Variações em torno da felicidade dos selvagens
por Sérgio Cardoso
Resumo
Eis o argumento central de “Qual é a origem da desigualdade entre os homens…”, de Rousseau: enquanto o homem contentou-se com produzir por suas próprias mãos o que lhe era útil, ele viveu livre, sadio e feliz.
Não que se trate do “homem natural” ou do mítico “bom selvagem”, mas do selvagem assim como havia sido descoberto na América séculos antes. Mesmo que afastado do estado primeiro de natureza, ou seja, mesmo que já marcado pelo “amor-próprio”, é através de tal autóctone que Rousseau entrevê “a época mais feliz e duradoura da história da espécie”.
No seu chamado “Segundo Discurso”, Rousseau procura justamente reconstituir a sucessão dos momentos dessa história. Compreende que a questão sobre a qual deseja dissertar só poderia ser elucidada pelo caminho da investigação sobre a constituição original do homem e pela reconstrução das linhas mais gerais de seu percurso histórico. “Como conhecer a fonte da desigualdade se não se começa por conhecer os próprios homens? Sem conhecer sua constituição original, sem desembaraçar o que ele tem de próprio ou do que as circunstâncias e seus progressos adicionaram ou mudaram em seu estado primitivo?”
É verdade que esses motivos da crítica da civilização não são novos. Ao menos desde o século XVI a cultura europeia repercute a denúncia moral da artificialidade e da aparência, a crítica da comédia da vida civil, do império da duplicidade e da máscara, da impostura e da mentira, exaltando o retorno à interioridade, o viver em si mesmo, à distância do mundo da opinião, da escravidão das convenções e da reputação, do mundo, enfim, da hipocrisia. Já na vaga antimaquiaveliana daquele século, no sucesso dos “Ensaios” de Montaigne, há índices seguros da ampla ressonância desses temas no universo da política e da moralidade. Há muito também se exaltam as virtudes do “bom selvagem” – sua vida simples, seu desprendimento, sua hospitalidade, sua coragem e sua liberdade – e se denunciam a ganância, o refinamento e a ostentação do europeu, sua astúcia, sua dissimulação e seu cinismo. Desde um Colombo de primeira viagem a Las Casas até os viajantes do Pacífico Sul, no século XVIII (tais como Bougainville, La Pérouse, Cook), o Novo Mundo é convocado para perorar ao Velho; a inocência dos índios acusa a corrupção moral do mundo europeu.
No entanto, esses motivos ganham em Rousseau uma sustentação e um alcance inteiramente novos, quando associados a sua empresa propriamente antropológica de crítica da civilização. E é assim, ao subtrair a apreciação da socialidade selvagem de certos cânones da filosofia política originada na Grécia e das amarras da teologia da história cristã, que parece poder, finalmente, dar-lhe um destino “feliz”.
Para Bruninho e Rodrigo (que leram Rousseau)
O centro do argumento, quase todos o conhecemos em sua formulação mais contundente:
Enquanto os homens se contentaram com suas cabanas rústicas, enquanto se limitaram a coser suas roupas com espinhos ou espinhas, a ornar-se com penas e conchas, a pintar o corpo com cores diversas, a aperfeiçoar e embelezar arcos e flechas, a talhar com pedras cortantes canoas de pescar ou grosseiros instrumentos de música, em uma palavra, enquanto apenas se aplicaram a obras que um só era capaz de fazer e às artes que não requeriam o concurso de muitas mãos, eles viveram livres, sadios, bons e felizes, o quanto podiam sê-lo por sua natureza, e continuaram a fruir entre si das doçuras de um comércio independente […]. [D., p. 117)[1]
Livres, sadios, bons e felizes (o quanto, é claro, nós, homens, podemos sê-lo por nossa natureza), esses selvagens, contudo, não se identificam com o “homem natural”, nem vêm, propriamente, reaquecer a figuração mítica do “bom selvagem”. Já afastados do estado de natureza primeiro, já marcados pelos primeiros sinais do “amor-próprio” – “sanguinários e cruéis”-, esses homens, no entanto, permitem ao filósofo testemunhar, ainda viva, “a época mais feliz e mais duradoura da história da espécie”.
No seu chamado “Segundo Discurso”, Rousseau procura justamente reconstituir a sucessão dos momentos dessa história. Compreende que a questão sobre a qual deseja dissertar para o prestigioso concurso da Academia de Dijon – “Qual a origem da desigualdade entre os homens e se ela é autorizada pela lei natural” – só poderia ser elucidada pelo caminho da investigação sobre a constituição original do homem e pela reconstrução das linhas mais gerais de seu percurso histórico. “Como conhecer a fonte da desigualdade se não se começa por conhecer os próprios homens? Sem conhecer sua constituição original, sem desembaraçar o que ele tem de próprio [de son propre fonds] do que as circunstâncias e seus progressos adicionaram ou mudaram em seu estado primitivo?” (D., p. 59).
A empresa é, com certeza, bastante difícil, como sublinha várias vezes o prefácio do livro. Distinguir o originário do artificial no homem atual, dissecar o que nele foi produzido pelos avatares de sua história, requer procedimentos complexos. Pois, para onde quer que se volte, o olhar se depara apenas, evidentemente, com o homem tal qual se tornou, encontra sempre as obras da arte humana. Desse modo, aqui, é preciso abandonar o caminho da observação e da experiência e recorrer àquele dos “raciocínios hipotéticos e condicionais”, como fazem os físicos para compreender a formação do universo: regredir do seu estado presente em direção às condições, lógicas, da sua produção. “Comecemos, pois, por afastar todos os fatos, pois eles nada têm a ver com a questão. Não se tomem as pesquisas nas quais se pode entrar no que diz respeito a esse assunto por verdades históricas, mas somente por raciocínios hipotéticos e condicionais, mais apropriados para esclarecer a natureza das coisas do que para mostrar sua verdadeira origem” (D., pp. 68-9).
E que se afastem, com os fatos, também os livros científicos, que se preocupam apenas com esses fatos e, portanto, “só nos ensinam a ver os homens tais quais se tornaram” (D., p.64). Enfim, para encontrar o homem munido tão-somente de suas capacidades naturais será preciso subtrair lhe, além de seus presumidos dons sobrenaturais, todas as disposições adquiridas, toda transformação ou aquisição histórica.
E, no entanto, é preciso observar que a construção desse itinerário lógico, hipotético e condicional, não obstante seu distanciamento dos fatos e das verdades históricas, não pode prescindir do socorro da imaginação e do apoio de dados da observação e da experiência. Pois o filósofo irá narrar outra história, invisível, mas certamente com um efeito de verdade superior ao das fabulações costumeiras do historiador realista. “Oh, homem”, diz Rousseau, “de qualquer país que sejas, quaisquer que sejam tuas opiniões, escuta. Eis tua história […]” (D., p. 69). Para tal encenação o autor chega mesmo a designar o palco mais adequado: o liceu de Atenas; pois são, com certeza, os “Platões e Xenócrates” os melhores juízes do bom sucesso de sua apresentação. E é assim, nessa cena, que o leitor vê surgir, no meio de uma floresta, o homem natural – “Considerando-o tal qual deve ter saído das mãos da natureza, eu vejo […] eu o vejo […]” -, entre os outros animais, errante e solitário. E aos poucos o vê, também, ir entrando na pele dos negros africanos e dos Caraíba da América, até confundir-se inteiramente com eles – com suas aptidões físicas, morais e sociais – quando o texto chega ao estágio subsequente, chamado pelo filósofo “estado selvagem”. É desse modo que, no momento mesmo em que o trabalho dos raciocínios hipotéticos produz a imagem da socialidade primitiva – equilibrada, prazerosa e saudável -, a construção lógica se torna indissociável das informações históricas que a lastreiam, inseparável dos relatos feitos pelos viajantes a respeito da vida dos habitantes das florestas tropicais, os traços, enfim, dos “selvagens”, sobretudo da América. São, portanto, esses homens – “sanguinários e cruéis”, já perdidos da inocência e da solidão do estado de natureza primeiro – que, paradoxalmente, vêm preencher a figura do momento “mais feliz e mais duradouro da história da espécie”. São suas sociedades que fornecem as balizas para a apreciação do estágio mais equilibrado da existência do gênero. Rousseau diz expressamente: “o melhor para o homem”, expondo sua convicção da forma mais enfática possível.
Quanto mais se reflete sobre isso, mais se acredita que esse estado era o menos sujeito a revoluções, o melhor para o homem, e que ele não deve ter saído daí senão por algum acaso funesto que, para a utilidade comum, não deveria nunca ter acontecido. O exemplo dos selvagens, quase todos encontrados nesse ponto, parece confirmar que o gênero humano estava feito para aí permanecer para sempre [não fosse o acidente da descoberta da metalurgia e da agricultura], que esse estado é a verdadeira juventude do mundo, e que os progressos ulteriores, aparentemente passos na direção da perfeição do indivíduo, o foram efetivamente na direção da decrepitude da espécie. [D., p. 117]
Mas o filósofo logo compreende que essa sobreposição, inevitável, dos dados de experiência ao paradigma teórico pode perturbar a adesão do leitor ao seu traçado hipotético-dedutivo. E a apreciação do público sobre o gênero de vida dos “Caraíba e dos hotentotes” não pode, assim, ser ignorada. Pois, como ver nesses homens grosseiros, ignorantes e miseráveis os beneficiários do estágio mais feliz da história da humanidade? Como acreditar que a violência da barbárie seja menos funesta para a sociabilidade dos homens que as artes da civilização? À medida que o traçado lógico ganha contornos positivos, as contestações precisam, então, ser enfrentadas em seu registro próprio: o da discussão dos fatos. E, tratando-se do terreno controverso dos fatos, o debate deve se afastar do corpo do texto… pois a empreitada crítica dos descaminhos da civilização tem seu caminho a seguir. Rousseau, portanto, o traz, como convém, para o espaço das notas – a primeira da segunda parte do Discurso.
A questão, aí, é de monta. Está em causa, nessa nota, nada menos que o confronto de opiniões sobre “o melhor estado [social] para o homem”, o elemento que baliza o campo das investigações da filosofia política desde Platão e Aristóteles. Qual a melhor forma de vida social para os homens?
Qual a forma de associação capaz de lhes proporcionar uma vida “a melhor possível”? A resposta de Rousseau é inequívoca. Entre aquelas que a história nos apresenta, ele não hesita em afirmar a superioridade da vida selvagem. Mas lembremo-nos que não pretende fazer dela um padrão normativo. Não há nessa afirmação – como pretende a ironia de Voltaire – apologia do ensauvagement ou mesmo qualquer laivo de nostalgia primitivista. A história não volta atrás; não se pode fazer dela tabula rasa. O Segundo Discurso visa apenas estabelecer parâmetros que permitam aos homens avaliar seu distanciamento das normas da natureza, a espessura da corrupção do mundo do artifício. O filósofo busca instrumentos que permitam aos homens conhecer a extensão de seus males, diagnosticar suas instituições, para depois, quem sabe, aplicar-se à invenção de outras – como, mais tarde, intentará no Contrato social – que se mostrem “mais próximas da lei natural e mais favoráveis para a sociedade” (por permitirem a conservação do amor de si e da piedade natural, o cuidado da própria vida e a comiseração pelo sofrimento dos outros).
Todavia, mesmo recusando, assim, qualquer função prospectiva à sua operação genealógica, mesmo admitindo ser impossível ao homem civil regredir “à época mais feliz e mais duradoura da história da espécie”, nem por isso o filósofo se livra do embaraço que sua afirmação da superioridade da socialidade selvagem – e da vida mais feliz dos índios – representa para a adesão às suas teorias. Serão, de fato, os índios americanos e hotentotes mais felizes que o europeu civilizado? Sua vida social, comparada à deste, pode mesmo ser dita “melhor para o homem”? Não é fácil, de fato, admiti-lo. Por isso, quando o “estado selvagem” surge aí, ao alcance dos olhos, na figura dos povos descritos pelos viajantes, torna-se mesmo necessário enfrentar as compreensíveis resistências do leitor. Torna-se necessário um afastamento momentâneo do propósito teórico para – tratando-se de matéria de experiência – persuadir.
O núcleo da argumentação de Rousseau é bastante simples, e claro. Ele alega a dissimetria e o contraste existentes entre as avaliações que selvagens e europeus fazem sobre o modo de vida uns dos outros, em situações de extenso e efetivo contato e entreconhecimento. Todos os testemunhos conhecidos atestariam a rejeição e o desdém dos selvagens pelos costumes, bens e religião dos civilizados, bem como, ao contrário, a poderosa sedução que exerceriam sobre o europeu os modos de viver e os usos dos índios.
É extremamente significativo que nos tantos anos em que os europeus se atormentaram em trazer os selvagens das diversas partes do mundo à sua maneira de viver não tenham ainda conseguido ganhar um só, nem mesmo com a ajuda do cristianismo; pois nossos missionários às vezes fazem deles cristãos, mas nunca homens civilizados. Nada é capaz de vencer a enorme resistência que têm em assumir nossos costumes e em viver à nossa maneira. E se esses pobres selvagens são tão infelizes quanto se pretende, por que inconcebível depravação de juízo recusam-se constantemente a imitar-nos em nossa socialidade política [police] ou a aprender a viver felizes entre nós? E isso enquanto lemos em mil lugares que franceses e outros europeus refugiaram-se voluntariamente nessas nações e aí passaram sua vida inteira, sem conseguir mais abandonar aquela maneira de viver tão estranha. Enquanto vemos mesmo sensatos missionários lembrarem com saudade os dias calmos e inocentes que passaram entre esses povos tão desprezados […] [D., p. 187)
Uma objeção certa a esse discurso poderia vir da desqualificação intelectual dos agentes envolvidos nas ocorrências alegadas: os europeus, porque ignorantes; os índios, porque não teriam sequer ideia da verdadeira felicidade. Pois se trataria, em geral, no caso dos europeus, de homens toscos ou rudes – marinheiros, traficantes, aventureiros -, destituídos dos hábitos intelectuais (e morais) necessários para tais juízos. Rousseau, no entanto, já se antecipa à contestação – jogando, aliás, com os valores e as crenças desse possível objetos -, lembrando que entre esses testemunhos há até o de missionários bastante sensatos. Já quanto à falta de “luzes” do selvagem para uma boa avaliação da matéria, o leitor é advertido sobre a maior dificuldade do civilizado para compreender o que faz o prazer e o contentamento do índio (“passar a vida no meio do mato, ou à pesca, ou a soprar uma flauta ruim”), do que a deste para aprender bem depressa o que constitui os dele. O selvagem dispõe dos instrumentos de compreensão necessários (das “ideias”) para alcançar o que constitui a “felicidade verdadeira” dos civilizados: buscar para si comodidades e obter uma consideração maior que a dos outros. Ele já experimentou, nascentes, os frutos funestos do amor-próprio – o gosto da reputação, da vaidade e do desprezo dos rivais, que faz as delícias de um europeu bem situado.
Mas há ainda o argumento cabal, válido para os dois lados, de que “a avaliação da felicidade é menos uma questão de razão que de sentimento” (D., p. 183), o que confere a todos, igualmente, legitimidade para designar por si mesmos o objeto de seus cuidados, gozos e prazeres, ou o que faz sua felicidade. Mas caso se pretenda, então, que a preferência “sentida” pelos selvagens se deve apenas à escravidão do hábito que sujeita cada um à sua própria maneira de viver, “impedindo-os de sentir o que há de bom na nossa”, Rousseau estará pronto para responder, com ironia, que “nesse ponto deveria no mínimo parecer bastante extraordinário que o hábito tivesse mais força para manter os selvagens no gosto de sua miséria que os europeus no gozo de sua felicidade” (D., p. 184).
O caso do jovem hotentote educado pelo governador do Cabo, os dos indígenas americanos levados a Paris ou a Londres, entendem tornar a argumentação da nota ainda mais persuasiva. No entanto, é o próprio arcabouço teórico construído pelo Discurso que pretende oferecer, pela primeira vez, fundamentos sólidos para a velha postulação de moralistas e viajantes sobre a felicidade dos selvagens, sobre a superioridade dos modos de vida destes em relação aos do europeu. A reconstituição da história do gênero permite ao filósofo atestar, com segurança, a corrupção do homem civil – seu desejo desnaturado, votado (pela perda das regulações naturais) à busca do supérfluo, da acumulação sem fim; sua piedade natural (a compaixão pelo sofrimento do semelhante), abafada pela competição, pela inveja, pelo orgulho, pela crueldade -, bem como assinalar no selvagem uma maior vitalidade dos impulsos impressos no homem pela natureza.
Retomando apenas alguns traços fortes dessa história, podemos observar melhor a avaliação comparada dos méritos dessas socialidades encenada pela filosofia. Sobre o homem natural, Rousseau nos lembrará que, “tendo comido, está em paz com toda a natureza e é amigo de todos os seus semelhantes” (D., p. 158). Sua preocupação consigo mesmo é “apenas viver e permanecer ocioso (e mesmo a ataraxia do estoico – comenta – não se aproxima de sua profunda indiferença por qualquer outro objeto)” (D., pp. 143-4); quanto à relação com os outros, “se há disputas, como o orgulho não se intromete no combate, estas podem terminar depois de uns poucos golpes”. Com a invenção dos primeiros instrumentos técnicos, a sedentarização e a consequente formação das hordas primitivas, tudo se transforma na vida dos homens (ainda que a norma antropológica continue a ser a independência dos indivíduos e a despreocupação com o futuro, o viver o dia-a-dia).
Instruído pelo amor do bem-estar, que é o único motor das ações humanas, ele se viu em condições de distinguir as raras ocasiões em que o interesse comum devia fazê-lo contar com a assistência de seus semelhantes, e aquelas, ainda mais raras, em que a concorrência devia fazê-lo desconfiar deles. No primeiro caso, unia-se com eles em bando, ou ainda em algum tipo de associação livre, que não obrigava ninguém e durava tanto quanto a neces sidade passageira que a havia formado. No segundo, cada um procurava tirar sua vantagem, seja pela força bruta, se acreditava podê-lo, seja pela esperteza e sutileza, se se sentia mais fraco.
Eis como os homens puderam insensivelmente adquirir alguma ideia grosseira dos compromissos mútuos e das vantagens de cumpri-los – mas tão-somente o quanto podia exigi-lo o interesse presente e sensível, porque a previdência não era nada para eles. Longe de se ocuparem com um futuro distante, não pensavam nem mesmo no dia seguinte […] [D., p. 111]
E surgem aí os primeiros developpements du coeur, o amor conjugal e parental; e, com eles, o ciúme e as discórdias. Da consideração dos outros vêm a vaidade e o desprezo, as primeiras sementes do amor-próprio, com seus “componentes funestos para a felicidade e a inocência” (D., p. 115). E, no entanto, se o mal já despontou, a civilização que surge em seguida – o advento da metalurgia e da agricultura, a necessidade das trocas e do comércio, o aparecimento da pobreza, da violência tornada necessária e da escravidão – se encarregará de contrastar a socialidade selvagem como a forma menos danosa para as exigências da natureza, a mais cômoda e prazerosa, e mesmo, como já assinalamos, a mais feliz. O selvagem vive ainda “nele mesmo”, ocupado consigo, com o presente, submetido amplamente ainda às suas necessidades naturais. O civilizado vive fora de si, preocupado com o futuro, na dependência dos outros, escravizado pela opinião alheia. Por isso, no seu mundo, “tudo se reduz às aparências, tudo se torna contrafação e jogo: honra, amizade, virtude e, frequentemente, até os próprios vícios”(D., p. 144). A pintura do homem civil é impiedosa:
Sempre ativo, transpira e se agita, atormenta-se sem cessar para encontrar ocupações ainda mais trabalhosas; trabalha até a morte e se esfalfa para estar em condições de apenas viver (ou renuncia ã vida para ganhar a imortalidade). Faz a corte aos grandes, que detesta, aos ricos, que despreza, nada poupa para obter a honra de servi-los. Gaba-se orgulhosamente de sua baixeza e da proteção que eles lhe dão e, orgulhoso de sua escravidão, fala com desdém dos que não têm a honra de partilhá-la. Que espetáculo para um Caraíba a labuta penosa e invejada de um ministro europeu! Quantas mortes cruéis não preferiria esse indolente selvagem ao horror de semelhante vida, a qual muitas vezes nem mesmo é suavizada pelo prazer de bem-fazer. [D., p. 144]
É verdade que esses motivos da crítica da civilização não são novos. Ao menos desde o século XVI a cultura europeia repercute a denúncia moral da artificialidade e da aparência, a crítica da comédia da vida civil, do império da duplicidade e da máscara, da impostura e da mentira, exaltando o retorno à interioridade, sibi vívere, o viver em si mesmo, à distância do mundo da opinião, da escravidão das convenções e da reputação, do mundo, enfim, da hipocrisia. Já na vaga antimaquiaveliana daquele século, no sucesso dos Ensaios de Montaigne, temos índices seguros da ampla ressonância desses temas no universo da política e da moralidade. Há muito também se exaltam as virtudes do “bom selvagem” – sua vida simples, seu desprendimento, sua hospitalidade, sua coragem e sua liberdade – e se denunciam a ganância, o refinamento e a ostentação do europeu, sua astúcia, sua dissimulação e seu cinismo. Desde um Colombo de primeira viagem a Las Casas, até os viajantes do Pacífico Sul, no século XVIII (Bougainvile, La Pérouse, Cook), o Novo Mundo é convocado para perorar ao Velho; a inocência dos índios acusa a corrupção moral do mundo europeu. No entanto, esses motivos ganham em Rousseau uma sustentação e um alcance inteiramente novos, quando associados a sua empresa propriamente antropológica de crítica da civilização. E é assim, ao subtrair a apreciação da socialidade selvagem de certos cânones da filosofia política originada na Grécia e das amarras da teologia da história cristã, que parece poder, finalmente, dar-lhe um destino “feliz”.
Observemos, porém, um pouco mais detidamente os obstáculos a serem vencidos. Na perspectiva da tradição da filosofia política, como todos sabemos, “o homem é um animal naturalmente político”, e só realiza seu ser, sua natureza, na comunidade autárquica da cidade. “A natureza é fim”, e está no fim, na coisa acabada, o fim sendo para o homem a vida na comunidade política – cujos elementos são ordenados por um comando exercido em vista do bem viver de todos, da vida “melhor possível” (sendo o “melhor” determinado por suas deliberações racionais, virtualmente universais). Ora, como identificar na socialidade selvagem a realização dessa natureza? Como reconhecer aos índios conformações efetivamente humanas se é evidente que lhes faltam o exercício da palavra e o de um comando propriamente políticos? Gente “sem rei e sem lei” (no dizer do próprio Rousseau, entre eles, é “o terror das vinganças que tem o papel de freio das leis”), sua inaptidão para a verdadeira socialida de manifesta também sua incapacidade para o cálculo racional que alicerça a moralidade, além das instituições políticas. Por isso são intemperantes e passionais, imprevidentes, insubmissos e vingativos (e observe-se, aqui, que suas qualidades mais exaltadas – coragem, desprendimento, liberdade – se revelam contrapartidas exatas desses vícios, confessando sua verdadeira realidade). Pode-se, desse modo, entender que devam ser comandados e tutelados; submetidos, mesmo que pela força, às boas leis e hábitos civilizados, para que o tempo, senhor dos costumes, os ponha no caminho da virtude – o acordo consigo mesmos e a consonância com os outros – que delineia o horizonte humano da felicidade.
Mas há ainda, por outro lado, a ser vencido, também o obstáculo das verdades reveladas. As convicções dos cristãos sobre a história da salvação parecem interditar qualquer proposição sobre a excelência da socialidade selvagem. O distanciamento do verdadeiro Deus os condena necessariamente ao mundo da perdição – do sofrimento, da miséria, da desordem e da violência, o mundo, enfim, do pecado. Para a natureza humana decaída, só o vínculo com o Criador, Bem Supremo que ordena e dá sentido a todas as coisas, é salvífico; e só a Graça, dom sobrenatural de Deus, devolve ao homem perdido esse elo com a ordem e o Bem. Só a Graça refaz a conexão original de sua vontade com a Vontade divina, permitindo-lhe experimentar novamente a alegria da liberdade de colaborar na obra da criação, na realização das disposições do Criador para a natureza, que é a única fonte verdadeira de contentamento e felicidade. Ora, apenas o cristão, herdeiro da Revelação e dos arcanos dessa história invisível da Salvação – criação, queda e regeneração -, carrega, com a chama da fé, os privilégios dessa Graça. Assim, como atribuir qualquer valor superior às pobres instituições humanas, demasiadamente humanas, desses povos ateus, resistentes ao batismo (como lembra Rousseau), cegados pelo pecado? No homem afastado de Deus, tudo é ignorância e desordem: nos selvagens, tudo testemunha sua natureza perversa e condição viciosa – a pedir a palavra evangelizadora do cristão, seu irmão nem sempre compadecido.
Essa compreensão da condição dos selvagens alcança, talvez, sua forma paradigmática nos escritos de Jean de Léry, um daqueles “sensatos missionários” – chamados em testemunho por Rousseau – que lembra com saudades os dias calmos e inocentes que passou entre os Tupinambá e que, em meio à barbárie das “guerras de religião” que devastavam a França, lamenta não ter permanecido entre eles (“Je regrette souvent que je ne suis parmi les sauvages”). Mesmo Léry, não obstante sua grande e sincera simpatia pelos índios e ainda a nostalgia que sente por sua generosa hospitalidade, mesmo ele descarta qualquer otimismo sobre a condição dos selvagens. E é, na verdade, seu pessimismo radical sobre a natureza desses homens decaídos que o faz, como já mostrou Frank Lestringant (“L’huguenot et le sauvage”), defensor dos índios, anticolonialista (“antiespanhol”) e mesmo um precursor da etnologia.
O calvinista Léry vê nas suas instituições e costumes, na sua resistência em ceder aos apelos da Graça, na volubilidade de suas conversões, sinais certos de sua exclusão dos benefícios da Redenção, de sua predestinação à condenação eterna. Esses sinais, ele os confirma, e compreende, assinalando nas Escrituras sua linhagem de perdição (“[…] é aparentemente mais certo concluir que sejam descendentes de Cam […]”). Como podem, assim, ser para ele verdadeiramente felizes esses homens nus, violentos e canibais, encarniçados nos seus ódios, insensíveis ao anúncio da fraternidade evangélica e inclinados para os vícios? Sua conclusão, no capítulo XV, dedicado à religião dos selvagens, é firme e contundente – ainda que, como se sabe, não lhe falte compaixão:
Desse modo, quanto ao que concerne à beatitude e à felicidade eternas (em que cremos e esperamos por um só Jesus Cristo), não obstante as luzes e os sentimentos que afirmei que têm, trata-se de um povo maldito e abandonado por Deus, como nenhum outro sob o céu (pois, quanto à vida terrena, como tenho mostrado e mostrarei ainda, enquanto a maioria dos daqui, por seu apego aos bens deste mundo, vive se esgotando e sofrendo, eles, ao contrário, não se engolfando tanto nesses bens, não têm necessidade deles e vivem alegremente, quase sem preocupações), e parece que há mais evidências de que sejam descendentes de Cam. Eis, em minha opinião, a conjectura mais verossímel que se poderia apresentar.
É no filho amaldiçoado de Noé e em seus filhos, e nos filhos desses filhos, expulsos no tempo de Josué da Terra de Canaã, que o pastor encontra os elos da necessária descendência de Adão desses povos. Não obstante a simpatia do hóspede europeu por seus modos de vida (“esgotam-se e sofrem os daqui, eles vivem alegremente”), o missionário sabe que nesse “povo maldito e abandonado por Deus” (como seus ancestrais), “deixados à sua cegueira”, a condição decaída da criatura atinge seu ponto mais baixo, sua situação mais degradada. Nele, não se vê mais nem mesmo uma cintilação de consciência de sua condição e de sua miséria, mas o paroxis mo da corrupção de homens “contentes”, que perderam a própria noção do pecado. A falta original – afastamento voluntário de Deus, ou do bem -revela-se aí no ponto extremo de sua realização: o próprio esquecimento de Deus (a ignorância até mesmo da ideia de um Ser Supremo; pois são ateus, concluíra Léry) e a dissipação da própria consciência da culpa (como a perda do pudor e da vergonha da nudez que, após o pecado, assinalaram em Adão e Eva o sentimento de sua condição degradada). Inconsciência culposa da própria culpa, a inocência nos homens é sempre perversa. O selvagem se compraz no mal e o ostenta com naturalidade. É, pois, escandalosa para o cristão a sua inocência.
Com Rousseau, por sua vez, a história do gênero desembaraça-se de suas referências teológicas para encontrar seu motor na operação genealógica; seu fio invisível desloca-se do plano divino da salvação para o percurso lógico que, como vimos, a partir de um pressuposto ponto “de natureza”, desenha a linha que leva ao estado atual da humanidade. Essa reconstituição, sendo bem-sucedida, permite ao filósofo considerar os pontos de inflexão dessa história (suas “revoluções”), os motivos de seus descaminhos e, assim, permite pensar também as condições adequadas para a satisfação das necessidades fundamentais do homem, tomado na sua situação presente. Tudo nessa operação aponta, portanto, para a iminência da socialidade do Contrato, o novo advento da salvação (“[…] o gênero humano pereceria se não mudasse sua maneira de ser” [C., p. 89]) ou o momento lógico da revolução decisiva que vem regenerar nos homens, definitivamente, os traços de sua humanidade.
Mas devemos ensaiar um balanço final sobre as vantagens desses diversos “estados” quanto à sua capacidade de promover bem estar (que é esta referência de Rousseau – “l’amour du bien-être est le seul mobile des actions humaines” [D., p. 111]), o cuidado de si e a satisfação dos desejos dos homens, de trazer-lhes, enfim, contentamento e felicidade. Sob essa perspectiva, o que pode mesmo oferecer à nossa consideração cada uma dessas formas da socialidade? Quanto ao selvagem, já sabemos, posto a meio caminho da história da corrupção – entre o estado primeiro de natureza e aquele da escravidão do amor-próprio-, eleainda conhece a satisfação natural do desejo, pode experimentar o repouso e o contentamento de suas carências saciadas; e sabemos dele também que, em função da piedade natural pouco comprometida, pode ainda sentir o calor da solidariedade de seus semelhantes nas agruras da dor e do sofrimento, por eles partilhados. O homem civil, por sua vez, ainda segundo nos foi mostrado, ignora qualquer satisfação e contentamento; atormenta-se continuamente em função de seu desejo sempre insaciado – sendo pobre, pela privação; rico, pela necessidade de acumular, sem limites – e da ininterrupta competição com os demais, o que o torna quase insensível às suas dores, cruel e desinteressado de sua sorte. Assim, até aqui, não se pode, de fato, hesitar na preferência ao estado selvagem: de um lado, o ciclo natural das carências, limitadas, e de sua satisfação; de outro, aquele do desejo desnaturado e sempre insaciado, sempre para além de si mesmo, e a “petulante atividade do amor-próprio”, com seu séquito destrutivo de paixões: a ambição, a vaidade, o ciúme, a inveja e o desprezo dos outros. Mas já sabemos também que a situação “intermediária” do estado selvagem lhe confere uma segunda face. Cresceram as carências artificiais e as dificuldades para satisfazê-las; as tormentas do amor-próprio ferido (ofensas, injúrias, ultrajes) e o medo das vinganças vieram perturbar o ócio e o lazer e turvar a remanescente compaixão pelos outros. Assim, vendo os mergulhados nessa mistura de bens e de males, imersos no lusco-fusco da indolência e da comodidade, do terror e da violência, da calma e da tranquilidade, do sobressalto e da vigília, como entender que esses selvagens sejam “felizes”? É certo que não trocam seu mundo pelo horror da vida do europeu mais invejado; mas o civilizado – e não se fale mais de “missionários sensatos”, mas de alguém suficientemente moldado pela razão e pelas luzes da filosofia – poderia, efetivamente, satisfazer-se com a vida deles? Não obstante, mais uma vez, sua admiração e simpatia pelas qualidades e pelos costumes dos índios, o filósofo europeu, na verdade, espera mais da vida social para “fazer sua felicidade”. E é assim que ele tenta enxergar no ponto extremo da corrupção a possibilidade de uma transformação radical, no horizonte da morte, o instante da regeneração e da vida. Pensam-se, desse modo, as condições de uma fundação absoluta, de uma realização plena da sociabilidade. É a pressão da necessidade (o gênero humano encontra-se à beira da ruína) que a razão dos homens vem atilar, fazendo-a revelar os alicerces da vida social verdadeira, a melhor para o homem, a associação do Contrato.
O contrato social vem moldar os indivíduos naturais, há pouco empenhados na competição e na guerra, em um corpo moral e coletivo- “com seu eu comum, com sua vida e sua vontade” (C., p. 92)-, fundindo, em perfeita união, a multidão dos homens em uma pessoa pública, “uma República ou corpo político”. Mediante essa inteira integração das forças e das capacidades dos associados, ele suprime as lutas e oposições, potencializa a satisfação dos desejos – ampliados pela comunicação entre os indivíduos, mas limitados pela supressão de seu amor-próprio – e dá à piedade natural sua realização inteira, acabada, em virtude da solidariedade necessária que agora vincula os contratantes, como membros de um mesmo corpo, indivisível. Desse modo, o Contrato social proporciona ao homem civilizado um estado equivalente ao seu estado “de natureza”, visto que permite a atuação de suas qualidades originais e o exercício de sua força e de sua liberdade primitivas no registro do coletivo; porém, ao abrigo de toda dependência pessoal, material ou moral, de um outro. Surge, enfim, o homem social verdadeiro, acabado, recriado por sua própria razão (e livre dos acasos funestos a que se viram expostas as primeiras experiências de sua sociabilidade) e encarregado de realizar, “por convenção”, o traço essencial do homem aristotélico: “um animal político”.
Diante da superioridade, e das vantagens, dessa sociedade do contrato, o mundo dos selvagens – a vida pré-política -, com sua rudeza, violência e todas as inconveniências do amor-próprio, parece retomar seu lugar – como quer a opinião comum – no domínio da barbárie do “estado primitivo”. Mas diante das próprias mazelas da nossa civilização, que em meio às suas artes cultiva também a razão e a filosofia, o estado selvagem parecerá em desvantagem, se pretendermos que o nosso prepara e anuncia a renovação do gênero, a realização da filosofia. A alienação do homem civil torna-se, então, surpreendentemente, a sua força; a felicidade dos índios, o avesso de sua fragilidade. Pois, quanto a estes, bastaria para destruir o precário equilíbrio de seu mundo, que um “acaso funesto” aproximasse deles certos instrumentos de metalurgia, o comércio, ou a demarcação das terras e da propriedade; quando, então, veríamos se erguer do interior do inocente Tabata Kwikuro – o índio mais cordial, inteligente e feliz trazido, em anos recentes, à nossa cidade – um depravado Paiakã (proprietário doloso, chefe despótico, negociante fraudulento, bárbaro vicioso, contumaz na crueldade e desregrado nos prazeres), signo de um destino quase inevitável de degradação e ruína.
Como se vê, parece não ser suficiente desatar a apreciação do selvagem dos cânones da política aristotélica e das amarras da teologia da salvação para destiná-lo a uma socialidade bem-sucedida, duradoura e feliz. A representação do “estado primitivo” produzida pelo filósofo em sua empresa de reconstituição da história do homem civil deve muito aos intentos e procedimentos formulados pela razão. Assim, talvez devêssemos nos perguntar, diante da compreensão rousseauniana da condição dos índios, se não seria a própria operação genealógica que viria comprometer as informações, provenientes da observação, que temos sobre eles. Se o filósofo toma suas precauções para que a experiência – e a imagem recorrente do selvagem – não venha perturbar a compreensão de sua empresa teórica, também parece recomendável, como se vê, que a experiência mantenha uma certa reserva em relação às construções da nossa filosofia. Pois Montaigne, falando dos canibais, mais uma vez certamente tem razão: “Parece-me”, diz ele, “que o que vemos por experiência nessas nações ultrapassa não somente todas as pinturas com que a poesia embelezou a idade de ouro e todas as invenções que imaginam uma condição feliz para os homens, mas ainda as concepções e as próprias aspirações da filosofia […]” (“Dos canibais”, Ensaios, I, 32, grifos meus).
NOTA
- Os textos do Segundo Discurso são indicados pela letra D., e o número da página refere-se ao volume J.-J. Rousseau, De l’inegalité parmi les hommes. Les Classiques du Peuple. Paris: Éd. Sociales, 1971; os textos do Contrato, pela letra C., e o número da página, a Rousseau, Du contrat social. Bibliotheque Philosophique. Paris: Aubier-Montaigne, 1943. A citação de Léry traz o número de página da edição Classiques du Protestantisme, Max Chaleil, 1992. ↑