deixarão de obedecer. A obediência às leis, o respeito à ordem constituem então o quadro a não ultrapassar. Propõe-se a liberdade do desejo, a emancipação dos sentidos e da mente, uma vida de prazeres ampliados — mas nada disso significa uma revolução em sentido político ou social. Temos, pois, um espírito livre, libertário em certa medida, mas que não vê problemas em aceitar o statu quo. Para nós, parece talvez estranho, pelo menos em princípio, que a libertação se detenha às portas da polis: que a política fique imune a essa razão erotizada que contesta todos os lugares comuns da moral dominante, mas não enfrenta sua sócia, a ordem vigente. Quem sabe nossa estranheza derive de pretendermos integrar a moral e a política, quer criticando seu perverso conúbio passado, quer propondo uma filosofia prática que dê conta de ambas. Ora, o fato é que o con­formismo político daqueles que não têm preconceitos eróticos é bastante rotineiro na época. E cabe aproximá-lo de uma divisão entre dois tipos de texto, frequente, durante o Antigo Regime, tanto nas obras de filosofia política quanto nas que lidavam com religião: um mesmo autor escreve livros para uma difusão maior, por exemplo, em língua vernácula, e outros que guarda como manuscrito, só os circulando entre amigos, ou publicando-os em latim.[6] Parte da literatura erótica pertence a esse gênero discreto.

Pela mesma razão muito libertino evita publicar suas convicções. Com efeito, alguns deles não acreditam em Deus; ora, o ateísmo para a maior parte dos pensadores da época é sinônimo de amoralidade, significando que os pecados e crimes cometidos neste mundo ficarão definitivamente impunes, e que portanto a justiça é uma palavra vã.[7] Se em nossos dias ateu é quem simplesmente não acredita em Deus, naquela época o ateís­mo parecia significar acima de tudo a descrença numa justiça superior, aquela que constitui o atributo da divindade. Ora, assim o libertino ateu (em sentido moderno) tinha dificuldades em livrar-se da imagem do ateu (em sentido de época) — isto é, quem apenas negava o Deus moralista acabava passando, também, por inimigo do Deus da justiça.

Evidentemente, libertinos como os de Teresa filósofa não são inimigos da justiça, nem sequer amorais, tendo uma contenção ética até mesmo exemplar; mas eles próprios se dizem exceção, atribuindo seu equilíbrio à frequentação que tiveram da filosofia. Se suas ideias forem difundidas — pensam —, causarão mal à ordem da sociedade. Temos um bom exem­plo disso na morte do conde de Rochester,[8] poeta libertino na Inglaterra do rei Carlos II, que é convencido pelo confessor a se arrepender, não porque tema a morte eterna, mas simplesmente a fim de dar um bom exemplo àquelas pessoas menos firmes de pensamento e que precisam ser atormentadas pelo medo a fim de agirem segundo a moral.

É isso, aliás, o que lança sobre textos dessa época, como Teresa filósofa, que sejam críticos à religião, uma dúvida: são ateus ou não? Podem seus autores ser ateus que se disfarcem, por medo à censura e à repressão; mas pode ser também que defendam, apenas, uma religião depurada das superstições, e nesse caso o ateísmo lhes é imputado pelos contemporâneos bem pensantes para desqualificar uma filosofia subversiva da moral dominante. A parte em que o padre T elenca os erros e absurdos das Sagradas Escrituras é passível de se interpretar de uma como de outra maneira: a questão geralmente só pode ser resolvida por elementos externos ao texto, e por isso o que nos importa é menos se o autor do livro (provavelmente o marquês de Argens) foi ou não ateu, e sim o fato de que essa obra tenha de ser lida na fronteira entre duas possibilidades tão opostas de interpretação.

Enfim, se Teresa, já pelo título filósofa, evidencia seu caráter iluminista, seu vínculo com esses philosophes que procuravam pôr fim aos preconceitos e difundindo o conhecimento abrir espaço para uma nova ética, o livro pertence porém ao que devemos chamar a Ilustração aristocrática, e não a da reforma ou mudança social. Outros autores serão mais radicais nas propostas de uma sociedade mais justa ou eficaz. Neste romance, não há mazelas de ordem social. A sociedade, aliás, está quase que ausente, a não ser como aquela ordem que devemos respeitar.

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Os meios sociais mais graúdos são devassados pelas cortesãs. A um certo momento a riqueza e o poder são definidos como sendo a Espada, o Clero, a Toga e a Finança. O maior vigor é lançado contra o clero e a finança. As duas partes da nobreza propriamente dita, a espada e a toga, embora também tenham seus maus rebentos, ou ridículos, são mais bem tratadas.

Há, no século XVIII, diversas tensões naquilo que seria a classe dominante. A nobreza se divide entre a de espada, geralmente mais antiga e ligada ao ofício que sempre a caracterizou, o das armas, e a de toga, composta dos magistrados, que normalmente se tornavam nobres em decorrência do cargo, que compravam ou herdavam, de juiz. Mas além deles, que frequentemente se hostilizam, há os financistas, os quais incluem os fermiers — que compravam do rei, à vista ou em prestações, o direito de cobrar os impostos —, e se vêem odiados, pelo povo e por Teresa; há, finalmente, outra camada social, a do clero, que tem elos próximos com a nobreza, mas é cada vez mais vista, à medida que o século avança, como parasitária. E dentre os parasitas os piores são os monges — não por acaso os mais visados no sarcasmo do livro. Geralmente, deles se diz que são inúteis, ociosos, o que é uma crítica severa num século produtivista.

Mas por que um romancista que exalta o sexo sem filhos faria aos monges ou aos financistas a crítica de que eles nada produzem? Não haveria muito sentido nessa contestação, digamos, fisiocrata. O que faz então nosso anônimo autor é criticar costumes, a começar pela hipocrisia: com efeito, o clero mente, o que já vemos em Dirrag, nas primeiras páginas. E a continuar pela velhice: a maior parte dos clientes das prostitutas é composta de velhos que, pelo excesso de prazer que os deixou blasés, já nem conseguem a ereção, e para fazerem a obra da natureza precisam do artifício da perversão. O sexo, o prazer, coisas naturais por excelência, assim passam a depender do que é mais factício e artificioso: ou seja, de sua extrema contrafação. Embora esses velhos perversos não cheguem a ser censurados no livro — que na verdade mais se ri deles do que os execra —, o fato é que o amor é para gente jovem e bonita. Teresa e o conde serão o par ideal porque têm o mesmo gosto pela filosofia e porque são bem feitos de corpo.

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O homossexual não tem a sorte que cabe à lésbica. Teresa pode fazer o amor com a Bois-Laurier, sem incorrer na relativa infâmia que proporciona a homossexualidade, explicitamente ridicularizada no romance. Por quê? Penso que algumas razões aqui se somam.
Antes de mais nada, o lesbianismo é vivido como uma espécie de masturbação a duas. Ora, Teresa em boa parte é uma elegia ao onanismo; é também um romance iniciático, no qual a iniciação ou a passagem é a do defloramento, culminando na relação homem-mulher comme il faut; isso é claro que se faz contra a masturbação, mas sem em nenhum momento a condenar. Por isso, a mesma inocência que aparece nas cenas em que a moça descobre seu sexo, ou na masturbação recíproca entre T e o bom padre, também isentará de culpa os amores de Teresa com a Bois-Laurier: mesmo quando ela já ama o conde, continua a cometer suas “loucuras” com a libertina aposentada.

Outra razão possível é que o objeto de desejo, para o leitor, seja o corpo feminino. É verdade que eventualmente também se apresenta como desejado o corpo viril (o do conde, o de seus quadros galantes); mas tantas ou mais vezes o homem nu é uma nulidade, um resto envelhecido. Isso se depreende da cena em que a Bois-Laurier, ainda moça, solta gases na cara de um homossexual que a vem usar; a história é conhecida, porque aparece possivelmente pela primeira vez no Decameron de Boccaccio, e poucos anos depois nos Contos de Cantuária, de Chaucer. Mas que mudança ocorre no episódio? Nas duas versões medievais, a moça, que está com um galã jovem e belo, trata desse jeito um pretendente feio; aqui, ela dirige sua zombaria para um homossexual. O “antifísico”, aquele que comete o pecado contra a natureza, é assim o sucessor do velho, do feio, do desprezível.

Mas, finalmente, o que inocenta o lesbianismo é que ele é apenas etapa, assim como a masturbação, no rumo da glória que é o encontro dos dois sexos. Já o homossexualismo masculino aparece como um simulacro, algo que se oferece no lugar de outra coisa; daí o sentido da própria cena a que acabamos de nos referir, quando um homem que não gosta de mulheres perscruta o corpo de uma delas para depois a possuir — mas sem o gosto que ela, bela que é, mereceria: ele somente iria fingir a posse viril da fêmea. O homossexual é realmente um desviado, ao passo que a lésbica só tem em seu passivo o fato de confundir a etapa com a parada, com uma estase, em suma, de ficar estática em vez de prosseguir no bom caminho; e por isso é que Teresa pode trazer a redenção à Bois-Laurier: a seu modo, e na medida do possível, ela faz a prostituta estagnada no lesbianismo perceber que o prazer é fluxo contínuo, e que tudo o que está nesse trajeto é bom e sem culpa.

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Por que tanto medo de engravidar? Teresa, que é um elogio ao pra­zer, discute muito a contracepção e seus meios. Dissemos que o respeito à sociedade se expressa no conformismo político, e o respeito ao outro no cuidado para não engravidar a namorada: assim o amante devotado protege a saúde e a reputação da moça com quem se deita. O medo da gravidez é tão grande que lemos histórias de mulheres que por um defei­to congênito (a Bois-Laurier) ou adquirido (a mãe de Teresa) não podem ser penetradas. Ora, para evitar filhos o romance elege dois meios básicos. O primeiro é a masturbação recíproca, método do padre T. O outro é o coito interrompido, praticado pelo conde no happy end do romance.

Mas aqui há um silêncio que espanta: sobre os preservativos. Estes eram conhecidos pelo menos desde o século XVII — conta-se que um mítico senhor Condom teria dado alguns deles a Carlos II, rei da Inglaterra. Feitos de tripa de carneiro — incômodos, portanto —, laváveis e reutilizáveis, é verdade que serviam sobretudo para evitar doenças venéreas, mas pela época de que tratamos eram igualmente utilizados como prática anticoncepcional. Por que não aparecem no livro? Certamente eram menos populares do que depois se tornaram. Mas sua ausência indica que certamente há razões não racionais para o fantasma da gravidez indesejada.

Deve ser, primeiro, a recusa do modelo do casamento. Ser penetrada e ter, logo depois, filhos é o que caracteriza este último; ou, por outra: o sexo apressado e sem prazer. Contra isso, o romance multiplica as preliminares, fazendo-as fim em si, ao menos durante uma fase (por isso, à masturbação sucede o lesbianismo inocente). E assim, segunda razão para se brandir o fantasma da gravidez: o objetivo deste livro é o prazer, que se vai revelando a cada etapa da longa iniciação. Teresa efetua duas passagens paralelas, a de menina a mulher, pelo sexo, a de pessoa sem luzes a filósofa, pelo conhecimento. Nessa iniciação, ao contrário do que geralmente ocorre na vida, a dor inexiste.

Geralmente as pessoas se aferram a seus preconceitos — ao ego, diria um analista — e sofrem em largá-los; e a mulher, ao ser deflorada, sofre igualmente. Não aqui: quando o conde desvirgina Teresa, o prazer é tão grande que ela nem sofre. Tanto foi o cuidado anterior, o trabalho filosófico sobre os sentidos, que ela agora sente apenas o que há de bom no defloramento. E, a cada aula que tem de filosofia, em vez de dizer um penoso adeus a sentimentos antigos, Teresa recebe ideias que só a podem fazer feliz. Em suma, a emancipação, quer sexual, quer filosófica, sendo indolor, o que podemos dizer é que o meio é da mesma natureza que o resultado: já é, em si mesmo, bom.

Mas, terceiro, a principal razão para a gravidez atemorizar tanto só pode ser a oportunidade magnífica que esse medo feminino oferece para que os homens se façam grandiosos: o padre T, recusando-se a penetrar a amante, ou o conde, recusando gozar dentro da sua amada, agem ambos em nome da “filosofia do homem senhor de si”, para usarmos um termo do próprio romance. É este certamente o objetivo de toda a filosofia praticada na alcova: mostrar o homem que domina seus próprios sentimentos e paixões, mas sem os reprimir, que assim estiliza sua própria vida, sofisticando-a no uso que faz de seu desejo.

É então esta a lição refinada de filosofia erótica que propõe Teresa: como tornar felizes a mulher e o homem no gozo dos sentidos desculpabilizados; como manter a ordem da sociedade; como, finalmente, fazer de tudo isso, mais que uma mera série irrefletida de práticas ou técnicas, um estilo. O ethos aristocrático caracteriza-se, sempre, por estilizar sentimentos e atos, o que tanto significa embelezá-los quanto submetê-los a regras rigorosas: esquecemos, às vezes, que o próprio sexo e o prazer podem ser mais bem vividos quando é com rigor, o que aqui significa associar, na libertinagem, o sexo ao espírito.

NOTAS

[1] Este texto se baseia numa introdução que redigi para a tradução de Teresa filósofa — Porto Alegre, L&PM, 1991. Infelizmente, alguns erros que ocorreram na referida publicação fizeram-me considerar conveniente, talvez, republicá-la. Mas, revendo o texto, acabei também por alterá-lo em outros pontos.

[2] O “cordão de são Francisco”, que Dirrag enfia em Eradice, parece-me ter sua fonte numa novela do Decameron (III, 10), em que a jovem Alibech parte para o deserto bérbere querendo fazer-se santa, e encontra um eremita de nome Rustico. Este, depois de muito resistir interiormente à beleza da moça, por fim lhe ensina que o trabalho mais agradável a Deus consiste em “enfiar o diabo no inferno”. Obviamente, o diabo é o sexo masculino, e o inferno o feminino. Alibech acha que o trabalho não é agradável só a Deus, mas também a ela.
A diferença é que o tom é leve, não há maldade como em Dirrag. Rustico reluta em enganar a garota e não tenta conservá-la consigo. A história termina com a gargalhada das mulheres de Capsa, aonde muito a contragosto regressa Alibech, ao saberem como se rezava a Deus no deserto.

[3] Os textos de Hobbes são: Of libertie and necessity (1646), The questions concerning liberty, necessity, and chance (1656) e An answer to a book published by dr. Bram-hall… (1668). Vê-se a importância da polêmica, que da parte de nosso filósofo dura mais de vinte anos, começando com Carlos I ainda vivo, atravessando a República de Cromwell e terminando já bem dentro do reinado de Carlos.
Tratei deste assunto com mais vagar em Ao leitor sem medo — Hobbes escrevendo contra o seu tempo, São Paulo, Brasiliense, 1984, capítulo 1.

[4] Por exemplo: mais explícito e claro do que no capítulo XXI do Leviatã, no qual tece, sobre o papel respectivo da liberdade e da necessidade, afirmações quase confusas. Diz, aqui, que, “embora os homens possam fazer muitas coisas que Deus não ordenou, e das quais portanto não é autor [a edição latina é mais enfática ainda: contrárias às leis divinas, não lhes é possível ter paixão ou apetite por nada de cujo apetite a vontade de Deus não seja a causa”]. Essa passagem dá a entender que Deus seria causa das paixões nos homens, mas que a decisão seria fruto da liberdade humana. Contudo, outras frases no mesmo parágrafo evidenciam que tudo se encadeia numa rede de causas que remonta a Deus, “[d]e modo tal que para quem pudesse ver a conexão dessas causas a necessidade de todas as ações voluntárias dos homens pareceria manifesta”, e que “a liberdade que o homem tem de fazer o que quer é acompanhada pela necessidade de fazer aquilo que Deus quer, e nem mais nem menos que isso” (trad. J. P. Monteiro e M. B. Nizza da Silva, 1973, p. 134; grifos do original).
Entendo que a relativa confusão no Leviatã é proposital, a fim de evitar maiores problemas — não com a censura, que esses anos estava fraca, mas com os leitores de mente mais fraca, que poderiam tirar más consequências de teses tão difíceis como a hobbesiana (um homem frágil poderia concluir que, embora Deus exista, por estarmos desde sempre predeterminados a tudo o que faremos, de nada vale nos esforçarmos e portanto tudo estará permitido).
Na polêmica com Bramhall, as passagens obscuras serão esclarecidas na direção que apontamos no corpo deste artigo.

[5] A rigor, é raro que o livre-arbítrio seja apresentado como uma liberdade de indiferença, com o homem optando “livremente” entre o bem e o mal. Geralmente, a escolha do mal significa submissão — e não liberdade: significa estar sob a tirania do mal ou das paixões. Somente a escolha do bem realiza a liberdade humana.

[6] Quem faz uma brilhante, embora curta, análise desses dois tipos de escrita é Leo Strauss, “On a forgotten kind of writing”, in What is political philosophy?, Westport, Greenwood Press, 1975.

[7] Cf. por exemplo, no Leviatã, início do capítulo XV, o vínculo que se faz entre duas referências aos Salmos, segundo as quais “a justiça é coisa que não existe” e “Deus não existe” (dois discursos atribuídos ao “tolo”, que os disse “em seu foro íntimo”).

[8] Cf., entre outras fontes, Christopher Hill, O mundo de ponta-cabeça, São Paulo, 1987, p. 393.

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