Sobre o estatuto da razão
por Gerd Bornheim
Resumo
A abrangência atual do conceito de crise costuma ter uma dimensão negativa. No entanto crise, etimologicamente, quer dizer apenas “escolha”, “julgamento”, “disputa”, e é assim que Marx, por exemplo, vê um sentido dialético positivo na consciência histórica. Se há separação na origem das culturas, no Ocidente juntaram-se uma vivida de forma dramática pelos judeus (de quem herdamos a moral e a religião) e outra de forma conciliatória pelos gregos (que nos legaram a arte, a filosofia e a ciência). E os modernos sentem nostalgia dessas formas primevas de separação. Mas suas interpretações mudam. Se o judeu conhece a separação a partir de um Deus que é garantia de ordem, o grego, segundo Nietzsche, parte da separação dionisíaca do caos para tentar conquistar uma ordem apolínea. Seja como for, a cultura ocidental é uma sequência de rupturas e continuidades que voltam sempre à origem, embora esta seja plural e cada vez mais incorpore o que antes fora marginalizado. Como fez Humboldt ao colocar o sânscrito no berço das línguas ocidentais; ou como faz a ciência ao descobrir geometrias não-euclidianas e lógicas não-aristotélicas; ou ainda a antropologia ao buscar conhecer o que há de próprio e originário em cada cultura. Isso corresponde também a um alargamento do mundo ocidental que quer assimilar tudo, o burguês sendo o primeiro homem universal (que leva sua crise a todos os cantos do planeta). Mas esse processo de transformação não pode excluir o diálogo, já que a busca das raízes últimas do Ocidente se abre para o outro em sua diferença.
Pretendo fazer aqui uma apresentação sobre o tema da razão, e inicio com algumas observações preliminares.
Saliento, em primeiro lugar, que isso que se chama de razão, e que se expande hodiernamente como uma atividade dotada de uma autosuficiência de fato extraordinária, na verdade teve suas origens em um plano que tende a ser encoberto, por exemplo, pelo rigorismo do pensamento lógico, e até mesmo pela interminável expansão da tecnologia e do consumo. Nos inícios, no entanto, a razão apresentava uma índole essencialmente instrumental, totalmente voltada para os afazeres práticos; a mão e o pensamento não se distinguiam, e, entrosados, perseguiam objetivos comuns. A razão servia, assim, para o homem prover-se, defender-se e, em última instância, para inventar sua própria criatividade. Mas observe-se de imediato que todo esse processo desdobrou-se de maneira extremamente lenta. No princípio, um pouco à maneira da criança, o pensamento não oferece nenhuma autonomia. O paralelo com a criança, entretanto, não leva muito longe, já que a menor idade se desenvolve com uma rapidez espantosa. Ao passo que o homem primitivo, em vez de ser infantil, é plenamente um animal. E é dentro de um comportamento basicamente adulto que esse homem passa a desenvolver suas faculdades mentais. Isso, repito, num processo em tudo demorado. Convém chamar a atenção para a importância de uma palavra que acabo de empregar: os antigos entendiam a razão como facultas, “faculdade”, e faculdade significa atividade; é pela atividade que a tardinheira razão desenvolve seu estatuto específico. Claro está que tal estatuto vai se expandir de muitos modos, em cada povo, em cada cultura, e de certo modo também, por decorrência, em cada indivíduo. Mas tudo se faz norteado pelas vicissitudes oriundas das exigências práticas.
Em segundo lugar, há um momento nesse vagaroso processo de evolução que ostenta um privilégio excepcional. Trata-se, escusado dizer, da Grécia. E é aí que tem início a história da razão de um modo bem mais preciso. Mas começa aí também uma certa ambiguidade. A vocação primeira da razão, seu destino por assim dizer natural enquanto atividade humana, está em fazer que o homem se ocupe de suas circunstâncias simplesmente mundanas. Acontece que a atividade da razão deixou-se perturbar, muito cedo, por elementos de natureza teológica. De fato, foi apenas nos tempos modernos que o engenho racional conseguiu alcançar um nível de autonomia muito grande, e pôde assim desembaraçar-se daquele estorvo teológico. Mas nos começos, e isso nem poderia ter ocorrido de outro modo, os gregos tiveram uma ideia em tudo original e absolutamente genial: eles inventaram que o próprio Deus é razão. Já na mitologia, Apolo, por exemplo, é o deus do Sol, da inteligência. Quando Tales, o primeiro filósofo, asseverara que tudo está cheio de deuses, ele queria dizer que há uma forma de inteligência aderida a todas as coisas, ideia que faria grande sucesso no pensamento antigo. Há, sobre o tema, entre muitos, um fragmento esclarecedor de Heráclito: “É sábio escutar não a mim, mas as minhas palavras […]” — logoi;[1] essas palavras vêm do Logos, do pensamento divino: o critério do pensamento está no Absoluto, e não no homem. Parmênides, para citar mais um exemplo, nem sequer fala, ele é conduzido, relata o passo inaugural de seu belo poema, à presença da deusa, Dike, a Justiça, e ela é que mostra ao filósofo o caminho da verdade. Em definitivo, tudo acaba sendo teologia. Há uma palavra, encontradiça com certa frequência nos diálogos platônicos: inspiração; a inspiração habita o homem e tem origem divina, um pouco à maneira daquele daimon, o demônio bom que circula no interior de Sócrates e comanda seus passos, os caminhos de seu pensamento. Portanto, o divino, de múltiplas maneiras, faz-se presente em tudo, principalmente no pensamento, e ele toma a si a tutela da razão humana. E, evidentemente, o que vale para a razão grega valerá também, a seu modo, para a longa tradição do pensamento cristão: a medida está sempre no divino, e mais precisamente na revelação, na palavra do próprio Deus.
Contra isso tudo, disse, a razão começa a desalienar-se e a impor-se enquanto atividade autônoma apenas nos tempos modernos. Realmente, com Descartes processa-se uma reviravolta que parece até superar em tudo a duas vezes milenar tradição inventada pelos gregos. Já é significativo que as Meditações metafísicas do pai da filosofia moderna comecem com o escorço de uma autobiografia. Biografia crítica, poder-se-ia dizer, já que, nela, procede a uma espécie de suspensão de todo seu passado. Assim, lançando suspeitas sobre sua vida pregressa, ele legitima o artifício da dúvida, e nesta, com a hipótese do gênio maligno, por pouco não é a própria divindade que se desacredita. Mas, percorrido esse itinerário, o nosso filósofo alcança por fim a certeza absoluta, o cogito, ponto de partida de toda edificação filosófica. E não é meramente curioso o fato de que, para Descartes, a experiência absoluta já não coincide com a experiência do Absoluto, ela se deixa averiguar em termos simplesmente humanos, trata-se do exercício da razão presa à sua própria imanência — apenas em um momento ulterior é que o recurso a Deus passa a ser solicitado. Desse modo, varrido o passado, inventa-se o homem moderno.
Mas gostaria de voltar por um momento à Grécia, e tecer algumas considerações principalmente em torno do pensamento de Platão. Mas lembro primeiramente as auroras.
Todo pensamento ocidental prende-se a dois tipos de exercício da razão, e ambos foram inaugurados pelos gregos: um por Parmênides, e o outro por Heráclito. Parmênides enfatizava o que considera o único caminho realmente válido para o pensar: o caminho do ser, do ser bem redondo, uno, eterno, imóvel, imutável, perfeito — o ser é simplesmente aquilo que é. Contraposto a ele, haveria o absurdo radical, logo descartado, que seria o caminho do nada. E entre os dois cabe vislumbrar um terceiro caminho, o dos pobres mortais, tontos de duas cabeças, jogados que são do ser para o nada e do nada para o ser. É claro que esse caminho, como que contaminado pelo nada mas não excluído do reino da verdade, não poderia apresentar consistência maior: ele se atém apenas ao mundo das aparências, da doxa, da opinião, que se contrapõe rigidamente ao primeiro caminho, o do ser. A única via realmente trilhável é a que afirma que o ser é igual ao ser, que a, como dirá a lógica, é igual a a, e que além disso não podemos ir. Já volto ao tema.
O outro caminho foi elaborado por Heráclito. Chegou-nos dele um belíssimo fragmento, que Hegel certamente não conheceu: se o tivesse conhecido certamente teria escrito sobre o tema que o fragmento aborda um certeiro comentário. Mas, a esse respeito, Hegel só conheceu a doutrina heraclitiana dos contrários: quente e frio, bom e mau, masculino e feminino, e por aí afora. Ora, o fragmento a que me refiro diz o seguinte: “Não houvesse a injustiça, ignorariam o próprio nome da justiça”.[2] Aqui, não se trata tão somente dos contrários, e sim de uma clara contradição: o desvelamento do que seja a justiça passa pela não justiça. Isto é: o nome, o conceito, depende da frequentação da negatividade: só sabemos o que realmente é a saúde através da enfermidade. O nome da justiça, o seu conceito, só se atinge através de sua negação. Com outras palavras: a verdade não se alcança apenas pela passagem fictícia de a a a, pois, longe disso, para atingir a faz-se necessário percorrer todo um desvio: é através da experiência de b que se chega realmente a a. Mas o grande mestre do pensamento tradicional foi de fato Parmênides — até ser desdito justamente pelo hegelianismo. E passo a Platão.
Num diálogo de juventude, Crátilo, batizado com o nome de um discípulo de Heráclito, Platão marginaliza o pensamento deste último com uma facilidade notável, pretendendo em conclusão prender-se à hegemonia do ser parmenídico. Mas, logo mais, as coisas passaram a complicar-se. Num grande diálogo da maturidade, O sofista (que ostenta o subtítulo Do ser), primeiro tratado de metafísica do Ocidente, Platão propõe-se descartar a figura do sofista. Lembro que os sofistas eram sábios, sophos, oriundos das colônias gregas, que aos poucos afluíam à grande Atenas atraídos por sua irradiação cultural. Lá chegados, para viver, punham-se a dar aulas de retórica sobre os temas em que eram versados; sem dinheiro, introduziram o hábito de cobrar por suas lições — comportamento considerado estranhíssimo para o cidadão grego de então, dedicado aos privilégios da assiduidade às assembleias, ao diálogo político, à frequentação do teatro e, mais que tudo, à preparação das guerras e à participação nelas. Ora, os sofistas pareciam fomentar um sério desvio no comportamento usual dos jovens. Platão e Aristóteles incumbiram-se de denegrir-lhes a imagem, no que obtiveram um sucesso mais de duas vezes milenar. A reabilitação do sofista terá início, de fato, com Hegel, e principalmente, já em nosso século, com as valiosas pesquisas do italiano Untersteiner. Mas, para os dois grandes mestres do pensamento grego, o sofista acaba representando um sério perigo precisamente devido a sua atividade docente: é que eles trocavam a plenitude do ser pela pseudoverdade do mundo das aparências. O seu discurso não passaria de um engodo no qual os fins justificam a elaboração de quaisquer meios. O perigo representado pelo sofista originar-se-ia exatamente dessa conivência com o não-ser. E na refutação de tal conivência concentra-se o escopo primeiro do diálogo platônico.
De certo modo, Platão arma para si mesmo uma cilada. Pois, como proceder? Com a lógica parmenídica jamais se poderá incriminar o sofista. Se o sofista é o campeão do não-ser, em boa dialética só consigo derrotá-lo se me arvorar em pensar o não-ser; caso contrário, a mais ágil das argumentações, dizendo apenas o ser, deixará nosso inimigo incólume. Só há então uma saída: o notório parricídio.[3] Platão atreve-se a cometer um crime inafiançável: tenta pensar o não-ser. E, nesse seu intento, ele elabora nada menos do que o primeiro grande quadro categorial da metafísica. O resultado é tão extraordinário que o leitor facilmente chega a ter a impressão de que o tal sofista não passava de um pretexto. Pois o parricídio subsiste no próprio cerne daquele quadro.
Trata-se, portanto, de pensar o ser, mas de tal maneira que se possa refutar não só o sofista, esse negociante do não-ser, mas também dominar a natureza do erro. O pano de fundo, como sempre, está na relação entre unidade e multiplicidade; claro que, como sempre também, para Platão, tudo se concentra no mundo das Ideias divinas, e nosso filósofo nem sequer se ocupa de provar sua existência: elas funcionam como uma espécie de pressuposto já do assentimento de todos. Eis o nervo de articulação da arquitetura que oferece O sofista: entre a suprema Ideia, a do Bem, e a multiplicidade das Ideias, Platão introduz algumas categorias — o nome mais geral das coisas, como definirá Aristóteles —, que garantem a inteligibilidade do real. Por que a necessidade do parricídio? Porque a subserviência absoluta ao princípio parmenídico da identidade metafísica condena o pensamento à estéril proposição tautológica, que daria razão a Antístenes: é impossível afirmar que o homem é bom, só se pode avançar que o homem é homem e o bom é bom. O que está em jogo é, pois, a predicação; é necessário que haja comunicação entre as Ideias. Ou melhor: algumas Ideias se comunicam com outras, e outras Ideias não se comunicam, e há algo que corre entre as Ideias, para garantir-lhes a comunicação possível e a inteligibilidade. Esse algo é o ser, ao qual Platão acrescenta mais quatro categorias: o movimento, o repouso, o mesmo e o outro (ou a diferença, se se preferir a tradução de David Ross). Além disso, há um sexto termo, digamos que se trata de uma quase-categoria: o não-ser. Pois acontece que o não-ser, numa determinada relação, é, e que o ser, por sua vez, de algum modo não é.[4] Evidentemente, para Platão esse não-ser não poderia ser o não-ser absoluto, o contrário absoluto do ser parmenídico; ele é, antes, um outro ser, ou um ser outro, a alteridade, a diferença. Assim, como exemplo já no plano das categorias, o movimento é o não-ser do repouso, como este é o não-ser daquele. Cabe inferir que o ser é o próprio jogo das relações.[5] Desse modo, o “ser corre através de todos os gêneros”,[6] ou das categorias, bem como através de todas as Ideias.
O notável da análise platônica reside precisamente nesse tipo de construção metafísica que, longe de fixar-se na mesmidade do ser eleático, busca flexibilizar-se através do acolhimento das dimensões radicalmente não eleáticas: o movimento, o outro e o não-ser. Evidentemente, tudo permanece adstrito, em Platão, ao mundo das Ideias; são interpretações de caráter ontoteológico, e que nada têm a ver com o nosso mundo. Entretanto, não é difícil perceber que Platão, se seu discurso for considerado numa perspectiva puramente formal, está fazendo nada menos do que uma primeira tentativa de fundamentação do problema da contradição, e abrindo assim o caminho para um tipo de ontologia que não se limite ao círculo fechado da identidade. Inútil acrescentar que esse avanço platônico acabou não significando praticamente nada para o evolver da metafísica, já que esta ficou presa, pelo privilégio emprestado à identidade, ao “esquecimento” daquelas dimensões que passaram a ser consideradas negativas. De fato, o banimento da contradição arrasta consigo também a presença do ser do não-ser, do outro, e inferioriza de modo flagrante toda a questão do movimento. O admirável, no caso de Platão, está justamente nessa abertura ao plano, digamos, da não-identidade. E não se diga que Platão está meramente preocupado com a refutação do sofista; em verdade, o que ele elabora é o próprio cerne de sua ontologia. Tanto que a questão do heteron, do outro, em particular, está longe de restringir-se ao diálogo aventado. Realmente, não é apenas curioso o fato de que Platão volta ao tema do outro em sua velhice, no Timeu. O diálogo explora a preocupação do autor com a natureza do mundo, e, na sua sempre afanosa busca de um modelo, afirma que este mundo é cópia de um modelo eterno.[7] Platão discute a natureza da alma adequada a tal mundo; e relata: o Demiurgo compôs essa alma a partir de uma certa mistura: ele misturou o que Platão chama de substância indivisível, eterna e invariável, com a substância divisível, que se encontra nos corpos; e com a mistura conseguiu produzir uma terceira substância, intermédia, substância essa que compreende em si a natureza do Mesmo e a natureza do Outro; tomou então essas três substâncias e combinou-as em uma forma única, harmonizando pela força o Mesmo à substância do Outro, “que resistia a ser misturado”.[8] Claro que isso tudo é apresentado apenas como mito, mas, justamente, sabe-se da importância da presença dos mitos criados por Platão para elucidar, por assim dizer, os limites mais extremos de seu pensamento. Seja como for, a aventura platônica de fato consumou-se, e ela só chegará a ser demitificada ao termo de toda a evolução da metafísica, a partir dos desdobramentos da ontologia hegeliana.
No correr do desenvolvimento da metafísica ocidental a presença do outro sempre representou qualquer coisa como um perigo a ser cuidadosamente evitado. E o primeiro a dar-se conta claramente do que poderia representar a anuência a tal perigo foi nada menos do que Aristóteles. Não somente porque ele recusa o mundo das Ideias platônicas: elas nem existem, diz redondamente o Estagirita, e mesmo se existissem nada explicariam, apenas transfeririam o problema da multiplicidade para a esfera divina, dificultando tudo. Mas ele silencia sobre o próprio cerne da ontologia platônica, sobre aquelas seis categorias, e entrega-se, antes, à edificação de uma nova tabela de categorias, fundamentada por inteiro na categoria de base, a substância. E com essa nova base Aristóteles constrói também o seu Organon, que saiu por inteiro de sua cabeça. O outro é escamoteado, ou é reduzido à marginalidade dos acidentes, que não prejudicam em nada a prioridade do mesmo, da substância. Nem há exagero em afirmar que Aristóteles se revela, no fundo, mais parmenídico do que Platão. Sua lógica, fundamentada no princípio de identidade e que acaba encontrando sua guarida última e definitiva na substância absoluta, encontra seu empenho maior precisamente no banimento da contradição, que se faz, simplesmente, sinônima de erro. O amplo domínio que essa lógica exerceu sobre o todo do pensamento ocidental, até o surgimento da crise da metafísica, comprova apenas a natureza teológica da identidade aristotélica.
A questão que se coloca aqui, em relação a essa extraordinária hegemonia da lógica da identidade, não deixa de ser paradoxal. O raciocínio lógico de tipo aristotélico, considerado formalmente, foi escassamente empregado ao longo da história da filosofia. O decisivo, o que realmente funciona nessa lógica, está em seu fundamento, na ordem teológica que garante. O problema já deve ser colocado em função do próprio Aristóteles: ele não é nada ortodoxo na formulação do raciocínio filosófico em geral, e isso já por razões que nem poderiam ser fundamentadas no preconizado tipo de raciocínio lógico. Trata-se aqui prioritariamente da dialética tal como Aristóteles a entendia, mais presente em sua obra do que permitiria supor o rigor lógico. Mas não só dela. Veja-se sobre o assunto o texto que transcrevo a seguir, notável por seu sucesso de síntese, escrito por um excelente intérprete:
Ter-se-ia de mostrar que, se o silogismo está praticamente ausente da Metafísica, encontram-se nela em contrapartida todos os procedimentos descritos nos Tópicos e nas Refutações sofísticas: a refutação, a divisão (sob a forma propriamente aristotélica da distinção dos sentidos), a indução, a analogia etc. Apenas citemos aqui, de memória, o estabelecimento do princípio de contradição pela refutação de seus negadores, a distinção dos sentidos do ser, a determinação puramente analógica dos princípios considerados em sua unidade, de modo geral o caráter diaporético das exposições “introdutivas’’ que tendem a confundir-se aqui com a Metafísica em seu todo, e em quase tudo esse tom polêmico que, segundo as justas expressões de Charles Thurot, revela mais “o diálogo da disputa’’ que o “monólogo da ciência’’. Deve-se então dizer que dialética e ontologia se confundem? A confusão de fato não nos deve aqui mascarar a distinção de direito, nem a identidade dos procedimentos a diversidade das intenções. Permanece verdadeiro que a intenção filosófica é “cognitiva’’, ao passo que o objetivo da dialética é simplesmente “peirástica’’. A dialética, não mais que qualquer outra arte, não tem em si mesma o seu próprio fim: instrumento universal de exame, pertence à sua essência colocar questões mais do que a elas responder; indiferente ao conteúdo, ela põe entre parênteses toda consideração de interesse, mesmo que esse interesse for a própria verdade.[9]
Seria quase o caso de jogar o rigor epistêmico defendido na analítica contra o próprio Aristóteles.
O tema é colocado pelo grego também de outro modo: no início do livro Das partes dos animais, introdução à sua biologia, Aristóteles distingue entre dois tipos de abordagem na pesquisa, considerando ambos legítimos: um está na ciência das coisas, e o outro é chamado, neste texto, de cultura (paideia), que é apenas outro nome para a dialética; a equilibrada isenção de Aristóteles não impede que se reconheça aqui que o método mais empregado por ele é o dialético. Eis os traços fundamentais dessa cultura geral, que é todo o oposto do discurso inconsistente: universalidade, função crítica, caráter formal, abertura à totalidade. Mesmo a negação passa a ostentar uma dimensão válida: as proposições dialéticas oferecem um caráter negativo associado ao caráter universal. Ao invés de fixar-se, como faz acertadamente a ciência, sobre uma natureza determinada, a dialética liga-se à totalidade, alçando o negativo, como diz Aubenque, à condição de “índice de uma possibilidade indefinida, tornando-se abertura para a totalidade”.[10] E não me furto de citar mais este passo da análise de Aubenque:
Tal é em Aristóteles o triunfo amargo da dialética: que o diálogo sempre renasça a despeito de seu fracasso, e, ainda mais, que o fracasso do diálogo seja o motor secreto de sua sobrevivência, que os homens possam continuar se entendendo quando já não falam de nada, que as palavras conservem ainda um sentido mesmo que seja problemático, além de toda essência, e que a vacuidade do discurso, longe de ser um fator de impotência, seja transmudada num convite à pesquisa indefinida.[11]
Nosso comentarista chega a aproximar Aristóteles dos sofistas.
Resta apenas um detalhe: é que a real reabilitação do sofista — e mesmo a análise de Aubenque — só se fez possível em nosso tempo. Não é por acaso que a dialética aristotélica foi tão radicalmente denegrida ao longo da história; é que o discurso deixava-se guiar por um ideal monológico, e as aberturas possíveis, tais como as que encontramos já no pensamento grego, permaneciam como que embebidas em uma atmosfera metafísica, ou ontoteológica, que tudo tinha a ver com o monismo do ser parmenídico.
Sugeri em outro lugar, a propósito das belas hipóteses discutidas por Platão, em seu diálogo Parmênides, que elas de certa forma delineiam como que os possíveis de todo o pensamento futuro; elas seriam justamente o resumo das possibilidades desse pensamento. Lembro: são três as hipóteses fundamentais: a que afirma que o ser é como um bloco uno alheio a qualquer distinção, e, se nada se distingue de nada, suspende-se a relação e o diálogo se torna impossível, e caímos no alogon, no mutismo; noutra hipótese, incide-se no extremo oposto, tudo são blocos distintos suficientes em seu isolamento, e por isso mesmo suscitam novamente aquele mutismo; restaria então uma hipótese intermediária, na qual a separação se compatibilize com a unidade, e torne o discurso possível. Ora, ao longo da história da metafísica, as possibilidades, dentre as três aventadas, concentram-se em duas delas; a mais forte é a terceira, que cedo passa a chamar-se concepção análoga do ser: o ser se diz de muitas maneiras, postulava já Aristóteles. Acontece que essa hipótese vive como que à sombra da primeira: só ao Uno cabe plenamente o ser; fora de Deus todo ser revela-se afetado por uma alteridade radical, oriunda, em última instância, do nada. Assim, o outro que não o ser só é na medida em que for destituído de sua alteridade. É ao menos interessante observar que o descompasso em que acaba incidindo a metafísica leva a intensificar a presença do panteísmo, como se se tratasse de uma precipitação inevitável; é precisamente isso o que mais caracteriza talvez a metafísica moderna. E o que se vê nesse caso é que Platão não deixa de estar certo: o panteísmo leva ao alogon, ou seja, à crise da metafísica, ou à morte de Deus. Esgotadas as duas hipóteses referidas, resta a segunda, sempre repelida e apelidada pela tradição de concepção equívoca do ser: tudo é distinto de tudo. Não há nenhum exagero em afirmar que, vistas as coisas na perspectiva em consideração, o grande programa da filosofia contemporânea, a partir de certos avanços introduzidos já pelo próprio Hegel, está em pensar a multiplicidade na medida em que ela se oferece eivada de alteridade. Assim, de muitas maneiras, forra-se o horizonte do que pode ser chamado de ontologia da finitude radical. Cabe aqui acenar ao tema através de algumas observações em torno de dois tópicos: a questão da contradição e a da diferença.
Deve-se afirmar que a origem da dialética — mas não nos interessa examinar aqui, já pela complexidade do tema, os diversos sentidos da palavra dialética, para os pré-socráticos, Platão e Aristóteles — situa-se no contexto da metafísica; nessa acepção seu primeiro grande pensador foi sem dúvida Platão, quer no sentido de uma dialética interior ao mundo divino das Ideias, acima já referida, quer no sentido da dialética ascensional, através da qual a alma supera as baixezas da multiplicidade sensível a favor da contemplação das coisas divinas. A dialética platônica é, assim, duplamente metafísica, em dois sentidos. E no fim da história da metafísica a dialética volta a ocupar novamente o centro da cena; agora, com Hegel, é a realidade inteira que deve ser metafisicamente superada pela integração no elemento divino. Mas, com Hegel, anuncia-se um adendo ao nosso tema em tudo decisivo. Se a metafísica entra em crise, não deve causar espécie que esse seu produto que é a dialética sofra também as metamorfoses decorrentes dessa crise. E o que se verifica — como procurei mostrar longamente em outro lugar — é que o peso maior da dialética se vê transferido da síntese final para as aventuras do mundo em suas contradições; passa-se, pois, a falar, por exemplo, em dialética negativa. Faço aqui duas observações. Em primeiro lugar, não se trata de rebaixar a dialética à condição de método, ainda que privilegiado, mas que faria dela um método entre outros. É curioso observar que nem Hegel nem Marx manifestaram interesse acentuado em pensar em nível metodológico a questão da dialética; aliás, espanta até que eles raras vezes refiram o assunto — o que não quer dizer que “falte” em um e outro algo como um tratado de metodologia. As coisas “pioram” ainda mais se se pensa que, em Hegel, a dialética nem sequer pretende ser um tipo de abordagem universal do real: amplos setores da realidade, como o reino da matéria e o das matemáticas, e todo o comércio que se possa viabilizar entre ambas simplesmente escapam à própria possibilidade da inteligibilidade dialética. É que a dialética não deve ser considerada um método na acepção usual da palavra; ela ostenta agora, de saída, uma pretensão ontológica: é a própria estrutura da realidade tal como Hegel a entende que se desdobra pela trama das contradições. E isso está longe de qualquer cientificismo metodológico, como também de qualquer preeminência que se pretenda atribuir à questão dos métodos formalizados.
A segunda observação esclarece melhor o tema por referir-se à questão da história. Se Hegel recusa atribuir dialeticidade à matéria e à matemática é porque elas não conseguem alçar-se ao nível da processualidade histórica; esta se orienta para outros endereços, e é no próprio Deus que a dialética se sente realmente em casa. Em última instância, no pensamento hegeliano, não obstante a presença até mesmo vigorosa dos temas que iluminariam os próprios alicerces da crise da metafísica, tudo quer-se resolver em termos definitivamente metafísicos — a síntese totalitária tudo deve absorver. Um passo mais, e com Marx as coisas se transmutam de modo muito claro e definido. É que Marx, avesso aos estratagemas metafísicos, só conhece uma ciência: a história. E nesse novo contexto ele se importa com dois itens básicos: a natureza histórica da ciência e a historicização da natureza — dois itens, de resto, que caminham juntos. De fato, hodiernamente, dessora-se o espaço em que se pudesse considerar uma ciência em si mesma, enquanto autônoma, indiferente ao contexto tecnológico e social. Os tempos modernos encarregaram-se de destronar tal tipo de ciência; introduziu-se, por exemplo, já com Francis Bacon, a ideia de que saber é poder, ciência é dominação; e, um pouco antes de Marx, Augusto Comte percebeu muito bem as implicações dessa invenção moderna que é o engenheiro, o homem que estuda a ciência e que a traduz para o terreno da manipulação técnica — desse modo, cria-se a tecnologia. Mesmo que se deva defender o necessário exercício da pesquisa pura, tal pureza acabará fatalmente adulterada pelos avanços da tecnologia e do bem-estar social. E isso já vai tão longe que a tese deve ser invertida: a técnica não decorre da ciência; a técnica — assevera a correta interpretação de Heidegger — pertence antes à própria essência da ciência moderna. Começa-se a superar, já por aí, a surrada dicotomia da doutrina dos dois mundos, um espiritual e superior, o outro material e inferior, que estabeleceu as raízes do abismo, no humanismo clássico, entre o elitismo da vida contemplativa e a marginalidade do simples artesanato. Paradoxalmente, é a própria definição do homem como animal racional que entra em colapso; o elemento racional já não se contrapõe ao corpo, e a ciência já não exclui o artesão; a defesa da pesquisa pura só se entende, por assim dizer, a título provisório, a ciência rebate necessariamente na prática, quando não for motivada de modo mais ou menos imediato por essa mesma prática. E tudo isso acasala-se perfeitamente bem com o asserto de Marx de que já não existe mais uma natureza em si: tudo já foi transformado pelas mãos do homem, tudo foi cartografado, medido pelo viageiro trabalho humano. Isso significa que a natureza foi infringida em seu estatuto originário: de coisa ela passa a ser objeto — o próprio planeta em que vivemos é agora um imenso objeto. Acontece que o objeto só existe em sua relação com o sujeito, e essa relação encontra sua expressão mais avantajada justamente na investigação científica e na manipulação tecnológica. Quando Marx afirma que só há uma ciência, a história, ele quer dizer precisamente isto: a atividade humana historiciza a natureza, e o lugar mais adequado a tal historicização está nas ciências irmanadas à tecnologia transformadora. A história, já pelas vias do fazer técnico, pertence à própria essência da ciência, e isso nada tem a ver com a pasmaceira relativista — tem a ver, sim, com o andamento do mundo.
O segundo tópico concentra-se na questão da diferença. É nessa palavra hoje tão difundida que se pode ler ao menos o ponto de partida de tudo o que a crise da metafísica trouxe de afirmativo. O tema poderia ser perquerido enquanto singularmente complicado com o problema da contradição dialética. Deixo por ora esse caminho de lado. E tomo outro rumo, o do pensamento de um antidialético radical (ao menos na acepção hegeliana da dialética): penso em Heidegger, mas também nos múltiplos modos de se fazer presente a palavra diferença (mesmo quando ela permanece encoberta), em posições as mais diversas, diversidade que já ostenta uma bela história e tão díspar que nem se pode pensar em tudo reduzir a Heidegger; mas são justamente os caminhos dessa múltipla divergência que mostram toda a relevância do tema. Tento aqui, em breves linhas, traçar o sentido de um itinerário, ou ao menos daquilo que parece sê-lo não obstante todo o peso do leque das divergências.
Portanto, o pensador maior do tema da diferença é sem dúvida o já clássico Heidegger. A expressão consagrada é “diferença ontológica’’, que abre espaço para pensar a separação entre ser e ente. Apenas o lembrete: se a metafísica confunde o ser com o ente, em especial com Deus, esse ente absorve o ser, e o ser entificado passa a funcionar como fundamento. Segue-se disso o esquecimento do ser. A questão deve ser retomada, em consequência, a partir de suas raízes históricas — daí a necessidade da destruição da metafísica. Destruição quer dizer: clarear o campo em que se põe a questão do ser. Se a questão toda gira em torno da relação entre ser e ente, digamos, com certa pressa, que o tema se abre em duas perspectivas: a do ser e a do ente. Ou então, em duas direções: o ser em sua relação com o ente, e o ente em sua relação com o ser. Está tudo nessa questão da dependência: não há ser (ou sentido) sem o ente, e não há ente sem o ser. Sabe-se que o primeiro Heidegger chegou a referir-se à dependência do ser em relação ao ente. No fundo, ter-se-ia de admitir que toda a questão do ser só faz sentido pelo ente, é para o ente que há ser. Ora, já cedo Heidegger se afasta dessa colocação, a ponto de incidir no que convém chamar de esquecimento do ente. Pois, de fato, o ser passa a ocupar todas as atenções do filósofo. O que interessa está no ser em sua diferença autônoma, na plenitude de sua soberania: nada acontece no ser além do próprio ser. E Heidegger fala em mandado do ser: de algum modo, o ser se desvela no ente, mas a medida de tal desvelar estaria pura e simplesmente no próprio ser. O sentido da linguagem vem todo inteiro do ser, e a palavra filosófica deve restringir-se, em última instância, em saber escutar o ser. Nada difícil de prever que, nessa soberania do ser, alguns intérpretes sintonizassem um processo de personalização do ser, ou quase, e isso para o encantamento de certos teólogos que aí pressentem uma espécie de reordenação do elemento divino; mas aí há também o contrapeso da desconfiança de um Sartre: “J’y flaire l’aliénation’’.
Mas o grave nisso tudo está naquilo que chamei de esquecimento do ente. Se a intenção de base concentra-se na superação da metafísica, do discurso ontoteológico, é precisamente a fundamentação divina do discurso que deve ser abandonada. E desde o início Heidegger fez-se pródigo nesse sentido: o tempo é o horizonte do ser; outro exemplo: a origem da obra de arte explica-se pela conjugação entre o mundo (ser) e a terra; ou ainda: a motivação originante do filosofar já não se encontra mais na admiração embutida no teologismo de uma realidade já constituída, e sim no Erahnen, numa perplexidade desamparada que apenas pressente o advir; e por aí afora. Vale dizer que o pensamento requer a postulação de uma nova ontologia, toda fincada no nível da finitude. Mas é justamente a reivindicação da finitude que parece resultar prejudicada pelo desvalimento do ente sobrevindo daquele mandado do ser: digamos que o ente se vê como que destituído de qualquer responsabilidade ontológica. E, se assim é, fica difícil perceber a que veio todo esse projeto de uma nova ontologia. Claro que os heideggerianos ortodoxos assumem por inteiro aquela autonomia do ser. Entretanto, o impasse acaba sendo radical: ou bem se admite, na relação entre ser e ente, a participação efetiva do ente, ou então se assiste ao esvaziamento do ente. As razões do próprio Heidegger em favor de sua postura não deixam de ser respeitáveis, principalmente por sua aversão ao subjetivismo individualista e, por extensão, à própria presença da dicotomia sujeito-objeto e toda sua tremenda carga histórica eivada de metafísica. Mas talvez se possa dizer que a posição de Heidegger peca por certa estaticidade, ou por vinculação excessiva às amarras históricas, vistas de um modo um tanto determinista. Pois toda a gravidade da questão concentra-se na realidade do ente: o esquecimento do ser, repito, apenas acoberta o esvaziamento do ente, daquilo que Platão chamava de menos-ser. E é precisamente esse esvaziamento do ente que parece prolongar-se em Heidegger. Evidentemente, nisso tudo está em causa o próprio cerne do pensamento heideggeriano; e não se deveria então avançar que esse pensamento também deve ser considerado como “vítima’’ daquele mandado do ser? No entanto, talvez no contra ponto que representa essa reserva resida toda a importância das teses do nosso filósofo — em pouco à maneira dos pré-socráticos, para os quais não é o filósofo que fala, e sim o ser através de sua palavra.
Seja como for, a presença maior de Heidegger vem sendo feita na contramão das intenções do pensador, justamente através desse processo de abertura para pensar o ente em todas as suas possíveis dimensões — isso, a ponto de às vezes ter-se a impressão de que a filosofia foi quase relegada. Não importa: o que conta está nesse afã em vasculhar o esquecido, o plano ôntico. O tema, então, passaria a ser este: o ser do ente, o ente em sua diferença; tal seria o desígnio maior envolto na famosa diferença ontológica. Já num primeiro passo, impõe-se aqui a destruição da metafísica, ou seja, o desmonte do “corporativismo’’ da política do governo teológico, viciado que era na distribuição de benesses com critérios bem definidos e sobejamente propalados: quanto mais longe de Deus, menos favorecido se tornava o ente. É, digamos, na infra-estrutura do real que os entes resultavam prejudicados. Nem cabe estranhar, por isso mesmo, que, com a crise da metafísica, a proliferação das ciências tenha se verificado de modo realmente espantoso; pense-se que, ainda ao tempo de Kant, só havia uma única ciência: a físico-matemática. Mas, já no correr do século passado, houve um verdadeiro processo de liberação, e praticamente tudo passa a ser objeto de investigação; rompem-se as atribuições de superior e inferior, títulos gerais, como materialismo e espiritualismo, esvaziam-se de sentido. E é fatal que se empreste importância ao dito menos-ser, é por ele que agora se aprimora o gosto, e as grandes hierarquias se tornam suspeitas.
Nesse contexto expande-se a descoberta do outro — e tome-se o adjetivo outro em sua acepção a mais ampla; busca-se ver o outro em sua dife rença. Com isso, entram em jogo as próprias bases da cultura ocidental. Não é por acaso que o século XVIII põe-se a ruminar, pela primeira vez na história, o conceito de humanidade, e, a partir de fins do século passado, as andanças da antropologia científica — que cito a título de exemplo privilegiado — não cessam de desanuviar outras e outras veredas de civilização e de condutas singulares. O planeta se faz subitamente pequeno, e busca concertar uma nova unidade, compatível agora, ainda que aos tropeços do aprendizado e dos amargores do inconformismo, com a descoberta das diferenças.
Para concluir, que fale o poeta, e nada melhor para deixar ver os novos desígnios e o lugar preciso da razão do que Drummond, que sabe ser nosso maior senão único pensador:
[…] Aprenderás muitas leis, Luís Maurício. Mas se as esqueceres depressa, outras mais altas descobrirás, e é então que a vida começa,
e recomeça, e a todo instante é outra: tudo é distinto de tudo,
e anda o silêncio, e fala o nevoento horizonte; e sabe guiar-nos o mundo.
Pois a linguagem planta as suas árvores no homem e quer vê-las cobertas
de folhas, de signos, de obscuros sentimentos, e avenidas desertas
são apenas as que vemos sem ver, há pelo menos formigas
atarefadas, e pedras felizes ao sol, e projetos de cantigas
que alguém um dia cantará, Luís Maurício. Procura deslindar o canto.
Ou antes, não procures. Ele se oferecerá sob forma de pranto
ou de riso. E te acompanhará, Luís Maurício. E as palavras serão servas
de estranha majestade. É tudo estranho. Medita, por exemplo, as ervas, enquanto és pequeno e teu instinto, solerte, festivamente se aventura
até o âmago das coisas. A que veio, que pode, quanto dura
essa discreta forma verde, entre formas? […]
Notas
[1] Fragmento 50.
[2] Fragmento 23.
[3] 241d.
[4] 241d.
[5] 257a.
[6] 259a–b.
[7] 29a–b.
[8] 34b e seguintes.
[9] Pierre Aubenque, Le problème de l’être chez Aristote, Paris, puf, 1962, pp. 300-1. Peirastikós, que aparece com grafia afrancesada no texto, significa “que ensaia, que experimenta’’.
[10] Idem, ibidem, p. 289.
[11] Idem, ibidem, pp. 294-5.