Razões do mistério
Resumo
O tema contemplativo do mistério adquire, no pensamento ibérico da Contrarreforma do século XVII e a partir de Inácio de Loyola, uma disposição militante. Em vez do claustro e do silêncio, é dada maior ênfase à liturgia e aos modos públicos de atuação religiosa. A matéria mais concreta e sensível ganha densidade sacra. Na retórica barroca do padre Antônio Vieira, o mistério é uma baliza a pontuar as ocasiões de arbítrio e os sinais da vontade divina. Mas, como esses sinais excitam os sentidos e podem assim se tornar diabolicamente autônomos, é preciso uma hermenêutica, uma “ciência dos signos” que sirva de guia. A agudeza verbal do intérprete deve corresponder ao processo alegórico-misterioso das coisas criadas. Daí, para Vieira e outros mestres da predicação, a qualidade oratória ser decisiva para a demonstração da substância mística. O mistério também se projeta nas instituições do Estado. Este se sobrenaturaliza, por assim dizer, com a transferência do poder da Igreja para a monarquia nacional. Mas, enquanto em Maquiavel o Estado é um artifício criado para o exercício do poder, Vieira toma o artifício político como uma harmonização natural da coletividade e do Príncipe tendo em vista a salvação. E, porque o presente sinaliza o futuro, a função do orador é ser o profeta, o historiador do que ainda não tem história. Assim, o topos do mistério não nega o racional nem o sensível, mas os dota de uma profundidade insuspeitada, uma vez que o visível significa mais do que aquilo que dá a ver.
Cuanto más escondida la razón, y que cuesta más,
hace más estimado el concepto,
despiértase con el reparo la atención,
solicítase la curiosidad,
luego lo exquisito de la solución
desempeña sazonadamente el misterio
- Gracián, Agudeza y arte de ingenio, Discurso VI
Este mundo é um teatro;
os homens e as figuras que nele representam,
e a história verdadeira de seus sucessos
uma comédia de Deus,
traçada e disposta maravilhosamente
pelas idades de sua Providência.
- Vieira, História do futuro, X
O conceito de mistério em alguns dos principais tratadistas e oradores do catolicíssimo século XVII ibérico funda-se no postulado de uma natureza cujas espécies (materiais, portanto) repõem, em sua própria ocorrência natural, uma substância infinita e invisível, análoga e proporcional à divindade. A sobreposição do infinito no finito, e, em termos sensíveis, a proposição de uma “presença sem vista”, tem sido com frequência interpretada, na história da cultura, como paradoxo e artifício gratuito, senão como efeito típico de uma época que facilmente se toma por “miracular”[1] e afeita a visionarismos irracionais. Entretanto, retomadas algumas de suas referências históricas, é possível verificar-se que tal sobreposição misteriosa guarda aspectos bem evidentes de uma estrutura racional, e, mesmo, de uma racionalidade por vezes fortemente pragmática. É o que se tentará argumentar neste ensaio.
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Para começar desde já pela oratória sacra de Antônio Vieira, S. J. (1608-97), que conheço mais de perto, pude perceber em outro estudo que ela evidencia um importante deslocamento na maneira de tratar a questão teológica da “união mística”. Aqui, refere menos o homem que é “enlevado” até junto de Deus por obra de sua Graça — isto é, alguém que sofre a ação de um raptus, que é transportado, arrebatado, que se deixa tomar pela embriaguez etc., movimentos todos que supõem o ultrapassamento dos sentidos e da mente — do que aponta para a ação humana capaz de instaurar no mundo uma vontade análoga à divina. Apenas no interior dessa apropriação de um tema contemplativo por uma disposição militante pode-se entender que a tópica dos sacramentos — e, exemplarmente, a do mistério eucarístico — assinale o nó argumentativo da melhor retórica do período. Agora, o movimento da ascese individual para Deus inverte a sua direção e multiplica as pessoas envolvidas nele: torna-se, enfim, um movimento de descida de Deus até o chão em que vive a coletividade dos homens.
O objetivo salvífico da efetuação dessa tópica renovada, na prédica, permanece agora tão decisivo quanto antes, apenas já não há a mesma ênfase em instrumentos como o claustro, o cilício, o silêncio, o limite de cinco pés para a vista etc. A partir de santo Inácio, sobretudo, tendeu-se a reduzir os atos de mortificação nos regimes ascetas em favor de uma rigorosa disciplina da vontade. No capítulo segundo da terceira parte das Constituições jesuíticas, dedicado ao tema da “conservação do corpo”, está prescrito, por exemplo: “[…] como la solicitud demasiada en lo que toca al cuerpo es reprehensible, ansí el cuidado conpetente de mirar cómo se conserve para el divino servicio la salud y fuerzas corporales es loable, y debrían todos tenerle”.[2] Ou: “La castigación del cuerpo no debe ser inmoderada ni indiscreta en abstinencias, vigilias y otras penitencias exteriores y trabajos que danan y inpiden mayores bienes”.[3]
Em compensação, redobra-se a atenção à liturgia, ao cerimonial, aos modos públicos de conversão — com destaque evidente da oratória sacra —, em que se crê atualizar a presença ativa de Cristo no mundo. Pelo menos as dez primeiras regras que guardam o “sentido verdadeiro” da Igreja militante, previstas por santo Inácio ao final dos Exercícios espirituais, tratam diretamente da importância da prática pública, cerimonial e sacramental:
Alabar el confessar con sacerdote y el rescibir del sanctíssimo […] alabar el oír misa a menudo, asimismo cantos, psalmos y largas oraciones en la iglesia y fuera della […] Alabar mucho religiones, virginidade y continencia […] alabar reliquias de sanctos, haciendo veneración a ellas, y oración a ellos: alabando estaciones, peregrinaciones, indulgencias, perdonanzas, cruzadas y candelas encendidas en las iglesias […] alabar constituciones cerca ayunos y abstinencias, así como quaresmas, quatro témporas, vigilias […]; alabar ornamentos y edificios de iglesias; asimismo imágenes y venerarlas según que representan […][4]
Nesta nova perspectiva, que a tradição posterior genericamente denomina barroca, a matéria mais concreta ganha densidade sacra, os sucessos e circunstâncias mais particulares e aparentemente contingentes ganham um estatuto dúplice, equívoco: tudo o que ocorre, assim como passa e desfaz-se, também sinaliza e revela. Não é por acaso que um fenômeno como o da levitação seja moeda corrente e largamente aceita nas trocas simbólicas e figurais da época: pode-se dizer que resulta da ação exercida por certa espessura espiritual que comprime e altera, a partir de dentro, a lei da matéria.
A via que se anuncia aqui refere, pois, em termos gerais, o movimento pelo qual o que é da ordem da transcendência — logo, não determinada por nenhuma essência particular, segundo a matriz tomista que retoma seu lugar central na ortodoxia desde meados do XVI — recebe, entretanto, espécies visíveis, e imprime nelas seu ato de ser. A unio mystica no terceiro céu transforma-se aqui na presença escondida, sob espécie, do divino no mundo terreno. Este é o lugar retórico que interessa destacar e que supõe uma constituição, como disse, ambígua, dúplice, em que o Ser divino se apresenta em traço material, mas em que esse traço tão-somente indica, jamais explicita, sua substância.
Ou seja, a natureza transcendente é assinalada por certos objetos e situações que, por sua vez, nunca a revelam por inteiro. Tudo o que fazem é anunciar que, por vezes, parecendo claros ou transparentes, tais objetos são apenas véus, vestígios, e que algo oculto existe naquilo mesmo que se dá a ver. Com efeito, o lugar retórico que alega o mistério implica a ideia de que o transcendente sacramenta determinados objetos do mundo sensível com a sua presença, que, contudo, permanece invisível. Eis aí, grosso modo, a forma pela qual se carrega esta espécie de energética suposta no mistério: há sempre o sinal manifesto de uma Coisa que, em si mesma, sem a mediação desse sinal, não se deixa ver. Vale dizer, a máxima definição de nitidez desse transcendente no plano sensível é como encoberto, jamais como visto ou conhecido.
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Entender, porém, a complexidade seiscentista do lugar retórico do mistério — em que o divino tem uma demarcação sensível, mas simultaneamente “fecha-se aos olhos”, como parece supor sua etimologia[5] — obriga, antes de mais nada, a considerar a eficácia pública singular que a ele se atribui na economia de salvação. Sobretudo num jesuíta, como Vieira, a tópica do mistério não dissocia jamais a especulação sobre o Ser de Deus, que raramente é muito desenvolvida, da comunicação salvífica que é feita através dela. Ou seja, a forma do mistério refere uma manifestação do Verbo dirigida para o mundo das imperfeições humanas, e expressa, assim, a sua generosidade providencial — pois, obviamente, tendo em conta apenas a própria Glória, Deus nada oculta de si.
Nessa perspectiva, tal retórica, comum ao barroco ibérico, repõe com agudeza uma “contradição” da herança católica, que oscila entre o secreto exigido pelos mistérios dos antigos ritos de sua origem e uma evidente “exigência de publicidade”[6] que está bastante nítida na pregação posterior relativa aos sacramentos. O pressuposto aqui é que o anúncio do fundo secreto define uma forma eficaz de mover o homem e dispô-lo à ação cristã; e isso porque, como pensa Vieira, a “obra sobrenatural” cuida sempre de usar os “instrumentos mais proporcionados aos efeitos”.[7] Nesse sentido, a tópica do mistério não é matéria de teologia especulativa apenas, mas de aplicação dos argumentos teológicos ao apostolado: o que acima de tudo conta é a sua disponibilidade para a ação eficaz de conversão.
Essa mesma concepção persuasiva do mistério, mas com acento posto não no apostolado, e sim no efeito agudo e deleitoso que permite ou enseja, encontra-se em outro jesuíta fundamental do XVII, o aragonês Baltazar Gracián (1601-58). Em sua Agudeza y arte de ingenio, logo após distinguir os tipos mais gerais de agudezas, prevê aquela que se daria por “ponderação misteriosa” e que consiste em “levantar misterio entre la connexión de los extremos, o términos correlatos del sujeto, repito, causas, efectos, adjuntos, circunstancias, contingencias; y después de ponderada aquella coincidencia y unión, dase una razón sutil y adecuada, que la satisfaga”.[8]
A proeminência dada a esse tipo de artifício engenhoso é justificada, por Gracián, pela exigência de custo e dificuldade que o homem associa ao gozo: “[…] quien dice misterio, dice preñez, verdad escondida y recóndita, y toda noticia que cuesta, es más estimada y gustosa”.[9]
Mas se há, no XVII ibérico, essa disponibilidade para o enigmático e misterioso, que entretêm os sentidos e a inteligência, do ponto de vista propriamente religioso, sempre essencial aqui, há igualmente uma avaliação atenta do peso do mundo sensível na restrição do arbítrio pessoal e na corrupção do desejo reto pelo “apetite”.
Para um autor como Vieira, parece próprio afirmar-se que Deus provê o mundo com sinais sensíveis de sua presença justamente para manter o desejo humano, nos limites da sua fraqueza própria, como legítima busca de seu Ser. O mistério é como uma baliza a pontuar as ocasiões do arbítrio e a assinalar a direção da vontade divina. Portanto, se há uma evidente relação — que facilmente se totalizaria como “barroca” — entre essa ideia de mistério e o sensível que supõe, há também consideração de sua ocasião e da variedade das circunstâncias sobre as quais incide.
Entre os autores jesuítas, parece-me mesmo adequado pensar que a ocasião define, por excelência, o modelo em que se dá tanto o processo de escolha típico do arbítrio como o processo de julgamento e exculpação dos atos que se lhe seguem. Assim, a escolha circunstanciada sobrepõe-se, por assim dizer, ao imperativo da lei: não porque naquela não haja lei, claro, mas porque, para tais autores, a realidade dos casos figura mais precisamente a lei que a sua formulação genérica ou apriorística. Isso permite que Vieira afirme, por exemplo: “Não sou de fazer mistérios dos acasos, mas folgo de fazer doutrina da ocasião”.[10]
A formulação sintetiza, para o domínio hermenêutico da oratória sacra, algumas das principais considerações de Gracián a propósito da ponderação misteriosa. Por exemplo, no que toca à condenação do artifício gratuito: “Levantar o misterio donde no le hay es un helado desaire, porque da en vacío la ponderación”.[11] E também no que refere a natureza essencialmente ocasional, mas não casual, do mistério: “Las contingencias son la ordinaria materia de los misterios; porque como pudieron variarse, el concurrir estas más que otras, ocasiona luego el reparo”.[12] E também:”La fuente destas ponderaciones misteriosas es la variedad y pluralidad de las circunstancias, suceder con estas, más que con otras: desta suerte, más que de aquella”.[13]
Se é correto dizer, portanto, como Maravall, que “en el XVII la variedad es una de las bases de toda concepción barroca”,[14] é necessário acrescentar, para maior consistência do verossímil, que isso apenas se dá porque vário é o estado em que a substância única se condensa e a forma do mistério se apresenta.
Está claro, de qualquer modo, que o mistério postula-se em oposição ao casual, isto é, ao que não encontra razão para as correspondências, ou ao imaginário, quer dizer, ao que fantasia razões sem fundamento de ser. Em termos positivos, é saber documentado no exame das circunstâncias em que se propõe uma escolha conveniente.
Na fórmula de Vieira, não basta tampouco que o mistério seja persuasivo, exige-se que o seja de modo a repor a substância original teológica que se descobre nos casos. Conta mais o mistério na medida em que oferece generosamente a figura da transcendência e, através do que nela é sensível, orienta um arbítrio que se confunde em meio à variedade do mundo. A mesma variedade do mundo que se tornou tópica entre os autores do período e que usualmente se descrevia como vanitas, engano e pó; sombra, zombaria e nada.
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Antes de prosseguir, convém observar que, do ponto de vista da ortodoxia, em princípio, nenhuma matéria pode conter Deus, embora, por outro lado, nenhuma matéria exista sem tê-lo por Causa. Isso dá o horizonte genérico da hermenêutica católica. No que toca mais de perto a figurações correntes do período barroco, derivadas de releituras predominantemente tomistas, em que ressalta a relevância dos sentidos no processo cognitivo e salvífico do homem, a primeira coisa a considerar-se ortodoxamente é a generosidade comunicativa de Deus. É essa generosidade que o leva a manifestar-se através de sinais, os quais, por sua vez, recolocam a função decisiva do arbítrio no atendimento à finalidade cristã da existência.
Entretanto, como facilmente admitem os autores do período, não apenas ibéricos, os próprios sinais, ao excitarem os sentidos e, com eles, os afetos e a imaginação, alimentam o risco de se tornarem autônomos num processo diabolicamente tautológico, pois, repondo-se como totalidade e não como anúncio, esvaziam-se de sua busca essencial do Ser. O oratoriano francês Jean-François Senault (1599/1604-72), em seu admirável De l’usage des passions, de 1641, tratando justamente do “movimento do apetite sensitivo”, que define toda paixão, afirma:
Ce mouvement est causé par l’imagination, qui étant remplie des especes qu’elle a receuës de tous le sens, sollicite la passion, et luy découvre les beautez ou les laideurs des objets qui la peuvent émouvoir: car c’est elle qui cause tout le ravage: l’appetit sensitif a tant de deference pour elle, qu’il suit toutes ses inclinations; pour peu qu’elle soit agitée elle entraîne toutes les passions, elle excite les tempestes, comme les vents élevent les flots, et l’ame seroit paisible en sa partie inferieure, si elle n’étoit émeuë par cette puissance […][15]
Assim é que, com frequência, muitos autores do XVII, tão logo levantam sinais na matéria e os supõem traços de uma escrita transcendente, julgam igualmente necessário legislar ou, enfim, interrogar o fundamento da autoridade de seus intérpretes, como é o caso de Vieira:
Que historiador há ou pode haver, por mais diligente investigador que seja dos sucessos presentes ou passados, que não escreva por informações? E que informações há-de haver que não vão envoltas em muitos erros, ou da ignorância, ou da malícia? Que historiador houve de tão limpo coração e tão inteiro amador da verdade, que o não inclinasse o respeito, a lisonja, a vingança, o ódio, o amor, ou da sua, ou da alheia nação, ou do seu ou de estranho príncipe? Todas as penas nasceram em carne e sangue, e todos na tinta de escrever misturam as cores do seu afeto.[16]
A legitimação do intérprete, com efeito, subordina-se à aplicação correta de uma verdadeira ciência de signos. Nessa perspectiva, a Providência que semeia sinais imediatamente postula o saber exclusivo de uma tal ciência, que exige tanto o aval canônico da tradição eclesiástica como o de sua competência moderna na interpretação dos sucessos atuais da história prática, coletiva e institucional.
Trata-se, aqui, de início, de uma ciência dos signos muito apropriada ao caráter jurídico da Contra-Reforma e cujo saber tende a alegar a investidura legítima do intérprete na sede das hierarquias eclésio-políticas. Escrituralmente, são Paulo fornece a matriz dessa exigência de legitimidade da exegese, quando condiciona o valor das profecias dos coríntios ao reconhecimento por parte deles de que Paulo, ele próprio, fala por autoridade divina: “Se algum crê ser profeta ou (pessoa) espiritual, reconheça que as coisas que vos escrevo são mandamentos do Senhor. Se algum, porém, o ignorar, será ignorado. Por isso, irmãos, desejai ardentemente o dom de profetizar, e não proibais o uso do dom das línguas. Mas faça-se tudo convenientemente e com ordem”.[17]
A passagem, relida no mundo antiluterano e anti-livre-exame, afirma concomitantemente ao secreto anunciado pelo sinal também o domínio de saber próprio da hermenêutica e da retórica sacra. Vale dizer, com o mistério, trata-se de introduzir também a autoridade fundamental na correta exe gese das coisas e jamais a simples proliferação de vozes do sagrado na va riedade confusa do mundo.
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O movimento complexo do sinal (um mostrar-se que é igualmente esconder) produz certo apelo e gosto da matéria no tocante ao sagrado que, no século XVII, ultrapassa mesmo o catolicismo peninsular. Ao escrever à filha a propósito da qualidade de certo sermão do jesuíta Louis Bourdaloue (1632-1704) a propósito da Paixão, Mme. de Sévigné (1626-96) confessa admirativamente: “Ah! Bourdaloue! Il fit, à ce qu’on m’a dit, une Passion plus parfaite que tout ce qu’on peut imaginer; c’était celle de l’année passée, qu’il avait rajustée, selon ce que ces amis lui avaient conseillé, afin qu’elle fut inimitable”.[18] E arremata, agudamente: “Comment peut-on aimer Dieu, quand on n’entend jamais bien parler de lui?”.[19]
Quer dizer, a qualidade da oratória, da matéria da elocução, torna-se aqui decisiva na demonstração da substância mística a que alude: o amor por Deus decorre ou mesmo depende do amor gerado pela fala que, ao louvá-lo, atualiza o Bem que lhe é próprio. O gênio da língua é, por assim dizer, causa primeira da fé.
Não é um sentimento muito distante deste, embora ornado talvez com menos elegância ou, se se quiser, com menos coqueteria, que leva muitos tratadistas do século XVII a adotarem uma ratio acumulada visivelmente, ostensivamente, em regulamentos precisos e artifícios engenhosos para todo tipo de assunto, desde os referidos pelas solenes artes de reinar e espelhos de príncipes até aqueles miudamente prescritos nas cartas familiares e guias de casados. A malha quase jurídica dessas disposições pareceria garantir não a ausência de equívocos ou a pura nitidez dos autos mas o penhor seguro de uma sutileza substancial que tudo penetra: que percorre a disposição dos regulamentos, insinua a vertigem da traição demoníaca, e finalmente a ultrapassa.
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A via claro-escura do mistério também parece produzir uma dramaticidade adequada, creio, ao desempenho de uma razão oculta, profunda, escondida, que supera a cada vez os domínios aparentes em que se mostra. Desempenho, aliás, é termo técnico nas poéticas seiscentistas, que interessa muito à questão da forma misteriosa. Gracián utiliza-o genericamente para referir o processo de resolução aguda de uma ponderação entre objetos extremos. Mas seja o exemplo privilegiado do tipo de agudeza que nomeia como ponderação de dificuldade: “Añade esta especie de agudeza, al artificio de la ponderación misteriosa, la dificuldad entre la connexión de los extremos, digo de los términos correlatos; y después de bien exprimida la dificuldad, o discordancia entre ellos, dáse una razón, que la desempeñe”.[20]
Quer dizer, o gosto engenhoso e intelectualista da verdade difícil está suposto na propriedade altamente persuasiva de que se dota o mistério. Contudo, a eficácia da forma encoberta não se esgota no convincente deleitável. Quando a razão oculta é de natureza divina, quando são cristãs as tópicas da invenção, ainda mais ressalta a relevância da maneira tipicamente equívoca de pregar do mistério. O modelo escritural, uma vez mais, é são Paulo: “[…] mas pregamos a sabedoria de Deus no mistério, que está encoberta, e que Deus predestinou antes dos séculos para a nossa glória, a qual nenhum dos príncipes deste século conheceu […]”.[21]
Esse ponto, reinterpretado pelos pregadores contra-reformistas, desdobra-se em duas decorrências análogas. A primeira, já comentada, é a de que a elocução engenhosa, aguda, difícil, acomoda-se perfeitamente bem à hermenêutica, cuja tarefa é descobrir nos objetos os sinais de Deus. Quer dizer, a agudeza verbal, que busca relações ocultas entre objetos extremos, repõe no discurso o mesmo processo alegórico-misterioso que está posto nas coisas criadas e que necessariamente assinalam o seu Criador. Teoria da agudeza e alegoria figural cristã são aspectos complementares das artes de engenho do XVII. O passo é crucial, e não tem sido tratado com o rigor que merece do ponto de vista dos estudos de poética, que modernamente têm dificuldade para pensar categorias históricas e culturais do cristianismo. Ora, há uma passagem admirável na História do futuro que expõe com nitidez a ideia de que os processos ponderativos e intelectuais dos artifícios conceituosos são perfeita figura da arte enigmática e codificada da Providência: “E assim como o primor e subtileza da arte cómica” — Vieira imagina sobretudo o artifício dramático — consiste principalmente naquela suspensão de entendimento e doce enleio dos sentidos, com que o enredo os vai levando após si, pendentes sempre de um sucesso para outro sucesso, encobrindo-se de indústria o fim da história, sem que se possa entender onde irá parar, senão quando já vai chegando e se des cobre subitamente entre a expectação e o aplauso, assim Deus, soberano Autor e Governador do Mundo e perfeitíssimo exemplar de toda a natureza e arte, para maior manifestação de sua glória e admiração de sua sabedoria, de tal maneira nos encobre as cousas futuras, ainda quando as manda escrever primeiro pelos profetas, que nos não deixa compreender nem alcançar os segredos de seus intentos, senão quando já têm chegado ou vão chegando os fins deles, para nos ter sempre suspensos na expectação e pendentes de sua Providência.[22]
A outra decorrência diz respeito a uma nova valorização e publicidade dos Sacramentos na vida religiosa. Acentua-se neles, por exemplo, a produção de uma importante multiplicação da presença salvífica do Cristo, que, encoberta, manifesta-se em muitos lugares, ao mesmo tempo. No Sermão do Santíssimo Sacramento, de 1669, Vieira justamente compara a presença multiplicada de Cristo no mistério eucarístico às muitas estrelas que, à noite, fazem as vezes de sol:
Não debalde instituiu Cristo o Divino Sacramento de noite, quando, por uma presença que nos levou da vista nos deixou muitas à fé. Mete-se o sol no ocidente, escurece-se o mundo com as sombras da noite, mas se olharmos para o céu, ve remos o mesmo sol multiplicado em tantos sóis menores quantas são as estrelas sem-número, em que ele substitui a sua ausência, e não só se retrata, mas vive.[23]
A mesma eficácia da disseminação da presença do Ser na multiplicidade das espécies está descrita no Sermão de santo Antônio, de 1653, quando os Sacramentos tornam-se uma “extensão da Encarnação”: “[…] os teólogos, como são João Crisóstomo, chamam ao mesmo Sacramento extensão da Encarnação, porque a divindade comunicada na Encarnação a uma só humanidade, no Sacramento a estende Cristo e comunica a todos os homens”.[24]
Essa extensão alcançada através dos Sacramentos é encarecida igualmente como uma cotidianização da presença da divindade na vida humana, e, em especial, na vida clerical. Assim, já no Sermão de são João Batista, de 1644, Vieira via nisso uma “vantagem” do amor eucarístico sobre o da Paixão: “Esta é a vantagem que leva em Cristo o amor que nos mostrou no Sacramento ao amor que nos mostrou na cruz. Na cruz morreu uma vez, no Sacramento morre cada dia; na cruz deu a vida, no Sacramento perpetuou a morte”.[25]
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É certo, pois, que o tema da integridade e eficácia do mistério sacramental constitui um verdadeiro centro das linhas de ponderação e sutileza
dos sermões contra-reformistas. E aqui há um passo importante a reconhecer. Além dos casos em que o mistério parece restringir-se ao entendimento das práticas pias, deveres religiosos, rituais litúrgicos, ele também se projeta em relação às instituições do Estado cristão, ganhando então caráter nitidamente político, assim como à história futura da humanidade, quando sobretudo toma acentos proféticos.
No caso da prédica jesuítica, assentada firmemente sobre uma teologia política, a eficácia da forma encoberta jamais se limita à consideração de sua capacidade de mover a vontade ou de multiplicar a presença divina no mundo: ela inclui, entre os efeitos decisivos dessa forma, a sua projeção histórico-institucional. O aspecto mais óbvio dessa projeção refere a própria organização eclesiástica, que herda diretamente de Cristo a sua divindade e cuja militância dá pleno sentido à ação reformadora requerida pelo mistério. Santo Antônio é usualmente, em Vieira, imagem dessa militância. Em um trecho de um dos seus sermões dedicados ao santo, ajunta à sua imagem o Sacramento e a missão de propagação da fé recebida pela Igreja:
E como santo Antônio era um santo eucarístico, um santo em que Deus depositou as maravilhas do Sacramento, por isso, quando milagrosamente se punha em dois lugares, em um tinha uso dos sentidos, como Cristo no céu, em outro estava dormindo, como Cristo no Sacramento: Ego dormio. — Estes foram os primeiros sabores que gostaram os sentidos daquele sal, estes os primeiros res plendores que receberam daquela luz: Vos estis sal, vos estis lux.[26]
Onde se observa, portanto, que os dois termos, sentidos e luz, dão bem conta da estrutura misteriosa indissolúvel e essencial do santo, cuja ação concreta no mundo efetua analogamente a substância divina.
Contudo, na aplicação do modelo misterioso às formas institucionais, Vieira não se detém no corpo místico e visível da Igreja, mas avança até o corpo moral e político do Estado. Aqui, o Estado legítimo é um domínio da realidade inteiramente próprio à manifestação da vontade transcendente, conside rada tanto enquanto comunicação de uma política cristã, no presente, como a de um futuro já sacramentado, à espera apenas de seu desempenho na história.
É bem verdade que, como se diz correntemente, os autores da Contra-Reforma propuseram uma interação contínua entre a Igreja e o mundo, de tal modo que a primeira aparenta por vezes tomar um aspecto marcantemente secularizado. Mas não se trata apenas disso. Radicalizada pelo conceito de mistério, essa interação assenta-se agora sobre a convicção de uma presença real da divindade no cerne do mundo político, o que significa que passa a haver, de fato, uma fortíssima sobrenaturalização do Estado. Este, cristianíssimo, não é jamais objeto autônomo de política, ou de uma razão laica de Estado, mas objeto de teologia política ou, se se quiser, de “política do Céu”, na expressão utilizada por Vieira, por exemplo, no Sermão da Terceira Dominga do Advento, de 1644.[27]
Enfim, pensado a partir da projeção da forma misteriosa sobre sua estrutura hierárquica, o Estado cristão toma como natureza essencial e figural o resultado da transferência histórica da fundamentação sacra do poder da Igreja para a monarquia nacional. Como mostra Jean-François Courtine, no século XVII, é a teologia que fornece “[…] la première forme achevée — celle-là même que lui envieront longtemps justment les États naissants — d’une monarchie absolue, bureaucratisée et centralisée, puisque lui seul pouvait toujours, et en vertu de son principe — le Principe par excellence —, assurer une assise véritablement inébranlable à l’exercice de sa puissance”.[28]
Para o mesmo autor, a tese corrente da origem secular do Estado absolutista moderno é, de fato, anacrônica, o que amplia bastante a relevância histórica das aplicações políticas da forma do mistério no século XVII:
Ce qui caractérise au premier chef la genèse de l’État moderne, ce n’est pas en effet d’abord la sécularisation des doctrines ecclésioou théologico-politiques — sécularisation qui aboutirait finalement à détacher la puissance publique de son empreinte ecclésiale ou sacramentelle, à la libérer de sa subordination aux fins de la Cité de Dieu, à la dresser dans son auto-suffisance hors de l’“idéologie” politique médiévale. Non! Ce qui nous paraît beaucoup plus important, et significatif, que ce processus indiscutable d’auto-affirmation, c’est au contraire la détermination strictement théologique de cette nouvelle figure de l’État absolu: l’absolutisation — enjeu ultime de la revendication d’hoirie, du conflit pour le principe — passe nécessairement et prioritairement par une re-sacralisation de l’État.[29]
Pois bem, no mundo ibérico, essa sacralização do Estado com vistas à legitimação do poder absoluto do Príncipe no Princípio está perfeitamente contemplada na projeção da forma encoberta do divino sobre a estrutura do poder político. Por vezes, isso é feito prevendo uma concomitância substancial, uma perfeita coincidência entre as ordens transcendente e histórica — que não exige nenhuma semelhança externa, já que apenas a última apresenta uma face manifesta. Assim, a ação histórica do Estado cristão concilia-se por dentro — por um processo que bem se poderia chamar de transubstancial — com a vontade divina e seus desígnios providenciais.
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Afora essa questão da origem do Estado absoluto colocada por Courtine, no que refere mais de perto a concepção da ratio capaz de ordená-lo em seu funcionamento, é facil ver que, a despeito do apego ao material e sensível, a projeção política do mistério produz um Estado muito distinto daquele proposto pelas formulações, de matriz maquiavélica, que o laicizavam. Nesse ponto, os autores católicos, especialmente jesuítas, viam Lutero e Maquiavel como uma verdadeira dupla, “[…] the two founding fathers of the impious modern State”, como escreve Quentin Skinner.[30] E, de fato, se se considerar que Maquiavel desprovidencializa o Estado, como o interpreta por exemplo um autor como José Antonio Maravall,[31] e que, desse modo, tende a desconsiderar a sua função teleológica na história, os autores católicos do período estão certamente nas trincheiras contrárias do debate. Justamente, através da aplicação da forma encoberta e sacramental ao Estado cristão histórico, eles procuram descobrir em cada um de seus atos, senão nos sucessos fundamentais de sua história, o sinal misterioso que demonstra a Providência.
Na perspectiva maquiavélica, o Estado é um artifício criado para o exercício do poder, desvinculado, enquanto tal, da lex naturalis que o tomismo — e sua releitura pela Segunda Escolástica do período — pensa como implantação do Criador no mundo Criado. Dessa maneira, para Maquiavel, não cabe ver na política do Estado a efetuação de nenhuma forma de Causa final teológica. Richard Morse entende a desprovidencialização maquiavélica — e ainda mais a de Hobbes — sobretudo como resultado do método epistemológico desses autores, que leva a reunir exemplos variados de épocas e contextos muito diferentes para constituir um modelo artificial de Estado, considerado apropriado. Isso dificultaria definitivamente a necessária “legitimação histórica para um papel providencial”.[32]
No caso de um autor como Vieira, mais uma vez, tudo se passa inversamente. O artifício político pressupõe uma harmonização natural, e não tirânica ou imaginária, das vontades da coletividade e do Príncipe no todo ordenado do Estado — de resto, uma harmonização que pode e deve estabelecer uma via histórica para a finalidade transcendental do homem. Aqui, de fato, não é que não haja artifício, cálculo de poder ou, enfim, razão de Estado a ser considerada pelo Príncipe cristão em sua política de estabelecimento do Bem Comum, apenas que esse cálculo não pode se dissociar da santidade de seus fins e das injunções da reta razão. Quer dizer, para os tratadistas católicos, não há artifício de uma política verdadeiramente cristã que não termine por mostrar-se como uma atualização providencial; não há gesto político do Estado cristão que não remeta organicamente à sua missão co-participativa dos desígnios de Deus para a história.
Isso não significa, entretanto, identificação imediata da política efetivamente praticada por um Estado católico com aquela que se supõe catolicamente adequada: muitas vezes, sucede que o Príncipe ou as disputas entre as ordens do Reino conduzam o Estado a uma prática contrária ao Bem Comum e à atualização providencial. O que se acredita, contudo, é que a substância divina inscrita misteriosamente no Estado significa sobretudo uma disponibilidade para a descoberta progressiva do código finalista da Providência. A missão providencial da política está formulada, a rigor, na própria definição de Estado cristão, mas a sua política presente está ainda aquém de si mesma, como instrumento capaz de atualizar a presença divina na história.
Quer dizer, a concepção de um Estado em que comungam Deus e os homens, unidos apertadamente em uma só vontade, remete a uma potencialidade da história, e, mais do que isso, à sua irresistível realidade futura, mas não à negação da crise do presente. No limite, é possível pensar-se esse Estado como uma latência do futuro no presente — apenas com o cuidado de não imaginá-lo como imanente; o presente apenas sinaliza-o, não o contém, nem causa. Exatamente como as espécies da hóstia consagrada assinalam a transcendência que não é, claro, decorrência de sua matéria.
Falar, pois, de uma eficácia particular da forma misteriosa de participação do homem em Deus no interior do plano histórico-institucional, relativo à Igreja ou ao Estado cristão — falar assim de uma “razão do mistério” —, significa a possibilidade de propor à consciência uma identidade teleológica, carregada de esperança salvífica, que os movimentos explícitos da história, na rudeza de sua superfície, dificilmente permitiriam descobrir ou formular. A razão eficiente de se pensar o mistério como forma da união possível entre o humano e o divino é a sua previsão da diferença entre a história e a Providência como etapa de sua própria superação e reencontro.
Quer dizer, a diferença evidente entre os dois planos torna-se a aparência de uma identidade profunda que não seria descoberta sem um mergulho decidido nas práticas menos sublimes do mundo. A rigor, desse ângulo, não há sequer diferentes planos, como não existe uma dupla verdade:[33] um é a face, mais ou menos opaca, mais ou menos alterada, ou em alteração, que o Outro deixa exposta.
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Assim, quando a história é pensada sob a forma misteriosa, não se supõe que as razões históricas que levanta sejam autônomas, nem que sejam apenas simbólicas: são o sinal do real que não se esgota nelas. Por indiferentes ou diferentes que os acontecimentos do mundo possam parecer em relação à vontade de Deus, são realmente efeito (e não apenas representação ou simulacro) de uma substância oculta. A mesmíssima substância que pode ser descoberta pela leitura profético-engenhosa das correspondências de seus sinais e que, num tempo não muito distante, apresentar-se-á à luz do dia. Mas por ora, não, e daí o louvor dos autores do XVII ibérico daqueles que a sabem ler: “Pero ¡qué gran arte aquella del descifrar!”, ponderava Critilo, personagem do Criticón de Gracián.[34] Pois bem, um pouco atrás, disse que o sinal acarreta certa disputa sobre a legitimidade daquele que o interpreta, e, nesse caso, age bem de acordo com o tom jurídico da Contra-Reforma. Mas há também uma outra exigência que se faz ao intérprete e que não visa primeiramente ao questionamento de sua pura ciência ou doutrina, mas à sua experiência, aos trabalhos da sua vida. A exegese, aqui, toma foros de aventura; seu autor ganha trajes de guerreiro à vista de uma empresa colossal.
Assim, num mundo em que “nada es cuanto se ha dicho con lo que queda por decir”;[35] em que “todo cuanto hay escrito en todas las artes y ciencias no ha sido más que sacar una gota de agua del oceano del saber”;[36] num mundo, finalmente, em que as coisas, longe da perfeição, não chegaram “ni aun a la mitad de lo que pueden subir”;[37] compreende-se bem que o verdadeiro herói do tempo seja o profeta moderno, o exegeta das coisas sobre os signos embaixo das coisas etc.: o Veedor de todo, como diz Gracián.[38] Ainda no Criticón, assim se apresenta esse herói:
Yo llego a ver la misma sustancia de las cosas en una ojeada, y no solos los accidentes y las aparencias, como vosotros; yo conozco luego si hay sustancia en un sujeto, mido el fondo que tiene, descubro lo que tira y dónde alcanza, hasta dónde se extiende la esfera de actividad, dónde llega su saber y su entender, cuánto ahonda su prudencia.[39]
Em Vieira, a verdadeira qualidade do intérprete, nesta empresa quase épica, mede-se, todavia, pela sua capacidade de fazer-se, mais que vidente ou profeta, historiador do que ainda não tem história. O mais alto grau de desempenho da razão oculta que permitirá superar o mistério, apenas reposto nas profecias enigmáticas, é a escrita rigorosa e transparente que re vela o encoberto através do sensível, material, jurídica e historicamente circunstanciado:
Os profetas não chamaram história às suas profecias, porque não guardam nelas estilo nem leis de histórias: não distinguem os tempos, não assinalam os lugares, não individuam as pessoas, nem seguem a ordem dos casos e dos sucessos, e quando tudo isto viram e tudo disseram, é envolto em metáforas, disfarçado em figuras, escurecido com enigmas e contado ou cantado em frases próprias do espírito e estilo profético, mais acomodadas à majestade e admiração dos mistérios, que à notícia e inteligência deles.[40]
E arremata, em favor da sua particular investigação, que deverá “correr a cortina aos maiores e mais ocultos segredos deste mistério”:[41]
E porque nós, em tudo o que escrevemos, determinamos observar religiosa e pontualmente todas as leis da história, seguindo em estilo claro e que todos possam perceber, a ordem e a sucessão das coisas, não nua e secamente, senão vestidas e acompanhadas das suas circunstâncias; e porque havemos de distinguir tempos e anos, sinalar províncias e cidades, nomear nações e ainda pessoas (quando o sofrer a matéria), por isso, sem ambição nem injúria de ambos os nomes, chamamos a esta narração história e História do Futuro.[42]
O topos do mistério, portanto, no XVII, absolutamente não nega o racional, nem o sensível, ao contrário, dota-os de uma profundidade insuspeitada, honra-os com a crença de que um Deus “imenso e invisível” que não sofre “menoscabo de sua grandeza” quando limitado em “tão pequena esfera”, como o diz Vieira no Sermão do Santíssimo Sacramento, de 1645.[43] Mas essa mesma “pequena esfera”, habitada de tal maneira por um Deus, é imensa e espessíssima para a inteligência do homem. Aquele que a deseja conhecer e quer deixá-la clara está como argonauta solitário, lançado teme rariamente ao mar:
Sós e solitariamente entramos nela (mais ainda que Noé no meio do dilúvio), sem companheiro nem guia, sem estrela nem farol, sem exemplar nem exemplo. O mar é imenso, as ondas confusas, as nuvens espessas, a noite escuríssima; mas esperamos no Pai dos lumes (a cuja glória e de seu Filho servimos), tirará a salvamento a frágil barquinha: ela com maior ventura que Argos, e nós com maior ousadia que Tífis.[44]
O pressuposto, naturalmente, mais uma vez, é que todo o visível signifique mais do que dá a ver; que, seguindo com pertinácia e argúcia a pista da matéria, do sensível, das razões mundanas, históricas, institucionais etc., nada, nunca, menos que o espírito divino esteja lá — aqui —, anunciando seu Ser, desde o início da Criação até o momento ultimado da comunhão definitiva com o homem. A barquinha do intérprete-orador-profeta deverá romper a nuvem que há em meio ao mar e desvendar as “maravilhas de seus mistérios”: a verdade então será, como se diz, “clara como água, porque não há cousa mais clara […]”.[45]
Notas
[1] Termo consagrado, entre outros autores, por Robert Mandrou, em Le Baroque européen: mentalité pathétique et révolution sociale, Annales, Armand Colin, XV: 5, 1960.
[2] Santo Ignácio de Loyola, Obras completas, 4ª ed., Madri, La Editorial Católica, 1982. Citação na p. 507.
[3] Idem, ibidem, p. 509.
[4] Idem, ibidem, pp. 287-8.
[5] Sobre as possíveis origens etimológicas do termo grego para “mistério”, cf. as considerações de K. Prumm no verbete correspondente do Dicionário de teologia bíblica, de Johannes B. Bauer (São Paulo, Loyola, 1984, 2 vols.).
[6] Idem, ibidem, p. 720.
[7] Sermão das chagas de são Francisco, 1646, vol. XXI, p. 77, da edição dos Sermões, em 24 volumes, da Edameris (São Paulo, 1957-9).
[8] In Obras completas, Madri, Aguilar, 1967 (3ª ed.). Citação na p. 262.
[9] Idem, ibidem.
[10] Sermão de são Roque, 1644, op. cit., vol. XX, p. 197.
[11] Baltazar Gracián, op. cit., p. 264.
[12] Idem, ibidem.
[13] Idem, ibidem.
[14] Antiguos y modernos, Madri, Alianza, 1986. Citação na p. 83.
[15] De l’usage des passions, Paris, Fayard, 1987. Citação nas pp. 52-3.
[16] História do futuro; ed. Maria Leonor C. Buescu, Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1982. Citação na p. 146.
[17] I Cor. 14, 37-40. Cito pela tradução da Vulgata efetuada pelo pe. Matos Soares, em 1933.
[18] Carta de 1º de abril de 1671, in Correspondance, vol. I, p. 207.
[19] Idem, ibidem.
[20] Baltazar Gracián, op. cit., p. 268.
[21] I Cor. 2, 7-8.
[22] Maria Leonor C. Buescu (ed.), op. cit., pp. 156-7.
[23] Idem, ibidem, vol.V, p. 101.
[24] Sermão de santo Antônio, op. cit., vol. XX, p. 339.
[25] Sermão de são João Batista, op. cit., vol. XIII, p. 191.
[26] Sermão de santo Antônio, 1653, op. cit., vol. XX, p. 331.
[27] Sermão da Terceira Dominga do Advento, op. cit., vol. XIII, p. 388.
[28] Jean-François Courtine, “L’héritage scolastique dans la problématique théologico-politique de l’âge classique”, in L’État baroque, Paris, Vrin, 1985. Citação na p. 92.
[29] Idem, ibidem, p. 96.
[30] Quentin Skinner, The foundations of modern political thought, Cambridge, Cambridge University Press, 1978, 2 vols. A citação encontra-se na p. 143 do 2º vol.
[31] Cf. José Antonio Maravall, La philosophie politique espagnole au XVIIe siècle, Paris, 1955.
[32] Richard Morse, O espelho de Próspero, São Paulo, Companhia das Letras, 1988. Citação na p. 63.
[33] Cf. idem, ibidem p. 32.
[34] El criticón, parte III, Crisi V, in Baltazar Gracián, op. cit., p. 898.
[35] Idem, ibidem.
[36] Idem, ibidem.
[37] Idem, ibidem.
[38] Idem, ibidem, p. 899.
[39] Idem, ibidem.
[40] História do futuro, op. cit., p. 47.
[41] Idem, ibidem, p. 45.
[42] Idem, ibidem, p. 47.
[43] ) Citações respectivamente nas pp. 138 e 140 do vol. I dos Sermões, op. cit.
[44] Idem, ibidem.
[45] Idem, ibidem, p. 159.