Um sorriso medonho
por Marcelo Coelho
Resumo
O início da literatura romântica na França marca a crítica à razão, uma desconfiança em relação à ciência e uma volta ao pensamento religioso.No período marcado pelo reacionarismo político e religioso, Voltaire (com seu sorriso de zombaria) é a encarnação do mal para os poetas românticos franceses.
A publicação da obra O gênio do cristianismo pelo visconde de Chateaubriand coincide com a restauração do culto católico em Notre Dame e tem como tarefa provar dogmas e narrativas fantásticas tão atacadas pelo racionalismo. Chateaubriand utiliza sua vertente melancólica contra a leveza do espírito racionalista e contra a mordacidade voltariana.
O desejo de preencher literariamente, pela fábula, pelo passadismo, pela religião ou pela mulher amada o desenraizamento da sociedade pós-revolucionária é evidente e amplamente representado pelo uso constante da metáfora do vazio. Contra a razão e contra Voltaire, a volta ao passado, a defesa do cristianismo e das tradições não através da Inquisição mas de maneira poética, irracional, fabulosa.
O esforço romântico tentou superar a ironia e zombaria de Voltaire. Atualmente, a crise da razão se manifesta através do irracionalismo de fundamentalismos religiosos, proliferações de seitas, superstições alternativas e pseudociências. O ridículo perdeu o poder. Porém, para o autor, sempre haverá forças obscurantistas lutando contra a razão, mas o espírito científico prevalecerá.
Não há quem não conheça o busto de Voltaire feito por Houdon, que nos mostra o escritor já bem velho, descarnado, mas com o olhar como sempre maroto e penetrante. A íris e a pupila são esculpidas no mármore, contrariando a convenção de deixar os olhos das estátuas como que vazados, cegos, absolutos. Houdon também fixa aquele sorriso de zombaria que parece estar presente em cada uma das páginas de Voltaire; é bem a imagem do espírito crítico do século XVIII francês, um racionalismo que perdera a solenidade clássica, e se tornara mais preciso, mais específico, mais oblíquo. Voltaire olha de lado, para algum detalhe, para alguma miséria intelectual determinada, para a pequenez dos poderosos, quem sabe se com alguma indulgência, mas, se há indulgência em sua atitude, é a que se origina na certeza de seu triunfo, de sua superioridade.
Voltaire tinha motivos para estar confiante no progresso da razão. Foi praticamente canonizado em vida, depois de sofrer todo tipo de perseguições e de censuras; o partido clerical, a cabala dos jesuítas, as campanhas contra a Enciclopédia pareciam apenas os estertores ridículos, embora odiosos, de uma mentalidade em franco desaparecimento. Num adendo a suas Memórias, Voltaire escreve sobre a situação política da Suíça, onde morava, em 1759:
Vejo de minhas janelas a cidade [Genebra] onde reinava Jean Chauvin, o Picardo, conhecido por Calvino, e a praça onde, pelo bem da alma de Servet, mandou queimá-lo. Quase todos os padres deste país pensam hoje como Servet, e vão até mais longe do que ele. Não creem absolutamente na divindade de Jesus Cristo; e esses senhores, que antigamente combatiam o Purgatório, humanizaram-se a ponto de perdoar as almas que estão no inferno. […] É uma revolução bem bonita no espírito humano.[1]
Miguel Servet foi condenado à fogueira por dissecar cadáveres, prática ímpia graças à qual descobriu a circulação do sangue no coração. De alguma forma, o verbo dissecar está ligado a Voltaire, como veremos; talvez por sua notória magreza: ele dizia ter sempre invejado os homens que tinham bochechas.
Há uma carta de Voltaire a Mme. Necker (19 de junho de 1770), onde ele conta a chegada de Pigalle a Ferney, para fazer uma estátua sua. Voltaire estava já tão velho que os aldeões, quando viram o escultor aparecer com seu instrumental de trabalho, pensaram que se tratasse de um cirurgião, que os cinzéis fossem bisturis, e que, em vez de ser glorificado, o filósofo iria ter seu cadáver submetido a uma dissecção.
Voltaire morreu em 1778. Não é menor ironia da história intelectual francesa o fato de que, algumas décadas depois de sua morte, a confiança setecentista nos poderes da razão, do espírito crítico, do livre-pensamento, viesse a sofrer os mais pesados anátemas da jovem geração intelectual romântica. E que a brincadeira de Voltaire, sobre os aldeões que pensavam em seu cadáver, quando se tratava de uma estátua gloriosa, tenha se tornado mais verdadeira do que ele gostaria. É dessa “crise da razão”, a que protagoniza o romantismo francês de 1802 até as décadas de 30 e 40 desse século, que trata meu ensaio.
Talvez possamos tirar algumas conclusões a respeito desse período de franco anti-iluminismo, de reacionarismo político e religioso, que sirvam para a conjuntura atual, comumente descrita como anti-iluminista, reacionária, pronta às recidivas religiosas e ao embotamento do espírito crítico. O ano de 1989, queda do muro de Berlim, seria quase como uma revivescência do ano de 1815, do Congresso de Viena, da direita triunfante?[2] O célebre mote da “culpa de Voltaire” pelas atrocidades da Revolução Francesa encontraria eco no processo contra Marx pelos crimes de Stalin…? Não me estenderei nesse paralelo um pouco fácil, mas que possui alguma pertinência.
1
Em 1833, Alfred de Musset dirigia contra Voltaire uma famosa invectiva, em seu poema “Rolla”:[3]
Dors-tu content, Voltaire, et ton hideux sourire
Voltige-t-il encore sur tes os décharnés?
Ton siècle était, dit-on, trop jeune pour te lire;
Le nôtre doit te plaire, et tes hommes sont nés.
Il est tombé sur nous, cet édifice immense
Qui de tes larges mains tu sapais nuit et jour […]
(Dormes contente, Voltaire, e teu medonho sorriso
Volteia ainda sobre teus ossos descarnados?
Teu século era, dizem, jovem demais para te ler;
O nosso deve agradar-te e teus homens nasceram
Caiu sobre nós esse edifício imenso
Que com tuas grandes mãos demolias dia e noite […])
A evocação é impressionante: a de um Voltaire morto, no túmulo, com o mesmo “sorriso medonho” que ostentava quando vivo, sendo responsabilizado pela irreligião da época atual; ele arruinara tudo, e o peso de todo um edifício, o da religião destruída, cai sobre as gerações posteriores, que pagam em desespero, em desregramento, tédio e crime (assim é a história do personagem do poema, Rolla) pelas alegres destruições do Iluminismo.
A razão voltairiana, além de destruidora e sorridente, era acusada de um excesso de espírito de análise; de uma frieza que a levava a dissecar seus objetos, a ressecar os sentimentos, a separar logicamente aquilo que deveria ser entendido em seu todo orgânico, vital. Raciocínios operam por partes, e é próprio da ciência dividir, classificar. No mesmo poema, Musset pergunta:
Pour qui travailiez-vous, démolisseurs stupides,
Lorsque vous disséquiez le Christ sur son autel?
(Para quem vocês trabalhavam, demolidores estúpidos,
Quando dissecavam o Cristo em seu altar?)
Estes pequenos trechos de Musset suscitam comentário, para não dizer “dissecção”. Nos dois versos acima, a incoerência das imagens é flagrante. Há em primeiro lugar uma imagem de demolição, certamente relacionada às depredações dos templos católicos durante a Revolução Francesa. Mas no verso seguinte Musset diz que esses “demolidores” estavam “dissecando” Cristo — como se a picareta tivesse se tornado subitamente um bisturi. A transformação é brusca, mas interessante por sugerir que no fundo Musset identificava dois adversários numa coisa só: revolucionários, jacobinos (os “demolidores”) e os cientistas, os filósofos, dissecadores de dogmas.
A incoerência nesses dois versos se torna mais aguda se os compararmos com a primeira citação feita acima. Tínhamos inicialmente a visão de um Voltaire morto, sorrindo ainda talvez, mas com os ossos descarnados. Mas, no mesmo poema, é outro o cadáver dissecado, é o cadáver de Cristo.
Ta gloire est morte, ô Christ! et sur nos croix d’ébène
Ton cadavre céleste en poussière est tombé!
(Tua glória morreu, ó Cristo! E sobre nossas cruzes de ébano
Teu cadáver celeste em poeira caiu!)
Há, por assim dizer, uma “troca de cadáveres”. Voltaire, morto, ossos descarnados, sorri ainda, vivo; mas quem morreu é Cristo, transformado em poeira, poeira dissecada… O “edifício imenso” que Voltaire “demolia dia e noite” caiu sobre nós, mas é sobre nossas “cruzes de ébano” que caiu, não um edifício demolido, mas um “cadáver celeste em poeira”. Racionalmente, é claro que podemos entender a argumentação de Musset: a morte mata o vivo, e este morre. Mas poeticamente a associação não deixa de ser estranha: uma mesma imagem cadavérica serve para Cristo e para Voltaire.
O tema do Cristo morto — isto é, morto pela segunda vez, depois da Ressurreição, por obra do ceticismo filosófico — remonta pelo menos a 1796, quando Jean-Paul Richter, em Siebenkaes, escreve dramaticamente: “Do alto do edifício do mundo, o Cristo morto proclama que não existe Deus”.[4] Gérard de Nerval, como se sabe, retomaria a ideia do Cristo revelando a inexistência de Deus, nos sonetos de “Le Jardin des Oliviers”, inspirando-se claramente num fragmento do mesmo Jean-Paul, traduzido por Mme. de Staël em De l’Allemagne. O narrador desse “Sonho” conta uma visita noturna a um cemitério; vê fantasmas; perto da meia-noite, entra numa igreja, que parece vacilar nas comoções de um vasto terremoto. Cristo aparece diante dos fantasmas: “Os mortos gritaram: ‘Ó Cristo! Não existe Deus?’. Ele respondeu: ‘Não existe’. Todas as sombras começaram a tremer violentamente, e o Cristo assim continuou: ‘[…] levantando meus olhos para a abóbada celeste, só encontrei uma órbita vazia, negra e sem fundo ‘[…]’”. É então que crianças mortas se levantam dos túmulos e se prosternam diante de Cristo: “‘Jesus, não temos pai nenhum?’ E ele respondeu numa torrente de lágrimas: ‘Somos todos órfãos; eu, vós, não temos pai nenhum’. A essas palavras, o templo e as crianças caíram no abismo; e todo o edifício do mundo desmoronou diante de mim em sua imensidão”.[5]
Na mesma direção, Nerval lamentaria, em 1845, um espírito de exame tomado do poder de “destruir peça por peça todo o conjunto das tradições religiosas do espírito humano! Assim perecia sob o esforço da razão moderna o próprio Cristo, esse último dos reveladores que, em nome de uma razão mais alta, tinha outrora despovoado os céus”.[6]
“Dépeupler les cieux”: a fórmula de Nerval nos faz voltar a Musset, e à mesma “troca de cadáveres” a que nos referíamos. É Cristo, para Nerval, quem “despovoa” os céus, descendo sobre a terra com a Encarnação. Mas em “Rolla”, Musset continua seu requisitório contra Voltaire, imaginando-o a passear “num convento deserto ou num antigo castelo”:
Que te disent alors tous ces grands corps sans vie,
Ces murs silencieux, ces autels désolés,
Que pour l’éternité ton souffle a depeuplés?
(Que te dizem então nesses grandes corpos sem vida,
Esses muros silenciosos, esses altares desolados,
Que para toda a eternidade teu sopro despovoou?
Fiquemos com essa imagem de “despovoamento”, de desertificação, ao lado do tema dos cadáveres, do ressecamento e dos corpos dissecados; associações que tentaremos deslindar mais adiante.
2
Cabe lembrar que a condenação a Voltaire era um lugar-comum no romantismo francês; mesmo a terminologia não variava muito. Lamartine, um poeta mais espiritualizante e pio do que Musset, e uma geração mais velho, rememoraria em 1834 sua juventude, passada sob o império napoleônico. Os “ideólogos”, ou seja, filósofos continuadores do racionalismo do século XVIII na época de Napoleão, “acreditavam ter ressecado toda a parte moral, divina, melodiosa do pensamento humano; era o sorriso satânico de um gênio infernal, depois de degradar uma geração inteira… [diziam:] cálculo e força, cifra e sabre, tudo está aí… As matemáticas eram as correntes que prendem o pensamento humano. Agora respiro: essas correntes foram quebradas!”.[7]
Sempre o mesmo sorriso. A tradição terminológica tem, como quase tudo no romantismo francês, seu inaugurador no visconde de Chateaubriand. É sua obra que iremos examinar mais em detalhe a partir de agora.
Sabe-se que a publicação de sua vasta apologia da religião, O gênio do cristianismo, coincidiu com a restauração oficial do culto católico na igreja de Notre-Dame, na Páscoa de 1802. Napoleão Bonaparte havia assinado um acordo com o papa no ano anterior; depois de mais de uma década de irreligião oficial, que culminara no Culto à Razão organizado por Robespierre, o pêndulo ideológico se encaminhava triunfalmente em direção aos velhos dogmas católicos. A Restauração bourboniana, em 1815, sepultaria por algum tempo o cadáver de Voltaire, e faria de Chateaubriand ministro de Estado, por menos tempo ainda.
Mas, em 1802, tudo ainda estava por fazer; o espírito irreligioso e crítico ainda predominava, e poucos anos antes o próprio Chateaubriand, ainda que fugitivo da Revolução, no exílio em Londres, havia escrito um “Ensaio sobre as revoluções”, de cujo tom voltairiano tratava agora de penitenciar-se.
Eis o que Chateaubriand diz de Voltaire, no Gênio do cristianismo: “Ele faz luzir uma falsa razão que destrói o maravilhoso, apequena a alma e limita a visão. Com exceção de algumas de suas obras-primas, ele não percebe senão o lado ridículo das coisas e dos tempos, e mostra, sob uma luz medonhamente alegre, o homem ao homem”.[8]
O “medonho”, o “hideux”, conhece aqui sua primeira aparição romântica. O problema básico de Chateaubriand, na sua crítica a Voltaire — e talvez este seja um dos problemas básicos de todo o romantismo, em especial na França —, é a luta contra o ridículo, a zombaria. A introdução ao Gênio do cristianismo estabelece o objetivo do livro: “Desde que o cristianismo raiou sobre a terra, três espécies de inimigos guerrearam contra ele: os heresiarcas, os sofistas, e esses homens, aparentemente frívolos, que destroem, zombando. Numerosos defensores responderam vitoriosamente às argúcias e às mentiras; mas contra a zombaria foram menos destros”.[9]
O processo contra o ridículo, contra a crítica zombeteira, estaria presente naquele que é considerado o manifesto do romantismo francês, o já citado De l’Allemagne, de Mme. de Staël. O ambiente literário francês, misturado à corte e à vida pública, exacerbara um tom de frivolidade e exigências de gosto capazes de esterilizar a percepção das realidades mais profundas, espirituais da vida; já o relativo isolamento dos literatos alemães, sua boa-fé, seu provincianismo mesmo, tornavam-nos prontos a dar à cultura europeia a lição magnífica do “entusiasmo”:
A sociedade desenvolve o espírito, mas é só a contemplação que forma o gênio. O amor-próprio é o móvel dos países onde a sociedade domina, e o amor-próprio conduz necessariamente à zombaria, que destrói todo entusiasmo. […] O homem tem grande império sobre o homem, e, de todos os males que se pode fazer ao semelhante, o maior talvez seja o de colocar o fantasma do ridículo entre os movimentos generosos e as ações que eles podem inspirar. O amor, o gênio, o talento, a própria dor, todas essas coisas santas são expostas à ironia, e não se saberia calcular até que ponto o império dessa ironia pode se estender.[10]
Que os alemães, pelas condições sociais e por temperamento, estivessem a salvo do verme destruidor da zombaria, isso não tornava mais fácil a tarefa de um escritor francês que, como Chateaubriand, pretendesse restituir o respeito pela religião. Não se trata, propriamente, de “destruir” o senso do ridículo, esse espírito ele próprio “destruidor”. A Restauração ideológica e o romantismo literário operam, na verdade, por meio de uma estratégia de resistência. Trata-se de compor, na verdade, algo como uma atitude corporal, uma postura de gravidade “física” no texto literário, e na própria imagem do escritor.[11]
Recorro a um exemplo bastante grosseiro para melhor explicar essa mudança. Imagine-se um homem num enterro, levando o caixão. De repente, a calça dele cai, deixando ver uma cueca samba-canção com estampa do Mickey Mouse. A cena inspira o riso. Mas se, em vez de surpreender-se com o incidente, e tentar inutilmente disfarçar seu embaraço, nosso personagem encarar o público com um olhar de tristeza infinita — isto é, se persistir na atitude fúnebre… — logo quem riu é que se sentirá embaraçado. Não temos mais o súbito contraste entre rigidez e flexibilidade, maquinismo e orgânico, que segundo Bergson é a fonte de todo efeito cômico,[12] mas algo como uma rigidez que tenha superado seu inverso; que, mantendo-se como tal, não tem o caráter involuntário que a tornou ridícula. Será uma rigidez, uma consternação voluntária, no sentido de ser consciente, estando nisso a um passo do fingimento; mas também uma rigidez orgânica, se pudermos admitir o paradoxo — uma vez que parece ter raízes em algo mais profundo do que o hábito, a convenção, o mecanismo fixo de uma atitude imposta “do exterior”. Vem do íntimo do personagem, de sua química humoral, de sua individualidade; o “exterior”, com efeito, não existe mais, foi abolido imaginariamente; substituem-no a melancolia, a solidão.[13] Tentemos desenvolver melhor o argumento, verificando como funciona, na prática do texto, a apologia religiosa feita por Chateaubriand.
3
O gênio do cristianismo impunha a seu autor uma tarefa imensa. Tratava-se de provar dogmas e narrativas fantásticas que já haviam sofrido toda espécie de ataque racional: a Santíssima Trindade, a virgindade de Maria, a criação do mundo em sete dias, a providência divina.
Bernardin de Saint-Pierre, um dos inspiradores de Chateaubriand, tornara irremissivelmente ridícula a defesa da providência divina: é famoso o seu raciocínio de que Deus, em sua bondade, criou as pulgas na cor preta, para que possamos distingui-las sobre o fundo branco da pele, e assim as esmagamos com facilidade. Do ponto de vista lógico, não é muito superior a seguinte argumentação do Gênio do cristianismo — só que não se fala de pulgas, e sim de crocodilos:
Examinada a deformidade destes seres, que apelidamos monstros, lá se enxergam, sob horríveis formas, alguns sinais da bondade divina. O crocodilo e a serpente não são para os filhos menos carinhosos que o rouxinol e a pomba. […] Quando a prole surge, [a fêmea do crocodilo] a conduz ao rio, lava-a em água pura, ensina-lhe a natação, pesca-lhe peixinhos e protege-a contra os crocodilos machos, que a querem, muitas vezes, devorar.[14]
O “devorar” final impõe mais dúvidas do que certezas à argumentação, mas desfaz a pieguice algo bizarra do texto. A nota sinistra parece projetar, na verdade, um efeito que vai além do pró e do contra do raciocínio envolvido; uma ameaça “patológica”, por assim dizer, frequentemente atravessa os argumentos de Chateaubriand, fazendo com que uma imagem sombria, um dobre fúnebre seja capaz de inibir o sentido do ridículo e o puro exame racional daquilo que está sendo dito. O que está sendo dito se apresenta, contudo — e aqui o paradoxo —, como “prova”, como demonstração da verdade, da sabedoria, ou da beleza do dogma tratado.
No mesmo capítulo sobre crocodilos, Chateaubriand narra um evento monstruoso a que teria assistido, quando de sua viagem aos Estados Unidos — essa viagem que, feita quando ele tinha cerca de vinte anos, seria a grande fonte de sua inspiração literária. Um “exército” de 4 ou 5 mil desses répteis se abate sobre os peixes que, vindos do mar em direção aos pântanos, morrem por escassez de água, “ameaçando espalhar a peste”. Essa destruição teria uma razão ecológica — todo providencialismo divino tende, aliás, a ser um ecologismo avant la lettre —; a violência dos crocodilos nesse espetáculo “é necessária ao plano geral”. Esses répteis “só habitam os desertos onde a ausência do homem ordena sua presença; estão lá para destruir, até que chegue o grande destruidor. Assim que aparecemos na costa, cedem-nos o império; certos de que um só dos nossos fará mais estragos do que 10 mil deles”.[15]
A consideração do poder destrutivo do homem, o pessimismo da consideração, também aqui desfaz a imagem de um providencialismo destituído de qualquer espírito crítico. O providencialismo religioso extremo só levaria o leitor a rir da credulidade apologética. Ora, a apologia continua a existir, e o providencialismo também; poderíamos acusar Chateaubriand de credulidade, mas a essa qualificação sobrepõe-se outra, a de um pessimismo desencantado; o ridículo do raciocínio se recobre da gravidade do sentimento; a fé se recobra dos ataques da razão, sem precisar entretanto de argumentos revisionistas: o dogma se faz ato de fé, ou melhor, um ato “da alma”, uma decisão, não um fato de consciência.
Cito alguns outros trechos de Chateaubriand em seu esforço de persuasão religiosa. A defesa do celibato dos padres segue diversas linhas de raciocínio, algumas convencionais. Mas é surpreendente sua resposta a uma objeção específica: a de que, com o voto de castidade, os padres estariam renegando a palavra divina que ordena aos homens: “Crescei e multiplicai-vos”.
O legislador dos cristãos nasceu de uma virgem, e morreu virgem. Não terá querido ensinar-nos com isso, do ponto de vista das relações políticas e naturais, que a Terra tinha chegado a sua completude de população e que, longe de multiplicar as gerações, seria necessário a partir de então restringi-las? […] Ai! Miseráveis insetos que somos! voejando ao redor de uma taça de absinto, onde por acaso caíram algumas gotas de mel, nós nos devoramos uns aos outros, quando acontece de o espaço faltar a nossa multidão.[16]
Argumentar em favor do celibato dos padres leva Chateaubriand a reformular, portanto, o “crescei e multiplicai-vos” e a supor um ensinamento implícito na virgindade de Maria… o século XVIII não teria deixado de escarnecer de um trecho como esse, mas novamente as exigências da razão importam menos do que exclamações consternadas sobre o destino humano.
Nada mais ultrapassado e ridicularizado, mesmo no século XIX, do que sustentar a ideia de que o mundo tinha cerca de quatro mil anos, conforme calculavam os exegetas da Bíblia. O atestado dos fósseis e das espécies extintas tornara de senso comum a falácia dessa datação. O problema não incomoda Chateaubriand, como tampouco incomodara Bernardin de Saint- Pierre. É claro, dizem, que Deus criou o mundo há 4 mil anos, e em sete dias — só que já o criou velho, já o criou com um passado extinto.
Se o mundo não tivesse sido ao mesmo tempo jovem e velho, o grande, o sério, o moral desapareceriam da natureza, pois esses sentimentos se ligam por essência às coisas antigas. Cada lugar teria perdido suas maravilhas. O rochedo em ruína não mais se teria pendido sobre o abismo com suas longas gramíneas […] No mesmo dia em que o Oceano lançou suas primeiras ondas sobre a costa, ele banhou, não duvidemos, recifes já roídos pelas vagas, angras já semeadas do resto de conchas, e cabos descarnados que sustentavam, contra as águas, as bordas derruídas da terra.[17]
A imagem, mais uma vez, desvencilha-se do ridículo pelas artes da contemplação melancólica. As citações que, algo longamente, viemos de fazer reproduzem não apenas o “tom” típico de Chateaubriand, essa queda para as notas graves que acompanham o movimento de elevação religiosa; aludem — e seria de investigar com que frequência essa preocupação se repete no livro — a uma ideia comum. A velhice do mundo, o seu superpovoamento, a figura do homem como destruidor, o massacre como fazendo parte dos planos da providência, tudo aqui parece figurar uma experiência que não é a do triunfo renovado do catolicismo, como uma primavera depois do longo inverno voltairiano; a Restauração política, religiosa, romântica de Chateaubriand não começa do nada, com um olhar virginal e inocente; trata-se de um retorno ao passado, mas como que consciente da velhice desse passado; encontra-o sob a forma de ruínas. A apologia é ao mesmo tempo lamentação, ou melhor, não deixa de alimentar-se da derrota que pretende superar. Mesmo os massacres têm lugar na história, e não foi incomum, entre os reacionários do século XIX, julgar que a própria Revolução Francesa havia sido um castigo imposto por Deus: a impiedade dos robespierrianos teria de estar contida nos desígnios da providência. O que Voltaire havia aniquilado ressurge, como um futuro monarquista, católico, respeitoso e sério; mas, se ressurge, ressurge aniquilado — numa paisagem de devastação, numa volúpia dos desertos, numa aspiração ao vazio.
4
Até agora vínhamos examinando a apologética de Chateaubriand na sua vertente melancólica, entendendo-a como uma reação à leveza do espírito racionalista, à mordacidade voltairiana. Outra linha de defesa da religião é adotada pelo autor, entretanto, e importa analisá-la um pouco antes de prosseguir.
O dogma da Santíssima Trindade conhece, em O gênio do cristianismo, uma surpreendente sustentação. “A Trindade foi talvez conhecida dos egípcios.” “Platão parece falar desse dogma em vários lugares de suas obras.” “Nas Índias, a Trindade é conhecida.” “No Tibete.”[18] O ponto é importante, porque praticamente inverte a linha da crítica iluminista aos dogmas religiosos. Até hoje, constitui forte argumento contra a “verdade” de uma religião, que se estabelece como a “única”, qualquer investigação que demonstre suas origens históricas; que a narrativa do Dilúvio ou do Paraíso tenha seus equivalentes mitológicos, é sempre um passo para relativizar a história bíblica. Não foi outro o caminho de um Bayle, um Volney, um Voltaire. O relativismo histórico, a informação antropológica, servia no século XVIII para dizer, até em benefício da tolerância religiosa, que nossos ritos valem tanto quanto outros quaisquer. Não é tão importante a especificidade do dogma, ou o detalhe do rito, quando se reconhece em qualquer cultura um sentimento de religiosidade, um senso moral. Nada mais comum nas críticas voltairianas ao fanatismo do que a ideia de que pessoas e nações se matem umas às outras porque divergem sobre a forma dos chapéus, sobre o dia de ir à missa, ou sobre o que pode ou não ser comido na sexta-feira.
Ao reduzir a disputa religiosa a uma questão em torno de detalhes ridículos, Voltaire está considerando cada dogma como uma convenção irracional, puramente arbitrária. No fundo, qualquer religião prega a mesma coisa — respeito a Deus e à criação, por exemplo —, enquanto as disputas teológicas e as inflexibilidades rituais são como um entulho, uma cegueira, um edifício inútil que nada diz sobre as relações entre o homem e Deus.
Chateaubriand invoca exemplos que cairiam bem numa obra relativista exatamente para provar a excelência e a verdade do dogma particular. Se a Trindade está nas mais diversas religiões, isso só prova o acerto da religião católica. Mais que isso. O detalhe dispensável, a picuinha ritual, a vestimenta, o calendário, deixam de ser uma simples artificialidade, sem relação com o conteúdo da religião. Trata-se, para Chateaubriand, de estabelecer uma relação não convencional entre forma e conteúdo.
Para o século XVIII, a cruz é um “símbolo” religioso como qualquer outro; é de certa forma exterior à fé que se professe, e alguém poderia ser um cristão exemplar sem nunca tê-la visto. Eis como Chateaubriand defende o crucifixo:
Como marca mais direta da fé, a cruz é também o objeto mais ridículo perante algumas pessoas. [Mas] a atitude que a cruz impõe ao Filho do Homem é sublime: o curvar-se do corpo e a cabeça inclinada fazem um contraste divino com os braços estendidos para o céu. [A própria natureza] não teve medo de moldar a cruz numa multidão de suas obras: há uma família inteira de flores que se inclui nessa forma, e essa família se distingue por uma tendência à solidão; a mão do Todo-Poderoso também colocou o estandarte de nossa salvação entre as estrelas.[19]
Na interpretação de Chateaubriand, a cruz deixa de ser uma convenção qualquer, que poderia ser uma roda, um x, por exemplo. Há algo nela mesma que já simboliza a religião inteira, numa “harmonia” entre o fundo e a aparência. E talvez a principal atitude de quem ridiculariza algo seja exatamente uma atenção excessiva às aparências, uma incapacidade de “ir ao fundo”, de compenetrar-se mais longamente no seu significado. Esse movimento — o de procurar as “harmonias” entre aparência e conteúdo — seria a grande inspiração de Chateaubriand em seu livro; mas não só de Chateaubriand: o termo harmonias, emprestado de Bernardin de Saint-Pierre, iria conhecer grande voga no século XIX, a começar por Lamartine, com suas “Harmonies poétiques et religieuses”, até Baudelaire, cujo “Harmonies du soir”, poema fundamental do simbolismo, é, se não católico, pelo menos muito chateaubrianesco.
Chateaubriand, na introdução a seu livro, fala de um movimento semelhante ao que vínhamos expondo. Não propriamente o da “aparência” para o “significado oculto”, não tanto essa prototeoria do “símbolo” poético, que do romantismo persiste até o século XX, mas algo de mais restrito, e apesar disso equivalente em sua direção e objetivo. Anteriormente, afirma, “os defensores do cristianismo caíam num erro que já os fazia perdedores: não perceberam que não se tratava mais de discutir tal ou tal dogma, porque as bases do cristianismo é que eram rejeitadas absolutamente […] era preciso tomar um caminho inverso: não mais provar que o cristianismo é excelente porque vem de Deus, mas provar que ele vem de Deus porque é excelente”.[20]
Tudo ganha sentido, tudo se torna justificável — já que o objetivo é exatamente “justificar” — a partir desse ponto de vista. Se as igrejas góticas, para o século XVIII, pareciam uma confusão terrível, digna das mais acerbas críticas, para Chateaubriand trata-se de encontrar uma justificação simbólico-emotiva para esse estilo arquitetônico. Não são frutos inúteis do acaso. Chateaubriand lembra que os bosques sempre tiveram função sagrada. De modo que
essas abóbadas cinzeladas de folhagem, esses arcobotantes que sustentam os muros e bruscamente se interrompem como troncos cortados, o frescor da nave, as trevas do santuário, as alas obscuras, as passagens secretas, as portas diminutas, tudo rememora o labirinto dos bosques na igreja gótica… O arquiteto cristão, não contente de construir florestas, quis, por assim dizer, imitar os seus murmúrios; e, por meio do órgão e do bronze suspendido, juntou ao templo gótico até mesmo o som dos ventos e dos trovões, que rola na profundeza das matas […] Os séculos, evocados por esses sons religiosos, fazem suas antigas vozes sair do seio das pedras, e suspiram na vasta catedral; o santuário uiva como o templo da velha Sibila, e, enquanto o bronze se balança com estrépito sobre nossa cabeça, os subterrâneos cavos da morte se calam profundamente a nossos pés.[21]
Não se defende, numa passagem como esta, a “verdade” da Igreja católica. Não se prova nada, exceto o fato de que não é por acaso que as igrejas católicas sejam góticas. O estilo gótico “corresponde” melhor que os modelos clássicos ao fundo religioso que deve representar. Não é indiferente, não é questão de mera convenção, que sejam góticas as igrejas. A aparência, o lugar, a forma, expressam o conteúdo religioso do culto. Não há detalhes ridículos em jogo.
A discussão dogmática se transforma assim numa discussão estético-literária. A questão do ridículo, da convenção, é contestada de um modo que conduz a duas das principais características do romantismo literário. A primeira é a da forma orgânica: a ideia da obra de arte como um organismo vivo, na qual cada parte é inseparável do todo, e em que cada detalhe brota, por assim dizer, em decorrência de uma ideia geral, a que vem confirmar e justificar. A defesa da religião católica por Chateaubriand segue o mesmo padrão das imagens botânicas, vegetais, que passariam a prevalecer sobre as arquitetônicas na definição de obra de arte: cada pormenor é inseparável do todo, e não mais objeto de supressão ou de adição conforme as conveniências da simetria, da ordem, da razão. A segunda característica, vale repetir, é a ideia do símbolo, manifestação sensível, e compreensível pela intuição, de um conteúdo abstrato, ideal. O catolicismo, intransigente nos dogmas da encarnação e da consubstanciação, na preponderância dos ritos, na comunicação entre carne e espírito, teria de ser assim a religião romântica por excelência.
Evidentemente, não pretendo estabelecer uma relação de causalidade, pela qual o reacionarismo político-religioso de inícios do século XIX obrigaria à criação de uma estética romântica no gênero da que está implícita em Chateaubriand. Se ele descobriu essa “harmonia”, é porque era poeta, e por ser poeta romântico é que ele defendeu o catolicismo dessa maneira. Teremos de aprofundar um pouco mais a discussão para sair dessa causalidade estreita.
5
Recapitulando. Falávamos aqui de uma reação ao “sorriso medonho” de Voltaire, que se exprimia na troça das convenções religiosas, numa crítica ao que tinham de supersticioso de modo geral. O senso do ridículo fora vencido por Chateaubriand no que se pode chamar de uma vasta justificação das aparências — a substituição da ideia de convenção arbitrária pela ideia de símbolo — e numa manutenção das aparências, contra o riso zombeteiro, na atitude de paralisia facial e de solenidade de tom estilístico que responde pelo nome de “melancolia”. Estudemos, para além da causalidade “estrutural”, “homológica”, harmônica, que liga política religiosa a romantismo, uma outra causalidade, que poderemos chamar de histórico-psicológica. A primeira forma de causalidade tentava explicar a ideia de “símbolo”. Tentemos ver como a segunda se encarrega da “melancolia”.
Chateaubriand é um dos primeiros propagandistas daquilo que chama “o vago das paixões”; ou seja, o spleen, a melancolia romântica. Dedica-lhe um capítulo clássico de O gênio do cristianismo. Analisemos esta passagem.
Resta falar de um estado de alma que, ao que nos parece, não foi ainda bem observado; é o que precede o desenvolvimento das paixões, quando nossas faculdades, jovens, ativas, inteiras mas escondidas, não se exerceram senão sobre si mesmas, sem alvo e sem objeto. Quanto mais os povos avançam em civilização, mais esse estado do vago das paixões aumenta; pois acontece então uma coisa muito triste: o número enorme de exemplos que se tem diante dos olhos, a multidão de livros que tratam do homem e de seus sentimentos, favorecem uma habilidade sem experiência. Fica-se enfastiado sem ter tido prazeres; ainda há desejos, mas não se tem mais ilusões. A imaginação é rica, abundante e maravilhosa; a existência, pobre, seca e desencantada. Vive-se com um coração repleto num mundo vazio: e sem se ter usado de nada, se está desabusado de tudo.[22]
O que chama a atenção, nesse desenvolvimento sobre a melancolia, é a ideia muito peculiar de uma perda do objeto. Não encontrando objeto é que as paixões se desgarram, vagas, sem limite. Nos poucos parágrafos do capítulo dedicado ao tema, Chateaubriand repete cinco vezes a ideia dessa falta de objeto. Confira-se o final do capítulo:
Em nossos dias, quando os mosteiros, ou a virtude que a eles conduz, faltam a essas almas ardentes, elas se viram estranhas ao mundo dos homens. Enfastiadas de seu século, temerosas de sua religião, continuaram no mundo, sem a ele se entregar; tornaram-se então presa de mil quimeras; viu-se então nascer essa condenável melancolia que se engendra em meio às paixões, quando essas paixões, sem objeto, se consomem em si mesmas num coração solitário.[23]
Estamos aqui diante de uma versão bem distinta da crítica ao Iluminismo, da crítica ao sorriso medonho de Voltaire, que nos ocupava inicialmente. Não se está defendendo mais nada — exceto, talvez, os mosteiros — contra as destruições racionalistas. Há uma acusação dupla: contra o acúmulo de conhecimentos, o excesso de informações, que desilude o jovem; e contra o fim dos limites impostos ao exercício das paixões. Cria-se então um estado de melancolia “condenável”; condenável em termos, contudo, já que esse mesmo sentimento funcionava para Chateaubriand, como para todos os românticos, enquanto um título de nobreza poética.
Um contemporâneo de Chateaubriand, Benjamin Constant, investe de forma equivalente contra esse acúmulo de conhecimentos sem experiência, no prefácio a seu romance Adolfo: “Quis pintar uma das principais doenças morais de nosso século: essa fadiga, essa ausência de força, essa análise perpétua, que coloca uma desconfiança atrás de cada sentimento, e que o corrompe desde que nasce”.[24]
Nenhum sentimento é puro, uma vez que submetido a uma análise — a uma dissecção — que interroga sua pureza. Cada sentimento, para obter certidão de autenticidade no íntimo do sujeito, precisa convencer o espírito de que não é falso. Dependeria, por assim dizer, de um decreto, de um golpe de Estado que nos garanta, a nós mesmos, a veracidade de uma frase como, por exemplo: “Estou apaixonado”. Mas suponha-se que alguém não acredite no próprio decreto; que exija provas e mais provas do que sente. A razão duvida dos sentimentos do sujeito; o espírito crítico, no começo do século XIX, estava como que exausto do que criticava — de seus objetos clássicos, a religião, a monarquia, o preconceito; volta-se contra si mesmo, assim, porque não encontra objeto diante de si.
Seus inimigos haviam sido derrotados; o espírito iluminista, descrente, ou pelo menos cético, dominava o cenário intelectual. Se pudermos localizar a chave para todo o sentimento romântico, seja o da melancolia, seja o da crítica à razão, ele estaria nessa necessidade de colocar algo diante do sujeito — uma barreira para os sentimentos, um limite para a análise, um objeto que funcionasse como barreira diante de um olhar que, entre o risco de perder-se num infinito vago e de perder-se na abundância de si mesmo, vacila.
O mundo vazio é o que encontra o sujeito do “vago das paixões”; vazio paradoxalmente criado pela multidão de exemplos que encontra nos livros, pelo acúmulo de conhecimentos sobre o homem e seus sentimentos. Assim como as lições do Iluminismo tendem a relativizar os costumes e as crenças religiosas, os romances ou as narrativas históricas tendem a estimular o questionamento dos próprios movimentos da alma. O problema é encontrar o objeto capaz de, digamos assim, paralisar o pensamento, interromper o vazio, erigir um muro que circunscreva o espaço e faça com que o olhar se fixe para fora de si mesmo.
Ninguém como Chateaubriand descreve tão bem os desertos — o uso do plural, típico nele, já é significativo. Uma página antológica descreve a noite “nos desertos da América”:
O clarão azul e aveludado da lua descia pelos intervalos das árvores, e fazia germinar pontos de luz até na espessura das trevas mais profundas. O regato que corria a meus pés ora se perdia nos bosques, ora ressurgia brilhando com as cons telações da noite, que ele repetia em seu seio. Numa savana, na outra margem do regato, o luar dormia sem movimento sobre a relva; algumas árvores, agitadas pelas brisas, dispersas lá e cá, formavam ilhas flutuantes de sombra sobre aquele mar imóvel de luz […] A grandeza, a espantosa melancolia desse espetáculo não poderia ser expressa nas línguas humanas; as mais belas noites européias não podem dar ideia do que é. Em vão, em nossos campos cultivados, a imaginação procura se soltar; encontra em toda parte as moradas dos homens; mas nessas regiões selvagens, a alma sente prazer em mergulhar nesse oceano de florestas, em planar sobre o vórtice das cataratas, em meditar à beira dos lagos e dos rios, e, por assim dizer, em se encontrar sozinha diante de Deus.[25]
A mesma experiência do vazio do mundo, que criava no trecho sobre o “vago das paixões” uma “condenável melancolia”, é reproduzida aqui, sob um prisma favorável; “grandeza e melancolia espantosa” surgem da contemplação do deserto. A contemplação não é mais, entretanto, um “perder-se” do olhar: a pintura da paisagem e a melancolia que dela se deduz vem preparar, na verdade, a palavra-chave, o objeto que se encontra diante dos olhos; objeto infinito, é verdade, mas nem por isso distinto da alma, interrompendo a frase e impondo um limite ao devaneio: “Deus”.
Correndo o risco de uma especulação algo arbitrária diante dos exemplos aqui citados, é como se a frase, o estilo de Chateaubriand não tivessem outra maneira de ser interrompidos; as descrições da paisagem americana, ou de uma catedral, poderiam, e não raro o fazem, estender-se por páginas e páginas, não fosse a irrupção de alguma palavra solenizadora conclusiva. O que tínhamos visto como artes da melancolia contra o ridículo, nos trechos correspondentes às notas 15, 16 e 17, pode também ser entendido não somente como recurso retórico (o arredondar-se o final da frase) mas como um fenômeno no qual as ordens do psicológico, do ideológico e do literário se confundem. Temos a palavra, o seu referente e sua conotação, a erigir-se como barreira contra o vazio; como estela, como insígnia, como interdito, quase como decreto. “Deus”, “morte”, “solidão” são conclusão eufônica, melancólica, nobilitadora e ideológica a elevar-se, e com elas o texto todo, monumentalmente diante do olhar; o anteparo sublime contra a experiência de um vazio.[26]
As origens dessa sensação de vazio, e da palavra vertical que encerra a contemplação das “horizontalidades” desérticas, podem ser mais bem entendidas se nos lembrarmos de um trecho das Memórias de além-túmulo, onde Chateaubriand compara dois atestados de óbito: o de seu pai, datado de 1786, e o de sua mãe, de 1798. O do pai diz assim:
“O corpo do alto e poderoso sr. René de Chateaubriand, cavaleiro, conde de Combourg, senhor de Gaugres, le Plessis-l’Épine, Boulet, Malestroit-en-Dol e outros lugares […], morto em seu castelo de Combourg, no dia 6 de setembro […] foi inumado no dia 8, […] na presença dos senhores fidalgos, dos senhores oficiais da jurisdição, e outros notáveis burgueses abaixo-assinados […]”.
O de sua mãe é bem diferente:
No 12 Prairial, ano VI da República Francesa, diante de mim, Jacques Bourdasse, escrivão municipal da comuna de Saint-Servan, […] compareceram Jean Baslé, jardineiro, e Joseph Boulin, diarista, os quais me declararam que Apolline-Jeanne-Suzanne de Bedée, viúva de René-Auguste de Chateaubriand, faleceu no domicílio da cidadã Guyon […] De acordo com essa declaração, de cuja verdade me assegurei, redigi o presente ato, que Jean Baslé apenas assinou comigo, tendo Joseph Boulin declarado que não o sabia fazer […]
Chateaubriand comenta os dois textos:
No primeiro extrato, a antiga sociedade subsiste: o sr. de Chateaubriand é alto e poderoso etc; as testemunhas são fidalgos e notáveis burgueses; encontro entre os signatários aquele marquês de Monlouet, que pousava no inverno no castelo de Combourg […] no extrato mortuário de minha mãe, a terra gira em outros polos; novo mundo, nova era; o cômputo dos anos e os próprios nomes dos meses foram mudados. A sra. de Chateaubriand não é mais que uma pobre mulher que falece no domicílio da cidadã Guyon; um jardineiro e um diarista que não sabe assinar o nome atestam sós a morte de minha mãe; a assisti-la, apenas a Revolução.[27]
A mudança de sociedade, que Chateaubriand sentiu na carne, aqui se expressa de um ponto de vista muito pessoal, e a meu entender muito importante para entendermos de que maneira se dá o jogo entre a experiência do deserto, da solidão, da planície vazia, e a elevação monumentalizante, religiosa, fraseológica a que vínhamos nos referindo. A Revolução Francesa viria destruir a antiga ordem estamental. A sensação individual de pertinência a um determinado nicho da sociedade se vê substituída por uma situação em que cada pessoa está como que isolada, solta ao lado das demais, sem barreiras de nascimento, de título, de profissão a separá-la.
O pensamento conservador iria insistir muito nessa “perda” de localização social. Edmund Burke, reagindo de imediato à Revolução Francesa, denunciaria a concepção igualitária de uma solidariedade abstrata, de uma ligação puramente contratual entre cidadãos. “Estar ligado a uma subdivisão, amar o pequeno pelotão a que pertencemos numa sociedade, é o princípio primeiro dos sentimentos públicos. É o primeiro elo na série pela qual nos encaminhamos rumo ao amor pela pátria e pela humanidade.”[28] A igualdade civil, a sociedade burguesa, como que dissolveriam esse “micropatriotismo” que é a fidelidade ao lugar de origem, à família, à condição social de nascença.
A ausência de limites, de barreiras, sem dúvida tornaria “tudo” possível; mas traz consigo também a sensação de estar desguarnecido, “à solta” num “vasto deserto de homens”, que é como Chateaubriand chamava Paris. Para voltar ao vocabulário do “vago das paixões”, e aproximar a experiência subjetiva do romantismo à realidade histórica, é plausível então que o desejo se torne ilimitado, que as paixões errem sem objeto, ou se voltem sobre si mesmas, não parecendo ter barreiras contra as quais se chocar. É a organização “vertical” da sociedade — corporações de ofício, ordens de cavalaria, fidelidades estamentais — que se dissolve, numa aparente horizontalização; as imagens do deserto, do oceano, da planície americana encontram uma descrição elegíaca, fascinada pelo infinito e mortificada pelo vazio, pela solidão.[29]
6
Poderíamos entender o romantismo como um empenho de “preencher” literariamente, pela fábula, pelo passadismo, pela religião, ou pela mulher amada — os “temas” românticos não importam muito, nesse caso —, a sensação de vazio, de desenraizamento que inaugura a sociedade pós-revolucionária. Talvez seja apenas explicar algumas metáforas por outras; mas poderíamos tirar daí algumas conclusões sobre o processo de restauração católica, de crise da razão, tal como vivida no começo do século passado.
A crítica a Voltaire, ao espírito científico, só na aparência pode ser entendida como uma volta ao passado; a defesa do cristianismo por Chateaubriand é uma defesa das tradições, sem dúvida, mas uma defesa que se sabe poética, irracional, fabulosa. A luta contra o ridículo é literária, não dogmática. Não se propõe a reacender as fogueiras da Inquisição, mas sim chamar a atenção para os “encantos”, as “harmonias” do catolicismo. Textualmente, a proposta de Chateaubriand é provar que a religião católica “é a que mais contribui para a liberdade, para as artes e para a literatura; que o mundo moderno tudo lhe deve, da agricultura às ciências abstratas”.[30] Se Chateaubriand reprova a razão, porque esta “nunca secou uma lágrima” (ponto dos mais questionáveis, aliás, se pensarmos na descoberta da anestesia ou na supressão da tortura judicial, para citar apenas dois exemplos), e se chama a Enciclopédia de uma “Babel da razão”,[31] seu intuito não deixa de estar impregnado do voltairianismo que critica; sua defesa é “pragmática” e sentimental, seguindo basicamente um raciocínio que até hoje justifica qualquer religião, crendice ou irracionalidade: o de que é melhor uma ilusão que nos deixe em paz do que uma verdade que nos inquiete e deixe infelizes. Mas a escolha entre ilusão e verdade só existe depois de se saber a diferença entre ambas… E quando, como tantas vezes hoje em dia, se faz a defesa da ilusão contra o espírito científico, já se está indiretamente admitindo o próprio erro, ou pelo menos a fragilidade da crença que se defende.
Atitude tipicamente romântica, esta de reivindicar os poderes da fábula, do sonho, do improvável, da ilusão, contra a razão. Não há frase mais contundente nesse sentido do que a de um contemporâneo e amigo de Chateaubriand, Joseph Joubert: “Fecha os olhos, e verás mais claramente”.[32] Vale lembrar outra frase de Joubert, numa carta a seu amigo Molé, de 30 de março de 1804, na qual a crise da razão dá mais uma volta paradoxal: “Deus nos engana perpetuamente e quer que sejamos enganados… é o eterno poeta, se posso usar essa expressão, como o eterno geômetra”.[33]
Não é diferente a atitude de Chateaubriand, que, ao analisar um poema épico de Voltaire, critica-o por invocar, em seus versos iniciais, a proteção da Verdade: “Desce dos céus, augusta Verdade!”. Chateaubriand comenta, citando Boileau: “A poesia épica se sustenta pela fábula, e vive na ficção”.[34] Torna-se difícil escapar do paradoxo de defender uma religião que seja ao mesmo tempo “verdadeira” e “poética”. Faltaria espaço para comentar a oposição feita por Chateaubriand entre o “poético” da mitologia grega e o “maravilhoso cristão”, onde este adquire a vantagem estética de não cair nos defeitos de uma plana alegoria, onde deuses, ninfas e dríades ocupam a natureza numa espécie de “cenário de teatro”.[35]
A poesia da religião católica não pode ser enaltecida sem uma defesa do misterioso, do incompreensível: “Não há nada de belo, de doce, de grande na vida exceto as coisas misteriosas”, diz um dos primeiros capítulos do livro.[36] Tal gosto é romântico por excelência, e necessariamente anti-racionalista. Mas é também… um gosto, uma atitude, uma procura. Numa palavra, parece ser necessário recriar uma obscuridade quando luzes da razão já a haviam expulsado do horizonte. Há como que uma vontade de mistificação ao lado da certeza de que se está fazendo, de fato, uma mistificação; e daí um duplo desassossego: o desassossego criado pelo “desencantamento do mundo” de que fala Max Weber, e o desassossego provocado pela convicção de que os meios para reencantar o mundo já se perderam.
Ou melhor, subsistem apenas na literatura, na ficção. A nostalgia pelo que a razão havia destruído não resultou em ignorância renovada, mas em poesia; a impostura reacionária tornou-se estilo, e estilo cheio de pose até nos seus momentos mais sinceros, como é o de Chateaubriand. Preenche-se o vazio de um mundo burguês, desencantado, com a ficção literária: finge-se até mesmo a fé que se queria restaurar; cria-se com isso uma melancolia real, enquanto a razão continua sorrindo.
Podemos voltar agora à “troca de cadáveres” no poema de Musset citado inicialmente. De um lado, o cadáver é Voltaire, significando morte, crítica corrosiva. De outro, é o Cristo “dissecado” pela razão, transformado em poeira. O romantismo parece oscilar entre esses dois cadáveres, como se soubesse que toda a crítica a Voltaire não irá ressuscitar um Cristo que já virou poeira; desespera-se com a necessidade de uma fé que só pode alimentar de forma imaginária, literária, poética, e que só na escrita há de operar os seus milagres.
7
Termino, assim, com uma conclusão algo otimista a respeito da “crise da razão” inaugurada pelo romantismo. Certamente o livro de Chateaubriand não foi inócuo: sustentou, prorrogou a fé católica, funcionando como ideologia abertamente antiiluminista. Mas o próprio Iluminismo impôs, a quem quer que o combatesse, essa autoconsciência do feito literário, de uma “poetização” voluntária da realidade, de defesa do que se autodenuncia como “fábula” ou “mistério”.
Para fazer referência apenas a um dado da circunstância atual, sou dos que com mais impaciência assistem a um processo crescente de irracionalismo, de proliferação de seitas, de superstições alternativas. Anjos, duendes, reencarnação, horóscopo, terapias de cristais e de vidas passadas, o mercado está aberto para todo tipo de charlatanices e para a clássica atitude irracionalista do “por que não acreditar?”. Crise da razão, certamente: acredita-se que com amuletos e cristais se podem curar doenças, numa contrafacção manipulatória da ciência. Mais pseudociência do que religião ou misticismo. E ao mesmo tempo se desiste de qualquer forma de controle voluntário da sociedade, como se as forças obscuras e invisíveis do mercado devessem ser entregues a si mesmas, enquanto procuramos conjurar os duendes com auxílio de manuais técnicos de infalível precisão.
Mas analisemos um pouco a mentalidade de quem, por exemplo, cola no vidro traseiro do automóvel o adesivo “Eu acredito em duendes”. Será que acredita de fato? Dirá que sim. Se perguntarmos por que, então, não acredita no saci, provavelmente rirá de nossa pergunta, sem se sentir ridicularizado por ela. O ridículo perdeu seu poder contra esse gênero de crença.
De que crença se trata, contudo? Desconfio que o próprio sentido do termo acreditar mudou historicamente. A pessoa que dirige seu automóvel sabe que duendes não existem tanto quanto o poste à sua frente. Seu adesivo não é uma profissão de fé, é um ato de discurso; como que significando “Sou uma pessoa simpática, aberta à magia das coisas… recuso o prosaísmo da vida, acho bonito acreditar em duendes, espero que eles existam”.
Provavelmente, o termo acreditar não está ali para ser tomado em seu sentido literal. E, se há algo típico da modernidade, é a decadência do sentido literal para as palavras. Se a publicidade diz que determinado produto é ótimo, o melhor do mundo, sabe-se que tal frase não deve ser entendida ingenuamente.
Toda crença, toda asserção aparentemente sincera, tem ainda o sorriso de Voltaire contra si mesma. O esforço romântico foi o de superar essa ironia, ainda que — ironicamente — soubesse ser vã essa empreitada. Na cena contemporânea, não é essa visão de mundo mágico-diletante, a dos duendes, o único fator de irracionalidade aberta a triunfar no ambiente cultural. Os fundamentalismos religiosos parecem, em contrapartida, apostar mais e mais na literalidade do sentido, tornando-se infensos a qualquer ironia, a qualquer pensamento; é o irracionalismo “fechado”, em oposição ao irracionalismo “aberto” de quem acredita em qualquer coisa, pronto a descongelar no microondas cerebral tanto o catolicismo como a sabedoria médica dos egípcios ou dos guarani.
Qualquer esforço estético-literário encontra, atualmente, um desafio ao mesmo tempo conhecido dos românticos e totalmente distinto do que fizeram; a exigência de autenticidade, de sinceridade confessional não se extinguiu, mas estamos mais do que nunca conscientes — voltairianamente conscientes — do que havia de irônico, de fictício, nos procedimentos da retórica romântica da autenticidade. O esgotamento da literalidade talvez tenha trazido consigo um esgotamento da própria ironia; um renovar da literalidade só pode parecer, todavia, primitivo ou suspeito aos olhos hipercríticos deste final de século. A crise da razão tende — é meu otimismo — a ser superada, mal e mal, como sempre, aliás; pois creio que o irracionalismo conspira contra a própria sobrevivência da espécie. Mas a crise das ilusões românticas, ou, mais precisamente, de uma arte capaz de absorver e de jogar com o que resta de insatisfatório, de irrealizado, de desolador na existência humana, e de fazê-lo num máximo de autoconsciência possível quanto aos seus próprios meios, a essa crise o presente artigo não tem resposta a dar.
Notas
[1] Voltaire, Memórias. Rio de Janeiro, Imago, 1995, pp. 73-4.
[2] A esse respeito, ver J. Christensen, “The Romantic movement at the end of history”, Critical Inquiry, primavera de 1994, Chicago, University of Chicago Press.
[3] Alfred de Musset, Poésies nouvelles, Paris, Charpentier, 1887 [1852], pp. 1-29.
[4] Apud G. Gusdorf, Du néant à Dieu dans le savoir romantique, Paris, Payot, 1983, p. 281.
[5] Mme. de Staël, De l’Allemagne, Paris, Firmin-Didiot, s. d. [1810], pp. 352-3.
[6] Apud G. Gusdorf, op. cit., p. 280.
[7] Alphonse-Louis de Lamartine, “Des destinées de la poésie”, in Oeuvres choisies, Paris, Hatier, 1925.
[8] François-René de Chateaubriand, Génie du christianisme (de ora em diante grafado como gc), Paris, Pléiade, 1978 [1802], p. 646.
[9] gc, p. 465.
[10] Mme. de Stael, op. cit., p. 579.
[11] Vejam-se, a este propósito, os retratos de Chateaubriand por Guérin ou Girodet, o de Lamartine por Decaisne; o contraste com a iconografia voltairiana, e mesmo com a “pré-romântica” de Rousseau, não poderia ser mais eloquente.
[12] Henri Bergson, Le rire, in Oeuvres, Paris, puf, 1959, passim.
[13] Uso, neste parágrafo, o termo personagem para referir-me ao protagonista imaginário do exemplo que dei. Mas o “personagem”, aqui, é sobretudo o autor romântico.
[14] gc, p. 584.
[15] gc, p. 583.
[16] gc, pp. 500-1.
[17] gc, p. 556.
[18] gc, pp. 475-6.
[19] gc, p. 896.
[20] gc, p. 469.
[21] gc, p. 802.
[22] gc, p. 714.
[23] gc, p. 716.
[24] Apud A. Lagarde, & L. Michard, XIXe siècle, Paris, Bordas, 1969, p. 23.
[25] gc, p. 592.
[26] A apologia de Chateaubriand procede mal quando visa à argumentação em moldes racionalistas; a própria conversão religiosa do autor, tal como ele a narra no primeiro prefácio ao livro, tem as características de um decreto, de um golpe de Estado, em que é difícil distinguir a dose de autenticidade da de impostura. Chateaubriand conta como recebeu, ainda na América, uma carta de sua irmã, informando-o da morte da mãe. “Quando a carta me veio do além-mar, minha própria irmã já não existia; morrera também das consequências de sua prisão [durante a Revolução Francesa]. Essas duas vozes saídas do túmulo, essa morte que servia de intérprete para a morte, me chocaram. Tornei-me cristão. Não cedi, admito, a grandes iluminações sobrenaturais; minha crença nasceu do coração; chorei e cri” (gc, p. 1282). Cabe apenas advertir aqui quanto à extensa polêmica erudita em torno desse trecho. Chateaubriand não recebeu as duas cartas simultaneamente, como diz; a sinceridade da sua fé foi contestada muitas vezes, e por muitos.
[27] François-René de Chateaubriand, Mémoires d’outre-tombe, Paris, Pléiade, 1946, vol. I, p. 120.
[28] E. Burke, Reflections on the Revolution in France, Nova York, Anchor, 1973 [1790], p. 59.
[29] Sobre a modificação na imagem espacial da sociedade, de “vertical” para “horizontal” nos inícios do romantismo, no quadro da literatura inglesa, ver Clifford Siskin, The historicity of Romantic discourse. Nova York/Oxford, Oxford University Press, 1988, pp. 139-42.
[30] gc, pp. 469-70 (parte I, livro I, capítulo 1).
[31] gc, p. 470.
[32] J. Joubert, Carnets, apud Gusdorf, op. cit., p. 331.
[33] Apud Paul Bénichou, La sagración del escritor, México, fce, 1981, p. 107.
[34] gc, p. 642 (parte ii, livro i, capítulo 5).
[35] Cf. gc, parte II, livro IV. Trata-se ainda da ideia de “desertificação”, neste caso salutar, por extinguir uma “superpopulação” de divindades pagãs.
[36] gc, p. 472.