1996

Sade: o crime entre amigos

por Eliane Robert Moraes

Resumo

Sade escreveu As 120 jornadas de Sodoma na prisão da Bastilha, em 1785. Um grupo seleto de libertinos se reúne num castelo para praticar “todas as paixões que existem na face da Terra”. Cada mês é dedicado a uma paixão e cada dia a cinco de suas modalidades. Ao todo, 600 paixões são servidas como num “magnífico banquete”. Essa organização do prazer – com regras e protocolos, refinamento, medida e desmedida, série de provas iniciáticas – não aparece apenas na obra de Sade, mas na experiência erótica de muitos de seus contemporâneos. Thomas de Quincey indica a existência de confrarias semelhantes na Inglaterra desde a fundação da franco-maçonaria, na passagem do século XVII ao XVIII. Na França, havia mais de 100 “sociedades de amor” no tempo de Sade. Usando um vocabulário secreto com termos da marinha, elas buscavam alcançar a “Ilha da Felicidade” através de cuidadosas “manobras” até chegar ao “porto seguro”. Mas a lógica desse sistema obedece a um princípio paradoxal em Sade: se o universo do deboche é regrado e limpo, seus habitantes só acedem à sensualidade através do caos e da sujeira. A ordem é instaurada para ser pervertida, há equivalência entre criação e destruição. “Se a eternidade dos seres é impossível à natureza, sua destruição é por consequência uma de suas leis” (A filosofia na alcova). Como mestre-de-cerimônias do prazer, Sade descreve lenta e minuciosamente a lógica da conduta libertina e ao mesmo tempo põe à prova as teses naturalistas dos filósofos de sua época.


Logo na introdução de seu primeiro livro, o marquês de Sade adverte sobre a leitura das páginas que se seguem:

E agora, amigo leitor, prepare seu coração e sua mente para a narrativa mais impura já escrita desde que o mundo existe, livro que não encontra paralelo entre os antigos ou entre os modernos. Imagine que todos os prazeres honestos ou prescritos por essa tola de quem você fala incessantemente sem conhecê-la, dando-lhe o nome de natureza, imagine, digo eu, que todos esses prazeres serão expressamente excluídos desta antologia, ou que, se porventura aqui aparecerem, estarão sempre acompanhados de um crime ou coloridos por alguma infâmia.[1]

A passagem pertence a Les 120 journées de Sodome, escrito no final de 1785, numa sombria cela da Bastilha. O livro é considerado uma espécie de “bíblia” das propostas de Sade: já no seu primeiro romance, portanto, o marquês apresenta toda a base sobre a qual edificará sua imensa obra. Mais que isso, porém, a própria estrutura do texto evidencia uma forma de ordenação que, além de estratégia literária, se constituiu também como fundamento do sistema de libertinagem por ele enunciado.

Sabemos no que consiste a “narrativa mais impura já escrita desde que o mundo existe”: quatro libertinos — os maiores e mais experientes devassos da França setecentista — associam-se para levar a termo o projeto de conhecer, representar e praticar “todas as paixões que existem na face da Terra”. Para tanto eles se deslocam para o longínquo castelo de Silling acompanhado de uma seleta comitiva, da qual fazem parte quatro prostitutas dos mais famosos bordéis de Paris, encarregadas de narrar a maior variedade de crimes jamais conhecida. O séquito inclui ainda outros 32 súditos, compondo uma diversidade de tipos humanos que vai dos mais belos e castos adolescentes a velhas doentes e de aspecto repugnante. Contando com as cozinheiras e outras jovens ligadas aos quatro amigos por parentesco estreito, a comitiva soma 46 pessoas.

A estadia no castelo é concebida com o maior rigor, obedecendo a estatutos e protocolos. Os 120 dias ali passados se organizam segundo um meticuloso princípio de progressão: cada mês é dedicado a uma classe de paixão — simples, complexas, criminosas e assassinas —, e cada dia a cinco de suas modalidades. Com isso, ao longo da estadia são apresentadas seiscentas paixões, compondo uma sequência sistemática da qual decorre justamente a ideia de “antologia dos gostos”. Numa notável associação, Sade qualifica seu romance como a “história de um magnífico banquete” em que seiscentos pratos diferentes se oferecem ao paladar de seus convidados.

A metáfora do banquete é de certo pertinente, sobretudo por propor uma intensa rede de relações entre o excesso e o detalhe. As suntuosas refeições palacianas — sempre incluídas no cardápio dos deleites libertinos — organizam-se a partir de uma rigorosa combinação entre a abundância dos serviços e a delicadeza dos pratos.[2] Assim, da mesma forma como o banquete harmoniza o refinamento do pormenor gastronômico e as prodigiosas quantidades de alimentos colocadas à disposição de seus convivas, a libertinagem de Sade opera uma síntese entre medida e desmedida.

Ainda na introdução das 120 journées, ao apresentar sua antologia o marquês adverte mais uma vez o leitor:

Estude com cuidado a paixão que à primeira vista parece assemelhar-se completamente a outra e verá que, por menor que seja, existe uma diferença, e nela residem precisamente este refinamento e este toque que distinguem e caracterizam o gênero de libertinagem sobre o qual se discorre aqui.[3]

Ora, é justamente nessa tópica do refinamento que o sistema sadiano revela sua particularidade: lançando mão do princípio da progressão, Sade procede a uma organização do prazer que lhe permite harmonizar as “extravagâncias da luxúria” e a diversidade dos detalhes, ampliando as possibilidades da libertinagem.

Tal procedimento assume um caráter exemplar na Sociedade dos Amigos do Crime, uma confraria dedicada exclusivamente aos “encantos do deboche”. Sua descrição encontra-se em Histoire de Juliette, romance que narra, também de forma lenta e progressiva, a ascensão da personagem na carreira da libertinagem. No percurso ascendente de Juliette, destaca-se sua admissão nesse clube secreto, efetivada somente depois da libertina submeter-se a uma série de provas com todos os protocolos que tal processo exige, como num ritual de iniciação.

Tudo começa com a apresentação dos estatutos da casa, que se inicia com uma advertência sobre o próprio nome da associação: “A Sociedade só se serve convencionalmente da palavra crime, mas declara não designar assim nenhuma espécie de ação, seja qual for”. Pelo contrário, plenamente convencida de que os homens são escravos das leis da natureza, a sociedade — “filha da Natureza” — aprova, legitima e considera como seus mais zelosos membros todos aqueles que se entregarem ao maior número possível “dessas ações vigorosas que os imbecis denominam crimes”, estando mesmo persuadida de que “só a resistência a tais ações é que poderia ser verdadeiramente chamada crime aos olhos da natureza”.[4]

Seguem-se inúmeros artigos que, de forma geral, explicitam o que a Sociedade entende por “ações vigorosas”. Entre tais preceitos estão o desprezo absoluto pela religião, a ostentação do ateísmo, o abandono total do cumprimento das leis sociais — notadamente as que se referem ao tabu do incesto —, e sobretudo a prática sistemática de todos os crimes, como reza o quadragésimo artigo: “O ócio, a liberdade, a impiedade, a crápula, todos os excessos da libertinagem, do deboche, da gula, de tudo aquilo que — em uma só palavra — se chama sujeira da luxúria, reinarão soberanamente nessa assembleia”.[5] Como consequência, o suplício, a tortura, o roubo e o assassinato são efetivamente incentivados, e os membros que deixarem de observar essa regra serão sumariamente afastados da associação.
Passados os protocolos de apresentação, Juliette é desnudada e exposta aos olhos de todos os membros da Sociedade. Nessa condição, ela se submete ainda a um interrogatório diante da assembleia, num longo ato que termina com a libertina jurando “viver eternamente nos maiores excessos da libertinagem”, isto é, “praticar todas as ações luxuriantes, mesmo as mais execráveis”. Segue-se então uma orgia, que tem a neófita como centro das atenções lúbricas dos convivas: nesse momento, Juliette abandona-se a todo tipo de volúpia com os quatrocentos membros da Sociedade. Acompanhemos sua descrição:

Posso dizer que vi todos os quadros que a mais lasciva imaginação não poderia conceber em menos de vinte anos; ah! quantas posições voluptuosas…quantos caprichos extravagantes.., quanta variedade de gostos e inclinações! Oh, Deus!, disse a mim mesma: como a natureza é bela e como são deliciosas as paixões que nos oferece! Mas algo extraordinário que eu não deixava de notar é que, com exceção das palavras necessárias aos atos libertinos, os gritos de prazer e muitas blasfêmias, podia-se ouvir o vôo de uma mosca. A maior ordem reinava no meio de tudo isso. As ações mais decentes não se fariam com maior calma. E, por essa circunstância, pude me convencer facilmente de que o que o homem mais respeita no mundo são suas paixões.[6]

Reencontramos nessa passagem a importante tópica sadiana que poderíamos chamar de “a ordem da desordem”. Sem dúvida, a cena descrita por Juliette coloca o leitor diante de um paradoxo: como é possível que, numa orgia entre quatrocentas pessoas, das mais lascivas que existem na face do universo, possa reinar a mais completa ordem? O que faz com que um local destinado à prática sistemática de todos os excessos deva ser tão silencioso a ponto de nele poder-se ouvir o vôo de uma mosca? E mais: que razões concorrem para que uma tal ordenação do desregramento se torne fundamental para o funcionamento do sistema sadiano?
Para responder a essas questões, é necessário lançar mão de pelo me­nos duas chaves de interpretação. A primeira delas encontra-se na história do Antigo Regime ou, mais precisamente, nas práticas da libertinagem testemunhadas no decorrer do século. Isso porque a noção de organização do prazer — ou de ordem da desordem — não está inscrita apenas nos textos de Sade, mas se faz presente de forma decisiva na experiência erótica de muitos de seus contemporâneos. Vejamos.

Ao tomar conhecimento dessas passagens de Histoire de Juliette, o leitor certamente se surpreende com a ideia de um clube clandestino dedicado aos excessos do deboche, creditando-a por completo à imaginação do autor. Contudo, o texto sadiano passa a exigir uma nova leitura quando cotejado com a história da libertinagem setecentista e a descoberta de que, no decorrer do período, existiram de fato inúmeras sociedades secretas destinadas ao prazer. Isso não significa que tais associações levavam a termo a mesma ordem de práticas que Sade descreverá na sua literária Sociedade dos Amigos do Crime; mas, sem dúvida, elas apontam para um tipo de sensibilidade com o qual a ficção sadiana mantém intensa relação.

Thomas de Quincey, em Do assassinato como uma das belas-artes, indica a existência de diversos clubes desse tipo na Inglaterra: a Sociedade para a Promoção do Vício, o Clube do Fogo no Inferno, ou a Sociedade para a Supressão da Virtude. Se, a princípio, essas organizações parecem ser tão fictícias quanto a Sociedade dos Connaisseurs em Assassinato, cujas conferências De Quincey apresenta em seu livro, os registros do período vêm provar o contrário. Essas entidades existiram de fato, e, segundo os historiadores, eram frequentadas pelos homens mais célebres da passagem do século XVIII para o XIX.

A famosa Sociedade para a Supressão da Virtude deve ter sido criada como reação à Sociedade para a Supressão do Vício, entidade fundada em 1802 por um membro evangélico do Parlamento inglês, que atuou combativamente durante décadas e obteve razoável êxito em seus propósitos. O Clube do Fogo no Inferno, também conhecido como “mosteiro de Medmenham”, era anfitrionado pelo excêntrico sir Francis Dashwood, aristocrata culto e devasso, que reunia seus “monges” pelo menos uma vez por semana. Os encontros destinavam-se à “sagrada leitura” de livros obscenos, especialmente aqueles proibidos pela rigorosa censura britânica e condenados à fogueira. Atividade semelhante era realizada pela Antiquíssima e Poderosíssima Ordem da Bênção e Recreio dos Mendigos, outra confraria de libertinos que, durante mais de cem anos (de 1732 a 1836), reuniu seus membros em saraus eróticos voltados para “leituras encenadas” de textos licenciosos.

Entre os títulos que figuravam no índex das obras imorais apreciadas por esses “espíritos livres” encontravam-se o Almanaque do homem libertino e o Guia Harris das damas, verdadeiros catálogos sobre a prostituição londrina que, frequentemente renovados, circularam durante muito tempo pelas mãos dos rebentos mais tradicionais da aristocracia britânica. Em 1779, o próprio sir Francis Dashwood publicou clandestinamente um guia satírico dos antros noturnos de Londres, atribuindo sua autoria a um “monge da Ordem de São Francisco”. O título da obra não deixa dúvidas a respeito dos gostos desses experts:

\Divertimentos noturnos: ou a história de King’s Place e outros conventilhos modernos, contendo seus mistérios, devoções e sacrifícios — compreendendo também o estado antigo e atual da vida galante promíscua: com os retratos das mais célebres mulheres da vida e cortesãs deste período.[7]

É, porém, na França setecentista que as associações libertinas — também chamadas de “templos do amor” — apareceram em maior número e com maior vigor. Essas confrarias têm ligação direta com a franco-maçonaria, fundada na Inglaterra na passagem do século XVII para o XVIII, surgindo na França por volta de 1720. Sendo a maçonaria uma sociedade secreta restrita aos homens, muitos de seus membros acabaram por se rebelar contra essa restrição: já em 1736 o magistrado Bertin de Rocheret redigiu uma Apologia da antiga, nobre e venerável sociedade dos franco-maçons sobre o belo sexo, recomendando a criação de ordens mistas. Sua proposta expressava bem mais que um desejo particular.

Segundo os historiadores, havia mais de cem “sociedades de amor” à disposição dos contemporâneos do marquês de Sade, sendo que duas delas ficaram particularmente conhecidas na época: a Ordem da Felicidade e a Ordem Hermafrodita. Uma Apologia dos clubes galantes, escrita por um entusiasta, conta que essas ordens eram “compostas de cavalheiros e damas, representando exatamente o contrário da franco-maçonaria, pois, ao invés de assustar os recém-chegados com provas um tanto rigorosas, esses clubes acolhiam os novos membros da forma mais agradável possível, lançando-os a todo tipo de prazeres. A Ordem da Felicidade se esforçava ao máximo para merecer seu nome”. Esforço esse que um comissário de polícia registrou numa nota de 1744 com agudo poder de síntese: “Cinco ou seis senhores manifestaram o desejo de filiar certas dançarinas do Opéra a uma tal Ordem da Felicidade, cujo segredo consiste em três coisas: beber bem, comer bem etc.”[8]

A Ordem da Felicidade dedicava-se “exclusivamente à galanteria, talvez um pouco erótica, mas sem excessiva licenciosidade” enquanto a Ordem Hermafrodita se apresentava como “sociedade devotada à realização de santas orgias e a todas as formas de deboche”. Há, contudo, notáveis semelhanças entre ambas, o que nos possibilita imaginar as atividades a que se entregavam os libertinos do Antigo Regime. O segredo e a clandestinidade desempenhavam o importante papel de incitar a imaginação no sentido de aprimorar os requintes dessa aventura.

Escondendo seus escândalos sob um vocabulário secreto; formado por termos da marinha, tais sociedades sustentavam que seu objetivo último era alcançar a “Ilha da Felicidade”, um lugar paradisíaco onde aportavam “esquadras” compostas de “navios” (homens) e “fragatas” (mulheres). Essa ilha era associada ao próprio Éden, perdido na origem dos tempos, quando o homem transgrediu as leis divinas, e enfim reconquistado “depois de tantos séculos de trabalho para expiar o crime de nossos antepassados”. Assim, todos concordavam que “o primeiro cavalheiro da Ordem foi Adão, e a primeira dama, Eva”.

Os aspirantes eram submetidos a “provas de navegação” antes de abor­dar a maravilhosa ilha. Para isso, era fornecido aos novos marinheiros um minucioso formulário informando os requintes exigidos pelo “Cerimonial de Navegação”, embora se esperasse que já tivessem frequentado alguma “Escola de Marinha” (bordel). O domínio do jargão marítimo tornava-se essencial para o bom desempenho desses libertinos.

A palavra mar, designando o amor, deixava claro que os viajantes não estavam protegidos das turbulências e incertezas que caracterizam as aventuras perigosas. Por essa razão, o marinheiro deveria estar sempre atento e proceder a um número certo de “manobras” até chegar ao “porto seguro”, isto é, alcançar o objeto desejado. Os pilotos eram alertados sobre os perigos de “navegar contra o vento”, quando se tornava inevitável “forçar a vela”, correndo ainda o risco de “cabotar”. Em caso de “bruma” (ciúme), não sendo possível um “reboque” (conquista), o melhor a fazer era “virar de bordo” e tentar outro “embarque”. Mas, uma vez ancorado no porto, com o “bota-fogo” em mãos, o piloto podia enfim “soltar o leme” e deixá-lo agir livremente…

Essas descrições talvez já sejam suficientes para indicar a que níveis chegava a organização do prazer entre os libertinos do século XVIII. Acreditando que a ritualização das práticas eróticas contribuía para a ampliação dos prazeres, as sociedades de amor fundavam-se sobre um princípio de ordenação gradativa das atividades lúbricas. A própria ideia de associação ou de clube aponta claramente para a observância de regras e proto­colos que, nesse caso, se evidencia no emprego de um jargão específico.

Tal capítulo da história da libertinagem confirma que o texto de Sade trama relações estreitas com a sensibilidade vivida por seus contemporâneos. A Sociedade dos Amigos do Crime representa, nesse sentido, uma recriação literária de fatos históricos, procedimento aliás que o marquês reivindica inúmeras vezes ao longo de sua obra. Ainda que se coloque ao lado da ficção, Sade recorre insistentemente a exemplos da história, muitas vezes retirados de sua época: é o caso, por exemplo, da alusão em Justine à Ordre de Cythère — clube clandestino da primeira metade do sécu­lo XVIII em Paris—, ou, em La philosophie dans le boudoir, ao duque de Charolais — conhecido libertino da corte francesa, na época do regente Philippe d’Orléans. Vale lembrar ainda que as quatro prostitutas encarre­gadas de relatar as seiscentas paixões das 120 journées são denominadas precisamente de “historiadoras”.

Se o tema da ordenação do prazer encontra seus fundamentos na história setecentista, a relevância que adquire na ficção sadiana não se esgota nessas matrizes. Para compreender seu papel na libertinagem de Sade é necessário explorarmos a lógica interior desse sistema, motivada por um princípio complexo e paradoxal: se, de um lado, o universo do deboche é regrado e limpo, de outro, seus habitantes só acedem à sensualidade através do caos e da sujeira.

As cenas sadianas obedecem a um sistema ritual com regras cujo rigor é proporcional a seu rompimento futuro. A ordem da libertinagem, a princípio, parece ser instaurada apenas para ser pervertida: nos textos de Sade, como observa Noelle Châtelet, “a beleza das vítimas, a elegância das vestimentas, o refinamento da mesa, só existem para serem maculados, espezinhados, devastados”.[9] Contudo, não devemos ver aí apenas uma simples alternância entre ordem e desordem: a prática e o discurso do deboche recusam a exclusividade desse movimento pendular, indicando uma simultaneidade de ações que se revela numa singular convivência entre a regra e o caos.
Para fundamentar tal paradoxo, Sade lança mão das teses filosóficas dos “naturalistas modernos”, tão em voga entre os enciclopedistas.[10] Considerando o crime um “agente do equilíbrio”, cujas forças destrutivas desempenham um papel tão fundamental junto às forças criadoras na manutenção da economia do universo, o devasso sadiano acredita que um mundo totalmente virtuoso não conseguiria subsistir um minuto; a sábia mão da natureza fez nascer a ordem da desordem, e sem desordem ela não chegaria a nada: tal é o equilíbrio profundo que mantém o curso dos astros, sustentando-os nas imensas planícies do espaço, produzindo seu movimento periódico.[11]
Disso resulta outro princípio fundamental do sistema de Sade: a equivalência entre criação e destruição. O sacrificador, diz um personagem da Nouvelle Justine, seja qual for o objeto que aniquila, não comete maior crueldade que o proprietário de uma granja que mata seu porco. O argumento é reiterado pelo papa libertino de Juliette, ao afirmar que um pai, um irmão ou um amigo não é, aos olhos da natureza, mais caro nem mais precioso que o último verme que rasteja na superfície do globo. “Ora”, argumenta Dolmancé no discurso de La philosophie dans le boudoir,

o homem custa alguma coisa para a natureza? E, supondo que possa custar, custa mais que um macaco ou que um elefante? Vou além: quais são as matérias-primas da natureza? De que se compõem os seres que nascem? Os três elementos que os formam não resultam da primitiva destruição de outros corpos? Se todos fossem eternos, não se tornaria impossível à natureza a criação de novos indivíduos? Se a eternidade dos seres é impossível à natureza, sua destruição é por consequência uma de suas leis.[12]

A natureza, continua o libertino, nada poderia criar se não se valesse dessas “massas de destruição” que a morte lhe prepara: o que chamamos de

fim da vida animal não é um fim real, mas simples transmutação, que tem por base o perpétuo movimento, essência verdadeira da matéria, que todos os filósofos modernos consideram como uma de suas primeiras leis. A morte, segundo esses princípios irrefutáveis, representa tão-somente uma transformação, uma passagem imperceptível de uma existência a outra…[13]

E o crime, por conseguinte, nada mais é que a manutenção do equilíbrio da ordem natural.

Há, portanto, uma importante noção de equilíbrio orientando o sistema libertino, que concebe pólos antagônicos apenas como efeitos de um profundo jogo de proporções, sem o qual o universo não poderia ao menos existir. As teses sobre as “modificações da matéria”, as “transformações de um estado em outro”, o “eterno princípio do movimento” e outras máximas da filosofia biológica do século XVIII permitem ao devasso concluir que, se ordem e desordem se contêm mutuamente, o crime equivale à virtude. Daí também o argumento de que mesmo o mais desregrado excesso pode ser objeto de ordenação.

A particularidade do personagem sadiano, contudo, está no fato dele não submeter jamais esse controle aos parâmetros sociais da moral, colocando-o unicamente a serviço das volúpias do vício. Isso permite ao devasso observar regras sem obedecer as exigências da moderação, mas também entregar-se ao desregramento observando normas. Não há ativi­dade do deboche que não seja, durante seu curso, orientada: Roger Vailland identifica o libertino com um metteur-en-scéne, a aplicar um rigor sempre progressivo à pesquisa do prazer; Barthes associa-o a um mestre-de-cerimônias, comparando-o ainda a um maestro que dirige seus companheiros tocando ao lado deles. As orgias são sempre comandadas e calculadas, submetendo-se a sucessivas reordenações, como se não fosse possível confiar apenas no acaso para garantir a manutenção do crime entre amigos. Através da gradação da volúpia, a ordem produz a desordem, assegurando o delicado equilíbrio entre satisfação e insaciedade no mundo do deboche. É justamente nesse particular que se distingue o gênero de libertinagem sobre o qual Sade discorre: na prodigiosa variedade de crimes que ele oferece ao leitor, aquilo que os não-iniciados podem considerar insignificante constitui-se no autêntico “requinte do vício” para os verdadeiros libertinos. Assim, no sistema sadiano a ordem funciona efetivamente como produtora do excesso.

A organização do prazer permitirá, portanto, a plena realização do erotismo — ao mesmo tempo refinado e excessivo — dos devassos sadianos, subordinando sua insaciedade ao detalhe.

Mas, ao descrever lenta e minuciosamente a progressão das diferenças do crime, o marquês garante não só a coerência de seus personagens: explica também a lógica que determina a conduta dos libertinos setecentistas, ao mesmo tempo em que coloca à prova as teses naturalistas dos filósofos de sua época. Com isso, Sade oferece a seu leitor o privilégio de testemunhar um desses raros momentos do pensamento em que uma dimensão histórica e um princípio filosófico ganham expressão na literatura.

Notas

[1] Sade, Les 120 journées de Sodome, Oeuvres, Paris, Pauvert, 1986, pp. 78-9.

[2] Desenvolvemos o tema em Sade — a felicidade libertina, Rio de Janeiro, Imago, 1994, capítulo IV, “O banquete”.

[3] Sade, op. cit., pp. 78-9.

[4] Sade, Histoire de Juliette, Oeuvres, Paris, Pauvert, 1987, t. 8, p. 439.

[5] Idem, ibidem, p. 445.

[6] Idem, ibidem, p. 458.

[7] Cf. Alan H. Walton, introdução e notas a Justine, or the misfortunes of virtue, Londres, Corgi Books, 1964; Peter Wagner, apresentação e notas a Fanny Hill — memórias de uma mulher de prazer, São Paulo, Estação Liberdade, 1989; Montgomery Hyde, História de la pornografia, Buenos Aires, Pléyade, 1973, pp. 190-5; e Eliane Robert Moraes, Marquês de Sade — um libertino no salão dos filósofos, São Paulo, EDUC, 1992, pp. 35-50.

[8] Cf. J.-L. Quoi-Bodin, “Autour de deux sociétés secretes libertines sous Louis xv: L’Ordre de la Felicité et L’Ordre Hermaphrodite”. Revue Historique, n° 559, Paris, PUF, jul-set. 1986. As descrições que se seguem sobre as duas sociedades secretas francesas têm por base este artigo histórico.

[9] Noelle Châtelet, “Le libertin à table”. In Sade: écrire la crise, Paris, Pierre Belfond, 1983, p. 72.

[10] Sobre as relações do pensamento de Sade com a filosofia biológica do século xviii; ver Annie Le Brun, Soudain un bloc d’abime, Sade, Paris, Pauvert, 1986, primeira parte, capítulos II e III; Jean Deprun, “Sade et la philosophic biologique de son temps”, in Le marquis de Sade, Paris, Armand Colin, 1968; e Luiz Roberto Monzani, Desejo e prazer na idade moderna, Campinas, Editora da Unicamp, 1995.

[11] Sade, op. cit., p. 206.

[12] Sade, “La philosophie dans le boudoir”, in Oeuvres complètes, Paris, Pauvert, 1986, t. 3, p. 526.

[13] Idem, ibidem, pp. 526-7.

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