Sardanapalo
Resumo
Se realmente existiu ou se foi, assim como a inscrição gravada em sua suposta tumba, uma invenção dos gregos, a imagem que ficou de Sardanapalo certamente não corresponde a Assurbanipal, nome do último soberano de Nínive no apogeu do Império assírio.
Não existem mais traços da famosa tumba mas os historiadores da arte do antigo Oriente acreditam que o monumento realmente existiu e era uma estátua em homenagem a Assurbanipal, representado numa atitude contemplativa. Porém, os gregos nada souberam de sua autêntica grandeza e o substituíram por um ser de ficção.
Aristóteles deve ter ensinado ao jovem Alexandre, o Grande o que um futuro rei como ele deveria pensar desse Sardanapalo e da inscrição em seu epitáfio: Olhai para mim [nela dizia Sardanapalo], sou cinzas, e, entretanto, fui o rei da grande Nínive. Tudo o que possuo agora são comilanças, bebedeiras e trepadas de que gozei durante toda minha vida. Todo o resto, tesouros, poder, eu perdi. Sim, aí está, para os homens, a verdadeira sabedoria.
Essas palavras citadas num fragmento do Protréptico acompanhadas do seguinte comentário: Epitáfio digno de um animal, de um boi, mais que de um rei. Pois é absurda estupidez pretender gozar, morto, de coisas que, vivo, proporcionam apenas um prazer passageiro. Esse não é, evidentemente, o caso de Alexandre. A vida que escolheu é a de um homem de ação, bios politikós.
Aristóteles também disse em sua Ética a Nicômaco, que “muitos daqueles que pertencem à classe dirigente têm os gostos de um Sardanapalo”. Ter os gostos de um Sardanapalo é moralmente condenável e politicamente perigoso, quando se está no poder. Esse gênero de vida, além de fazer a infelicidade do povo, é um suicídio para o déspota.
Temos duas versões diferentes sobre as circunstâncias da morte de Sardanapalo. Em ambas, Sardanapalo é apresentado com traços de um déspota riquíssimo e lascivo. De acordo com uma delas, a besta abjeta, incapaz de opor a menor resistência, foi abatida imediatamente por Arbaces. Em outra versão, que pode ser lida no livro II da Biblioteca histórica, de Diodoro de Sicília, Sardanapalo não se deixa apanhar e resiste com vigor durante três anos e, ” não querendo cair em mãos inimigas, mandou construir no interior do palácio uma pira de altura desmedida, sobre a qual foram dispostos seu ouro, prata e vestes reais. Em seguida, trancou num quarto, preparado no meio da pira, suas mulheres, com seus eunucos, e abandonou tudo, o palácio e ele próprio, às chamas.
Alexandre, o Grande que devia conhecer a versão de Sardanapalo contada por Aristóteles, morreu antes de completar seu sonho de domínio da Ásia. Identificando-se ao Rei dos Reis, Alexandre gostava de brincar de déspota asiático. Tomava-se por um deus. E morreu não exatamente um Sardanapalo. Um Sardanapalo em potência mas ainda não em ato.
Alexandre e Don Juan (um verdadeiro Sardanapalo, nos dizeres de seu criado Sganarelle) têm muito em comum. Ambos procuraram seu prazer, e acabaram o encontrando. De uma maneira muito aristotélica. Eles não agiram em vista do prazer, eles tiveram prazer ao agir, realizando boas ou más ações. Pois, boas ou más na opinião dos outros, eles as realizaram bem. Sonharam, é verdade, mas não tomam seu sonho por realidade. Eles o realizaram, como homens conscientes de todo o poder do logos, em todos os sentidos da palavra.
Eles não tiveram o mesmo desejo quanto aos objetos do desejo. Mas representaram o próprio desejo. E o próprio desejo, este desejo que fez Alexandre cavalgar de um ponto a outro, e Dom Juan de uma mulher a outra, é o desejo do outro.
Ao Escorpião
Um dia do ano 333 a.C., no início de um fabuloso caminho que deveria levá-lo, em direção ao Oriente, à conquista da Ásia — e do mundo, se tivesse conseguido realizar seu sonho —, Alexandre, o Grande, em perseguição aos exércitos de Dario, armou acampamento diante das portas de Anquial, uma cidade na Cilícia, no litoral do mar Jônico, a sudoeste da atual Turquia.
Ali, não longe das fortificações, erguia-se um monumento funerário, que levava uma inscrição gravada sobre pedra em caracteres assírios, sobre a qual havia uma estátua. Segundo Aristóbulo, um dos generais de Alexandre, a estátua representava uma personagem em pé, com o braço direito erguido a meia altura e que fazia, com a mão, um gesto estranho, “como se fosse dar um piparote”. Mas o significado desse gesto fica claro quando se decifram as inscrições:
Eu, Sardanapalo, filho de Anacindaraxes [lia-se] construí Anquial e Tarso em um dia. Comi, bebi, trepei. Todo o resto não vale isto.
Esse “isto” certamente se refere, segundo Aristóbulo, ao gesto. Esse gesto — isto salta aos olhos — só pode ser interpretado como um grosseiro gesto de desdém, uma espécie de bras d’honneur, ousaria dizer, o que vocês, brasileiros, chamariam de “banana”.
Hoje, já não há mais traço dessa pretensa “tumba de Sardanapalo”. Mas o monumento certamente existiu. Os historiadores da arte do antigo Oriente acreditam que se tratava de uma estátua de um rei assírio, representado numa atitude contemplativa, adorando alguma divindade. Pois o gesto em questão lembra bastante, asseguram, um gesto característico de preces.
Se é esse o caso, o “isto” do epitáfio estaria revestido de um significado exatamente oposto ao que lhe dá Aristóbulo. E a tradução grega do texto assírio seria um enorme contra-senso, se é que se trata de uma tradução.
Mas não é uma tradução. Ao contrário, tudo leva a crer que esse epitáfio, pretensamente descoberto em Anquial, é apenas uma invenção, um enunciado propositadamente criado pelos gregos e tão fictício quanto a personagem que o enuncia. “Eu, Sardanapalo (…)” não remete a ninguém, senão a este homem de pedra, o homem da banana, tal qual o imaginavam os conquistadores conduzidos por Alexandre.
Pode-se certamente dizer que a palavra Sardanapalo é uma deformação grega de Assurbanipal, nome do último soberano de Nínive. Monarca cultivado e guerreiro intrépido, seu longo reinado (de 668 a 662 a.C.) marcou o apogeu do Império Assírio. Mas o chamado Sardanapalo é bem mais do que um Assurbanipal deformado, e bastante diferente. Com efeito, não apenas os gregos nada souberam (ou não quiseram saber) da autêntica grandeza de Assurbanipal, como também o substituíram, devido a necessidades que lhes são próprias, por um ser de ficção, saído de uma lenda.
É deste Sardanapalo que eu quero lhes falar hoje: do suposto sujeito de um epitáfio escandaloso, desse soberano bárbaro, petrificado como exemplo para os outros, desse fantasma — fantasma? — cuja estátua, um dia, saudou Alexandre, no caminho real que o levava a seu sonho.
Se houve encontro entre Alexandre e a estátua de Sardanapalo, imagino que tenha sido breve; mal lançara um olhar de desprezo para o gesto e as palavras de desdém do outro, e o jovem herói teve de voltar para sua tenda. Para dormir? Duvido: Alexandre não perdia seu tempo dormindo. Ele deve ter passado a noite em claro, preparando o plano para sua próxima campanha contra Dario. Ou talvez (ele trouxera uma verdadeira biblioteca em sua bagagem), relendo Os persas, de Ésquilo, ou um dos dois Édipo, de Sófocles. Ou seu Homero, que não deixava a cabeceira de sua cama, ao lado do punhal. Ou, melhor ainda (a ocasião era propícia), meditando sobre algumas páginas de Aristóteles, seu velho preceptor, seu mestre venerado, do qual (segundo Plutarco) gostava de dizer que amava como a seu próprio pai, Filipe, pois, se “de um ele aprendeu a viver, do outro aprendeu a bem-viver”.
Aristóteles, sem dúvida nenhuma, ensinara ao jovem Alexandre o que um futuro rei como ele deveria pensar desse Sardanapalo e da inscrição em seu epitáfio. Essa que acabo de ler, aliás, não é a única versão. Há pelo menos outra, que circulava no mundo grego bem antes de 333 a.C.
Olhai para mim [nela dizia Sardanapalo], sou cinzas, e, entretanto, fui o rei da grande Nínive. Tudo o que possuo agora são comilanças, bebedeiras e trepadas de que gozei durante toda minha vida. Todo o resto, tesouros, poder, eu perdi. Sim, aí está, para os homens, a verdadeira sabedoria.
Essas palavras estão citadas num fragmento do Protréptico (obra de juventude de Aristóteles, composta em 350 a.C.). Estão acompanhadas deste comentário:
Epitáfio digno de um animal, de um boi, mais que de um rei. Pois é absurda estupidez pretender gozar, morto, de coisas que, vivo, proporcionam apenas um prazer passageiro.
O mesmo julgamento de desprezo se encontra no início da Ética a Eudemo, obra mais ou menos contemporânea do Protréptico. Nela, Aristóteles lembra [1] a distinção clássica entre os três gêneros de vida: bíos theoretikós, a vida filosófica ou contemplativa, que visa ao estudo da verdade; bíos politikós, vida do homem de ação, que leva à busca de glória; bíos akólastos, que comumente se traduz por “vida de gozos”, entendendo gozo como sinônimo de prazer. Mas isso é uma interpretação, não uma tradução. Sem dúvida, Bíos akólastos designa a vida do “homem de prazeres”. Mas o prazer não é suficiente para defini-la, pois ele não está excluído dos dois outros tipos de vida. Com efeito, o adjetivo grego akólastos deriva, com um alfa privativo, do verbo kolázein, cujo primeiro sentido é “talhar”, “podar uma árvore inculta e selvagem”. Por extensão, o verbo acabou significando “disciplinar”, “educar”, “censurar”, “castigar”. Ou, se se quiser, “fazer passar da natureza à cultura”, “sujeitar à lei”, ou seja, para um grego, “submeter à ordem do lógos” (linguagem, razão, cálculo). Uma vida akólastos é, portanto, propriamente, uma vida sem lei (alógos). Mas não sem princípio: seu único princípio é, eu diria, o princípio do prazer.
Se nós podemos, por comodidade, continuar a traduzir bíos akólastos por “vida de gozos”, lembremo-nos de que gozo designa aqui o prazer, enquanto visado por si mesmo e apenas por si, fora da lei. Fora desta lei que distingue homem, enquanto tal, do resto dos seres vivos.
Ora, pergunta Aristóteles, qual desses três tipos de vida pode trazer mais felicidade ao homem? Qual ele deve escolher? Qual oferece as melhores razões para viver? Ou, mais radicalmente: “Por que é melhor nascer do que nunca ter vivido?”.
A esse “por quê?”, Anaxágoras, por sua parte, respondeu: “para contemplar [theorésai] o Céu e a Ordem do Cosmo”. Mas a maior parte das pessoas, constata Aristóteles, são de outra opinião. Convencidas de que a verdadeira felicidade está na vida akólastos, invejam a sorte de um Sardanapalo. Pobres ingênuos! Como sustentar, seriamente, que Sardanapalo seja um homem feliz? Em .primeiro lugar, ele nem sequer é um homem. Escolher uma vida como a sua é negar toda distinção entre animal e homem. “Desse jeito, o boi que os egípcios adoram sob o nome de Ápis poderia ser considerado mais feliz que muitos monarcas.” E o homem digno deste nome não pode, razoavelmente, pensar que o cúmulo da felicidade seja passar a vida ruminando como um boi! De resto, ele tampouco escolheria viver apenas pelo prazer de dormir, ou seja, vegetar: “com efeito, qual é a diferença entre dormir um sono ininterrupto, do primeiro ao último dia, e viver como uma planta?”. Como uma planta ou como um feto, prossegue Aristóteles,
uma vez que os fetos parecem participar da vida dessa maneira. Pois, desde a sua primeira concepção, no seio materno, passam todo o seu tempo a crescer, mas também a dormir […]
Ruminar como um boi, vegetar como uma planta, dormir como um feto: eis com que sonham aqueles que julgam Sardanapalo feliz…
Esse não é, evidentemente, o caso de Alexandre. Ele, ele não é um homem que dorme, nem que volta para trás, mesmo que adore sua mãe. Ao contrário, apaixonado pelas conquistas, caminha para diante e salta de vitória em vitória. A vida que escolheu é a de um homem de ação, bios politikós. O que não exclui, quando suas atividades políticas lhe permitem, algum lazer, filosofar por algumas horas. É o que ele faz em sua tenda, imagino, nessa noite de 333 a.C., diante das fortificações de Anquial. Enquanto seus soldados dormem, ele vela. Encanta-se com a Iliada, ou medita seu Aristóteles.
Pode ser até que tenha em mãos a Ética a Nicômaco, que seu velho preceptor acaba de compor em Atenas, onde se estabeleceu depois de sua passagem pela corte macedônia. Talvez, ao ler a passagem[2] em que, novamente, se condena a “vida de gozos”, Alexandre se tenha demorado um instante sobre estas linhas:
[…] em verdade, a multidão parece ser de uma baixeza digna de um escravo, ao escolher esse gênero de vida bestial. Mas ela encontra uma desculpa no fato de muitos daqueles que pertencem à classe dirigente terem os mesmos gostos de um Sardanapalo,
declara Aristóteles, que, ao mesmo tempo, sem ousar imaginar que…Aristóteles, Aristóteles! E então? “O que quer que possa dizer Aristóteles e toda a filosofia […]”, declara, por sua vez, Sganarelle, no momento em que a cortina se levanta (em 1665), no Dom Juan, de Molière,
[…] não há nada como o tabaco: é a paixão da gente de bem, e quem vive sem tabaco não é digno de viver. Não apenas ele reconforta e purga os cérebros humanos, mas também instrui almas em virtude, e, com ele, aprendemos a ser homens de bem. Será que vós não vedes, quando o experimentamos, de que maneira gentil o usamos com todos, e como nos alegramos a dá-lo, à esquerda e à direita, a todos os lados em que nos encontramos? Sequer esperamos que no-lo peçam, e corremos, antecipando-nos ao desejo das pessoas.
Essa apologia do tabaco, Sganarelle a recita para Gusman, o escudeiro de Elvire — a infeliz Elvire que Dom Juan acaba de seduzir e desposar para logo abandoná-la, como a tantas outras, e lançar-se numa nova conquista. Oh! Não é para esse grande senhor, que pertence, enquanto nobre, à fina flor da classe dirigente, que Sganarelle ofereceria tabaco; ele sabe muito bem que seu mestre não dá valor a sua sábia e sã ética de fumador de cachimbo. Seu prazer é o prazer do amor, ou melhor, o amor do prazer, e de um prazer tal que um único objeto não poderia bastar. Ele se justificará longamente por isso, a partir da próxima cena: “Todo o prazer do amor está na mudança”, declara a seu valete, que, timidamente, acaba de aconselhar-lhe constância. Constância, a ele, Dom Juan! Mas fazer-se de fiel seria mostrar-se infiel a si mesmo, seria ceder em seu desejo de desejar mais, de desejar sempre, de desejar sem fim! Isso não seria viver, seria adormecer num sono de morto. Uma vez experimentado o prazer de possuir o objeto desejado, explica Dom Juan:
[…] nada mais há a dizer nem a desejar: tudo o que há de belo na paixão acaba e nós adormecemos na tranquilidade de um amor assim, se um objeto novo não vier despertar nossos desejos, e apresentar a nosso coração os atraentes charmes de uma conquista ainda por fazer (…). Nesse ponto, tenho a ambição dos conquistadores, que saltam perpetuamente de vitória em vitória e não podem decidir limitar seus desejos. Nada há que possa pôr fim à impetuosidade de meus desejos: sinto-me como um coração a amar toda a terra; e, como Alexandre, desejaria que houvesse outros mundos para a eles poder estender minhas conquistas amorosas.
Ser um Alexandre em seu gênero: esse é o ideal de Dom Juan. Mas a verdade é outra, aos olhos de seu valete, covarde demais para cuspir a verdade na cara de seu mestre, Sganarelle preferiu confiá-la a Gusman:
Eu te digo, internos, falava-lhe há pouco, que tu vês em Dom Juan, meu mestre, o maior celerado que jamais existiu sobre a terra, um homem furioso, um cão, um diabo, um turco, um herético, que não crê no Céu, nem no Inferno, nem em lobisomem, que passa a vida como um animal, um porco epicurista, um verdadeiro Sardanapalo.
Um verdadeiro Sardanapalo: eis, para o valete, o mestre completamente insultado. E Sganarelle bem que tentou tratar Dom Juan por todos os nomes, e aquele que encerra a lista e os resume todos — a fermata final dessa gama dissonante — é este: Sardanapalo.
Poderíamos decerto discorrer longamente sobre a surpreendente associação estabelecida entre Epicuro e Sardanapalo. Sem esquecer o turco — aliás, Maomé —, terceiro ladrão de um trio infernal, ao menos na imaginação da “gente de bem” da época que Sganarelle aqui representa. O falso profeta e seu paraíso de huris, o filósofo pagão e suas porcas lições, o déspota oriental e seu harém lascivo são, em 1665, inseparáveis. Assim como formam um sistema a religião, a moral e a política, que cada um deles, para a dóxa, encarna.
Mas fiquemos em Sardanapalo. Em 1665, já faz muito tempo que esse nome entrou para a língua francesa, em que se o utiliza (por antonomásia, diriam os retóricos) como um nome comum. Tanto que Sganarelle pode empregá-lo para acabar sua qualificação, ou desqualificar seu mestre, sem arriscar-se a parecer pedante, para Gusman, ou para o público. Todos compreenderão o sentido infame deste “verdadeiro Sardanapalo” aplicado a Dom Juan — mesmo que ninguém, e Sganarelle é o primeiro, saiba exatamente quem foi Sardanapalo.
Mas o que importa a Sganarelle? Para ele, Dom Juan, esse auto-intitulado Alexandre, basta para encarnar completamente a verdadeira verdade de Sardanapalo. Sardanapalo é seu mestre, um mestre que ele tem a infelicidade de servir, infeliz (mas é preciso viver…). Mas ele espera não ter de servi-lo por muito tempo.
O Céu não tardará a satisfazer seu desejo. Vocês conhecem a história: a cena do cemitério, no fim do terceiro ato, em que o acaso de uma batalha leva Dom Juan até uma tumba. E a estátua que ele aí encontra: a de um bom pai para sua filha, Elvire, que morreu assassinado por ele, Dom Juan. A estátua do comendador, que, apesar de ser de pedra, se anima e lhe faz um sinal, em silêncio. E que, para terminar, lhe estenderá a mão — uma mão de mestre que Dom Juan, sem temer, não hesitará em apertar. E então, de repente:
[…] ó Céus, que sinto? Um fogo invisível me faz arder, não suporto mais, e todo o meu corpo se torna um braseiro de chamas. Ah! …,
grita Dom Juan, desaparecendo de nossos olhares aturdidos. Pois, como nota aqui Molière,
o trovão cai, acompanhado de um forte barulho e de grandes raios, sobre Dom Juan; a terra se abre e o traga; grandes chamas elevam-se do lugar em que ele caiu.
Sem nada poder acrescentar a esse “Ah!…”, que continua ressoando por muito tempo depois da cena (talvez vindo de uma outra cena), deixando-nos em dúvida quanto a seu significado…
Em dúvida? Como em dúvida? Não está claro que esse “Ah!…” seja um grito de temor, o lamento de um condenado que, por não ter procurado em vida senão acumular prazeres, deve, enfim, pagar a conta, descobrindo no além o que é sofrer? Pois ele já começou a sofrer mil mortes no Inferno, esse carrasco de corações, pagando pelo sofrimento a que, por muito tempo, impune, submeteu suas vítimas. Assim, Sganarelle pode legitimamente concluir:
Eis que, com sua morte, algo a todos satisfaz: Céu ofendido, leis violadas, jovens seduzidas, famílias desonradas, pais ultrajados, mulheres a que se fez mal, maridos exasperados, todos estão contentes.
Todos estão contentes, sim, mas há uma exceção. O próprio Sganarelle: “Só eu que sou infeliz”, geme. Podemos compreender: que seu mestre esteja pagando por seus crimes, perfeito. Mas ele poderia ter pago, antes de desaparecer, o salário a seu valete. Este, para recuperá-lo, pode esperar. Roubado, enganado, extorquido, ei-lo, com seus bolsos vazios, sem um cruzado novo, ou mesmo velho, para comprar, não digo um pacote, mas uma simples pitada de tabaco! Será que em seus ouvidos, o “Ah! ” de seu mestre não soa como um enorme acesso de riso gozador?
E, depois, é um pouco sua culpa. Também, que imprudência envolver-se com um Dom Juan, esse jogador libertino, tão hábil em enganar a todos! Não é loucura ter apostado na honestidade desse ateu sem fé nem lei? E sem nenhum princípio senão o de seu prazer, já que, é a opinião do próprio Sganarelle, Dom Juan não passa de um Sardanapalo…
Mas o quê? Ele, Sganarelle, um honesto e bom cristão, já não se tinha comprometido antes com um outro Mestre? Vamos, vamos, meu irmão, ter-lhe-ia dito o autor da Aposta, você não perdeu seu salário de verdade. Você reclama dois ou três escudos que seu mestre lhe devia? Mas o bom Deus vai devolvê-los, acredite-me, e mais que cem vezes mais! De que vale aqui embaixo essa miserável bolsa recheada de algumas pistolas, em comparação com a eternidade, a vida feliz, que o aguarda, lá no alto, no Outro mundo?
E, depois, se Pascal está além dele, Sganarelle decerto sempre vai encontrar uma alma caridosa, que terá prazer em consolá-lo, oferecendo-lhe, grátis, e sem que ele peça, um pouco de tabaco, remédio universal para os males do corpo e da alma, fonte de prazer puro, inofensivo, inocente — o verdadeiro prazer da gente de bem “o que quer que possa dizer Aristóteles e toda a filosofia […]”.
Ora, é justamente Aristóteles e toda a filosofia que teriam ainda muito a dizer… Não sobre Sganarelle e sua apologia ao tabaco (apesar de esse jeito comum de brincar com fogo, mesmo quando nos contentamos em apenas apreciá-lo, poder nos alimentar com interessantes reflexões filosóficas). Mas sobre a morte de seu mestre, desse auto-intitulado Alexandre, na realidade um “verdadeiro Sardanapalo”.
Toda a filosofia é muita para uma noite. Vou me limitar a Aristóteles. Há pouco, deixei o impertinente Sganarelle roubar-lhe a palavra. Mil perdões. Eu a devolvo.
Aristóteles dizia, então, em sua Ética a Nicômaco, que “muitos daqueles que pertencem à classe dirigente têm os gostos de um Sardanapalo”. Ora, ter os gostos de um Sardanapalo não é apenas moralmente condenável. É também politicamente perigoso, quando se está no poder, explica Aristóteles, na mesma época, no livro V da Política. Sabemos que, nele, Aristóteles examina as causas da insurreição, da revolução, e da destruição dos diversos regimes políticos. Longe de ater-se à exposição teórica das causas gerais, estuda em detalhe as causas particulares, apoiando-se num número considerável de exemplos históricos, muitos dos quais oferecidos pelo historiador e filósofo Calístenes, seu sobrinho, discípulo e (ao menos nesse livro) colaborador zeloso.
Depois de ter tratado das democracias, oligarquias e aristocracias, Aristóteles chega à vez da monarquias. Como os outros regimes, a monarquia pode assumir duas formas: uma boa — aquela em que o rei, homem de razão e virtuoso, visa apenas ao bem de seus súditos. E outra má, em que ele aspira apenas a acumular riquezas, a fim de poder se entregar a todos os excessos da “vida de gozos”. Mas esse gênero de vida, além de fazer a infelicidade do povo, é um suicídio para o déspota. Especialmente porque ele se torna de uma só vez desprezível aos olhos daqueles que têm uma ideia melhor da vida política, e vulnerável aos golpes que tentarão lhe dar. “Aquele que está facilmente exposto aos ataques e ao desprezo não é o homem que vela, mas o que dorme”, escreve Aristóteles. Ora (ele já o disse nas duas Éticas), a vida akólastos , enquanto regida apenas pelo princípio do prazer, assemelha-se a um sono perpétuo (é sem dúvida por isso que ela aparenta ser uma vida de sonho ao comum dos mortais). Adormecido por, para e mesmo em seu prazer, o déspota é um homem que dorme; portanto, nem mais nem menos que um ruminante estúpido, um legume, um feto. Ou pior: inevitavelmente amolecido pelo uso desmedido do sexo; seu falo, ousaria dizer, cai sob a dominação das mulheres. Assim, o déspota deixa de ser homem em todos os sentidos: por um lado, levando uma vida bestial, mal chega a fazer parte da espécie humana. Por outro, e consequentemente, ele se efemina, perde seu sexo. Tendo chegado a esse ponto de degeneração, sua única chance de sobrevivência é ficar trancado no palácio, protegido dos olhares. Se se deixa ver, está perdido.
Foi precisamente isso o que perdeu Sardanapalo, “ele foi visto fiando lã com suas mulheres”, diz Aristóteles. Contudo, com louvável prudência, acrescenta: “se os autores de fábulas [hoi mythologoiintes] dizem a verdade”. “Mas se não é verdade para aquele, pode ser pelo menos para outro.”[3] “Aquele” remete sem dúvida para o Sardanapalo histórico, ou seja, para Assurbanipal (sobre o qual Calístenes deve ter passado algumas informações ao tio). O “outro”, para quem a história pode ser verdadeira, é o Sardanapalo dos “mitologistas”, dos historiadores-fabuladores de que Aristóteles comumente desconfia, mas que, forjando aqui um ser de ficção, revelam uma verdade de essência mais instrutiva que a verdade de fato.
Ora, nessa época, circulavam duas versões diferentes sobre as circunstâncias da morte de Sardanapalo. Em ambas, Sardanapalo, descendente longínquo de Nemrod e Semíramis (transformada em deusa e que ele adorava como tal), é apresentado com traços de um déspota riquíssimo e lascivo, efeminado a ponto de vestir-se, embelezar-se, perfumar-se, ter prazer, sem cogitar ser apanhado, à maneira das mulheres. Um dia, o meda Arbaces, um de seus generais, o viu fiando lã, como mulher, com as mulheres. É a partir daí que as versões divergem.
De acordo com uma delas, transmitida por Duris de Samos, a besta abjeta, incapaz de opor a menor resistência, foi abatida imediatamente por Arbaces. Ao que parece, essa é a versão de Aristóteles. Com efeito, o que pode ser mais verossímil, mais conforme à ideia que se poderia ter de Sardanapalo de acordo com seu epitáfio, que essa morte sem glória, ao fim de uma vida desprezível?
A outra versão é bem menos verossímil. Surge nas Pérsicas, de Ctésias, das quais só sobraram alguns fragmentos. Mas pode ser lida no livro II da Biblioteca histórica, de Diodoro de Sicília, que aqui só copia Ctésias. Em vez de abater Sardanapalo imediatamente, Arbaces fomenta um complô contra ele, reúne um exército de rebeldes e sitia Nínive. Ora, contrariando todas as expectativas, Sardanapalo não se deixa apanhar. Ao contrário, valentemente, à frente das tropas que lhe permaneceram fiéis, resiste com vigor durante três anos, repele diversas vezes os inimigos, que só triunfaram porque uma cheia inesperada do Eufrates (escreve Diodoro, quando é o Tigre que banha Nínive) destrói uma parte das muralhas, abrindo assim caminho fácil para os insurgidos.
O incrível certamente (no julgamento de Aristóteles) é que Sardanapalo, de covarde e efeminado que era, tenha podido se metamorfosear de uma vez em general corajoso e viril, que tenha saído de sua grande cama de plumas para cavalgar um cavalo de batalha, que tenha trocado suas rendinhas para voltar a vestir uma armadura, tenha largado o tear para empunhar uma espada, e tenha deixado de arrulhar com as mulheres e eunucos para exortar as tropas com voz firme de macho. Em resumo, que tenha passado, num piscar de olhos, dos piores extremos da “vida de gozos” aos mais gloriosos momentos da vida do homem de ação. Por que não devemos, já que aqui estamos, transformar o animal estúpido em filósofo esclarecido, e fazê-lo terminar a vida como Anaxágoras, contemplando o Céu e a Ordem imutável do Cosmo?
Os “mitologistas” não chegarão até aí. Eis o fim de Sardanapalo, como conta Diodoro: constatando que o próprio rio (o Tigre) declarou-se contrário a ele ao destruir as muralhas de Nínive, Sardanapalo viu-se perdido. Mas,
não querendo cair em mãos inimigas, mandou construir no interior do palácio uma pira de altura desmedida, sobre a qual foram dispostos seu ouro, prata e vestes reais. Em seguida, trancou num quarto, preparado no meio da pira, suas mulheres, com seus eunucos, e abandonou tudo, o palácio e ele próprio, às chamas.
Segundo Ctésias, o holocausto durou quinze dias.
“[…] ó Céus, que sinto? Um fogo invisível me faz arder, não suporto mais, e todo o meu corpo se torna um braseiro de chamas. Ah! …” , grita o ” verdadeiro Sardanapalo” de Sganarelle, desaparecendo nas chamas, de mãos dadas com o comendador. Ouvido, pela multidão de vítimas, como o lamento de um condenado diante dos piores tormentos do Inferno, o último grito de Dom Juan, dizia eu, é uma enorme gargalhada para seu valete enganado. Mas será que este “Ah!…”, que chega a nossos ouvidos de sob a cena, não pode agora ser interpretado de outra maneira? Será que, agraciado, a nossos olhos, por um derradeiro desastre, ardendo de um fogo até então desconhecido a seus sentidos, esse pseudo-Alexandre, no fim de sua história, não é levado, por uma via providencial, ao baixo da história? Não serão as chamas infernais que o devoram as da pira de Nínive? E não lhe arrancam o mesmo grito que poderia ter dado o Outro, Sardanapalo, o déspota asiático?…
…Aquele cuja estátua, um dia, acenou para o verdadeiro Alexandre, sem conseguir tirá-lo de seu caminho? Outros, talvez, de coração menos duro, tivessem sido tentados. Mas Alexandre! Como poderia esse gesto com a mão, tanto mais desprezível quanto mais desdenha os únicos bens para os quais, a seus olhos, vale a pena ter nascido, desviar o jovem conquistador do caminho real que se propusera seguir? Como essas palavras gravadas em caracteres bárbaros, nas quais o aluno de Aristóteles podia compreender, em substância: “Morte, agrada-me possuir o que outrora foi o prazer de minha vida”, como um tal convite — absurdo — para seguir um tal exemplo — obsceno — teria podido arrancá-lo de seu sonho?
Mas qual era esse sonho? Em 333 a.C., visto de Atenas e interpretado por Aristóteles que seguia dia após dia a realização, o sonho de Alexandre podia ainda passar por um belo sonho. Um grande sonho. O sonho de todos os gregos desde as guerras médicas: não mais se contentar — como fizeram Miltíades em Maratona, Leônidas nas Termópilas e Temístocles em Salamina — em repelir o invasor bárbaro, mas partir para dominá-lo em seu território, ao menos por uma vez, na Ásia. Tratá-lo como escravo. Escravo, o bárbaro já o é de qualquer maneira, por natureza, afirmava Aristóteles, concordando com um Euripides, um Isócrates. Escravo de seu prazer, escravo talvez até para seu prazer, o bárbaro é incapaz de ser mestre de si mesmo. E, então, já que é preciso haver um mestre, que o mestre seja o grego. É melhor. Alexandre, que nos representa a todos, pensam os gregos (alguns de má vontade), será esse mestre.
Só que, mais Alexandre avança, mais profundamente ele penetra no coração da Ásia bárbara, menos ele satisfaz o desejo desses gregos que representa. Eles haviam embarcado em seu sonho com prazer. Terminarão por viver um pesadelo, se se acreditar na “legenda negra” de Alexandre, que logo foi forjada e espalhada pelo mundo helenístico, depois no Império Romano, e nunca deixou de ultrapassar sua “legenda dourada”.
Com efeito, em vez de marcar e sublinhar a diferença radical entre o grego e o bárbaro, Alexandre, com sua política de assimilação sistemática, parece ter um prazer perverso em apagá-la. Querer helenizar o bárbaro já é quimérico. Mas o insuportável é que eles venham barbarizar os helenos. A começar por ele próprio. Orientaliza-se de maneira inquietante. Seu comportamento, suas maneiras, seus gostos, seus amores lembram os daqueles que vêm de “Lá”. Dario está morto, mas Alexandre, identificando-se ao Rei dos Reis, gosta de brincar de déspota asiático. Toma-se por um deus. Exige ser saudado de joelhos, não apenas pelos que foram derrotados, escravos naturalmente, mas também pelos gregos, seus irmãos, seus iguais em razão. E até por Calístenes, que segue a expedição na qualidade de historiógrafo oficial. Indignado, o sobrinho de Aristóteles recusará essa vergonhosa prosternação diante do ex-discípulo de seu tio. Alexandre o faz pagar: depois de humilhantes suplícios, Calístenes é executado em 327 a.C.
É preciso portar-se como chefe em relação aos gregos, como mestre em relação aos bárbaros; ocupar-se dos primeiros como amigos e próximos, tratar os segundos como animais e vegetais,
teria dito Aristóteles a seu ex-aluno, em um diálogo intitulado Alexandre, ou Sobre as colônias. Se, como se acreditou por muito tempo, esse diálogo data do início da conquista, pode-se ver nele apenas um conselho. Mas é mais ou menos certo que ele foi composto bem mais tarde, depois da morte de Calístenes. Será, então, necessário entender esse “é preciso” como “tu deverias ter”, como uma condenação, velada, mas inapelável? Será que Calístenes morreu por haver tentado reanimar na consciência do filho de Filipe a voz moral daquele que ele considerava seu pai simbólico? Culpado de ter transgredido uma lei fundamental, assimilando-se ao bárbaro, quais excessos de barbárie não se deveriam esperar doravante de parte do assassino de Calístenes? Esse mesmo Calístenes havia, outrora, prevenido seu tio de que Sardanapalo era duplo: havia um que, apesar de bárbaro, tinha certamente sido um rei digno de respeito, um legislador. E o outro, o suposto sujeito de um epitáfio abjeto, o monstro de depravação que as ficções verídicas dos “mitologistas” se dão a imaginar, coisa vil de seu prazer erigido em princípio. Acreditava-se que morrera. Mas será que nesse Alexandre de sonho degenerado em déspota, de pesadelo, não havia, aos olhos de Aristóteles e dos gregos, um Sardanapalo que, renascendo das cinzas, voltava a viver?
Graças aos Céus a metamorfose não se completou. Alexandre não foi ao fim de seu sonho. Morreu cedo demais. Aos 33 anos, em 323 a.C. Envenenado? De febre maligna? Por ter abusado de temperos, do vinho, ou das perversas complacências de seu favorito, o eunuco Bagoas? Pouco importa. De qualquer modo, o corpo em chamas. E talvez gritando: “ó Céus, um fogo invisível me faz arder, não suporto mais […]”. Mas não em Nínive. Na Babilônia, que, dirão, não é tão longe. E não em uma pira, no meio de seus tesouros, mulheres, eunucos. Portanto, não exatamente um Sardanapalo. Sardanapalo em potência. Mas ainda não em ato.
Dom Juan também não, notem bem. É seu valete que faz dele, em seu discurso, um “verdadeiro Sardanapalo”, alimentando assim a legenda negra de seu mestre. Mas é na legenda dourada de Alexandre (que readquiriu sua honra, na época, devido aos turiferários insistentes de Louis-le-Grand, veja bem, Lebrun, eu entendo: o pintor), que o Dom Juan de Molière vai procurar seu ideal de ego: um Alexandre saltando de vitória em vitória, que certamente não pára no lugar, mas porque, como Dom Juan, “desejaria que houvesse outros mundos para a eles poder estender minhas conquistas amorosas”
Amorosas sim, já que, segundo Plutarco (De Fortuna Alexandri), é o amor que alimentava o sonho de Alexandre, é no amor que ele desejava unir gregos e bárbaros, foi por “amor da humanidade”, como diz Dom Juan, que “este reconciliador do universo fez de todos um, fazendo-os beber, por assim dizer, de uma mesma taça da felicidade”. Em suma, um Alexandre que só procura possuir o mundo porque estava possuído por Eros, e não por Tânatos…
Diremos que o brinde que Dom Juan oferece a seu mundinho (fazendo-o ou não dançar, como em Mozart, sobre o ar do champanhe) não se compara ao que Alexandre oferece ao Universo. Que em seus deliciosos encontros com mulheres, encontros de puro prazer, Dom Juan só obtenha parte do prazer puro — esta felicidade total, proposta em contrapartida por Alexandre ao gênero humano.
É verdade. Mas ambos procuram seu prazer, e acabam o encontrando. De uma maneira muito aristotélica, até (cf. Ética a Nicômaco). A saber, ao não deixar de atualizar as virtualidades da essência singular (eídos) que os faz ser o que são: um Alexandre ou um Dom Juan. É a passagem ao ato (érgon) que causa o prazer. É a conquista, não a posse. Eles não agem em vista do prazer, têm prazer ao agir, realizando boas ou más ações. Pois, boas ou más na opinião dos outros, eles as realizam bem. Entendamos que cada um, em seu gênero, se esforça ao máximo para empregar os mais excelentes meios para chegar a seus fins, e essa é a virtude (areté), segundo a definição de Aristóteles. Nenhum dos dois age às cegas, nunca. Sonham, é verdade, mas não tomam seu sonho por realidade. Eles o realizam, como homens conscientes de todo o poder do logos, em todos os sentidos da palavra: falam, raciocinam, calculam. Programam. Contam e recontam suas façanhas. Ou melhor, sempre envolvidos numa nova ação, deixam que outros as enumerem e contem, simples valete ou bando de historiógrafos presos a seus passos, seguindo-os de perto, catalogando, recapitulando — e encarregando-se, mais tarde, no final das contas, de dizer ao mundo quem eles terão sido.
Pois quem são, eles mesmos não sabem. São o que fazem, com certeza, já que o fazem com prazer. Mas, como todo seu prazer está na mudança — e desaparece quando param, durando apenas enquanto passam de uma conquista a outra —, eles nunca deixaram de mudar em si mesmos. O que os define, a ambos, como sujeitos do desejo.
Alguém dirá que eles não têm o mesmo desejo. Isso é verdade quanto aos objetos do desejo. Mas eles têm isto em comum, representam o próprio desejo. E o próprio desejo, este desejo que faz Alexandre cavalgar de um ponto a outro, e Dom Juan de uma mulher a outra, é o desejo do outro. E não apenas o desejo deste outro objeto, depois daquele, até o último objeto do mundo. Mas o desejo de outros objetos além deste mundo, o desejo de outro mundo, o desejo do Outro, como tal — quer o Outro tenha o fascinante atrativo do bárbaro, para o grego Alexandre, quer tenha o charme irresistível do Outro sexo, para Dom Juan, homem de muitas mulheres.
Assim, a despeito de Sganarelle, Dom Juan é certamente um Alexandre em seu gênero. Eu diria até que, apesar de representados de maneiras bastante diferentes, ambos têm vidas “paralelas”, no sentido que lhes dava Plutarco.
Quanto a Sardanapalo, ele é um outro homem. Ou melhor, é outra coisa. Sardanapalo não é um homem. O próprio deste ser vivo que é o homem é viver sua vida trabalhando ativamente para se dar razões de viver, o que supõe o uso da razão, prática e teórica. Sem manter qualquer relação com a realidade exterior, em segredo dentro de um harém de sonho onde nada lhe deixa a desejar, Sardanapalo se entrega, passivamente, sem refletir e sem fazer as contas, a uma vida previamente programada para satisfazer a todo instante apenas ao princípio do seu prazer. Uma tal vida o transforma numa besta: num boi gordo que rumina e dorme, estupidamente. Vale dizer: que vegeta. Como uma planta. Como uma árvore do bosque. Em grego, bosque se diz hylé, que significa também, por extensão, a matéria bruta sobre a qual trabalhará o artesão. Ou o artista. Essa mesma hylé que, na Metafísica, de Aristóteles, faz par com a forma (morphé). No limite, tornando-se matéria pura, Sardanapalo não será mais que uma viga, uma tora, um pedaço de madeira morta, de madeira boa para pôr fogo.
Mas apenas no limite, porque em Aristóteles nada é matéria pura. Toda matéria tem forma e aspira à forma “como a fêmea deseja o macho”. Pois o que encarna e representa a forma acabada de cada espécie é o macho, não a fêmea, que, por conseguinte, é só um macho imperfeito.
Eis por que Sardanapalo não é um homem, num segundo sentido. Alguns poderiam imaginar que, tendo prazer como um animal, Sardanapalo é um Sardanafalo — um touro cruzando dia e noite com o inumerável rebanho de fêmeas. Talvez o seja em sonho. Na verdade, é um boi; logo, um macho imperfeito, um macho efeminado, um macho apenas em potência, e, portanto, impotente, incapaz de passar ao ato e dele gozar o vivo prazer de que prova, ao realizá-lo, qualquer homem que se respeite.
Seu prazer, o efeminado Sardanapalo o prova como uma fêmea. Prazer contrário à natureza e propriamente bárbaro — o que quer que se diga —, para um homem grego. Mas prazer natural para uma fêmea. Pois sua natureza a leva a unir-se com o macho, o qual, através do ato, lhe permite atualizar o que é em potência, uma mãe.
Ora, como uma fêmea se torna mãe? Aristóteles responde em sua última obra (pouco posterior ao tratado sobre o sono e ao tratado sobre os sonhos): tratado A geração dos animais, composto por volta de 323 a.C. (portanto, mais ou menos contemporâneo à morte de Alexandre): entre macho e fêmea, escreve ele (portanto, entre o homem e a mulher, à medida que também são animais), “tudo se passa racionalmente” (eulógos): o macho fornece a forma e o princípio do movimento, e a fêmea o corpo e a matéria”.[4] Aristóteles dixit.
A matéria, no caso, é o sangue menstrual da fêmea, um sangue cru, espesso e frio. A forma é o esperma do macho, também uma espécie de sangue, mas um sangue dotado de uma quintessência, quase imaterial, ardente, que foi aquecido por uma longa cocção até ficar branco (o macho, sabe-se bem, é animado por um fogo que a fêmea não possui). Um pouco dessa espuma ardente sobre essa matéria amorfa, uma forma branca sobre um fundo de sangue vermelho, e eis, no ponto de seu encontro, a massa inerte que esquenta e ganha vida: embrião do feto de onde provirá uma criança que vai nascer, depois de ter dormido e vegetado por muito tempo no seio da mãe. Como uma planta.
Ou como Sardanapalo. Com o gênero de vida que leva, Sardanapalo, vimos, está excluído da espécie humana para degenerar-se em animal. E, no gênero animal, se exclui do sexo masculino para degenerar-se em fêmea. Mas a inclinação pelo princípio de prazer (a acreditar na Ética a Eudemo) o conduz ao estado fetal. Está, portanto, abaixo de toda diferença específica, abaixo até de toda diferença sexual, vai até este ponto de degeneração última que parece se confundir com o ponto originário da geração, em que o inanimado apenas começa a animar-se. Qual homem de bom senso, se for para viver assim, quase ainda morto, escolheria nascer em vez de não nascer?
Entretanto, é desse gênero de vida que Sardanapalo se gaba, em seu epitáfio. Mas o mais escandaloso, porque mais absurdo, para Aristóteles, é que Sardanapalo, morto, enquanto morto, ousa declarar: “gozo” — possuo, agora, aquilo mesmo que foi o prazer de minha vida.
Ora, como ele chegou a esse ponto de enunciação paradoxal, de onde se profere esse absurdo enunciado? Decidir meter numa pira os instrumentos de seu prazer, seus tesouros, eunucos, mulheres, com seu próprio corpo, antes de pôr, resolutamente, fogo em tudo. Memorável holocausto, no qual tem fim essa vida sem história, e cuja história nada tem a dizer, não se encontrando nela o menor traço de um ato. Exceto aquele pelo qual, precisamente, Sardanapalo se dá a morrer, e dá a morte a tudo aquilo que o ligava a seu prazer — atualizando, por assim dizer, aquilo que durante a vida não fora senão em potência, um homem morto.
Mas será que, se a morte de Sardanapalo é o único ato de sua vida, esse ato não deveria ser acompanhado de um certo prazer, já que a doutrina quer que o prazer acompanhe a realização de qualquer ato como tal? Além do princípio de prazer que regia sua vida, qual seria, então, em termos aristotélicos, o tipo de prazer que Sardanapalo experimenta ao aniquilar-se voluntariamente nas chamas?
Brinco. É evidente. Aristóteles nem sequer formularia essa questão. Pela simples razão de que a morte, em seu sistema, não pode ser pensada como o ato de um ser vivo sem se cair em contradição.
Mas ela será formulada por Freud, que não tem medo de enfrentar contradições. Ele encontra essa contradição no coração de sua experiência. Não falo do Freud de Ciência dos sonhos, em que o princípio do prazer ainda rege soberanamente, em teoria, todo o funcionamento do aparelho psíquico. Mesmo que ele tenda, para evitar o desprazer, a trazer o organismo para o menor grau de excitação possível, portanto, para o limite do inorgânico, esse princípio permanece a serviço da vida. Certamente, se só dependesse dele, passaríamos nossa vida dormindo e tendo belos sonhos (sonhos sardanapalescos, quem sabe…). Um belo sonho, entretanto, é apenas um sonho e não basta para alimentar o homem. É preciso, então, despertar para procurar o objeto sonhado fora do sonho: na dura realidade. É a única maneira razoável, e realista, de se manter vivo, portanto, de satisfazer o princípio do prazer.
A partir de 1920, por outro lado, o princípio de prazer, secundado pelo princípio de realidade, não basta mais a Freud. Além das pulsões de vida, além de Eros, há Tânatos — a “pulsão de morte”. Quimera inaceitável para a biologia experimental, mas que o analista se vê obrigado a supor na obra, e, silenciosamente, na própria vida psíquica. Apenas ela lhe permite perceber, por exemplo, o pesadelo que repetitivamente atormenta as noites de um paciente; ou a singular ligação que um outro mantém com o sintoma que lhe torna a vida impossível, e cuja cura poderia livrá-lo, se ele não fizesse tudo, como que por prazer, para que ela fracassasse; ou, num outro, enfim, a repentina passagem para um ato deliberadamente suicida. Em suma, para perceber tudo o que pertence a um “masoquismo fundamental”, que não pode mais ser explicado como a guinada segunda sobre o ego de um sadismo primeiro. Ao contrário, é voltando para um outro a agressividade mortífera primitivamente dirigida contra si mesmo, é através dos fantasmas — ou de uma conduta — sádicos, que o sujeito exprime, de forma inversa, portanto, difícil de reconhecer, seu masoquismo fundamental (tão radicalmente inconsciente quanto o sentimento de culpa que o acompanha).
Seu masoquismo: seja esta paixão que leva a buscar ativamente um sofrimento para si mesmo, seja ele o mais extremo, a fim de distinguir o quê? O prazer? Mas essa palavra evidentemente já não convém para designar o gênero de satisfação visado para além do principio de prazer. A essa satisfação, chamemo-la, então, com Lacan, gozo. E afirmemos agora que o gozo não é uma espécie de prazer inferior nem superior. Ele não apenas não pertence ao mesmo princípio, como também o transgride, enquanto constitui um limite à única lei a que pertence, e que é a mesma do desejo.
Não cedas em teu desejo: goza! Esse é o imperativo que se impõe ao sujeito do inconsciente enquanto tal (e não apenas ao “masoquista perverso”). Trata-se de um imperativo categórico, incondicional, despótico, a ser compreendido (segundo Lacan) como uma injunção do Superego. Superego arcaico, “obsceno e feroz” tanto mais que esse “imperativo do gozo” caminha junto com um outro, diametralmente contraditório: não gozes!, também emanado do Superego, com aparência menos selvagem e mais respeitável. Nascido do complexo de Édipo, é a voz do pai interiorizado, que a vulgata psicanalítica logo assimilou à “voz da consciência”, e até à lei moral kantiana.
O que pode ser certamente sustentado. Mas com a condição de não esquecer que essa lei moral implica crueldade para quem quer que a erija como máxima da vontade. Essa máxima, que todo homem de boa vontade deve fazer sua, partilha e divide o próprio homem, ao mesmo tempo. Enquanto enunciador da lei, ele se institui carrasco da vítima que consente em sê-lo enquanto sujeito dessa mesma lei. Na verdade, sob a máscara “prática” de uma Vontade livre de qualquer determinação “patológica”, é ao desejo do Outro que o sujeito dá, assim, força de lei, e é como instrumento do gozo do Outro que ele sofre a única satisfação que vale, falando moralmente, porque se situa justamente além do princípio de prazer.
É sobre os paradoxos desse Superego de dupla face, portanto, eminentemente equívoco, que nos referimos ao livro VII do Séminaire, de J. Lacan (L’ éthique de la psychanalyse), ou que lemos, em Écrits, seu “Kant avec Sade”: texto difícil e denso, no qual Lacan, com rigor impecável, tenta demonstrar que Sade não apenas concorda com o Kant da Segunda crítica, mas também o completa e acaba. Pois, com Sade,
podemos ver ser descoberto este terceiro termo que, no dizer de Kant, faltaria à experiência moral. A saber, o objeto que, para assegurar a vontade na realização da lei, ele está obrigado a remeter ao impensável da Coisa-em-si.
E, assim, será que esse objeto não-fenomenal não desceu de sua inacessibilidade, na experiência sadiana, e não foi desvelado como Ser-aí, Dasein, do agente do tormento? Não sem guardar um pouco da opacidade do transcendente. Estranhamente separado do sujeito, “ele não se torna menos sua coisa, a coisa (das Ding) e a causa, profundamente perdidas, de seu desejo inconsciente”: o que Lacan em seguida elaborará sob o nome de objeto (a).
Quanto a esse objeto, deixemos Kant dizer com Sade para o psicanalista Lacan o que um historiador da filosofia sério não aceitaria compreender de boa vontade. De minha parte, quanto ao tema [sujet] do objeto desta minha fala, Sardanapalo, contentei-me em fazer um paralelo entre Alexandre e Dom Juan, apoiando-me em Molière. O que, não duvido, me fará ser acusado de ter tratado o assunto com a desenvoltura de um valete de comédia, ou de qualquer um desses “mitologistas”, que interpretam a seu bel-prazer a verdade dos fatos.
Que seja. Meti-me na fábula deliberadamente. Mas nem mais nem menos que Freud, o último grande mitologista dos tempos modernos — e isso para inscrever-me em sua fábula. E será que Lacan não nos convida a levá-la a sério, quando declara: “a verdade tem estrutura de ficção”?
Ora, a verdade do Superego é que ele é duplo, profundamente equívoco e contraditório em suas exigências. De modo que, obedeça ele a qualquer um dos imperativos (”Goza!” ou “Não gozes!”) que se lhe impõem, o sujeito será sempre culpado de ter cedido a seu desejo. Ou culpado de ter cedido quanto a seu desejo. Nos dois casos, culpado e perdedor. Como o viajante que, tendo tomado a estrada para tratar não sei onde de não sei qual assunto, vê surgir de repente diante de si, com a arma em punho, um indivíduo mascarado que o pára e o manda escolher: “A bolsa ou a vida! “.
Homens de desejo exemplar, Dom Juan e Alexandre passam suas vidas a viajar. Por motivos, por caminhos, em épocas, em países e por objetivos bem diferentes. Mas isso não torna seus caminhos menos paralelos, ainda que marchassem um na antípoda do outro.
Ambos têm, um dia, o mesmo tipo de encontro: uma estátua, a estátua de um homem morto, aparece em seu caminho e os convida, unindo gesto a palavra, a abandonar aquilo que, para cada um deles, é a razão de viver, porque é apenas isso que, para cada um, dá valor à vida.
À primeira vista, não se pode comparar a posição de Dom Juan, o libertino sem fé nem lei, diante do venerável comendador, modelo de pai nobre, à do casto e virtuoso Alexandre diante do desprezível déspota asiático.
— Renuncia ao gozo, Dom Juan! Arrepende-te! É o Inferno que te aguarda, se não escutares o Céu que te diz, por minha boca, para ceder quanto a teu desejo culposo,
declara o comendador com sua voz grave e solene. Mas Dom Juan não dá atenção e passa ao largo.
Entretanto, é de mãos dadas com o comendador que ele desaparecerá nas chamas. Essa mão estendida, o grande senhor espertalhão teria podido recusá-la. Como homem de palavra, aceitou-a. “Tu virás?”, pergunta o Outro. “Sim”, responde Dom Juan sem hesitar: “Aonde vamos?”.
— Goza, recupera-te, Alexandre! Do Inferno onde estou, prometo-te o Sétimo Céu, se não mais escutares a voz que te proíbe de ceder a teu desejo. Com este ideal de virtude, este amor da glória, que o pai Aristóteles te pôs na cabeça, assim como na de teus semelhantes, observa o que faço eu,
declara Sardanapalo a Alexandre, apoiando seu dizer bárbaro numa obscena banana. Em princípio, Alexandre também despreza o convite e passa ao largo. Mas, enfiando-se na Ásia que o aliena, matando Calístenes para melhor tornar-se persa, é a seu pai Aristóteles que ele renega, e é sua lei que ele transgride. E é ao Outro, a quem dizia não, que ele acaba por dizer “sim”. “Sim, aonde vamos?”
Consentindo em ser presa de um destino do qual se julgavam salvos, joguetes de um desejo que imaginavam ser o seu, aonde vão então Alexandre e Dom Juan, mão a mão, cada um, com seu homem de pedra? À Outra cena, ao Outro mundo. Lá, onde, na verdade, a Besta imunda e o Pai nobre, o déspota e o comendador, o desejo e a lei são apenas um.
Santa surpresa, não? Da qual testemunha o contentamento de Dom Juan: “Ah! …”, grita ele, do lugar do Outro, sem poder dizer mais. É que, no ponto em que estamos da coisa (“todo o meu corpo se torna um braseiro em chamas”), gozar, daqui em diante, é mais que evidente. Mas é como se ele gritasse: “Viva a Morte!”.
Seu valete falará em seu lugar: “Eis que, com sua morte, algo a todos satisfaz”. Também a Dom Juan. Ou melhor, apenas a Dom Juan. Pois, se “todos estão contentes”, à exceção de Sganarelle, ninguém está verdadeiramente satisfeito, à exceção de Dom Juan. Essa poderia ser a moral de minha fábula, se morais fossem de uso em questões de ética.
Mas falemos de geometria. Eu dizia que Alexandre e Dom Juan têm vidas paralelas. Tratando-se das vidas de dois mortais, esses paralelos deveriam, a rigor, ser representados por dois segmentos vetorizados com sentido inverso, e que não se encontrassem. Mas, uma vez que até o mito imortaliza esses dois mortais, prolonguemos imaginariamente cada um dos segmentos. Podemos agora — até devemos — supor que eles se cruzarão em algum lugar, no infinito. Num ponto de divergência originário, ou de convergência final, lá, do lado do Nascente ou do lado do Poente, na luz da aurora ou do crepúsculo, não importa: presente, mas invisível, é o mesmo ponto no horizonte. Um ponto que ocupa, ao mesmo tempo que está escondido, que está encoberto, ao mesmo tempo que revela, o comendador Sardanapalo. Um ponto fora, irrepresentável como tal, mas em função do qual se orientam as vidas de Alexandre e de Dom Juan, e se ordena o campo de suas conquistas. É o que se chama, na teoria da perspectiva, um ponto de fuga.
É preciso ter aprendido as regras e saber colocar em prática a teoria da perspectiva se se pretende pintar um quadro. Ao menos é isso que se pensava outrora, na época em que um grande pintor era antes um mestre do desenho. O pai da dita “escola neoclássica” foi David. Ele é um dos que jamais se permitiriam deixar de manejar o lápis antes de utilizar o pincel. Tanto que ele não desenhava qualquer coisa. Claro, nu, forte, seu traço é exemplar, já que ele escolhe temas exemplares.
Vejam sua Morte de Sócrates, inspirada no Fédon, de Platão: o filósofo é representado em seu leito, rodeado por seus jovens discípulos atentos em recolher sua última e sublime mensagem. Juntando gesto e palavra, ele ergue a meia altura o braço e aponta com o indicador para um Céu ideal a que sua grande alma aspira impacientemente voltar, a fim de aí contemplar, em plena luz, esta Ordem da qual os olhos de nosso corpo carnal, muito ligado pelos prazeres carnais a outros corpos carnais, não podem apreender senão um fraco simulacro.
Ou seu Leônidas nas Termópilas, prestes a morrer com os seus, como um mártir da liberdade. Vestido apenas por sua nudez espartana, o gládio em punho, o olhar fixo e terrivelmente decidido, o herói nos encara, como se fôssemos alguns desses bárbaros que se lançam da Ásia para dominar a Grécia.
A Estética, aqui, visa a pôr em relevo uma ética que encarnam por excelência — sábios ou heróis, modelos de vida “filosófica” ou de vida “prática”, Sócrates ou Leônidas, Sêneca ou Brutus — os homens ilustres da Antiguidade grega ou romana, ilustrados e imitados eles próprios, desde a Renascença, por tudo o que produziu de belo — em obras — ou de grande — em homens — a história do Ocidente clássico.
Ora, essa história começa com Homero, pai de todos nós, e fonte dos valores que fazem de nós o que somos, nós outros, ocidentais.
Ao menos é isso que faz pensar (ao se fazer ver) a monumental A apoteose de Homero, de Ingres, exposta no Louvre, por ocasião do salão de 1828. Sobre o átrio de um templo (cujo frontão triangular e as colunas dóricas — seis alinhadas de frente, as outras segundo uma perspectiva impecável — lá estão para lembrar que ordem e beleza vão juntas), o divino Homero ocupa lugar de honra, a seus pés, as senhoritas Ilíada e Odisseia, e sábios como imagens. Centro de todos os olhares, o pai cego recebe a homenagem de alguns dos mais célebres filhos de sua numerosa família. Muitos outros teriam merecido ser convidados para a cerimônia. Mas, para que a cerimônia transcorresse em ordem, foi preciso fazer uma escolha. Já com 42 (sem contar o Anjo da Vitória), está um pouco apertado. Pensem! Se Sófocles encontrou um lugar, à direita de Homero, Molière está abaixo dos degraus. E mal se vê Aristóteles, imobilizado entre Aristarco e Michelangelo. Quanto a Alexandre, bem atrás de seu mestre, ele está cortado ao meio. Apenas uma metade de seu corpo está enquadrada na tela.
A cerimônia também foi muito bem realizada. Por sua composição, sabiamente equilibrada, pela perfeição do desenho discretamente realçado com cores sóbrias, feitas de tintas frias e acinzentadas, por essa maneira nobremente clássica de celebrar as glórias do Classicismo reunidas em torno de um grande Ancestral, o senhor Ingres, uma vez mais, soube mostrar a altura de seu tema. Surpreende que ele próprio não figure em pessoa no quadro. Com efeito, o quadro inteiro o representa à sua maneira. E, se ele devesse aí figurar em algum lugar, seria onde ele colocou o autor de Édipo: bem à vista, à direita do Pai. Poderíamos até imaginá-lo muito bem no lugar de seu divino modelo, tanto esse filho, dividindo com o Pai o mesmo espírito santo, parece ter se identificado ao Pai ideal.
A multidão certamente admira e aplaude sua Apoteose… Mas o que ela não admira mesmo e que lhe faz soltar gritos é um outro quadro, também exposto no salão de 1828, e de dimensões comparáveis. Mas a comparação pára aí. Pois tudo — tema e maneira — opõe, a A apoteose de Homero, de Ingres, a Morte de Sardanapalo, do jovem Delacroix.
Entretanto, reduzidos apenas a seus enunciados, os dois títulos vão muito bem juntos. Um poderia servir de subtítulo para o outro, porque, no fundo, querem dizer exatamente a mesma coisa. Sendo A e B contrários, em qualquer lógica, se A, então não-B. Ora, Homero, o Pai grego, se opõe toto caelo a Sardanapalo, o déspota bárbaro. Dizer sim a um, encantar-se com sua lei, sentir prazer com sua Ordem implica dizer não ao outro, permanecer surdo a seus princípios, sentir-se horrorizado com sua desordem. “Viva Homero!” só pode ser compreendido como: “Morte a Sardanapalo!”. E, se, a nossos olhos, um vive por toda a eternidade, isso basta para que o outro desapareça para sempre de nossas vistas. A apoteose de Homero é, portanto, necessariamente, a Morte de Sardanapalo.
Certo, Sardanapalo está morto. Um problema: a provocação, o escândalo, o ultraje é que esse bárbaro, “cujo nome se tornou sinônimo de tudo o que a depravação e a covardia têm de mais ridículo e infame” (escreve um certo Chavin),[5] encontrou um meio de se fazer representar no salão. Renascendo de suas cinzas, longe de brilhar por sua ausência, ele brilha, queima por sua presença.
Ah, isso sim, para brilhar, ele brilha, o Sardanapalo. Com uma depravação de ouro, de cristais, de pedras preciosas, de pérolas, de tecidos finos, de lâminas e de lágrimas, cujos reflexos brilhantes são apenas poeira para os olhos: a querer assim fazer faíscas para aturdir o burguês, não apenas o senhor Delacroix trai seu mau gosto, mas mostra claramente que não conhece seu ofício de pintor. Pois, enfim, um pintor deve ao menos conhecer as regras do desenho. Para dar forma a suas cores. Se ele as conhece e é perverso o bastante para fazer pouco delas, o prazer maligno que ele tem em ferir-nos os olhos é ainda mais imperdoável. Essa pintura maligna, em que tudo se torce e entremistura, “em que o olho não pode desembrulhar a confusão de linhas e cores, em que as primeiras regras da arte parecem ter sido violadas de propósito”, não “encontrou respaldo diante do público nem diante dos artistas”. “Foi em vão que se procurou fazer aparecer as ideias que o artista teve ao compor o quadro, a inteligência dos espectadores não pôde penetrar um tema do qual todos os detalhes estão isolados.”[6]
Em suma, é em vão que torturamos o espírito para compreender alguma coisa nesse … Sardanapalo, onde só se vê fogo. E, ao mesmo tempo, a crítica, furiosa, quase unânime, nele só vê vermelho. Mesmo os melhor dispostos em relação a Delacroix, aqueles que, quatro anos antes, haviam saudado o nascimento de um novo Rubens em suas Cenas dos massacres de Quio (homenagem à Grécia heroica e mártir, em guerra para escapar ao bárbaro jugo do despotismo otomano), não estão desta vez longe de pedir o massacre. O massacre da pintura, entenda-se, da boa, da verdadeira pintura, daquela que honra A apoteose de Homero. O que se anuncia, nesta Morte de Sardanapalo, é a morte, por suicídio, é a morte de um jovem “talento que parece divertir-se ao perder-se”, lamenta-se Chavin. Entretanto, “ainda é tempo de interromper uma tal carreira, que o senhor Delacroix ponha um salutar freio em sua imaginação pitoresca e poética […], que ponha sua linguagem à altura de seus pensamentos”, e, para isso, que consinta em desenhar!”. Dito de outra maneira, que ele se dobre às regras elementares da perspectiva. Pois é a ausência de perspectiva, ou a perspectiva aplicada apesar do bom senso, que nos faz sofrer ao ver a Morte de Sardanapalo. Perdemo-nos nele: “Onde estamos?”. Em que tipo de lugar se passa a cena? Onde este escravo pretende montar este cavalo? Que confusão nos primeiros planos! Que amontoado ininteligível de objetos variados nos cantos! “Um verdadeiro pesadelo!”…
E, depois, surpreende-se a crítica, como se aí, decididamente, ele tivesse passado dos limites, “por qual estranha aproximação, a cabeça de Sardanapalo se parece tão perfeitamente nos traços e na execução com [sic] a cabeça de Justiniano do mesmo pintor?”
Qual Justiniano? O famoso soberano bizantino, certamente. O imperador do Oriente que, no século VI, se pôs a reconquistar o Ocidente invadido pelos bárbaros — vândalos e outros ostrogodos — continuamente servindo de alvo para as invasões persas. Aquele que quis restaurar o Império Romano sob o signo e na paz de Cristo. E principalmente aquele que reuniu, unificou, harmonizou em um só e mesmo vasto Corpus os membros esparsos do antigo Direito Romano e que, portanto, como Sólon e Licurgo, permanece na memória ocidental como um dos maiores legisladores da história.
É esse Justiniano que Delacroix, dois anos antes, representara ao compor e ditar sua lei ao Ocidente. E eis que hoje o augusto legislador é identificado, pelo mesmo pintor, ao infame déspota! O quê! Justiniano com os mesmos traços de Sardanapalo! Sardanapalo com uma cabeça de Justiniano! Monstruosa aproximação! Perspectiva depravada! Quando se vê que espécie de infame bárbaro do tipo mulher barbada nos é apresentado, os dedos dos pés cheios de anéis, revirando-se, envolto por véus brancos, sobre o informe, o enorme, sobre a mancha vermelho-sangue que escorre em seu leito de depravado, enquanto diante dela, em primeiro plano, sob nossos olhos, à luz das chamas da pira que se acende, desenrola-se uma cena inspirada, dir-se-ia, nos piores extravasamentos de imaginação do autor de Justine!
O imperador Justiniano compondo seu instituto ornava, à época, a grande sala de sessão do Conselho de Estado. Podia aí ser admirado até 1871, data em que os communards incendiaram o palácio. Vítima da insurreição, … Justiniano… desaparece nas chamas.
Assim, é impossível verificar os fundamentos da afirmação do crítico. Se for para julgá-la a partir de alguns esboços que permaneceram, eu ficaria inclinado a dar-lhe razão. O Sardanapalo de Delacroix bem que tem, na cabeça, algo de Justiniano. Mas o quê, exatamente? Problema… “Acreditaríamos, ao ver o monarca assírio, que ele é apenas um espectador indiferente do sacrifício”, observa ainda Chavin. Indiferente? Ou apático, como uma outra Julieta, um Noirceuil, um Saint-Fond? Filosofando como eles em sua extravagante penteadeira? Tendo prazer com eles ao assistir ao massacre de tudo o que fazia o prazer de sua vida? Alegremente perdido na contemplação da desordem do mundo?
Com efeito, ele não está presente. Ficou cego com o espetáculo que fere ou que agrada nossos olhos, a cabeça apoiada sobre a mão na mesma atitude que Dürer deu à sua A melancolia, ele fixa o olhar negro num ponto exterior ao quadro, fora do campo da representação, mas que podemos muito bem situar em algum lugar no mais íntimo de si mesmo. Como. se procurasse, como se buscasse alguma coisa. Como se, no momento em que é pego pelas chamas, renascesse nele o caçador legendário, seu ancestral, o selvagem Nemrod, sempre pronto a enfrentar a Besta, um desses tigres que Delacroix, precisamente…
Mas já estou me perdendo. Olhe, vocês vão entender tudo. Peguem o slide, por favor!…
Com um gesto, o conferencista (que acaba de desembarcar da Europa e parece sofrer terrivelmente com o calor, como mostra o suor que escorre de seu rosto congestionado como nunca) fez apagarem as luzes. No escuro, ao fundo, a tela se ilumina: primeiro um quadrado branco, depois, uma confusão de cores em que predomina o vermelho, levemente manchado de brancos esverdeados. Um projetista benévolo se esforça para regular melhor o projetor. O conferencista saiu de perto de sua mesa, nela deixando suas anotações em português, já obscuras, agora perfeitamente ilegíveis. Com um passo que se vê hesitante, provavelmente por medo de prender o pé no fio retorcido do microfone, ele se dirige para aquilo que afirma estar lá, o … Sardanapalo, de Delacroix. Talvez diga a verdade. Mas, no caso, para o público, é o quadro de Delacroix visto, sem óculos, por um míope. Só se vê com clareza, errando pelos cantos da tela, a sombra de um dedo estendido no fim de um braço, cujos movimentos entorpecidos parecem obedecer aos balbucios de uma voz cada vez mais insegura.
Algumas testemunhas pretendem que ele ainda falava português. Nada mais incerto. Em todo caso (é verdade que falava sem as anotações), era um português tão desfigurado, com a sintaxe tão inconveniente, e salpicado de barbarismos tão grosseiros, que o público, incapaz de suportar o massacre por mais tempo, ou temendo perder o começo da novela da noite, não tardou a fugir. Poucos foram os que ficaram tempo o bastante para ouvi-lo evocar “o cavalo de pesadelo” de Jones ou citar Baudelaire: “Delacroix, lago de sangue povoado por anjos maus…”
O único a ter assistido até o fim a esse espetáculo desolador, o psicanalista Jorge Forbes, que confessa ter inopinadamente oferecido, antes da conferência, uma caipirinha ao infeliz amigo, nos trouxe o dossiê que o orador deixara sobre a mesa, ao lado de seu cachimbo, antes de avançar em direção à tela. Além do texto que se leu, o dossiê continha um amontoado de papéis diversos, cobertos de longas citações em grego e latim, referências bibliográficas, desenvolvimentos de uma erudição indigesta, que não tinha lugar aqui. Exceto, talvez, por estas linhas rabiscadas no verso de um convite para um batizado. Como é em cima delas, acredita-se, que o desaparecido deveria fechar sua palestra se as coisas não tivessem tomado o rumo que já conhecemos, decidimos publicá-las.
Trata-se de um fragmento da última cena do quinto e último ato de uma tragédia de Byron, escrita em 1821, pouco depois de seu Dom Juan: Sardanapalo, no qual se pretende (erroneamente) que Delacroix se tenha inspirado para compor seu quadro.
Empoleirado sobre a pira onde o encontrou, com a tocha na mão, a loira Myrrha, uma jovem grega, sua escrava, amante, e o único ser no mundo que o amou bastante para desejar partilhar sua morte, Sardanapalo fala:
A claridade desta grande pira funerária da realeza não será apenas uma coluna de fumaça e chamas, um efêmero farol no horizonte, para não oferecer senão um punhado de cinzas. Não, não, será uma lição para os séculos, para as nações rebeldes, para os príncipes voluptuosos. O tempo cobrirá de esquecimento os anais de mais de um povo, as façanhas de mais de um herói; aniquilará mais de um império, no instar deste primeiro dos impérios; mas ele respeitará meu último ato, para oferecê-lo como um problema, que poucos ousarão imitar, que ninguém ousará desprezar; e, talvez, este exemplo desencoraje mais de um rei a imitar uma vida que me conduziu a tal fim.
Tradução de Hélio Schwartzman
Notas
[1] Ética a Eudemo , 1215a 20 e segs.
[2] Ética a Nicômaco , 1095b20.
[3] Política V, 1312a.
[4] A geração dos animais, 729a.
[5] In Monitor, 27 fev. 1828.
[6] Délecluze, in Journal des Débats , 21 mar. 1828.