2017

Utopia: do espaço ao tempo

por Marcelo Jasmin

Resumo

Se formos além do sabido conceito de utopia, o “não lugar” ou “lugar nenhum” (famoso neologismo de Thomas Morus), encontraremos um florilégio de nuances. Os dicionários de referência em nosso idioma – bem como aqueles da língua inglesa e francesa – tendem a gravitar em torno de um sentido em especial: utopia é, segundo essas fontes, “quimera, ilusão, lenda, mito, ficção”; figura em segundo lugar a noção de idealização de instituições justas. O nossa finalidade principal com esse ensaio é delimitar algumas diferenças entre utopias que manifestem mais acentuadamente uma tentativa de escape por meio da fantasia, e as utopias reformadoras, melhor definidas a partir do desejo de transformação da sociedade. Portanto, em sentido lato, as utopias já existem no mundo antigo, às vezes na forma do pensamento teológico das “idades de ouro”, às vezes nostálgicas e voltadas para o passado, baseadas na relação de homem e deuses e fundadas no pensamento fantástico, conforme definiu Raymond Tousson. Toda utopia parte de uma observação do mundo tal como ele é para projetar realidades diversas, mas incluímos na categoria do maravilhoso a Cocanha que trata, sobretudo, do tema da abundância e da satisfação dos mais variados apetites e, de forma semelhante, a Arcádia, lugar de satisfação de desejos que são, no entanto, simplificados e moderados. Em ambas não existe uma proposta estruturada de transformação da sociedade. A meio caminho, temos república da moral perfeita, conforme estudada por J.C. Davis. Em Platão nos deparamos com esse tipo de ideal. A meio caminho encontra-se também o próprio Morus, que não se compraz, por exemplo, em descrever monstros e quimeras em sua Utopia, ao contrário, ele mesmo adverte o leitor que não irá tomar a via do maravilhoso, do bestiário mítico, preferindo concentra-se na organização social de sua ilha utópica. Louis-Sébastian Mercier publicou em 1770 o livro L’An 2440. Por um lado, essa obra é um marco de temporalização da utopia, que deixa de ser o “lugar nenhum” para vir a ser a própria Paris em que viveu o autor, mas projetada num futuro distante. Trata-se de uma idealização da sociedade segundo o conceito de Mercier que, por sua vez, participava de todo um ideário iluminista. Curioso e reformador sob vários aspectos, L’An 2440, ainda permanece atrelado a certezas do presente, padece ainda da “soberba da razão”. As utopias concebidas até o século XVIII passaram a ser vistas como ingênuas e romanescas no XIX, época das grandes doutrinas sociais (e das utopias com ditas de base científica, atreladas a elas) e de uma propensão ao cientificismo (o mesmo que também sofreria ataques, por sua vez, no século XX). Nada disso, porém, exclui a necessidade do pensamento utópico e, mesmo hoje, diante do capitalismo e do neoliberalismo econômico hegemônicos, são ainda os sonhos socialistas que, embora não realizados, servem de modelo para reinvindicações trabalhistas para que a balança social fique menos desequilibrada, desnaturalizando assim conceitos dominantes.


[1]

A utopia moderna nasceu sob a égide de uma ambivalência crucial que se expandiu e se ramificou de modo incessante até hoje. Utópico é tanto o que não se pode realizar como aquilo que se deveria realizar. Entre o não ser e o dever ser, a utopia se afirma como imaginação generosa para desfazer, corrigir ou impedir as mazelas vividas no mundo cotidiano dos fatos, e refazê-lo em um novo ser. O u deste u-topos poderia ser tanto uma corruptela do eu-topos, o lugar do bem, do dever ser, como do ou-topos, o lugar nenhum, o não ser. Na linguagem ordinária a utopia é, portanto, simultaneamente, a projeção da ordem perfeita e o devaneio sem peias.

* * *

Quando visitamos nossos dicionários contemporâneos em busca dos significados usuais de utopia, encontramos essa ambivalência e a intersecção dos campos semânticos do bom estado e da ordem perfeita com os da tolice e da imaginação desprovida do compromisso com a realidade. Os dicionários de Antonio Houaiss e de Aurélio Buarque remetem à sinonímia de quimera, palavra cujo sentido primordial se referia a um monstro mitológico, com cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de serpente, algo que não podia haver. Recorrendo às variantes do Houaiss, “absurdo, aparência, criação, devaneio, fábula, fabulação, fantasia, fantasma, fantasmagoria, faz de conta, ficção, ideia, ilusão, imaginação, invenção, lenda, mito, mitologia, romance, sonho, utopia, visão”, com extensões para a sinonímia de desatino, desvario e mentira.

Ao mesmo tempo, lemos nas várias definições dos mesmos verbetes as referências às boas leis e às instituições justas, à imaginação da boa ordem etc. O mais interessante é esse encontro entre bom governo e sociedade justa de um lado, com desvarios e fabulações irrealizáveis, o que não pode ser ou existir fora da imaginação ficcional, de outro. No Dicionário Houaiss, por exemplo, excetuadas as definições mais técnicas, referidas às obras dos utópicos e às suas críticas intelectuais, lemos numa sequência: “qualquer descrição imaginativa de uma sociedade ideal, fundamentada em leis justas e em instituições político-econômicas verdadeiramente comprometidas com o bem-estar da coletividade”; e “Derivação: por extensão de sentido: projeto de natureza irrealizável; ideia generosa, porém impraticável; quimera, fantasia”. Note-se que as definições não se referem aí nem à perfeição sublime da ordem, nem a excelsos governantes. Referem-se à imaginação de uma ordem política e social com leis aperfeiçoadas e voltadas para o bem comum, algo que não se deveria confundir com o desvario ou o impossível, mas sim com uma definição razoável de república, um governo que respeita as leis e que é exercido de forma orientada para o bem comum.

Vale notar que tais associações não são defeitos ou exclusividades desses dois dicionários. Em maior ou menor grau de imediação, elas também estão presentes nos vários dicionários de língua inglesa ou francesa, conformando um campo contemporâneo de significados comuns e de articulação usual entre boa ordem e quimera, embora se possa, aqui e ali, indicar algumas nuances. A definição do Petit Robert francês, por exemplo, introduz uma instabilidade interessante quando afirma, na explicitação dos usos correntes contemporâneos, a perspectiva de que a utopia diz de um projeto ou uma concepção que parece irrealizável, e não que é um projeto irrealizável, abrindo uma brecha para o relacionamento entre projeto e mundo no qual difere do descarte tout court da plausibilidade da imaginação. Essa pequena e sutil diferença entre o ser e o parecer irrealizável, entre o impossível de existir e o que é estranho à nossa expectativa do verossímil, pode não ser irrelevante e eu gostaria de retê-la para adentrar um pouco mais na babel construída pela literatura especializada no tema.

De qualquer modo, poderíamos arriscar uma definição geral de utopia, válida pelo menos para a linguagem ordinária, que apontaria para a imaginação de um mundo perfeito social e politicamente, mas, por isso, impraticável.

* * *

Thomas Morus (1478-1535), o humanista inglês, cavaleiro do rei e personagem importante na corte de Henrique viii, sabia dessa ambivalência ao publicar o seu livro De Optimo Reipublicae Statu deque Nova Insula Utopia Libellus Vere Aureus, em dezembro de 1516, que apresentava, em seu título, o neologismo pela primeira vez. Ao ambíguo prefixo u que antecede o substantivo topos, seguiu-se o sufixo ia, adotado para dar proximidade a nomes de lugares conhecidos, como Itália, Britânia, Germânia, Alexandria, Macedônia etc. Então, um lugar do bem, a ilha visitada pelo viajante contador de novidades, Hitlodeu, é também o não lugar[2].

Uma das hipóteses mais interessantes para o título do livro – e aqui acompanho passo a passo a exposição de Cosimo Quarta – aponta para o caráter de espelho da obra em relação ao Elogio da loucura de Erasmo de Roterdã[3]. Erasmo escreveu o Elogio enquanto era hóspede de Morus, em 1509. O livro é dedicado a Morus, e Erasmo informa que isso também tem a ver com o nome do chanceler inglês. Em grego, moròs significa louco e loucura é morìa. Não que Erasmo considerasse Morus um louco. Pelo contrário, Sir Thomas seria um moròsophos, “alguém que é louco apenas por nome, mas sábio de fato”[4]. O Elogio da loucura era uma crítica impiedosa dos costumes da época e não poupava nenhum dos seus personagens relevantes. A hipótese interessante de Quarta é a de que

precisamente pela consciência de que tal obra colocava a nu os males do tempo – cobrindo de ridículo a loucura dos homens, como raramente havia ocorrido no passado – tenha nascido, no espírito dos dois amigos humanistas, a ideia de acoplar à par destruens, constituída pelo Elogio da loucura, uma pars construens, ou seja, uma outra obra que, servindo de contra-altar à primeira, como em um díptico, indicasse aos homens o caminho para subtrair-se ao domínio da loucura. Teria nascido, assim, a ideia de escrever um Elogio da sabedoria, do qual Morus teria se incumbido[5].

Assim, Morus teria se disposto a elaborar, numa palinódia, uma espécie de “antídoto a todos os vícios humanos que Erasmo havia iconicamente descrito em sua obra”[6].

Não posso aqui reproduzir os muitos passos desta hipótese interessante, embora sustentada ainda sobre indícios que não constituem provas certas. Pero, se non è vero è ben trovato. Aponto apenas para o fato de que, no Elogio, a Loucura dissera que o verdadeiro sábio jamais existira e também que não existirá em “lugar nenhum” (nusquam) e que a sabedoria não tem lugar na terra dos homens. A ilha de Morus, que quereria justamente representar a descrição do optimo statu depois da introdução das leis excelentes por Utopus, seria o próprio lugar da sabedoria que se encontraria, segundo a loucura erasmiana, em lugar nenhum. A primeira opção de Morus para nomear a sua obra foi substantivar o usual advérbio latino nusquam, aquele mesmo usado pela loucura para falar do lugar nenhum da sabedoria, formando o nome Nusquama, posteriormente abandonado e substituído pelo extraordinário e sonoro neologismo Utopia que pode ter sido criado conscientemente para, ao mesmo tempo em que mantinha o caráter de díptico da obra em relação ao texto de Erasmo, marcar a novidade da descoberta de um lugar para a sabedoria que não era aquele atribuído pela loucura[7].

É possível que do mesmo modo que Morus abandonou o termo latino Nusquama que o aproximaria excessivamente da negatividade da crítica da loucura, recorrer a um termo unívoco e estável como o grego eutopia, por exemplo, poderia sugerir uma positividade indesejada justamente por fazer desaparecer “o negativo, o mal, o qual, infelizmente, constitui uma presença assídua nesse nosso mundo”[8].

* * *

A recusa moriana da eutopia sugere também outro elemento diferenciador do conceito de utopia que, quando subestimado, leva à anulação das suas especificidades se contrastado com outras formas imaginárias do mundo bom, como, por exemplo, o paraíso celeste ou o jardim das delícias. Pois há um elemento humanista que é fundador da utopia e que reivindica a inteligência, a invenção e a ação humanas que, com frequência, não se encontram em boa parte dos sonhos de um mundo melhor.

O filósofo e historiador das ideias Isaiah Berlin, em texto escrito em 1978 e dedicado ao que ele chamou de declínio das ideias utópicas no Ocidente, refere-se à utopia de modo abrangente:

A ideia de uma sociedade perfeita é um sonho muito antigo, seja devido aos males do presente, que levam os homens a imaginar o que seria o mundo sem essas aflições – a imaginar um Estado ideal em que não exista miséria ou ambição, perigo ou pobreza, trabalho brutal, medo ou insegurança –, seja devido ao fato de essas utopias serem ficções deliberadamente satíricas, criadas com a intenção de se criticar o mundo real e lamentar a ação dos que controlam os regimes existentes ou a falta de ação dos que passivamente a eles se submetem; ou talvez, ainda, por se tratar de simples exercícios da imaginação poética[9].

Na sequência do argumento, Berlin segue afirmando que a “maioria das utopias é situada em um passado remoto: era uma vez, uma idade de ouro”[10]. Exemplos de produtores de utopias? Homero, Hesíodo, Platão, Virgílio, a Bíblia hebraica etc. Dos feácios e etíopes da epopeia homérica ao Paraíso bíblico de Adão e Eva, Berlin estabelece uma rede de identidades entre utopia, sonho de mundo perfeito e idade de ouro. Sem dúvida, para um pensador judicioso como Berlin, essa rede deve ter critérios comuns e ele os aponta. “O que existe de comum em todos esses mundos, sejam eles concebidos como um paraíso terrestre ou como algo além da morte, é o fato de proporem uma perfeição estática em que a natureza humana por fim se realiza em sua totalidade, e tudo é sereno, imutável e eterno”[11].

O que vejo aqui nesse tipo de uso ampliado do conceito de utopia é a sua diluição na categoria de “sonhos humanos de um mundo melhor”[12]. Se não há dúvidas de que são todos mundos imaginados pelos homens, a sua reunião indiscriminada faz perder o que há pouco indicávamos como próprio da utopia: algo que aponta para a construção de outro mundo a partir da crítica ao status quo e da proposição de medidas humanas para fins humanos. Creio que devemos separar a utopia daquilo que é da ordem do não humano, do mundo do maravilhoso ou do paraíso criado pelos deuses.

Há muitas interpretações possíveis da obra de Thomas Morus. Mas não se pode negar que o que interessa a Morus são as instituições humanas. Logo nas páginas iniciais do livro primeiro, ao narrar o seu encontro com Peter Giles e com o viajante Rafael Hitlodeu, que foi quem conheceu os utopianos, Morus deixa claro que a sua curiosidade em relação ao que este último viu em suas viagens excluía o maravilhoso.

Seria muito extenso se relatasse, aqui, tudo o que Rafael viu em suas viagens. Aliás não é essa a finalidade desta obra. Completarei talvez a sua narrativa num outro livro em que darei detalhes, principalmente, dos hábitos, costumes e sábias instituições dos povos civilizados, que frequentou Rafael.

Sobre essas graves questões nós o importunamos com perguntas intermináveis, e ele consentia, prazerosamente, em satisfazer a nossa curiosidade. Nós nada lhe perguntamos sobre esses monstros famosos que já perderam o mérito da novidade: Cila, Selenos, Lestrigões, comedores de gente, e outras harpias da mesma espécie que existem em quase toda parte. O que é raro é uma sociedade sã e sabiamente organizada. Para dizer a verdade, Rafael notou entre esses novos povos instituições tão ruins quanto as nossas, mas observou também um grande número de leis capazes de esclarecer, de regenerar as cidades, nações e reinos da velha Europa[13]. [Grifos meus.]

A entonação da passagem sugere ironia, mas é muito precisa na referência ao que merece ser narrado e discutido: o que constitui a novidade e a raridade é o bom ordenamento da sociedade humana, as suas leis e instituições. Isso fica especialmente evidente quando da distribuição dos temas presentes no texto: a discussão do sistema penal dos politeritas, em particular a questão da pena de morte, é apresentada em explícito contraponto com o sistema inglês, assim como a discussão da duração da jornada de trabalho de seis horas dos utopianos se dá em contexto comparativo entre o que acontece no mundo conhecido e o que poderia acontecer. O tom é reformador e apresenta argumentos que querem levar os seus leitores a “considerar seriamente se a Utopia não pode representar o melhor estado de uma república (commonwealth)”[14], mesmo que a “ambiguidade estudada”[15] termine o livro com a tensão entre o desejável e o realizável[16].

O ponto relevante é, como notou Raymond Trousson, que “se a utopia – como o utopismo – supõe a vontade de construir, frente à realidade existente, um mundo outro e uma história alternativa, ela se revela essencialmente humanista ou antropocêntrica, na medida em que, pura criação humana, ela faz do homem mestre de seu destino”[17]

Segundo Trousson, o propósito ou a intencionalidade construtiva separa a utopia, por exemplo, do “mundo às avessas”, construído pelo modo do burlesco e da exageração que, embora desempenhe a função de crítica à sociedade presente, “sua inverossimilhança declarada o separa de uma utopia submetida a imperativos de credibilidade e de verossimilhança e, em consequência, a uma forma de realismo narrativo”[18]. Nesse sentido, a utopia não se confunde com o Carnaval ou a Festa dos Loucos, e também se separa da robinsonada na qual “se desenvolve, não a história de uma sociedade, mas o tema da sobrevivência de um indivíduo isolado, ou mesmo de um grupo familiar, aspirando, por sinal, não a eternizar-se sobre uma ilha, mas a dela evadir-se”[19].

É essa mesma perspectiva antropocêntrica e reformadora que permite separar também a utopia de outras formas, como as derivadas, por exemplo, do pensamento teológico e que têm a forma da idade de ouro. Dois pontos me parecem relevantes aqui. O primeiro diz respeito ao caráter frequentemente nostálgico, associado a uma noção de decadência, que está presente nessas imagens e que contrasta com o caráter futurista e construtivo da utopia. O segundo é o fato de que as idades de ouro supõem um tipo de harmonia entre os homens e a divindade que se subsume ao fato de aqueles cumprirem as leis estabelecidas pelos deuses. Trata-se “de um mundo dado ao homem e não edificado por ele”[20] e que serve antes para a determinação das causas da infelicidade humana do que para a proposição de reformulações legais ou institucionais do mundo vigente. Argumento semelhante pode ser mobilizado para distinguir as utopias das formas do milenarismo que, embora apontem uma solução coletiva para os problemas humanos na Terra, o fazem calcando a mudança na sanção e na intervenção de um deus ex machina[21].

Aqui também são úteis tanto as reflexões de Northrop Frye sobre as variedades das utopias literárias quanto aquelas apresentadas pelo historiador J. C. Davis em seu livro sobre a escrita utópica inglesa entre 1516 e 1700, que, por critérios semelhantes, distinguem as utopias de outras formas assemelhadas.

A primeira delas é a da Terra da Cocanha que é, em si, uma tradição múltipla e de muitas versões, mas que podemos fazer convergir para a imaginação de um lugar da abundância e da satisfação dos mais diversos apetites, terra sem trabalho e sem sofrimento, onde tudo é gratuito e, nesse sentido, também dado. A harmonia presente nesse tipo de mundo, a eliminação de conflitos, se dá “não modificando o caráter do homem nem mediante elaboradas modificações sociais, mas pela mais plena satisfação privada dos apetites dos homens”[22]. A utopia geralmente parte de uma crítica, com frequência uma sátira, da sociedade do próprio escritor, crítica essa que tem por base a irracionalidade, a inconsciência ou inconsistência dos comportamentos sociais observados[23]. Embora os ideais da Terra da Cocanha possam indicar um desejo de libertação daquilo que oprime no mundo que os elabora, eles não partem de uma análise da sociedade contemporânea ao escritor para propor a sua alteração; afirmam, de modo aberto e direto, a fantasia paradisíaca da plena satisfação[24].

Na perspectiva pastoril, identificada à Arcádia, encontramos também os temas da abundância e da satisfação dos desejos, mas é através de uma moderação e uma simplificação dos desejos humanos que se produz uma espécie de harmonia com a generosidade da natureza.

A Arcádia tem duas características ideais que a utopia raramente ou jamais teve. Em primeiro lugar, ela põe a ênfase na integração entre o homem e o seu meio ambiente físico. A utopia é uma cidade, e expressa antes a ascendência do homem sobre a natureza, a dominação do ambiente pelos padrões mentais abstratos e conceituais. No pastoril, o homem encontra-se em paz com a natureza, o que implica que ele está também em paz com a sua própria natureza, associando-se o racional e o natural […]. Em segundo lugar, o pastoril, ao simplificar os desejos humanos, reforça a importância da satisfação daqueles desejos que permanecem, basicamente, é claro, desejos sexuais. Logo, ele pode acomodar, de um modo que a utopia típica não pode, algo desse ideal social furtivo e sem lei conhecido como a Terra da Cocanha, o reino encantado onde todos os desejos podem ser instantaneamente gratificados[25].

Um último aparentado da utopia, e que talvez seja de mais difícil discussão, é proposto pelo mesmo Davis na figura da república moral perfeita. Trata-se aqui daquele tipo de imaginação do ótimo estado que tem o seu fundamento no exercício pessoal das virtudes, tanto pelos dirigentes políticos, quanto pelas partes da sociedade: o mundo da moralidade perfeita baseada na limitação pessoal do apetite, numa espécie de conversão íntima, embora universal, de cada um dos indivíduos. Lembrando que a Utopia de Morus é contemporânea do Príncipe de Maquiavel, parece razoável não confundir uma proposta em que a sociedade se faz melhor porque cada um de seus membros se torna bom por vontade e virtude próprias, com outra que acredita que se cada um pode melhorar é porque as leis e as instituições sociais favorecem ou obrigam a uma melhor conduta. Creio que é este segundo o caso das utopias sociais que perduram até hoje instigando a nossa imaginação contemporânea, e podemos manter, nos limites dessa fala, a diferença entre a utopia e a república moral perfeita, enfatizando o caráter de construção institucional da primeira em oposição à perspectiva individual da segunda.

Finalizo esta discussão das diferenças das utopias em relação aos demais gêneros da imaginação dos mundos (im)possíveis com uma síntese exemplar do já citado Trousson e que me servirá de transição para o tema principal deste artigo. Segundo o francês, para que haja uma utopia é necessário que,

dentro de um quadro narrativo (o que exclui tratados políticos como o Contrato social ou as críticas diretas da ordem existente, como o Testament de Meslier), se dá vida a uma coletividade (o que exclui a robinsonada), funcionando segundo certos princípios políticos, econômicos e morais, restituindo a complexidade de uma existência social (o que exclui a idade de ouro, a Cocanha ou a Arcádia), esteja ela situada num remoto geográfico ou temporal e encravada ou não numa viagem imaginária[26].

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Tendo em vista essa definição, gostaria de estabelecer uma breve história da utopia moderna, que tendo nascido como uma espécie de contraespaço – a ilha de Morus – vai se desenvolver, ao longo do século XVIII, como uma projeção futura, histórica, de tendências que de algum modo já estavam presentes ou já poderiam ser vislumbradas nas sociedades de então. Poderíamos, aqui, falar da passagem da utopia para a ucronia, ou da temporalização da utopia.

Minha hipótese, que nisto segue aquela de Reinhart Koselleck[27], é a de que, a partir de certo momento da reflexão crítica acerca da sociedade europeia que poderíamos identificar, grosso modo, em meados do século XVIII, os usos do termo utopia, como o de vários outros conceitos, passaram a trazer consigo uma carga semântica temporalizada, uma nova relação entre experiência e expectativa que, embora mantivessem uma visão de continuidade temporal, tenderam a fazer prevalecer a segunda sobre a primeira. Ao invés de buscar um espaço desconhecido que seria descoberto por um viajante ou um não lugar como o suporte privilegiado para o desenvolvimento da crítica social e da imaginação irônica do que poderia ser o mundo dos homens, a imaginação utópica setecentista introduzirá o lançar-se ao futuro como forma de elaboração das expectativas de um mundo melhor, mais justo, conforme a razão. A ucronia não é, neste sentido, um não tempo, mas propriamente um tempo melhor, e talvez fosse mais correto falarmos, nesse caso, de eucronia. Pois se trata, sim, da formulação de versões esperançosas da capacidade da natureza humana de, se não aperfeiçoar a si mesma, aperfeiçoar o mundo à sua volta a partir dos conhecimentos filosófico, moral e científico que pareciam desabrochar sem peias e infinitamente. À descontinuidade espacial entre o ecúmeno conhecido e o não lugar se substitui uma continuidade temporal que, mesmo quando pensada em termos de ruptura, produzia um vínculo entre o presente vivido e o futuro imaginado. Neste contexto, o futuro, pintado pelas tintas da negação das mazelas do presente, passa a ser concebido como o seu desdobramento temporal e a sua superação.

O processo de temporalização da utopia é complexo e se confunde com vários outros que a literatura costuma perceber como antecipações de gêneros futuristas, como a ficção científica, por exemplo. Textos como Épigone, histoire du siècle futur[28] [Epígono, história do século futuro], publicado em 1659 pelo francês Michel de Pure, ou Memoirs of the Twentieth-Century[29] [Memórias do século XX], escrito por Samuel Madden em 1733, entre outros, vêm sendo estudados e apresentados como exemplares dessas literaturas de antecipação e merecem uma atenção cuidadosa. Mas gostaria de trabalhar aqui, ainda que brevemente, algumas das ideias e passagens colhidas no livro L’An 2440 [O ano de 2440], publicado pela primeira vez em 1770, por um então obscuro escritor de peças teatrais, o parisiense Louis-Sébastian Mercier, livro que foi escolhido pelo já citado historiador Koselleck como um primeiro exemplar desta temporalização da utopia.

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A narrativa de Mercier relata a história de um habitante da Paris do reino de Luís xv que, após conversar com um amigo inglês acerca das mazelas de seus dias, cai em sono profundo e acorda 670 anos depois, na mesma cidade de Paris na qual adormecera. O subtítulo da obra remete a esse caráter onírico: “Rêve s’il en fût jamais”, que poderia ser traduzido como “Um sonho como nunca houve” ou “como nenhum outro”, sugerindo ao leitor que o relato do personagem na Paris de 2440 o conduzirá pelos meandros do onírico. Mas há certa especificidade no caráter onírico do relato, pois o que lemos é uma descrição bastante realista, se podemos dizer assim, do mundo urbano da cidade tal como poderia vir a ser no futuro, uma projeção do cotidiano da cidade se a história futura viesse a se realizar segundo alguns preceitos centrais do pensamento crítico das Luzes francesas de 1770.

Esta característica projetiva é acentuada desde o início da leitura quando nos deparamos, na capa do livro, com uma epígrafe retirada de Leibniz – “O tempo presente está grávido do futuro” –, indicando que é possível encontrarmos no agora de 1770 algumas tendências do que, parece, se realizará adiante. Neste sentido, a obra é tanto uma espécie de romance de antecipação, como um libelo, escrito en philosophe, acerca das mazelas contemporâneas ao tempo do autor, e as suas muitas sugestões de correção para o mundo vindouro inscrito numa filosofia progressiva da história.

A utopia de Mercier se desdobra em um vasto material de educação política e moral, cujo conteúdo será retomado ao longo da vida do autor, na sua intensa atividade intelectual e política. Podemos encontrá-lo em sua prolixa produção escrita, especialmente no seu livro que se tornaria o mais famoso, Tableau de Paris, publicado entre 1781 e 1790, e que discorre sobre os costumes das ruas de Paris; em sua atividade de editor que publica, em colaboração com Gabriel Brizard, François Henri Stanislas de L’Aulnaye e Pierre Prime Félicien Le Tourneur, entre 1788 e 1793, a primeira edição das Obras completas de Jean-Jacques Rousseau, seu inspirador maior, em 37 volumes; ou como colaborador, e depois como crítico, da Revolução Francesa que eclodiria 19 anos depois de L’An 2440.

A trama em si é bastante simples. Acordado em 2440, o personagem narrador passeia pela Paris futura encontrando as novidades resultantes de uma longa revolução dos espíritos que, pelo processo do Esclarecimento, construíram uma cidade perfeita. Interessante notar que o topos da cidade está presente, mas não é um não lugar ou um lugar desconhecido recém-descoberto; é a própria Paris, conhecida pelo autor e por seus leitores, mas apresentada num continuum temporal futuro que a purificou de seus problemas e excessos. As ruas da Paris de 2440 são as mesmas conhecidas em 1770, mas não são mais estreitas e fétidas. A cada esquina se vê um chafariz com água potável. As casas são bem construídas, cômodas, asseadas e elegantes, e não mais apresentam os antigos riscos representados pelas “chaminés funestas cuja ruína ameaçava todos os passantes”[30]. Os telhados possuem um desenho correto que deixou no passado aquela antiga inclinação “gótica que, ao menor sinal de vento, fazia com que as telhas caíssem nas ruas mais frequentadas”. Quando se entra nos edifícios veem-se escadas amplas e bem iluminadas. Todas as casas têm um terraço com vasos de flores que, no seu conjunto, formam um grande jardim: “a cidade vista de cima de uma torre ficava coroada de flores, frutas e verdor”. Pelas ruas de 2440, circulam as mesmas carruagens de 1770, mas agora estão ocupadas por idosos e enfermos, e também por cidadãos meritórios, e não por aristocratas arrogantes que desprezam os pedestres. Elas trafegam cuidadosamente pelas ruas, respeitando os passantes, sem lançar-lhes a lama das ruas pela velocidade de suas rodas, em claro contraste com os frequentes atropelamentos produzidos pela imprudência da antiga indiferença aristocrática pelo público.

Os habitantes da nova Paris são sábios. Os homens são todos escritores, letrados e philosophes. A religião é substituída pela moral esclarecida e os testemunhos destes cidadãos-escritores constituem um legado letrado de conquistas morais que acabaram por substituir, no tempo, os antigos evangelhos cristãos como guias de conduta. Não se encontra mais, como na utopia anterior, um contraste entre costumes de comunidades regidas por lógicas distintas em função de sua separação geográfica ou cultural. Na utopia temporalizada de Mercier, o contraste é entre o antes e o depois, entre a miséria atual e a sua regeneração produzida pela razão e pela sensibilidade esclarecidas que são frutos do progresso já em andamento em 1770. Há, portanto, continuidade temporal entre o mundo utópico e o que o antecede, e não descontinuidade espacial ou antropológica entre o mundo das mazelas e o da perfeição. Não há outra raça de seres humanos, nem outros lugares de costumes nunca antes conhecidos. O que há é progresso, otimização do presente, reforma e aperfeiçoamento – a perfeição também se temporaliza – do que há pela ação humana na passagem do tempo.

A forma da crítica futurista ao presente se encontra desde o início do relato, quando o personagem acorda. O sistema político vigente é o da monarquia constitucional. Os estamentos medievais foram substituídos por elites de capacidades.

Contam-me que a Bastilha havia sido completamente derrubada, por um Príncipe que não se achava o Deus dos homens, e que temia o Juiz dos Reis; que, sobre os destroços desse terrível castelo, tão bem apelidado de palácio da vingança (e de uma vingança real) haviam erguido um templo à Clemência: que nenhum cidadão desaparecia da sociedade sem que seu julgamento fosse feito publicamente; e que lettres de cachet era uma expressão desconhecida pelo povo.

Eis os muitos temas da revolução condensados numa breve passagem profética, escrita quase vinte anos antes do 14 de julho de 1789: o arbítrio do absolutismo no infinito poder do rei, as lettres de cachet que materializam o poder real de mandar prender sem julgamento, a falta de limites ao poder real e a necessidade de que esteja submetido a uma ordem maior, a humanização do príncipe, a necessidade da justiça fundada no direito, a Bastilha como símbolo maior da opressão.

Mas a política é apenas um dos muitos temas de Mercier. Conforme seu personagem narrador caminha pela cidade reformada, a solução dos problemas do século XVIII vai se apresentando. Não há mais privilégios, só reconhecimento de mérito. Os mosteiros foram extintos e os monges, que agora se casam, são homens dedicados às tarefas perigosas mas necessárias ao bem-estar da humanidade. Não há como resumir a agenda de Mercier. É uma infinidade de temas que testemunham o sofrimento humano na grande capital da Europa iluminada.

Escolho, um pouco aleatoriamente, o tema da saúde pública, para falarmos de modo anacrônico. Ele se apresenta na observação daquilo em que foi transformado o antigo Hôtel Dieu de Paris, instituição hospitalar fundada no século VII e destinada a recolher os indigentes e os doentes em geral, sob a caridade da Igreja. Diz o gentil cavalheiro que acompanha o recém-acordado pelas ruas da cidade:

Não preciso dizer que o Hôtel Dieu já não fica preso no centro da cidade. Se algum estrangeiro ou cidadão, contam-me, fica doente longe de sua pátria ou de sua família, nós não o aprisionamos, como na sua época, em um leito repugnante entre um cadáver e um moribundo, para respirar o ar envenenado da morte, e transformar um simples desconforto em uma doença cruel. Dividimos o Hôtel Dieu em vinte residências particulares, situadas nas diferentes extremidades da cidade. Assim, o ar fétido que aquele abismo de terror exalava encontra-se dispersado e já não representa um risco para a capital. Além disso, os doentes não são levados a esses hospitais pela extrema miséria: não chegam lá atingidos de antemão pela ideia da morte, e para se assegurar unicamente de seu sepultamento; vêm porque o socorro ali é mais imediato, mais multiplicado do que em seus próprios domicílios. Não vemos aquela mistura horrível, aquela confusão revoltante que anunciavam mais uma estada de vingança do que uma estada de caridade. Cada doente tem seu próprio leito e pode falecer sem acusar a natureza humana.

A administração do hospital também é motivo de observação e a corrupção presente (1770) denunciada como flagelo humano em tom de lamento: “Examinamos as contas dos diretores. Ó, vergonha! Ó, dor! Ó, inacreditável abandono sob a abóbada do céu! Homens desnaturados se enriqueciam com a substância dos pobres; ficavam felizes com as dores de seus semelhantes; haviam feito um negócio rentável com a morte”.

A profissão médica vive agora (2440) sob a égide da dignidade:

Médicos sábios e caridosos não proferem sentenças de morte, pronunciando ao acaso preceitos gerais; dão-se o trabalho de examinar cada enfermo individualmente; e a saúde não demora a desabrochar sob seus olhares atentos e prudentes. Esses médicos estão entre os cidadãos mais respeitados. E que ofício mais belo, mais augusto, mais digno de um ser virtuoso e sensível, do que o de reatar o fio delicado dos dias do homem, esse dias frágeis, passageiros, porém cuja arte de conservação é capaz de aumentar sua força e duração!

A honestidade, a dedicação profissional, a organização racional e eficiente dos serviços, todas essas ideias generosas que de algum modo continuam a habitar o imaginário difuso do dever ser do serviço público e da medicina social em nosso século XXI, estão ali para apontar o caminho que deve ser percorrido desde o presente até a correção dos males sociais num futuro previsível. Note-se que não se trata de dádiva divina, nem de uma visão paradisíaca. Ainda na passagem acerca do Hôtel Dieu, lemos o tom rousseauniano da crítica de Mercier: “o tempo dessas iniquidades é findo; o asilo dos miseráveis é respeitado, como o templo onde pousam os olhares da Divindade com a maior complacência: os enormes ultrajes são corrigidos, e os pobres enfermos só precisam então combater os problemas que lhes foram impostos pela natureza. Quando nosso sofrimento provém dela apenas, sofremos em silêncio”, [grifos meus].

O que é da ordem dos limites ou dos sofrimentos impostos pela natureza pode ser sofrido em silêncio, com resignação. Mas a verve futurista de Mercier está apontada para o que é da ordem do contrato entre os homens, do que se estabeleceu como convenção e artifício, o que resultou da própria perfectibilidade humana que produziu, como no Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade de seu mentor, um desvio inconsciente na direção das iniquidades. A natureza não se corrige – o que dá a distância desta utopia para aquelas do contemporâneo associadas às próteses e às correções genéticas que prometem vida eterna –, mas os ultrajes derivados do exercício histórico das faculdades humanas sim. Sem dúvida, o tom de Mercier é o do moralista que denuncia, com indignação, o que é fruto da incúria, do descuido, da intenção malévola, do descaso com o outro, da soberba dos ricos e dos privilegiados de modo geral. O desejo de reforma da ordem, entretanto, é fruto do desenvolvimento e da expansão das Luzes que agora, 1770, fazem ver os erros cometidos pelo processo da polidez que afastou, como dissera Rousseau, pelo desenvolvimento do parecer, o homem de seu ser primordial. São estas Luzes que permitem identificar os erros, as mazelas, as iniquidades, e corrigi-los, refazer a ordem social, estabelecer um novo pacto que tenha por finalidade o bem comum.

As instituições que se apresentam ao narrador acordado em 2440 são o resultado dessa ação, moral e reformadora, fundada no amadurecimento das Luzes. As instituições de correção para criminosos e malfeitores, por exemplo, não têm mais por que existir na nova sociedade purgada dos horrores do Antigo Regime:

Não possuímos mais [em 2440] nenhuma casa de correção, ou melhor, de ódio. Um corpo são não necessita de cautério. O luxo, feito um cáustico ardente, havia gangrenado em seu tempo as partes mais sãs do Estado, e seu corpo político estava coberto de úlceras. Em vez de fechar delicadamente aquelas feridas vergonhosas, vocês as envenenavam continuamente [em 1770]. Queriam sufocar o crime sob o peso da crueldade. Eram desumanos, porque não souberam criar boas leis.

Era mais fácil para vocês atormentar o culpado e o infeliz do que prevenir a desordem e a miséria. Sua violência bárbara só soube endurecer os corações criminosos; fizeram com que neles entrasse o desespero. E o que colheram com isso? Lágrimas, gritos de ódio, maldições. Vocês pareciam ter modelado suas casas de correção com base no local terrível a que chamavam de inferno, onde ministros da dor acumulavam torturas pelo prazer abominável de causar um longo suplício em seres sensíveis e lamentosos.

Assim como também não há mais mendigos em 2440, pois a nova “ciência do governo” sabe dar-lhes trabalho ao invés de “aprisioná-los e fazê-los morrer de fome” e transformá-los em “infelizes vítimas de uma morte lenta em algum canto do reino”. A saúde preventiva do corpo social, e não o castigo dirigido às vítimas da miséria, é a nova ciência do governo futuro.

Diante da sabedoria deste futuro antecipado, o presente só pode se envergonhar: “Baixei os olhos sem ousar responder; pois eu fora testemunha daquelas indignidades, e só pudera gemer, nada mais que isso. Fiquei em silêncio por alguns instantes, e retomei a fala dizendo: Ah! Não renovem as feridas do meu coração”.

O livro termina com uma cena inusitada. O passeio do narrador o leva ao palácio de Versalhes que se encontra em ruínas, com muros caídos e estátuas mutiladas. Um pouco atônito com a ruína daquele que foi o grande monumento do absolutismo francês, o narrador encontra um ancião sentado sobre o capitel de uma coluna. Dirigindo-se ao velho, o narrador se lembra do “orgulho impaciente” e da “vontade caprichosa” que estiveram na origem daquela construção, e como se consumiu todo o dinheiro do reino e se exauriu a energia dos seus súditos para realizá-los. O acordado lamenta as tantas lágrimas derramadas e as quantas dores sentidas pelas mãos dos que construíram aquele imenso palácio ora sem brilho e sem luz. O ancião, ao ouvir aquelas palavras, chora e, “olhando para o céu com ar contrito”, confessa ser o próprio Luís xiv que a justiça divina deixara ali para presenciar a sua “obra deplorável”. “Como são frágeis os monumentos do orgulho!”, exclama o velho rei. E antes que o narrador pudesse retrucar, uma das muitas serpentes que habitavam o lugar naqueles dias o pica e ele acorda de seu longo sonho temporal.

A verve teatral de Mercier se mostra aqui em seu gosto questionável. Aliás, o tema do gosto está presente ao longo do relato, e o autor não poupa esforços para determinar o que é belo e o que não deve existir na arte e na arquitetura futuras. E não se trata apenas de gosto estético. O futuro de Mercier também mantém a censura das obras escritas que poderiam influenciar mal as crianças e os desavisados. Ela deveria garantir a moral, e obras lúbricas, como as de Aristófanes, são queimadas, enquanto algumas passagens consideradas moralmente ambíguas nos livros de Montesquieu e de Voltaire são expurgadas de edições destinadas ao público em geral.

* * *

Como se vê, os limites do absolutismo não estão todos deixados para trás na utopia de Mercier, e a veia pouco liberal tão denunciada nas utopias racionalistas modernas se mostra saliente em vários pontos do texto. A crítica racional iluminada não alcançara ainda a própria concepção da razão, e a temporalização da utopia produzia alguma confusão entre utopia e plano de ação que embutia os riscos característicos dos projetos de fabricação planejada do futuro fundados em certezas do presente. Mas tais riscos só foram conhecidos depois, nas tentativas de trazer a imaginação utópica para a sua realização fática. Observando retrospectivamente, a partir de nossa posição posterior à vivência dos horrores do século XX, parece-nos que a crença de se poder controlar, desde o presente, os desdobramentos da vida futura a partir de projetos bem desenhados, associada aos excessos da vontade projetada para um devir considerado o único justo e racional, produziu equívocos que poderíamos associar a certa soberba da razão. Ao invés de negociar com os obstáculos postos pela densidade e pela opacidade da realidade fática, especialmente os desejos e os interesses divergentes, uma razão carregada de certezas acerca de sua virtude operou para eliminar, inclusive fisicamente, os obstáculos à sua realização. Neste sentido, podemos compreender, a partir de uma observação de Koselleck, que, ao se confundirem o plano da imaginação utópica e o plano de ação, assistimos à transformação do autor da utopia em emissário da verdade da redenção. Os efeitos desta soberba para os direitos e liberdades individuais são conhecidos, e sonhos utópicos puderam engendrar pesadelos distópicos.

As filosofias da história nascidas nos séculos XVIII e XIX, quando deixaram de ser interpretações dos sentidos da história acontecida para serem apreendidas como produtoras de certezas antecipatórias de um futuro concebido como necessário, pois o único submetido a uma suposta lógica histórica, tornaram-se peças intelectuais da perpetração das tragédias do século XX. E a utopia temporalizada serviu a senhores a que ela nunca imaginou ou desejou servir. Todavia, o nosso juízo ético contemporâneo não pode deixar de reconhecer nestas várias utopias o ânimo de seu tempo, um tempo em que a razão, conhecendo seus triunfos sobre forças do obscurantismo e da iniquidade, inflou-se de certezas e de expectativas que só a experiência posterior veio mostrar exageradas ou inócuas. Já em meados do século XIX, boa parte da imaginação anterior acerca dos mundos futuros possíveis foi descartada por sua ingenuidade, em particular por sua pretensa inadequação ao que viria ser concebido, por uma consciência crescentemente cientificista, como o curso futuro da história. O utópico, neste contexto específico, tornou-se categoria de acusação: utópico era aquele que, apesar de sua imaginação generosa, se encontrava, por assim dizer, fora da História – com H maiúsculo – tal como ali ela fora concebida. Não é sem ironia que observamos como boa parte da certeza científica que fundamentou esse tipo de juízo passou a ser vista, no último terço do século XX, como ela mesma ingênua e utópica, se não coisa pior, já que teria revelado a sua íntima natureza distópica e a sua inadequação ao que veio a ser a história mundial.

Tais reviravoltas do tempo, que por vezes transfiguram o acusador em acusado, não devem, entretanto, nos iludir com a força da última vitória. Depois dos dramáticos acontecimentos do século XX, e especialmente do fim da guerra fria, o triunfo do capitalismo e da democracia liberal contemporânea veio, por vezes, acompanhado de equívoco semelhante, do mesmo fatalismo ingênuo, só que formulado retrospectivamente. Como se outros futuros não tivessem sido possíveis, as narrativas dos vencedores ignoram que suas vitórias se deram no complexo contexto da luta de ideias e interesses, quase sempre armados militarmente, que alterou a natureza original de todos os contendores ao longo do percurso. Para ficarmos com os exemplos mais notórios, o New Deal após 1929 e o welfare state europeu, soluções que tornaram mais dignas as condições de vida da população mais pobre do Ocidente rico, foram produzidas por um capitalismo em crise no enfrentamento das proposições alternativas de mundo oriundas das utopias socialistas e comunistas. Mesmo um olhar breve sobre as histórias do capitalismo contemporâneo nos permite perceber como a proliferação de políticas sociais e outras concessões do lucro capitalista aos mais pobres e aos necessitados de modo mais geral, só aconteceram sob a pressão da luta aguerrida dos trabalhadores, boa parte dela inspirada pelos ideais de justiça e equidade advindos daquelas utopias do século XIX. Tão logo a falência do comunismo soviético se tornou irreversível, a reação imediata dos líderes do capitalismo mundial foi justamente a de desmontar institutos de proteção social, reduzir direitos sociais e tratar com permissividade a extrema concentração de renda mundial, sob a égide do que ficou conhecido como pensamento neoliberal.

Neste sentido, se as fantasias divergentes das utopias espaciais modernas serviram para desnaturalizar a ordem social do Antigo Regime e infundiram ânimo à imaginação de outros mundos possíveis, as utopias temporalizadas das várias vertentes do socialismo, com todos os seus equívocos teóricos e fáticos, desempenharam papel histórico crucial na desnaturalização das estruturas sociais do capitalismo seu contemporâneo. Também nos dias distópicos de hoje, sem a abertura da utopia permaneceríamos sob a ditadura da naturalidade dos fatos, da reprodução infinita do mesmo e da reiteração do que há como o único que pode haver. Também nos dias distópicos de hoje, a imaginação utópica mantém ativo o seu papel de desnaturalizar o existente, oferecer alternativas ao que há e alimentar a luta pela dignidade da vida dos seres humanos num planeta em decomposição natural, econômica e social.

Contudo, as utopias de hoje não se formulam mais atreladas nem ao contraespaço de uma geografia imaginária, nem no interior de uma filosofia da história em que a balança entre expectativa e experiência pende quase exclusivamente para a primeira. Talvez a novidade para as utopias contemporâneas que não querem se confundir com o mero prolongamento futurista das tecnologias atuais – como o fim do trabalho pela robotização ou as próteses que anunciam vida eterna na Terra pela criação de um corpo cada vez menos humano e mesmo menos animal – esteja no fato de que a sua atividade de imaginação de generosos mundos possíveis se dá num contexto em que a separação entre espaço e tempo como dimensões estanques já não opera como nas utopias anteriores. Seja pelos avanços dos conhecimentos teóricos inscritos na esteira das teorias da relatividade ou da crítica do pensamento espacial da temporalidade, seja pelos desenvolvimentos fáticos de uma globalização que tornou todas as regiões do mundo conhecidas, integradas e virtualmente acessíveis na instantaneidade da comunicação, a utopia nossa contemporânea não se formula em antigas bases conceituais. Passado e futuro, embora permaneçam como condições fenomenológicas da consciência – como retenção e protensão – e como dimensões da estrutura da temporalidade social – na relação entre experiência e expectativas –, não se definem, nem se articulam, hoje, do modo como a modernidade clássica os concebeu. Nem parece cabível, hoje, concebermos espacialmente o futuro, como uma espécie de outro lugar no tempo do amanhã. A nossa utopia, no entanto, guarda continuidade com as utopias clássicas e modernas ao se compreender como imaginação, devaneio e crítica que abrem, ao presente, uma pluralidade de futuros possíveis que nos inspiram para não sucumbirmos à força avassaladora daquilo que há[31].

Notas

  1. Não havendo indicações em contrário, as traduções dos trechos citados são do autor. [n.e.]
  2. Reproduzo nesta seção e na próxima, praticamente sem mudanças, parágrafos de meu texto “Utopia: memória, palavra, conceito”, publicado em: Heloisa M. M. Starling; Henrique E. Rodrigues; Marcela Telles (org.), Utopias agrárias, Belo Horizonte: Editora ufmg, 2008, pp. 25-51.
  3. Erasmo de Roterdã, Elogio da loucura, São Paulo: L&PM, 2003.
  4. Cosimo Quarta, “Utopia: gênese de uma palavra-chave”, Morus – Utopia e Renascimento, Campinas: 2006, n. 3, pp. 36-7. Disponível em: <http://www.revistamorus.com.br/index.php/morus/article/ view/145/125>. Acesso em: 18 mar. 2016.
  5. Ibidem, p. 37.
  6. Ibidem, p. 38.
  7. Ibidem, pp. 39-ss.
  8. Ibidem, p. 48.
  9. Isaiah Berlin, “O declínio das ideias utópicas no Ocidente”, em: Limites da utopia: capítulos da história das ideias, São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 29.
  10. Ibidem, p. 29.
  11. Ibidem, p. 30.
  12. Neil Eurich, Science in Utopia, apud J. C. Davis, Utopia y la sociedad ideal: Estudio de la literatura utópica inglesa, 1516-1700, México: Fondo de Cultura Económica, p. 22.
  13. Thomas Morus, Utopia, São Paulo: Martins Fontes, 1999, pp. 33-4.
  14. Quentin Skinner, “Thomas More’s Utopia and the virtue of true nobility”, Visions of politics, v. 2, Cambridge: Cambridge University Press, p. 214.
  15. Frank Manuel; Fritzie P. Manuel, Utopian thought in the Western World, Oxford: Basil Blackwell, 1979.
  16. O trecho final é paradigmático dessa tensão: “Porque, se de um lado não posso concordar com tudo o que disse este homem [Hitlodeu], aliás incontestavelmente muito sábio e muito hábil nos negócios humanos, de outro lado confesso sem dificuldade que há entre os utopianos uma quantidade de coisas que eu aspiro ver estabelecidas em nossas cidades. Aspiro, mais que espero”, [grifos meus]. (Thomas Morus, op. cit., p. 171).
  17. Raymond Trousson, “Utopia e utopismo”, Morus – Utopia e Renascimento, Campinas: 2005, n. 2, p. 128. Disponível em: <http://www.revistamorus.com.br/index.php/morus/article/view/18>. Acesso em: 18 mar. 2016. Embora a discussão de Trousson seja elaborada para distinguir a utopia como gênero literário – e não a perspectiva mais ampla do pensamento que ele chama, seguindo Cionarescu, de utopismo –, os seus argumentos são precisos para o que nos interessa aqui: um critério que permita distinguir a utopia de seus aparentados.
  18. Ibidem, p. 128.
  19. Ibidem.
  20. Ibidem, p. 130.
  21. J. C. Davis, op. cit., pp. 41-6.
  22. Ibidem, p. 31.
  23. Northrop Frye, “Varieties of literary utopia”, em: Frank E. Manuel (ed.), Utopias and utopian thought, Boston: Beacon Press, 1966, p. 27.
  24. Ibidem, p. 41.
  25. Ibidem.
  26. Raymond Trousson, Voyages aux pays de nulle part: histoire littéraire de la pensée utopique, Bruxelles: Éditions de l’Université Libre de Bruxelles, 1979, p. 28.
  27. Reinhart Koselleck, “A temporalização da utopia”, Estratos do tempo, Rio de Janeiro: Contraponto/ puc-Rio, 2014, pp. 121-38.
  28. Michel de Pure, Épigone, histoire du siècle futur, Paris: Editions Hermann, 2015.
  29. Samuel Madden, Memoirs of the Twentieth-Century, Charleston: Nabu Press, 2011.
  30. Louis-Sébastien Mercier, L’an deux mille quatre cent quarante. Rêve s’il en fût jamais. Uso aqui a edição de 1774, revista e corrigida pelo autor, e publicada em Londres. Disponível em: <fr.m.wikisource.org>. Acesso em: 18 jan. 2016. As traduções das citações foram feitas por Julia Sobral Campos.
  31. Agradeço a gentileza de Henrique Estrada, Antonio Edmilson Martins Rodrigues, Eduardo Jardim e Maria Elisa Noronha de Sá que, em momentos distintos, discutiram algumas das ideias aqui expostas.

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