1987

A alegoria da liberdade

por Jorge Coli

Resumo

Trata-se de examinar A liberdade guiando o povo, quadro de Eugène Delacroix.

De início, cabe esclarecer que não está em discussão o conceito de Liberdade, mas sua concretude, ou seja, uma gama de experiências individuais e coletivas, imbuídas de emoção e memória.

De Malombra, romance de Antonio Fogazarro, extrai-se o sentido da liberdade em questão. Ou seja: palavra que vem do pulmão, soa como instrumento musical, de modo que, sem que se saiba seu significado, embriaga quem a ouve. Assim é também A liberdade de Delacroix. Mas não só, já que construção minuciosa. E sobre isso há que se ouvir Baudelaire, para quem um quadro é uma harmônica superposição de outros quadros.

Mas, antes, algum contexto. O ano é 1830, quando acontecem as “jornadas gloriosas” contra Carlos X. De caráter fortemente burguês, elas resultam em 1.000 mortos, 800 deles insurretos. Apesar disso, a solução é conservadora. Luís XVI, príncipe simpático aos jacobinos, torna-se Luís Felipe I, protetor de Delacroix, de quem já havia comprado diversos quadros. É assim que A liberdade torna-se um quadro oficial.

Como de costume, não demora para que o rei tome medidas terríveis, a que se seguem massacres. Nesse contexto, não é espantoso que o quadro desapareça. Afinal, seus retratados são os inimigos do poder, ou seja, “os populares”.

Em 1885, a França realiza sua primeira exposição industrial, de que participa, claro, Delacroix. E A liberdade? “Altas razões opõem-se à exposição de um quadro que representa a liberdade com um boné vermelho no alto de uma barricada e soldados franceses pisoteados pelos revoltosos” – explica uma espécie de ministro das Belas Artes de então. De todo modo, ele é exposto. Ordens de Napoleão III.

Com a morte de Delacroix, o quadro volta para o galpão do Museu de Luxemburgo, de que só sairá na Terceira República.

Tudo isso só prova que o quadro é uma afronta ao poder, sobretudo sua alegoria central que, ao contrário da representação clássica, filosófica e, por isso, hermética, atinge um público amplo. Mais ainda porque o “boné vermelho” tinha sido usado pelos sans-cullotes da Revolução Francesa. Por Luís XVI até.

Pátria, Ciência, Fé, Justiça – as deusas pelas quais morriam os homens passaram a dispensar a escrita sagrada. Elas irradiam do espírito.

Com o tempo, a liberdade revolucionária será estampada em todo lugar, como baralhos, pratos, embalagens de charuto, papéis oficiais, almanaques populares etc. Ela se mistura, enfim, à multidão – com uma condição: a de ser representada já coroada, triunfante, afirmativa etc. Tudo de modo a dissimular a luta, ao contrário de A liberdade guiando o povo, corporal e arruaceira.

“Realidade em meio a sonho” – escreveu o próprio Delacroix.


Para Olgária Mattos

“…en quelque sorte, c’est l’introduction de la réalité au milieu d’un songe”.

Eugène Delacroix

O título dado a este texto foi provisório, e acabou ficando. Em realidade, não se trata de uma história da alegoria da liberdade através da arte, mas da reflexão sobre análise de um quadro de Eugène Delacroix: A liberdade guiando o povo. Como esta análise implica referências diversas e obriga a algumas voltas, para maior clareza dividi minha exposição em quatro partes.

Primeiro, vou falar das circunstâncias de criação do quadro, dos acontecimentos que estão ligados à sua produção. Depois, lembrarei a questão da alegoria moderna e, dentro dela, do tema da Liberdade. Em seguida, tratarei da representação do povo na arte, a partir da Revolução Francesa. E, enfim, da construção pictural própria a Delacroix, que permite a síntese desses diversos elementos num quadro.

PALAVRAS PNEUMÁTICAS

Proponho um tratamento, por assim dizer, concreto, que não faz apelo a uma discussão sobre o conceito de liberdade, mas tenta a aproximação de um objeto visual carregado de experiência vivida, ao mesmo tempo individual e coletiva, e, assim, portador de emoção e de memória. É por isso que deixo de lado o debate sobre a natureza teórica dessa Liberdade, o que seria falar não do quadro, mas de outra coisa. Delacroix não tinha um programa explícito a manifestar por imagem nem, certamente, uma definição límpida na cabeça.

Quando eu estava preparando esta pequena introdução veio-me ao espírito uma passagem de um grande romance italiano, Malombra, de Fogazzaro, escrito no fim do século XIX. Nesse trecho, quem fala é um exilado alemão, de 1848 — um certo Andreas Gothold Steinegge —, que se apresenta a si mesmo como tendo sido expulso de seu colégio por ter amado demais o vinho, expulso de sua família por ter amado demais as mulheres e expulso de sua pátria por ter amado demais a Liberdade. E diz que Liberdade é uma palavra pneumática. Como seu interlocutor não compreende, ele explica:

O senhor não entende? De fato é um pouco difícil. Existem, caríssimo senhor Silla, palavras algébricas, palavras mecânicas e palavras pneumáticas. Vou explicar-lhe o que me ensinou um amigo fuzilado pelos malditos prussianos em 1848. As palavras algébricas descem do cérebro e são sinais de equação entre o sujeito e o objeto. As palavras mecânicas são formadas pela língua como articulações necessárias da linguagem. Mas as palavras pneumáticas vêm mesmo dos pulmões, soam como instrumentos musicais, ninguém sabe o que elas querem dizer e embriagam os homens. Se, ao invés de Freiheit, ao invés de Libertà, nós disséssemos uma palavra de dez sílabas, quantos heróis e quantos loucos a menos.[1]

O quadro de Delacroix se inscreve nessa forte corrente emocional que perpassa pelos movimentos políticos do século XIX. Mas não é apenas uma explosão que emerge do fundo das entranhas do artista, nem a expressão de uma subjetividade todo-poderosa que se manifesta no mundo. É uma construção utilizando elementos diversos, que vão muito além do que habitualmente se associa ao trabalho do pintor, isto é, pincel, telas e tintas. O resultado é uma imagem de modo algum transparente e imediata. Baudelaire dizia, de modo curioso mas significativo, que uma pintura construída harmonicamente consiste numa série de quadros superpostos. O que posso propor é cavar um pouco nessas camadas arqueológicas e tentar descobrir algumas coisas que estão sob essa imagem e que a tornaram possível.

UMA LEGITIMAÇÃO OFICIAL

A Liberdade guiando o povo, de Delacroix, data de 1830: é uma resposta aos acontecimentos políticos do verão desse mesmo ano — as chamadas “jornadas gloriosas”,[2] que depuseram o rei Carlos X , e, com ele, a restauração dos Bourbon. Do ponto de vista da história dos movimentos populares, a revolução de 1830 é, sem dúvida, a menos expressiva.[3] Os acontecimentos são, brevemente, os seguintes: a Restauração, de espírito estreito e autoritário, tenta, em 1830, um golpe de Estado que trouxesse de volta um poder absoluto. Carlos x emite quatro decretos:

— supressão da carta constitucional;

— supressão da liberdade de imprensa;

— dissolução da Câmara dos Deputados;

— modificação da lei eleitoral, reservando o direito de voto aos grandes proprietários e excluindo comerciantes e industriais.

Trata-se, de um modo evidente, de um ataque frontal às liberdades burguesas, uma espécie de veleidade de retorno ao antigo regime absolutista. Em Paris, explodem protestos e uma insurreição popular à qual estão ligados elementos republicanos que são, nesse momento, em sua maioria, jovens e estudantes pouco estruturados.

O levante é visto com olhar simpático pela burguesia liberal, mesmo se os deputados da oposição não ousam se incorporar a ela. Pequeno detalhe revelador dessa simpatia: comerciantes e patrões de ateliês pagam o dia a seus operários e empregados para que se manifestem nas ruas. A revolta vai, no entanto, tomar grandes proporções e os combates são sangrentos: cômputo final — 800 insurretos e 200 soldados mortos.

Ao término dos acontecimentos, a oposição liberal recupera habilmente o movimento e encaminha a crise não para uma solução republicana — porque a República parece algo por demais assustador (o trauma do radicalismo jacobino ainda está presente) —, mas para uma solução monárquica.

Existia à mão um homem, o duque de Orleans, com um passado ligado à tradição revolucionária. Filho de Philippe Égalité, o príncipe que, em 1793, havia votado a morte de seu primo Luís XVI na Convenção, o próprio duque de Orleans nutrira simpatias jacobinas e participara de duas batalhas vitoriosas que a Revolução travara contra as forças prussianas e austríacas, a batalha de Valmy e a batalha de Jemmapes. Em 1830, seu passado revolucionário lhe confere certa legitimidade.

Durante o Terror, Luís Filipe se refugiara na Suíça, onde vivia dando aulas de inglês. Mas, em 1815, com a volta dos exilados, recupera a imensa fortuna dos Orleans. Mantém-se, ou é mantido, fora da política, gerindo seus cabedais e ligado à altíssima burguesia liberal e de oposição, os Laffite, os Perier, os grandes banqueiros da época.

De alta estirpe, mas de comportamento burguês, antigo revolucionário e atualmente vivendo de rendas, ele surge portanto como o homem perfeito para a nova situação. Thiers, posteriormente ministro sob a Monarquia de Julho, redige, em 1830, um panfleto-proclamação perfeitamente explícito:

Carlos X não pode mais entrar em Paris, ele derramou o sangue do povo. A República nos exporia a divisões horríveis e a conflitos com o resto da Europa.

O duque de Orleans é um príncipe devotado à causa da Revolução.

O duque de Orleans nunca se bateu contra nós.

O duque de Orleans estava em Jemmapes.

O duque de Orleans defendeu, no fogo da batalha, a bandeira tricolor.

E o duque de Orleans vai se tornar, rapidamente, no dia 7 de agosto, Luís Filipe I, rei dos franceses. Sem que, em nenhum momento, tenha havido sequer a possibilidade de um governo republicano, para não dizer popular, como aconteceria em 1848 e durante a Comuna. Ajudado por essa alavanca que foram as manifestações de rua de 1830, Luís Filipe assegura facilmente a passagem de um regime repressor estreito não para uma nova república, mas para uma nova monarquia, capaz de permitir aos grandes homens de negócio governar comodamente.

Seria então possível perceber o quadro de Delacroix como uma obra celebrando o movimento popular sobre o qual Luís Filipe legitima seu poder. O que não devia desagradar o novo monarca, pois se sabe que no Salon de 1831 havia nada menos do que 23 pinturas consagradas ao tema da revolução de Julho. E sabe-se também que houve mesmo um projeto de decoração da sala do trono de Luís Filipe com episódios da revolta popular.[4]

Se acrescentarmos que Delacroix, com 33 anos em 1830, possui já uma carreira considerável que compreende obras muito célebres (A barca de Dante, O massacre de Quios, A morte de Sardanapalo); estivera, durante a Restauração, relativamente próximo do duque de Orleans — que comprara alguns quadros junto a ele e o beneficiará com a proteção do novo regime —, que a ele encomenda dois conjuntos decorativos (certamente os mais notáveis do século XIX), um para o Palais Bourbon (Assembleia), outro para o Falais du Luxembourg (Senado) — é então possível perceber a Liberdade como um quadro quase oficial, que vai no sentido do poder.

O POVO É PERIGOSO

A obra, entretanto, conhecerá uma curiosa fortuna. É comprada pelo mistério do Interior, em 1831, e exposta no Museu do Luxemburgo,[5] mas, em 1833, é retirada das salas e guardada nas reservas. Em 1839 é devolvida ao artista. Só reaparece em 1848, sob a Segunda República. O que acontecera? A situação social se degradara, e Luís Filipe, que tinha sido aplaudido pelos liberais, mas engolido como uma pílula amarga pelas classes populares e pelos republicanos, defrontará com levantes urbanos extremamente sérios. Em Lyon, logo em 1831, a revolta dos Canuts, tecelões que tomam a cidade: tudo termina com um cerco, uma batalha e um massacre. Em 1832, na região popular do Faubourg Saint-Antoine, em Paris, um movimento é seguido por violenta repressão. Em 1834, nova insurreição operária em Lyon, que vai ainda uma vez ensanguentar a cidade, e, em Paris, uma chacina violentamente feroz recai sobre o Faubourg Saint-Antoine, ilustrada por Daumier em uma de suas mais célebres litografias: Le massacre de la rue Transnonaim.

Enfim, a Monarquia de Julho percebe que andara brincando com fogo e que, nas novas circunstâncias, não só a legitimidade do quadro desaparece (porque o governo está massacrando as pessoas que estão representadas na obra) como ele se torna altamente indesejável: a barricada continua sendo uma ameaça ao poder, e a própria figura da Liberdade traz com ela lembranças ameaçadoras e identificações indesejáveis.

Isso será perfeitamente aclarado com o que se segue na história do quadro. Depois da Revolução de 1848, durante o Segundo Império, é novamente escondido. Em 1855, a França realiza sua primeira grande exposição industrial. Tratava-se, é claro, de exibir ao mundo os poderes da técnica e da indústria modernas, mas também de mostrar os esplendores da cultura francesa. Decide-se então fazer-se uma mostra dos grandes pintores vivos. Delacroix está naturalmente entre eles, mas a Liberdade não figura na lista dos quadros expostos. Delacroix protesta, e o conde de Niewekerke — uma espécie de ministro das Belas-Artes de então — responde, dizendo: “Altas razões, de meu ponto de vista, se opõem à exposição de um quadro representando a liberdade com um boné vermelho no alto de uma barricada e soldados franceses pisoteados pelos revoltosos”.[6] O imperador Napoleão III intervém, e o quadro é exposto em 1855. Coisa curiosa: sondagens realizadas há alguns anos revelaram que, originalmente, o barrete frígio era de um vermelho vivo, escarlate. E que num dado momento, possivelmente por ocasião da mostra de 1855, Delacroix o tenha recoberto com o vermelho-marrom que conhecemos hoje, para disfarçar o tom gritantemente subversivo e para obter a exposição de sua pintura.

Mas imediatamente a seguir o quadro é novamente ocultado. Entrará para o Museu de Luxemburgo em 1863, ano da morte do pintor e período em que o Segundo Império tenta dar uma imagem mais liberal de si. Irá para o Museu do Louvre sob a Terceira República, em 1874.

A ALEGORIA MODERNA

Todos esses movimentos de eclipse da obra são interessantes, porque sintomáticos: o quadro possui elementos indesejáveis ao poder. O povo em revolta, certamente, mas também a figura da Liberdade, que parece assustar tanto com seu boné vermelho. Trata-se de uma imagem alegórica: personagem com alguns atributos encarnando uma ideia abstrata. Mas é preciso saber que essa alegoria de Delacroix, tão vigorosa do ponto de vista plástico e político, é realizada exatamente no momento em que há uma crise do discurso alegórico.

A linguagem alegórica do Antigo Regime era bastante codificada. Suas origens próximas se encontram na Renascença, na necessidade da expressão de ideias filosóficas e morais através das imagens, e também da celebração. Os poetas e artistas vão buscar no conhecimento dos eruditos imagens que possam exprimir as mensagens desejadas. Durante os séculos XV e XVI, não há uma linguagem sistematizada da alegoria ou, se ela existe, é ainda bastante “frouxa”. Alguns compêndios — espécie de pequenos dicionários — são publicados durante o século XVI, mas a erudição humanista multiplica os símbolos e alusões. O resultado é, para nós, frequentemente enigmático, porque as chaves, parciais ou ligadas de modo excessivamente estreito a um programa iconográfico, se perderam. Os estudiosos que se ocupam de tais questões nesse período são obrigados a recolher indícios, proceder por deduções, associações, analogias: Erwin Panofsky comparou-se a Sherlock Holmes. Com efeito, o trabalho sobre a significação das imagens produzidas do início da Renascença ao fim do século XVI é intrincado; exige finura de análise, imensa erudição e brilhantes capacidades interpretativas. A riqueza de um pensamento que se produz como imagem (e não de um pensamento traduzido em imagens) atraiu a grande maioria dos estudiosos da iconologia moderna.

A situação se altera no momento da Contrarreforma e do absolutismo, quando a multiplicidade de linguagens simbólicas e particularismos bizantinos se tornam indesejáveis. O discurso alegórico tende então para a unificação e se torna capaz de celebrar, de afirmar verdades morais ou políticas de um modo universal. Um dos instrumentos mais importantes e eficazes para a cristalização desse código alegórico é a Iconologia do Cavaliere Cesare Ripa, editada nos últimos anos do século XVI. Ela retoma as referências à Antiguidade, as experiências simbólicas da Renascença, os precedentes tratados e textos literários modernos, refunde tudo isso e determina em cada imagem seus atributos e significações. Torna-se um instrumento extremamente cômodo para quem quisesse compor um discurso alegórico, um núcleo a partir do qual as imagens podiam ser concebidas e compreendidas num sistema coerente e coeso. E a necessidade desse dicionário era tal que o sucesso é imediato. Todos os tratados de iconologia posteriores ao Ripa estão sempre de algum modo ligados a ele e, na Europa inteira, sua Iconologia está presente, em múltiplas edições, traduções e adaptações. Quando Le Brun celebra Luís XIV em Versalhes, ele se serve do Ripa. Quando Bernini procede às suas grandes decorações romanas, é ao Ripa que faz apelo para a iconografia. Quando Vermeer — que é, no entanto, o pintor menos retórico que existe — pinta a Alegoria da Fé, utiliza também a Iconologia de Ripa. Está claro que os artistas tomarão liberdades com as diretrizes que encontram no compêndio, modificando, suprimindo, acrescentando símbolos. Mas ele parece ter sido o ponto primordial de referência para a linguagem alegórica dos séculos XVII e XVIII.[7]

Com a profunda transformação da cultura, operada no fim do século XVIII, essa linguagem, destinada a um público restrito e homogêneo, começa a caducar, a entrar em crise. O quadro de Declacroix, como veremos, é uma esplêndida solução, única e sem posteridade direta, no seio da crise da alegoria. Delacroix soube enfeixar elementos antigos e atuais, eruditos e populares, retomando a história recente da Liberdade como imagem e como aspiração política.

A LIBERDADE DOS DICIONÁRIOS

A Liberdade é, naturalmente, uma alegoria pouco frequente sob o Antigo Regime. Muito menos presente, por exemplo, do que a Verdade, que afirma a Fé autêntica e o Poder legítimo. Mas faz parte, ainda assim, do dicionário de Ripa.

Trata-se da Liberdade clássica, filosófica, que repousa sobre o domínio de si, sobre a ideia de que o homem só é livre quando domina suas paixões, os movimentos de sua alma. É representada por uma figura feminina, com um cetro na mão direita, significando o império que o homem tem sobre si próprio como senhor de suas paixões. O barrete frígio vem, nos conta Ripa, de um antigo costume dos romanos, que o faziam usar pelos escravos que seriam libertos. Por fim, aos pés da Liberdade se encontra um gato: não há, diz Ripa, animal mais independente e que suporte menos ficar aprisionado.

Muito rapidamente, o texto sobre a Liberdade da Iconologia vai lembrar que os romanos tinham uma outra imagem para essa ideia, mas distinta da visão filosófica que é interior ao espírito e distanciada da ação. Ele a chama de Liberdade adquirida pelo valor: uma liberdade ativa, que se obtém pela conquista. Ela possui uma arma na mão — uma clava —, um boné na outra, e aos pés uma canga quebrada.[8]

No fim do século XVIII houve uma tentativa tardia para modernizar o dicionário de Ripa. Tentativa fracassada, porque o código alegórico era indissociável do Antigo Regime e perdia então suas antigas funções. Trata-se da Iconologie par figures, ou traité complet des Allégories, Emblèmes etc, de Gravelot e Cochin, editada em 1791.[9] Mas essa reforma iluminista da Iconologia traz alguns elementos interessantes no que concerne à Liberdade. As figuras são nitidamente duas, obedecem a duas descrições diferentes, e ambas aparecem com o mesmo destaque.[10] A primeira é a liberdade filosófica, aquela descrita pelo Ripa: barrete frígio, cetro na mão direita, gato aos pés, e, o pré-romantismo ajudando, os pássaros que voam ao longe e o oceano infinito atrás significam a liberdade de partir, de viajar. Ao domínio de si acrescenta-se o mundo sem fronteiras e sem privilégios. Além disso, alguns instrumentos e alguns livros indicam que as artes e as ciências florescem sob a Liberdade.

Mas a modificação mais importante é a autonomia e o relevo dado à Liberdade ativa, aquela que é adquirida pelo valor. Algumas mudanças nos atributos são também significativas: a clava, anunciada pelo Ripa, foi substituída pela lança (a pique dos franceses), que é um instrumento de guerra mais leve. E é preciso lembrar que a marcha sobre Versalhes, no dia 5 de outubro de 1789, que trouxe a família real para Paris, contava com a presença de muitas mulheres, cuja principal arma era justamente a pique, como testemunha uma conhecida gravura da época. Assistimos aqui a uma primeira metamorfose de um dos atributos da Liberdade, que parece se originar, com muita clareza, de uma experiência contemporânea, ao mesmo tempo da ordem do político e do popular.[11]

Na ponta da lança se encontra o barrete frígio: veremos como essa associação ainda reaparecerá. A Liberdade pisa a canga partida; à volta dela existem personagens que ainda não se libertaram e carregam às costas o jugo: é possível vê-los como a figuração dos povos ainda não libertos pela Revolução. Se assim for, esta imagem alegórica incorpora a dimensão revolucionária: portanto, Liberdade e Revolução se superpõem num processo sincrético. O discurso passa a ser então muito claro: a Liberdade adquirida pelo valor, ativa, não se restringe ao espírito face a si mesmo: ela é coletiva, é a Liberdade dos povos, e pressupõe um esforço originado em si e por si, que não depende de fatores externos às suas forças — não é ela adquirida pelo (próprio) valor?

Ora, é extremamente fácil passar dessa segunda Liberdade, ativa, coletiva, para o quadro de Delacroix e fazê-lo derivar do modelo de Gravelot e Cochin. No fundo, basta substituir a canga pela barricada, a lança pelo fuzil, mais atual, e caracterizar os personagens que estão à volta da figura alegórica como o povo de Paris em revolta para obtermos o fundamento iconográfico do quadro.[12]

A ALEGORIA VIVIDA

Do dicionário de 1791 para a imagem de 1830, a passagem parece direta e sem complicações. Mas ela não é assim tão simples porque, entre as concepções de Gravelot e Cochin e a pintura de Delacroix, existe um tempo do que poderíamos chamar de prática transformadora em profundidade dos símbolos. No Antigo Regime, essas modificações eram, por assim dizer, superficiais: como já lembramos, o discurso alegórico estava restrito a uma elite de cultura relativamente homogênea e o vocabulário visual correspondia plenamente a ideias que eram tácitas. Agora, trata-se de veicular novas mensagens para um público infinitamente mais diversificado, para quem são necessárias referências eruditas, mas também símbolos atuais, populares ou coletivos. E os investimentos simbólicos produzidos pela experiência revolucionária e pelas novas situações culturais vão dar corpo, vão dar vida ao que eram outrora atributos convencionais. Já vimos o caso da pique do dicionário “contaminada” pelas armas reais das mulheres do 5 de outubro: o instrumento da manifestação política popular penetra na linguagem erudita do dicionário. Numa direção inversa, o boné da Liberdade deixa de ser um elemento do saber das elites. Sua fonte é o Ripa, mas ele sai da Iconologia e será usado nas ruas, pelos sans-culottes da Revolução Francesa. Reaparecerá, como supremo triunfo popular, na cabeça de Luís XVI, “coroado” assim rei dos franceses.

Émile Mâle, nos anos 30, deixou um texto que assinala, pela primeira vez em nosso tempo, a importância do Ripa, numa obra intitulada A arte religiosa do século XVII. Ali se encontra muito bem sintetizada a mudança que sofreu o comportamento alegórico com o fim do Antigo Regime: “É nos primeiros anos do século XIX que os artistas cessaram de folhear o velho dicionário das alegorias, que por muito tempo lhes parecera indispensável. Houdon, morto em 1828, tinha ainda uma Iconologia, que hoje está na biblioteca da Sorbonne. Mas, bem antes dessa data, os nomes de Ripa e de Baudoin” (o tradutor da Iconologia em francês) “já estavam profundamente esquecidos. A alegoria não morreu com eles, pois a alegoria é imortal; a arte não poderia dispensar essas graves deusas que encarnam as grandes ideias pelas quais os homens morrem: Pátria, Ciência, Fé, Justiça. Na arte moderna, a alegoria não foi mais o signo de uma escrita consagrada, mas a criação de um espírito. Com frequência ela foi morna ou gelada, mas apareceu, por vezes, irradiante de pensamento e de emoção. Não se criaram mais alegorias com receitas, mas com a alma”.[13]

Basta examinarmos algumas alegorias do tempo da Revolução ligadas à ideia da Liberdade, para verificarmos como elas vivem como seus atributos, de acordo com as necessidades, são acrescentados, modificados, como existem formas de sincretismo e desdobramento. Alguns exemplos:

1 — imagem desenhada por Prud’hon e gravada por Copia, de aspecto extremamente clássico, realizada com saber e segurança. É, de modo manifesto, derivada da Liberdade adquirida pelo valor, de Gravelot e Cochin. A lança foi substituída pelo machado e a canga não está mais aos pés, mas suspensa na mão esquerda do personagem. Na cabeça, o barrete frígio está acoplado a uma coroa de louros: a Liberdade se torna vencedora, triunfando sobre uma hidra que se encontra esmagada a seus pés. O monstro tem cabeças humanas, uma delas é coroada: trata-se de um símbolo novo que com frequência ressurge nas representações visuais da Revolução. Se algumas hipóteses de origem imediata puderam ser levantadas,[14] é evidente que o dragão policéfalo remete mais remotamente à hidra de Lerna (e a Liberdade hercúlea poderá retomar — como na fig. 8 — a clava de Alcides), e conserva ressonâncias cristãs de S. Miguel Arcanjo derrotando o demônio-dragão ou da Virgem pisando na serpente, símbolo bíblico do pecado. Na Revolução, ele toma um novo significado, o da coalizão das forças reacionárias (Prússia, Áustria, Inglaterra, Igreja). O emblema é muito feliz, pois mostra que as diferenças nacionais da contrarrevolução — as cabeças — na realidade se resolvem num corpo só: o corpo da reação. A fim de que nenhuma ambiguidade paire, a gravura comporta, no alto, o título: La Liberté, e, embaixo, a inscrição: “Elle a renversé l’Hydre de la Tyrannie, et brisé le joug du despotisme”.

2 — figuração muito próxima da precedente, empunhando aqui a clava, e triunfando sobre a Hidra derrubada.[15] Tem na cabeça o barrete frígio, mas levanta o braço esquerdo, que empunha uma coroa de louros, num gesto autônomo de se coroar a si própria. É uma Liberdade triunfante, e triunfante por ela mesma. Desse modo, mesmo que a canga tenha desaparecido, ela não é menos “adquirida pelo valor”. Diante de tal gesto, aliás, é impossível não pensar no ato simbólico de Napoleão se autocoroando no momento da sagração.

3 — a Liberdade-Revolução (e depois República) estará presente em todos os papéis oficiais, mesmo os mais ínfimos, como vinhetas ou carimbos.[16] Nesse cabeçalho do Caissier de vivres à l’armée de Sombre et Meuse, a conjugação dos símbolos fala de per si. Note-se, sobre o pedestal, o nível, instrumento do pedreiro, representando a Igualdade segundo a nova Iconologia de Gravelot e Cochin: o antigo símbolo da Igualdade era uma balança, o que se prestava a confusões com Temis. Há, provavelmente, nessa escolha, alguma influência maçônica. Note-se, sobretudo, a superposição de significados. A imagem representa uma Igualdade-Liberdade que é também República vencedora, pois mantém a coroa a seus pés.

4 — a Liberdade pode conhecer também desdobramentos, e penetrar nas práticas as mais populares possíveis. Assim, o célebre baralho do ano II da Revolução. Os reis e rainhas foram eliminados e substituídos, os primeiros por “gênios”, as segundas por quatro Liberdades: da Imprensa, do Culto, das Artes e do Comércio. A Liberdade de Imprensa traz jornais debaixo do braço e empunha pique e boné, como no dicionário de Gravelot e Cochin. A execução é grosseira, denota técnica pouco requintada, um tanto desajeitada — um trabalho, evidentemente, do registro do “popular”.

As próprias figuras humanas poderão desaparecer, e os atributos soltos se encarregarem do sentido geral. A exposição organizada, em 1978, em Saint-Germain-en-Laye sobre as faianças revolucionárias (coleção Louis Heitschel) mostrou um grande número de pratos pintados com símbolos isolados, e apenas um figurando a Liberdade como personagem. Talvez o caráter — eminentemente popular — dessas pinturas se acomodasse melhor à representação sumária de alguns objetos soltos[17] do que à complexidade da figura alegórica.

5 — as composições poderão ser também dramatizadas, muitas vezes com humor, num veio que os litógrafos do século XIX (particularmente Daumier) saberão explorar. Aqui, numa gravura de 1799,[18] uma figura feminina gorduchinha, inscrita num círculo, agarra-se ao seu barrete frígio que algumas cabeças coroadas querem arrancar. Seu rosto é sereno, os braços firmes e fortes, enquanto os personagens atrás dela gesticulam agitadamente, fazendo caretas de esforço. Indiscutivelmente, o barrete é o da Liberdade, mas a personagem feminina traz no pescoço uma medalha com a inscrição RF: République Française. Novamente o sincretismo se manifesta.

6 — na alegoria revolucionária não existe apenas uma “dissolução” da linguagem “erudita” na “popular”, mas um diálogo entre ambas. Desse modo, a grande pintura não ficará indiferente às novas questões do discurso visual. Um dos melhores exemplos é o notável quadro de Régnault Liberdade ou Morte. A personificação da Liberdade é claramente indicada, pois tem o barrete frígio na mão direita, mas é também Igualdade, pois tem o nível do pedreiro na mão esquerda. E é também Fraternidade, pois tem os fasces romanos aos pés, onde todas as varas, do mesmo tamanho, estão solidarizadas por um amarrio perfeito. É definitiva, para sempre, inabalável, pois no trono onde está sentada aparece esculpida uma serpente que morde a cauda, símbolo da Eternidade. Do outro lado do quadro, um esqueleto envolvido num manto, com uma foice: isto é, a Morte. No centro, um personagem alado, com chamas que lhe saem da fronte: um gênio. As asas estão suavemente coloridas de azul, branco e vermelho — trata-se, portanto, do gênio da França, que mostra as duas escolhas possíveis. Isto é, Liberdade, Igualdade, Fraternidade ou a Morte — discurso visual traduzindo o lema da constituição jacobina de modo preciso.[19]

Além das figuras pintadas, esculpidas, gravadas houve uma prática que é, digamos, mais viva da figura da Liberdade. A Revolução vai desenvolver um grande número de solenidades, procissões e festas nas quais as figuras alegóricas são de carne e osso. Mona Ozouf e Michel Vovelle,[20] entre outros historiadores, estudaram notavelmente o papel dessas cerimônias. Ficaram célebres os cultos à “deusa Razão”, explorados pela reação para denunciar a impiedade republicana. Maurice Agulhon, o grande historiador da simbologia da República, mostrou[21] o papel fundamental da Liberdade nessas celebrações do Ser Supremo e da Razão.

Michel Vovelle analisou, de modo nuançado, a festa revolucionária na Provença, e lembra o papel simbólico das mulheres, que emerge desde 1790, para declinar a partir do ano IV da República. Das esposas e mães da boa burguesia, em túnicas brancas e com cintos tricolores, às jovens que, obedecendo a cerimoniais regimentados por textos, se transformam em Liberdades ou Razões (as primeiras muito mais frequentes do que as segundas; em todo caso, muitas vezes associadas por meio de processos de assimilação sincréticos), as alegorias adquiriam vida e deixavam uma lembrança coletiva profunda. É ainda Vovelle, em sua introdução às Métamorphoses de la fête en Provence, que, evocando Mistral, traça um retrato profundamente vivido dessas liturgias. Ele vale ser transcrito aqui:

“Há uma pesquisa a desenvolver, há um segredo a descobrir. E é Mistral que nos diz qual, no capítulo 9 de suas Memori e raconte: na véspera de 1848, a criança que ele é se inquieta a respeito das questões misteriosas que a velha Riquelle, uma velha de Maillane, coloca a seu pai sobre a esperada volta do ‘tempo das maçãs vermelhas’. E é o pai, retornando à sua própria juventude, que explicará quem é a velha Riquelle, que não quer morrer sem ter visto o retorno daquele tempo. Em 93, no período do Terror, quando feriados religiosos e domingos foram abolidos, Riquelle, no frescor de seus dezesseis anos, era filha do prefeito jacobino da aldeia, um sapateiro. Soberba moça e por isso mesmo escolhida para encarnar a deusa Razão nas festas. E evoca as cenas, ainda agudamente revividas, em que Riquelle, sentada no altar-mor da igreja transformada em templo da Razão, se apresenta com o boné da Liberdade, a coxa meio nua, os seios ofertos. Tal é o espetáculo que numa época — bastante breve — os provençais se deram a si próprios: depois eles não o esqueceram, mas o esconderam ou o exorcizaram” (pp. 9 e 10).

Além do caráter profundamente “vívido” dessa alegoria em carne e osso, o texto de Vovelle traz um elemento fundamental das experiências revolucionárias do século XIX: a recorrência. A volta do tempo das maçãs vermelhas, isto é, a volta da Revolução (a verdadeira, a definitiva, de uma vez por todas, a que de algum modo satisfizesse as expectativas — vagas, mas emocionalmente intensas — levantadas desde o movimento de 1789) alimentou continuamente o imaginário das diversas esquerdas. Maurice Agulhon tratou, de modo magistral, esses aspectos em seu 1848 ou l’aprentissage de la République — um dos mais estupendos livros sobre os movimentos revolucionários franceses do século passado.[22] A última frase do texto acima citado fala de “esconder”, “exorcizar” — e não de “esquecer”. O quadro de Delacroix é, em parte, um reviver, um reinstaurar, um tirar dos escaninhos ocultos da memória aquela figura com a “coxa meio nua e os seios ofertos” e reativá-la, ligando-a a um momento histórico preciso que, pela própria universalidade coletiva dos símbolos, é largamente ultrapassado ao se tornar a promessa de novas maçãs vermelhas.

Enfim, a Liberdade revolucionária se encontra, portanto, em todos os lugares. Ela se encontra no baralho, nas travessas e pratos, em caixas de charuto, em papéis oficiais, em almanaques populares, na grande pintura, na escultura. Ela toma corpo nas cerimônias revolucionárias. E essas cerimônias mostram que a Liberdade pode se misturar com a multidão.

É preciso notar, no entanto, que a Liberdade da Revolução Francesa, a Liberdade das festividades e das imagens, é uma Liberdade triunfante, afirmativa, que não indica a luta, mas a vitória. Ela é uma Liberdade coroada, que domina, impera. Ela faz parte de solenidades bem concatenadas. Ela oficializa documentos. São raras as Liberdades combativas, conquistadoras, na época revolucionária. Com uma grande exceção. Que é a Liberdade surgindo na última estrofe da Marselhesa.

LA BELLE DAME SANS MERCI

A Marselhesa era um canto primitivamente destinado ao Exército, um canto marcial, de conquista. Sua última estrofe diz o seguinte:

Liberdade! Liberdade querida

Combate com teus defensores

Sob nossas bandeiras, que a vitória

Acorra a teus acentos viris;

Que teus inimigos expirantes

Vejam teu triunfo e nossa glória.[23]

A Liberdade de Delacroix é desse tipo. Ela combate junto com seus defensores. Ela está misturada com a luta popular. Em 1830 não mostra apenas a corporalidade adquirida durante a Revolução, mas é animada por um princípio de conquista: o combate de rua. É preciso lembrar que barricadas não existiram em 1789, elas aparecem com as lutas populares no fim dos anos 20, e se manifestam com vigor nas jornadas de 30. A imagem da Liberdade vai se nutrir da exaltação das batalhas urbanas.

Auguste Barbier, poeta da revolução de 1830, cria, literariamente, uma personificação muito próxima da de Delacroix. Ao contrário deste último, Barbier era um republicano, e em seu poema, “La curée”, denuncia a recuperação que havia sido feita pela grande burguesia das revoltas populares de julho e descreve assim a Liberdade:

É uma forte mulher, de mamas poderosas

Com voz rouca e duros atrativos;

Que, de pele bronzeada e fogo nos olhos,

Ágil, caminhando a passos largos,

Se compraz com o grito do povo e as brigas sangrentas.

[…]

Que só toma seus amores no populacho;

Que não entrega seu flanco vasto

Senão a quem é forte como ela;

E quer ser enlaçada

Por braços vermelhos de sangue.[24]

Há aqui uma guinada. Barbier nos permite chegar a uma análise feita por Mario Praz em A carne, a morte e o diabo,[25] que trata dessa imagem da Liberdade, inserindo-a na série do que ele chamou, inspirando-se em Keats, de La belle dame sans merci, criadas pelo século XIX — mulheres fascinantes e cruéis, que destroem os seres que as amam.

A Liberdade continua sendo política, mas possui também um outro modo de ser. Como “dama sem piedade”, recusa os freios, as leis; fortemente sexualizada, ela própria é engendradora de desejos violentos e exige o sacrifício de vidas humanas. A Liberdade de Barbier quer brigas sangrentas e braços vermelhos de sangue, a de Delacroix avança sobre uma pirâmide de cadáveres. Poderíamos acrescentar que estamos, desse modo, no oposto das Liberdades clássicas — a do domínio sobre si — porque a Liberdade/ belle dame diz, no fundo, que só se é livre quando se é inteiramente, radicalmente, submetido às paixões. Sexual ou política, tudo é paixão.

A Liberdade vista por Mario Praz desemboca num dos mitos contemporâneos: o da mulher fatal, o da beleza medúsica de Baudelaire. É fato que a Liberdade sobre as barricadas não só provoca paixões como exige — suprema prova — autossacrifícios. Nesse sentido, pertence à mesma família das mulheres fatais míticas, as Cleópatras do século XIX, a Carmen de Merimée/Bizet, as inúmeras Salomés fin-de-siècle, a Lulu de Wedekind e mitos hollywoodianos como Theda Bara, devoradora de homens, ou Marlene Dietrich, vampiresco anjo azul.

Não era a primeira vez que Delacroix trabalhava com uma alegoria quando pintou a Liberdade. O processo alegórico já estava presente em 1826, quando ele realiza um quadro político, empenhado na causa da Grécia, dominada então pelo império otomano: A Grécia nas Ruínas de Missolonghi.

Missolonghi fora diversas vezes assediada pelos turcos: durante um dos assaltos, em 1823, morrera lorde Byron. À lembrança do poeta — caro aos românticos e, mais particularmente, a Delacroix, que por várias vezes se inspirou em obras dele — acrescenta-se um episódio contemporaneamente imediato. Missolonghi fora arrasada em abril de 1826, quando pereceram os últimos resistentes com suas famílias. Como na Liberdade, Delacroix associa visualmente, embora de modo menos complexo, uma situação real (o invasor a cavalo, os edifícios em ruína) a um personagem alegórico — a Grécia — representado por uma mulher cujo gesto a transforma numa espécie de Verônica, mostrando pateticamente o desastre, como se dissesse atendite et videte. Ela exigiu o sacrifício de seus filhos, sacrifício sangrento, que aparece de modo sintético e forte, através do braço que sai dentre as pedras do primeiro plano. Um bloco, bem diante dos olhos do espectador, se encontra brutalmente manchado de sangue. Há aqui, muito provavelmente, um eco do “realismo” violento de Géricault. Como se pode ver, é muito fácil inserir este quadro na linhagem das belas damas sem piedade.

Além das obras de Delacroix, os exemplos poderiam se multiplicar ao infinito. Contento-me em lembrar uma pintura de Gustav-Adolf Mossa,[26] cuja arte tem profunda inspiração baudelairiana. O quadro a que me refiro se chama Elle, data de 1905: um personagem feminino nu, de formas opulentas, rosto infantil e um olhar imenso, hipnótico. O chapéu, acessório satânico e elemento de equilíbrio simétrico, é composto por corvos e caveiras.

Elle está próxima do poema das Flores do Mal intitulado justamente Allégorie, pelo olhar sem ódio ou remorso, como o de um recém-nascido, que enunciam os dois versos admiráveis:

Et dans ses bras ouverts, que remplissent ses seins.

Elle appelle des yeux la race des humains.

Raça dos humanos que aqui se apresenta na mesma disposição encontrada na Liberdade de Delacroix: Elle troneia em cima de uma pirâmide de homens que evidentemente massacrou. Criança monstruosa e gigantesca (é preciso lembrar o poema 19, de Spleen e Idéal?), inocente e cruel, fêmea desmesurada para tão minúsculos machos, que a atingem de modo irrisório: na perna, na coxa do personagem, estão impressas pequenas mãos de sangue, dos pigmeus destroçados que tentam atingi-la. O poema de Barbier dizia que a Liberdade queria ser enlaçada por braços vermelhos de sangue. Na imagem de Mossa, a situação é a mesma: apenas, os homens não “são fortes como ela”, como cantam os Iambes. “Cette vierge inféconde/ Et pourtant nécessaire à la marche du monde”, para citar ainda Baudelaire, de qualquer forma é a única triunfadora nas chacinas, políticas ou carnais.[27]

ANÔNIMOS E MORTOS

A Marselhesa, o poema de Barbier, a Grécia e a Liberdade de Delacroix, a pintura de Mossa possuem uma dualidade constante: a figura alegórica, de um lado; de outro, uma presença coletiva. Delacroix envolve sua deusa guerreira por aquilo que Barbier chama de “povo” e “populacho”. E podemos agora — depois de nossa sondagem, por assim dizer, “arqueológica” da representação da Liberdade — proceder a um trabalho semelhante no segundo elemento que compõe o quadro, isto é, a imagem do “povo”. Proponho que tomemos a palavra de modo genérico, referindo-nos a pessoas indiferenciadas que não se destacam pelo poder, pela riqueza, nem sequer pelo talento. Como os personagens sem nome da Liberdade guiando o povo.

Poderíamos dizer que Delacroix se inspirou nos combatentes de 1830, vendo as pessoas lutando nas ruas, o que é bastante possível. Existem vários depoimentos dos acontecimentos de 1830 que descrevem uma população tal qual vemos na pintura,[28] que nos informam sobre sua origem profissional diferenciada, sobre a presença dos cadáveres em putrefação no calor forte do verão europeu, sobre a participação de garotos meio heroicos, meio brincalhões. A presença desses moleques foi real: mais tarde, em 1862, Victor Hugo os transformaria em mito literário nos Miseráveis, com o personagem de Gavroche.

Delacroix faz uma diferenciação profissional entre os combatentes pelo tipo de roupa que estão usando, e os especialistas já estabeleceram análises muito precisas indicando qual a atividade figurada em cada um deles.[29] Os garotos são dois, um mais visível, ao lado da Liberdade, outro que, abaixado, faz despontar a cabeça na extremidade esquerda da tela. A tradição heroica dos adolescentes havia sido exaltada durante a Revolução e nas campanhas de Bonaparte: Bara — que se transformou num dos mais sublimes quadros de David — e o tambor d’Arcole são dois dos exemplos mais célebres. Mais tarde, Hugo personalizará o gamin das barricadas através de Gavroche. Mas, na obra de Delacroix, eles não têm nome, elementos da multidão que combate. É sua inserção no coletivo que lhes atribui um sentido.

No primeiro plano, deitado, um nu — que nada tem em comum com as belas anatomias das escolas. Seco, magro, amarelado — poder-se-ia dizer realista. Acrescente-se o fato de que o despojamento total, que tende a abstrair a nudez do quotidiano para enobrecê-la, foi aqui evitado: não se trata realmente de um “nu artístico”, mas de um cadáver sem calças do qual não foram sequer dissimulados os pêlos pubianos e que conserva ainda a camisa e uma meia num dos pés. Tudo isso tende a nos fazer acreditar que Delacroix se inspirou nos acontecimentos de rua.

Mas não é tão simples assim. Entre a pintura e as barricadas de 1830, houve alguma coisa de permeio: uma prática de representação do povo nas telas que, desde a Revolução de 1789, está ligada ao sofrimento e à morte. E que passa, essencialmente, através de dois grandes temas: o tema milenarista do dilúvio (e seu avatar, o naufrágio) e o tema da tragédia guerreira.

DILÚVIOS E NAUFRÁGIOS

Robert Rosemblum, um dos grandes especialistas da pintura dessa época, assinala a importância e a frequência do tema do dilúvio a partir da Revolução de 1789.[30] Tomemos um dos mais belos exemplos: O dilúvio de Girodet, pintado em 1806. Seu autor fora um aluno de David e se fascinava por algumas questões formais particulares, sobretudo pela relação mantida entre a luz e a matéria: de que modo a matéria reflete ou absorve a luz.[31] No fundo de seu quadro, um grande raio se torna a fonte luminosa: uma claridade rara. No primeiro plano, os personagens refletem-na e transfiguram sua epiderme num tom acobreado. Mas o que nos preocupa aqui é menos esse aspecto formal provocador de grande estranheza na obra do que a concepção da inundação universal. Ela não é motivo — como poder-se-ia esperar — para marinha tumultuosa, revolta das águas ou para virtuosidade traduzindo com glacis a imensidão líquida. Se dá, ao contrário, a valorização de uns poucos personagens, as águas aparecendo no fundo de modo indistinto.

O que interessa ao pintor são esses seres. Trata-se, provavelmente, de uma das primeiras vezes em que o tema principal de um quadro são algumas vítimas de uma catástrofe, tomadas de muito perto, e sem nome. Poder-se-ia bem ver esse conjunto de personagens como parte de uma composição mais vasta, um Juízo Final, um Incêndio de Troia (o velho sendo carregado pelo moço faz pensar em Eneias e Anquises; mais precisamente, o quadro parece se originar de um detalhe do Dilúvio de Michelangelo, na Capela Sistina, acoplado a um outro, extraído do Incêndio de Borgo, de Rafael) — mas aqui, nesta tela de 4,31 por 3,41 metros, os poucos personagens constituem o tema único. Nus, eles são inidentificáveis, a única referência possível é, pela sequência das gerações, a uma família.

Toda alusão histórica foi eliminada e o pintor trouxe os seres representados para o puro anonimato. Universais pela nudez, a eles se acrescenta uma pesada carga de sofrimento e morte. É esse tipo de “povo” que Girodet faz surgir.

Do dilúvio passa-se facilmente ao naufrágio. O mais célebre deles é certamente A balsa da Medusa, de Géricault, apresentado no Salão de 1819. Naufrágio, mas também metáfora política. O episódio é conhecido: um nobre que retoma postos e honras com a Restauração comanda uma frota nas costas da África. Por incompetência, a nau capitânia — a fragata Medusa — fica isolada e, por manobras completamente injustificadas, choca-se com o banco de Arguim, nas águas do Senegal. Charles Clément narra o final da história: “Uma balsa foi construída, e 149 vítimas foram ali amontoadas, enquanto o resto se precipitava nos barcos salva-vidas. Logo, as amarras foram rompidas, a balsa que deviam rebocar ficou sozinha na imensidão dos mares. Então a fome, a sede, o desespero armaram esses homens uns contra os outros. Enfim, no décimo segundo dia desse suplício sobrehumano, o Argus recolhia quinze moribundos”.[32]

Sob a censura da Restauração (o quadro tivera de ser apresentado com o título neutro de Um naufrágio, embora o público soubesse perfeitamente do que se tratava), a obra aparece como forte metáfora política. Todos conheciam o episódio, publicado pelos jornais. Alguns sobreviventes escreveram com detalhes a narração aterradora. A crítica à incompetência do comandante se estende facilmente à crítica ao regime e termina por se generalizar. Michelet diria, mais tarde: “Géricault pinta seu quadro e o naufrágio da França […] É a própria França, é toda a nossa sociedade que ele embarcou nessa balsa da Medusa,..”.[33]

Como Delacroix mais tarde, Géricault realiza uma pintura que parte da atualidade. Mas, ao mesmo tempo, como no quadro de Girodet, são os personagens que surgem aqui exaltados, dominando a superfície da imensa tela. “Il manque au Naufrage de la Meduse l’immensité de la mer…”, dizia Charles Blanc,[34] como acontecia já no Dilúvio de Girodet. Mas é justamente essa mise-en-page que sublinha a importância dos corpos. Géricault os monumentaliza pelo tratamento anatômico e pela composição piramidal. Exaltados plasticamente, é impossível nomeá-los, no entanto. Vítimas anônimas: novamente o “povo” surge associado ao sofrimento e à morte. Podemos já perceber uma rede de recorrências que se forma cujos pontos de coincidência são, por vezes, muito precisos. Aqueles cadáveres putrefatos que os médicos de 1830 haviam notado nas barricadas, e que Delacroix teria transposto em seu quadro, já encontramos em 1819 na Balsa: notem o personagem morto, no primeiro plano (canto inferior esquerdo), com as pernas abertas: anatomia “magra”, “realista”, novamente os pêlos pubianos aparecendo e conservando as meias — como na pintura de Delacroix.

Embora muito culto e requintado, Géricault — ao contrário de Delacroix — é um pintor muito pouco literário; em suas obras, as referências à História e à erudição praticamente não existem. No anônimo massacrado ele busca algo de essencial, que não passa pela cultura. Para os estudos da Balsa, vai ao necrotério pintar cadáveres. E produzirá então obras singularíssimas. Como o óleo do Museu de Montpellier, espécie de natureza radicalmente morta, composta por membros de ser humano. O anonimato chegou aqui à radicalização. A morte perdeu todo valor metafísico, todo valor literário, e ficou reduzida a pedaços de seres — não sabemos sequer se pertencem a um mesmo indivíduo, virou carniça esquartejada. Nenhum efeito “artístico”, nenhum esforço para dramatizar o horror do tema: um trabalho consciencioso de constatação. Do mesmo modo, ele tratará as cabeças de guilhotinados ou os loucos sem história do hospício.

BATALHAS SEM GLÓRIA

Aos dilúvios e naufrágios pode-se acrescentar os desastres da guerra. Embora por algumas vezes a energia e a fúria dos combates sejam o tema principal (como na Batalha de Nazareth de Gros, da qual Géricault fez uma belíssima cópia que se encontra hoje no Museu Calvet, de Avignon), com frequência os quadros não retratam a exaltação militar. Gros, o mais genial dos pintores da epopeia napoleônica, deixou dois quadros célebres, significativos daquele aspecto. Sua relação com a morte não era apenas circunstancial — o assunto aparece assiduamente em sua obra, por vezes atingindo delicada sensibilidade romântica, cujo exemplo melhor é o retrato póstumo de Christine Boyer. Nos dois quadros a que nos referimos — Os empesteados de Jaffa e A batalha de Eylau — ele parece sugerir que o morticínio guerreiro talvez seja um mal necessário, mas é, sobretudo, um mal.

Nos Empesteados, Bonaparte aparece aureolado por um carisma quase sobrenatural, com um gesto de imposição (intrépida!) de mãos que lembra o dos reis taumaturgos capazes de curar as escrófulas ou, para ir mais longe, do próprio Cristo na ressurreição de Lázaro (cuja representação tradicional comporta sempre, desde tempos imemoriais, um personagem que leva o lenço ao nariz por causa do mau cheiro, como o faz Murat, atrás do general). Mas diante dele — e dos olhos do espectador — está a presença avassaladora da morte, nos corpos emaciados, corroídos pela epidemia.

Mais ainda, na Batalha de Eylau, Napoleão, embora ocupe o centro do quadro, não nos é apresentado como um comandante heroico. Ele está gordo, envelhecido, lívido. Mas o que conta para nós é a presença dos soldados mortos. A tela é muito grande, 5,33 por 8 metros; no primeiríssimo plano, diante dos olhos do espectador, Gros dispõe os cadáveres enregelados, em uniforme. Em realidade, a preocupação mais forte em ambos os quadros é a sorte trágica dos soldados anônimos que fazem parte desse “povo” indiferenciado, já manifestada pelas vítimas das águas.

Naturalmente, referindo-nos a guerras napoleônicas, é impossível não fazer menção ao Fuzilamento do 3 de maio de 1808, de Francisco Goya, quadro realizado em 1814, no momento da restauração de Ferdinando VII, no qual Liberdade e massacre estão associados. O que é a Liberdade? Esses personagens anônimos e em confusão, trucidados brutalmente pela ordem, pelos soldados perfeitamente perfilados, que se repetem em silhuetas precisas. Novamente a ideia do povo anônimo aparece, reforçada pelo episódio histórico, pois o levante de Madri fora essencialmente popular, sem heroicas lideranças. Mas a ausência de referências visuais específicas ao acontecimento (ainda mais tênues do que na Liberdade de Delacroix, que, no entanto, reduz a paisagem a um mínimo), a composição concentrada no contraste entre a ordem/opressão e a desordem/liberdade, universaliza extraordinariamente o quadro. A comparação com a Liberdade guiando o povo é rica, pois ela faz ressaltar o caminho diferente que a universalização toma. Delacroix felizmente exclui todo aceno a Luís Filipe, todo detalhe que pudesse explicitamente amarrar a obra à monarquia de Julho. Ao contrário, o princípio figurado é a ideia abstrata que se torna corpórea em meio à luta — é o princípio, e não o acontecimento circunstancial, que domina. A retórica de Delacroix é mais erudita, a de Goya, poderíamos dizer, mais “cenográfica”. A primeira traz consigo muitas ambiguidades e ressonâncias. A segunda é certamente mais unívoca e direta.

É preciso lembrar também que Goya, mais do que nenhum outro artista, retratou as vítimas — ainda uma vez anônimas, cujos rostos chegam a desaparecer na luz difusa — da guerra, da velhice, das prisões, dos hospícios. Embora sua obra tenha demorado a penetrar no meio artístico internacional, ele enriqueceu — como Géricault, que provavelmente não conhecia seus quadros — a galeria das imagens de uma população que só se define pelo sofrimento e pela morte.

DIFICULDADES DA ALEGORIA MODERNA

A dificuldade, no projeto de Delacroix, era associar a ideia/alegoria, que pertence ao mundo do imaginário e do intelecto, à revolta de rua, acontecimento atual. O passado imediato dessas duas representações — a Liberdade “vivida” desde a Revolução Francesa e o “povo” vítima — fora denso: pela sua frequência, as múltiplas manifestações de cada uma delas se constituíram numa presença iconográfica vigorosa. Suas histórias, naturalmente, não foram perfeitamente paralelas, a imagem da Liberdade tendo alcançado um apogeu sob a Revolução para se ocultar em seguida e reaparecer graças às jornadas de 1830. Mas, às vésperas do quadro de Delacroix, ambas se haviam legitimamente alçado à estatura de iconografias modernas, vivas. Juntá-las, sem truques ou astúcias “habilidosos” de uma retórica visual fácil, é a questão resolvida por Delacroix.

No Antigo Regime, a mistura entre personagens reais e alegóricos se resolvia na medida em que a pintura — como as outras artes — tinha o poder de elevar os seres de carne e osso para o mundo superior dos heróis imortais. Para empregar uma expressão que Mircea Eliade utiliza num outro contexto, havia um tempo fraco — do quotidiano, dos vícios, da fragilidade, da nudez, da morte — e um tempo forte — da intemporalidade, das virtudes, do incorruptível, das perucas, da glória. As artes se encarregavam de fazer a passagem, servindo ao que seria a “verdadeira” História — a História imóvel dos feitos e dos ilustres que se repetem.

Luís XIV/Hércules/Apolo/Sol/Júpiter: quando Le Brun o representa em Versalhes, utiliza as leis do tempo forte, onde evoluem as alegorias: leis infinitamente mais prodigiosas do que as do nosso lamentável dia a dia. Na parte central da Tomada de Gand, o soberano tem os raios de Júpiter numa das mãos, o escudo de Minerva na outra. Como as três figuras alegóricas que o envolvem, não sente nenhuma dificuldade em voar, auxiliado pela águia, pássaro do deus maior, protegido por uma nuvem luminosa. Esse exemplo deixa claro o modo como a retórica visual do Antigo Regime incorpora homens e alegorias num mesmo mundo divino, fazendo assim com que os primeiros passem a ter a mesma natureza poderosamente mítica das segundas, sem que haja — e isto é evidentemente essencial — nenhuma ruptura. Ou antes, se a ruptura existe, ela se encontra no exterior da composição, na separação entre a arte e o mundo: é evidente que Luís XIV não é feito da substância própria ao comum dos mortais.

François Rude — numa das mais soberbas obras de escultura do século XIX, Le départ des volontaires,[35] que orna o Arco do Triunfo — veste os soldados de 1792 à moda da Antiguidade, o que permite uma relação mais fácil com a alegoria da guerra no topo da composição. Mas, ao mesmo tempo, o impacto e a presença do fato contemporâneo ficam consideravelmente atenuados: se a obra-prima de Rude em nada perde de sua força, a referência aos soldados de 92 é nula: precisamos do título para saber do que se trata.

Na alegoria moderna de Delacroix, “aspirar” o povo para esse mundo mítico seria um artifício dificilmente aceitável: os homens ali presentes não são heróis, não possuem as qualidades divinas dos reis, e, de qualquer forma, esse processo, ligado a uma concepção muito precisa do mundo e da História própria ao Antigo Regime, estava irremediavelmente desacreditado em 1830. Relacionar o “atual” e o “alegórico” foi, com certa frequência, um problema para os artistas do século XIX. A solução mais frequente e banal foi isolar os dois campos: criar no alto uma nuvenzinha no interior da qual evoluem seres míticos e simbólicos e reservar a parte inferior da tela para que contemporâneos, de redingote e cartola, realizem, de modo perfeitamente “realista” (descontando-se alguma eloquência excessiva dos gestos), atos dignos de nota. É o caso — para buscarmos um exemplo em nossa pintura — de A ilusão do terceiro reinado de Aurélio de Figueiredo, tela admiravelmente analisada por Alexandre Eulalio.[36] Essa articulação, por mais brilhante que seja o pintor, terá sempre o defeito das receitas convencionais.

ADEQUAÇÃO FORMAL

Delacroix aproxima sua deusa/Liberdade do povo que a rodeia, fazendo-a assemelhar-se a ele em certos aspectos. Além da arma — fuzil moderno, que poderia ser utilizado por um dos combatentes — ela pareceu “vulgar”, “suja” a alguns de seus críticos contemporâneos. Mas, apesar de alguns indiscretos pelos nas axilas, é forçoso constatar que a Liberdade possui um perfil de medalha antiga: suas feições não são muito diferentes da Medeia, da qual Delacroix, entre 1838 e 1862, fez várias réplicas. Além disso, sua roupa e a nudez dos seios a tornam muito próxima — entre outras — da ultraclássica Liberdade de Prud’hon.[37]

Mais interessante é a relação que ela mantém com a multidão. O rosto é perfeitamente sereno; nenhuma exaltação está presente — apenas uma espécie de confiança grave. Sobretudo, existe um personagem que a contempla privilegiadamente: é o homem de lenço na cabeça que, caído sobre os destroços da barricada, apoia-se com esforço sobre os cotovelos e ergue os olhos para a Liberdade, como se, agonizante, ele a visse numa última aparição que daria sentido à sua morte. Ânimo, expectativa, esperança, aspiração: a Liberdade sobre as barricadas está, evidentemente, no espírito de cada combatente.

Mas, além desses aspectos, o quadro de Delacroix representa um momento de síntese perfeita, graças a um certo tipo de fazer pictural, que também tem sua história. A aparição da pintura neoclássica, cujo marco é, em 1784, O juramento dos Horácios, de David, significou a evacuação do barroco tardio, da pintura de Fragonard, Hubert Robert, Tiepolo, Maulpertsch etc. Essa arte brilhante, rápida, passava pelo aprendizado da virtuosidade e se resolvia numa “espontaneidade” altamente treinada. Vibrante, trabalhando com desenvoltura as matérias e as transparências, misturando o sólido e o luminoso, fazendo da pincelada o elemento ao mesmo tempo constitutivo do volume, da luz, da cor, da atmosfera, do movimento, ela possuía uma prodigiosa capacidade de dinamismo e fluidez.

A hegemonia neoclássica não a descarta completamente: ficam alguns “bolsões” de resistência no século XIX, raros, embora ilustres: Goya e Turner representam um prolongamento técnico do barroco tardio — em ambos os casos, embora em sentidos diferentes, ele é levado a consequências extremas. Mas, de um modo geral, o neoclassicismo é decisivo e determinante.

Sua proposição é, em todos os pontos, oposta às práticas precedentes. Trata-se de uma arte baseada no estudo dos contornos, dos volumes solidamente apreendidos pelo olhar, muito pensada e muito lenta. Digamos que, ao far presto do barroco, David opõe um fare adagio. Ele vai ensinar que a pintura é feita por etapas. Primeiro concebe-se, através de um esboço relativamente simples, o conjunto do quadro, para, em seguida, proceder-se a uma elementarização do todo, a um estudo aplicado de cada parte. Mesmo o corpo humano é desmembrado: estudam-se mãos, braços, pernas, bocas, olhos nas posturas ou expressões que serão as da execução definitiva. Daí a importância do estudo do nu: a anatomia funciona como um princípio unificador que garante a união das partes do corpo. As vestes, os panejamentos, são realizados separadamente, para, numa fase posterior, serem associados aos corpos. Os objetos, os acessórios são também tratados à parte, e o segundo princípio unificador dessa pintura é a perspectiva, rigorosa e geométrica: se a anatomia rege as leis da articulação das partes no corpo, a perspectiva rege as leis da situação dos objetos no espaço. Com frequência emprega-se o quadriculado, que permite a passagem do desenho para a tela — os personagens nus em primeiro lugar, com o contorno perfeito, que serão vestidos e coloridos numa etapa posterior. Esse processo é rigoroso: quando David representa o papa, por exemplo, na Sagração, primeiro o desenha sem roupa. E alguns quadros inacabados (como o Juramento do jogo de pela), com personagens modernos, como o gordo Mirabeau, de peruca e pelado, são, por vezes, irresistivelmente cômicos.[38] Mas essa anatomia, assim estudada, permitia uma verdade nas atitudes, uma energia na gesticulação sem as quais os seres se reduziriam a manequins.

Elementarização e unificação posterior. Um dos resultados é que se tem um olhar detalhado sobre o “real” — toda coisa ou ser representado é trabalhado e retrabalhado —, e isso vai dar uma carga muito importante à nitidez, à clareza dos objetos; cada um deles sobressaindo com muita força do conjunto. Que se examine O Juramento dos Horácios, Brutus ou a Morte de Sócrates de David: cada gesto é perfeitamente estudado, cada objeto estrategicamente colocado. Tudo é disposto em equilíbrios e tensões, as cores vivas acentuando os contrastes.

Se a pintura do barroco tardio era habilíssima em retratar o fluido, o efêmero, os fenômenos atmosféricos, o movimento, se os ruinistas eram capazes de apreender a passagem do tempo e os grandes decoradores do período eram mestres em fazer suas figuras voltearem no etéreo, a pintura neoclássica teve de abdicar a tudo isso, a esses efeitos nos quais — diga-se de passagem — ela não estava interessada. O resultado foi que, instaurada a solidez, a tensão, aboliu-se o movimento e, ao definir-se os objetos, eles foram extraídos da temporalidade. O olhar do pintor não abandona jamais o mundo sensível, mas, depurado, retificado por uma cuidadosa disposição, ele adquire o aspecto de uma vitrine. Mesmo o acidente — como os respingos de sangue na Morte de Marat — possui algo de eterno. Uma tela de David instaura o que eu chamaria de “o real no segundo grau”, imagem cristalizada do mundo.

O processo de desconstrução/ reconstrução davidiano marcou profundamente as gerações posteriores, que tentaram escapar da tirania neoclássica. Ingres, por exemplo, vai chegar a soluções sui generis, desviando, de modo genial, a ortodoxia de David: se a elementarização é para ele algo não só fundamental como obsessivo, os meios unificadores — anatomia, perspectiva — são desdenhados: a única possível coerência na união das partes é a das linhas, que têm suas próprias e misteriosas leis. Daí — segundo as regras da anatomia — o aspecto monstruoso de seus personagens; daí — segundo as leis da perspectiva — a disposição inverossímil dos volumes no espaço que ele figura.

Numerosas histórias da arte fizeram muito facilmente de Delacroix um romântico revoltado contra a tradição neoclássica. É claro que as soluções de Delacroix divergem, muitas vezes, dessa tradição. Mas ele também lhe é devedor — a concepção prévia, em estudos preparatórios, dos elementos que entrarão na composição final é cuidadosamente feita, a disposição dos personagens muito pensada, e a definição, no resultado final (sobretudo nesta fase que vai até 1830), bastante nítida. Mas uma das preocupações que o distanciam da pintura neoclássica é a de reencontrar o movimento. E poderíamos dizer que essa dinâmica aparece como genética, inoculada no processo constitutivo do quadro. Na origem, estarão esboços de extraordinária rapidez, que obedecem o mover impulsivo da mão. O traço vivo, ausente na pintura de David, está inserido através dos esboços — as “primeiras ideias” — nas etapas de construção do quadro; seu dinamismo é um elemento primordial de síntese, de unificação. Associada aos efeitos de colorido e ao tratamento da luz (sempre, em Delacroix, prodigiosamente capaz de produzir ilusões de “terceira dimensão”), a composição adquire uma impressão de mobilidade poderosa: os personagens parecem avançar sobre o espectador.[39]

E isso Delacroix consegue sem abandonar o princípio davidiano do acabamento das partes, criando, ele também, um “real no segundo grau”. E é nesse registro que, sem descompasso ou artifício, podem-se associar o povo e a Liberdade; é nesse terreno de encontro criado por um fazer pictural específico que a Alegoria desce do seu Empíreo e que os homens ascendem a uma universalidade bem mais ampla do que os episódios de 1830. Aliás, Delacroix não suprimiu referências claras: a data está lá, em evidência, e também, no fundo, surgem as torres da catedral de Notre-Dame. São, no entanto, detalhes menores: a cortina de fumaça e o céu azul se encarregam de criar um fundo abstrato. E assim o pintor, sem abandonar características precisas do acontecimento político que o motiva (como Goya o fizera em seu fuzilamento), vai além do episódio e obtém um alcance muito mais geral para sua imagem.

O próprio Delacroix poderá nos auxiliar para a conclusão. Em dois textos diferentes, mas que se completam perfeitamente, ele resume as questões de ordem formal que permitiram a existência do quadro:[40]

Acontece, infelizmente muitas vezes, que a execução, ou dificuldades, ou considerações inteiramente secundárias fazem a intenção desviar. A ideia primeira, o esboço, que é, de certo modo, o ovo ou o embrião da ideia, está ordinariamente longe de ser completa; ela contém tudo, se se quiser, mas é preciso desembaraçar esse tudo, que não é mais do que a reunião de cada parte. O que faz desse esboço a expressão por excelência da ideia é não a supressão dos detalhes, mas sua completa subordinação aos grandes traços, que devem dominar sobre todas as coisas. A maior dificuldade consiste portanto em voltar, no quadro, a essa diluição dos detalhes, que, no entanto, são a composição, a própria trama do quadro…

Que se, em meio a uma tal composição, introduzirdes uma parte feita com muito cuidado a partir do modelo, e se o fizerdes sem ocasionar um desacordo completo, tereis realizado a maior das proezas; de algum modo, é a introdução da realidade em meio a um sonho.

EXCERTOS DO DEBATE

Questão: Como você vê o naufrágio do Esperança, de Friedrich?

Jorge Coli: A tela é de 1824, contemporânea portanto da produção que examinamos aqui. Como a Medusa, ela parte de fatos reais, de episódios de uma expedição polar. Mas, é claro, embora ela possa ser inserida na temática dos naufrágios românticos, escapa daquilo que me interessava: a representação de um grupo anônimo como vítima. O neoclassicismo concentrara sua atenção na imagem do corpo humano e, à natureza, preferira os interiores arquitetônica e geometricamente definidos, onde a perspectiva pudesse ser perfeitamente controlada, através de uma visibilidade que repousa em linhas perfeitamente definidas. Por isso, ele exclui o tema da paisagem: a desordem acidental e “irracional” da natureza não lhe é adequada. Nesse sentido, se opõe ainda à pintura do fim do barroco, que desenvolveu — através da técnica do far presto — uma paisagem bastante nostálgica; Robert, Vernet, Guardi são alguns exemplos entre muitos outros. Ora, para a pintura neoclássica, ou dela derivada — como as de Girodet ou Géricault —, quando a paisagem é necessária pelo tema, ela é reduzida ao mínimo. Daí a extraordinária exaltação dos corpos que invadem as grandes superfícies pintadas e que acentuam assim as vicissitudes pelas quais passam os seres, e a redução dos elementos naturais. Em Friedrich é exatamente o oposto que se passa. O título de sua pintura já é significativo: O mar de gelo, e o espectador que a contempla pela primeira vez leva um certo tempo para descobrir o barco, minúsculo destroço entre os imensos blocos. Isto é — a natureza tem um papel primordial, o acento é colocado nela, em seus poderes, mistérios, forças, e não no homem. O mar de gelo não traz a representação de nenhum personagem: quando eles aparecem, em Friedrich, nunca estão ameaçados e se encontram no papel de contempladores. Embora com frequência suas paisagens sejam a da aridez do inverno, elas contêm muitas vezes elementos de renovação ou de resistência: os pinheiros, sempre verdes (que podem tomar o aspecto de uma catedral gótica natural), ou as ruínas o mais das vezes de edifícios religiosos — que sobrevivem aos rigores da estação inóspita, guardando um germe essencial de espiritualidade. Nos quadros franceses, a exaltação do corpo é acompanhada pela tortura que ele sofre — esse realismo brutal a que fiz referência — e que perpassa por todo o romantismo daquele país. O naufrágio do Esperança é altamente espiritualizado, as expedições polares são apenas uma fonte de inspiração distante; a Balsa da Medusa é a transposição — monumentalizada, heroicizada, se se quiser, mas isso pouco importa — de uma notícia de jornal. Como o que me interessava era o sofrimento das vítimas, deixei de lado Friedrich — assim como Turner, que alimenta também, de modo muito importante, a temática das tempestades e dos naufrágios.

Questão: Eu gostaria de saber algo a respeito do pintor do quadro Elle.

Jorge Coli: Gustav Adolf Mossa é um pintor que fez toda a sua carreira na cidade de Nice e que morreu velhinho nos anos 1970. Sua produção mais notável se situa nas primeiras décadas do século. A qualidade de seu traço e colorido é associada a uma imaginação das mais surpreendentes, que se liga, é claro — mas com enorme originalidade —, à produção decadentista fin-de-siècle e que é particularmente nutrida de Baudelaire. Viveu como uma celebridade local, e certamente deve ter sofrido um certo eclipse quando a sensibilidade às perversões preciosas passou de moda. Hoje ele está sendo revalorizado por exposições e pelos estudos de meu ex-colega da Universidade da Provença Jean-Roger Soubiran. Em todo caso, sua arte é de altíssima categoria, embora circule ainda num círculo de happy fews.

Questão: Nos quadros que você apresentou, a Liberdade é mostrada como uma coisa conquistada, sofrida. Enquanto a venda da Liberdade, o exercício da Liberdade é uma coisa boa para a sociedade, para todos nós. Esta contradição entre a representação e a venda ou o real da Liberdade, você poderia desenvolver aí, um pouco?

Jorge Coli: Eu não estou entendendo muito bem. O que você quer dizer é se podemos refletir, a partir do quadro de Delacroix, sobre a noção de Liberdade hoje?

Questão: É, hoje o exercício da Liberdade é colocado como uma realização social, pessoal, individual e tudo mais. Enquanto a alegoria que você mostrou é uma conquista sofrida, difícil… morte.

Jorge Coli: O que me interessa muito, no caso, é que a Liberdade, em tudo o que vimos, é uma coisa vivida e não uma coisa pensada — ou pelo menos não primordialmente. E que ela não tem definições muito claras. Foi por isso que citei aquele trecho de Fogazzaro no início. E devo dizer que não sei muito como é que se pode pensar a Liberdade hoje através de toda essa pintura do século XIX. Muitas análises simplistas já foram feitas dizendo que este tipo de Liberdade é a liberdade burguesa, ideológica, falsificada, “não racional” ou mesmo “não científica”. E que se tem de acabar com esses mitos para conquistar a verdadeira Liberdade. Isto é, de meu ponto de vista, apenas criando novos mitos. Mas, francamente, não sei. Não sei que relação se possa manter entre a Liberdade no passado e a Liberdade hoje. Neste tipo de abordagem, mais do que a incidência direta sobre o atual, interessa-me o fato de que, quando se trabalha com um objeto cultural como as obras de arte, tem-se que remexer em coisas que fazem parte de domínios os mais diversos — que fazem apelos a emoções, paixões, mas também ao racional —, tudo isso se concentrando num grande amálgama. Daí a importância, para o trabalho dito intelectual, do emprego de instrumentos diferentes dos racionais, isto é, a sensibilidade, a intuição. Creio que esse é o grande desafio da obra de arte — e que é colocado no terreno da epistemologia. Não se trata de recuperar o “irracional” — expressão hoje tão banalizada — mas de canais que não passam forçosamente pelos circuitos da Razão. E a obra de arte — que exige a percepção do je-ne-sais-quoi e do presque-rien, para retomar dois títulos de Jankelevich — é desfigurada se utilizamos para compreendê-la uma metodologia da ordem do puramente racional, forçosamente esquemática e mecânica. Esse desafio dos objetos culturais é proposto particularmente ao saber “acadêmico”, mesmo o que aparenta ser o mais “moderno”, o mais “progressista” — saber que divide, compartimenta em “especializações” e que, portanto, é pouco adaptado para a compreensão dos fenômenos culturais. Esses impõem — cada um deles — sua abordagem específica e exigem sempre, para que possamos percebê-los com uma certa riqueza, a nossa circulação por setores os mais diversificados do saber.

Mas comecei por uma coisa, e acabei por outra, muito diferente. Enfim, a questão de pensar a Liberdade hoje, eu não sei. Talvez, trabalhando sobre esse tipo de representação, eu chegue a experimentar um pouco do que foi, no espírito das pessoas daquela época, a Liberdade. Não creio que chegue muito mais longe do que isso.

Questão: Será que o meio pelo qual a gente representa a Liberdade hoje em dia é diferente? Não sei se a gente representa por imagens, de maneira diferente, hoje em dia.

Jorge Coli: Tenho a impressão de que, no século XIX e numa parte do século XX, o princípio das grandes palavras que faziam as pessoas se moverem é — pelo menos em nossa cultura ocidental — alguma coisa menos presente hoje. Não sei se hoje as pessoas se motivariam muito em se levantar para morrer — não para fazer festa em torno de um acontecimento qualquer, festa patética da morte do Tancredo ou eufórica do Plano Cruzado — mas realmente para morrer por causa de uma palavra. Tudo isso é, no entanto, apenas uma impressão que não tem valor nenhum, e essa resposta me deixa também com um certo mal–estar. Porque não consigo nunca pensar as coisas do passado numa relação assim direta com o presente. É algo que, por vezes, as pessoas me cobram, mas não adianta, minha cabeça não funciona desse jeito. Da última vez, por exemplo, falei do ciúme no Otelo de Verdi, de Rossini, de Shakespeare. Alguns ouvintes também me perguntaram sobre o ciúme, hoje. E eu lá sei? Poderia ter desenvolvido, por exemplo, a reflexão sobre o ciúme e a ópera relacionando-a com a crise no casamento em nossos dias. Mas é algo que não consigo fazer. Isso me pareceria extremamente reducionista… e não consigo. Tenho uma certa apreensão em relação a esses objetos que examino ou aos textos que leio, procuro ver como as formas culturais circulam, como um certo pensamento ou sensibilidade podem se transformar. Talvez isso me dê alguns elementos para a compreensão do mundo contemporâneo, mas eu não saberia dizer muito claramente em palavras quais os elementos dessa compreensão.

Questão: Uma coisa que para mim ficou meio obscura é o seguinte: qual o significado da representação da Liberdade através da figura feminina? Para mim parece uma contradição que uma figura tão forte, poderosa, seja feminina, considerando a insignificância e a submissão da mulher na época.

Jorge Coli: Bem, o sexo das figuras alegóricas se determina, de modo geral, pelo gênero das línguas eruditas — o grego e o latim, das quais elas derivam. Num estudo conhecido, Panofsky[41] mostra, por exemplo, como este fato interveio na figuração da Ocasião e da Fortuna, através das palavras Kairos, Occasio e Fortuna. Mas o que é interessante é o fato de que o personagem feminino deva adquirir uma força máscula: a Marselhesa fala de seus mâles accents, e a Liberdade de Barbier é claramente uma virago. Além disso, há uma relação particular que a cultura do século XIX mantém com a mulher, uma relação de perplexidade, de interrogação, criando mitos que vão da virgem fragilíssima à fêmea/aranha, devoradora de machos — nas quais se inscrevem, evidentemente, as belle dame sans merci. Mas isso daria pano para manga de uma outra palestra.

Questão: O que você acha a respeito de Delacroix? Você acha possível que ele fosse, no momento em que estava pintando, espectador de si próprio e colocasse as pessoas como objeto do uso dele? Uma espécie de sadismo.

Jorge Coli: Não creio que haja aí a ideia de um puro manipulador. É preciso lembrar que ele está sendo afetado pelos acontecimentos que o envolvem, e, até 1830, sua pintura com frequência parte da atualidade política. Uma ideia muito interessante, é essa do sadismo, entretanto. Existe, em sua obra, um princípio de violência terrível. O massacre é recorrente em seus temas, massacres coletivos ou individuais. “Delacroix, lac de sang hanté des mauvais anges”, escreveu Baudelaire, e certamente a volúpia sangrenta é um eixo fundamental em sua obra. Desse modo, a Liberdade não encontra apenas ressonância no tema das mulheres fatais, desenvolvido pelo século xx, mas naquelas produzidas no interior da própria obra do pintor, como no caso de Medeia e seus filhos, um quadro fortíssimo.

Questão: Mas, quando ele retrata o Massacre de Quios, trata-se de acontecimento real, enquanto a Medeia é um personagem literário.

Jorge Coli: Uma coisa não impede a outra. A violência na pintura de Delacroix é extramente presente, e ela passa pela atualidade e pela literatura — dois aspectos que se fundem em seu imaginário, e, por consequência, que se manifestam com muita intensidade em suas obras. Certamente não há pintor mais literário, mais amante dos livros que Delacroix. Mas ele poderia ter escolhido temas amenos: ele escolhe temas terríveis. Para voltar à questão que surgiu quando falávamos do romantismo francês e alemão há pouco, é que o romantismo francês se nutre de alguma coisa que poderíamos chamar de uma extraordinária brutalidade realista. Isso pode parecer contraditório, mas não é. Tomemos, por exemplo, Victor Hugo — seu universo é do mesmo tipo. O homem que ri é um ser que foi cruelmente — e horrivelmente — mutilado. Existe uma passagem dos Miseráveis[42] que descreve como Fantine, bela mulher na miséria, começa por vender seus cabelos para alimentar sua filha Cosette e em seguida arranca os dentes, também para vender. Victor Hugo a descreve na cama, com a boca sangrando e desdentada. É assim também que Géricault, de modo algum um pintor do literário ou de imaginário, se insere nesse mesmo espírito “sádico”, de violência e brutalidade, que caracteriza tanto o romantismo francês. O mundo e o imaginário se nivelam diante desse princípio de crueldade.

Notas

[1] Fogazzaro, Antonio, Malombra, Arnaldo Mondadori, 1971, p. 44.

[2] Dias 27, 28 e 29 de julho.

[3] Significativamente, como notou De Bertier de Sauvigny, a bibliografia sobre os movimentos de 1830 é parca. Damos aqui os títulos aos quais nos referimos: De Bertier de Sauvigny, Guillaume, La révolution de 1830 en France, Paris, Armand Colin, 1970. De Courson, Jean-Louis, 1830 La révolution tricolore, Paris, René Julliard, 1955. Jardin, A. Tudesy, A. J., La France des notables, Paris, Ed. du Seuil, 1973, 2 vols.

[4] A legitimação de Luís Filipe pelos movimentos de 1830, seu poder emanando da revolta e do povo, foi um projeto ideológico de curtíssima duração, embora tenha deixado vários traços. Assim, La Parisienne, hino composto por Auber, com letra de Casimir Delavigne, tentou inutilmente substituir a Marselhesa, celebrando as “3 gloriosas”. Mas “ce chant ne dura ce que durent les roses”, disse Bassanville. Em todo caso, ele ilustra perfeitamente a vontade de assimilação entre o duque de Orleans, a revolta popular e a personificação da Liberdade. Eis duas estrofes significativas:

Peuple français, peuple de braves,

La Liberté ouvre ses bras.

On nous disait ‘Soyez esclaves’

Nous avons dit ‘Soyons soldats’.

[…]

Soldats du drapeau tricolore

D’Orléans, toi tu l’as porté.

Ton sang se mêlerait encore

A celui qu’il nous a coûté.

(Citado por De Courson, op. cit., pp. 399-400.)

As escorregadas semântico-ideológicas não poderiam ser mais apropriadas: o povo, pela Liberdade, se torna soldado — o que permite passar à lembrança de Valmy e de Jemmapes, e fazer assim esse exército popular ser comandado pelo duque de Orleans! Particularmente saboroso é o condicional se mêlerait encore, que permite fazer de Luís Filipe um lutador nas barricadas, via passado-heroico-Valmy-Jemmapes.

[5] Situado num pavilhão dos jardins do Luxemburgo, o museu que trazia o mesmo nome abrigou, durante o século XIX, a produção artística contemporânea: era uma espécie de museu de arte moderna da época.

[6] Citado por Toussaint, Hélène, in La Liberté guidant le peuple de Delacroix, Paris, Édition de la Réunion des Musées Nationaux, 1982, p. 62. A história das vicissitudes do quadro se encontram no cap. 14 desse catálogo, intitulado “Un tableau scandaleux”, p. 60 e s. Sobre a sondagem que revela a diferença de tom no boné, cf. mesma obra, p. 62.

[7] Não cabe aqui fazer uma história da alegoria moderna. Lembremos apenas que as codificações feitas em dicionários são publicadas ao longo do século XVI, a começar pelos Hieroglyphica de Horapolo, obra do v século a.C. retomada na Renascença. O compêndio de Pierio Valeriano e, sobretudo, os Emblemata de Alciati viriam enriquecer a lista, mas, para a alegoria na época do Absolutismo e da Contrarreforma, a obra essencial é mesmo a Iconologia de Ripa. Os dicionários posteriores, de Ricci, Corrozet, Petity, Delafosse e outros, derivam dessas fontes primeiras, e mais particularmente da Iconologia de Ripa. Para uma introdução ao problema, consultar o excelente manual de André Masson, L’allégorie, PUF, Paris, 1974. Sobre a importância e a descoberta do Ripa, cf. Mâle, Emile — L’art religieux du XVII siècle, Armand Colin, Paris, 1984, capítulo IX. Sobre a capacidade de metamorfose dos símbolos, cf. Witkower, Rudolf — Allegory and migrations of symbols, Thames and Hudson, Londres, 1977. Não cabe aqui uma bibliografia completa sobre os estudos feitos a respeito das questões iconográficas ligadas à alegoria sob o Antigo Regime. A edição da Iconologia de Ripa que utilizo é a de sua tradução francesa no século XVII, por Baudoin; Iconologie ou la science des emblèmes, devises etc. qui apprend à les expliquer, dessiner et inventer — ouvrage très utile aux orateurs, poètes, peintres, sculpteurs, graveurs et généralement à toutes sortes de curieux des Beaux-Arts et des Sciences. Enrichie et augmentée d’un grand nombre de figures avec des moralités, tirées la plupart de Cesar Ripa. Parj. B. de l’Académie Françoise. A Amsterdam, chez Adrian Braakman […] 1698. A edição francesa nos é particularmente interessante, porque é dela que deriva, diretamente, o dicionário de Gravelot e Cochin.

[8] O texto completo que descreve a Liberdade no dicionário de Ripa, traduzido por Baudoin, é o seguinte: “Sa figure est celle d’une femme vetue de blanc, ayant un sceptre en la main droite un bonnet en la gauche, & un chat près d’elle.

Le sceptre signifie l’Empire de la Libertè qui ne le tient que de soy-même, estant comme elle est, une absolue possession d’Esprit, de Corps & de commoditez temporelles, qui nous incitem au bien par divers moyens: sçavoir l’Esprit par une grâce particulière de Dieu, le Corps par l’aide de la vertu, & la richesse par la direction de la prudence.

Elle est peint lavec un bonnet en main, dautant que par une ancienne coustume les Romains le faisoient porter aux Esclaves qu’ils vouloient affranchir & mettre en libertè, après leur avoir razé les cheveux; cérémonie qui se faisoit d’ordinaire dans le temple de la Déesse Feronia.

L’on met un Chat a ses pieds parce-qu’il n’y a point d’animal qui aime tant la liberté que celuy-là, qui ne peut souffrir en aucune sorte d’estre enfermé; a cause de quoy quelques peuples & particulièrement les Bourguignons, le Portoient anciennement pour Devise en leurs Enseignes de guerre.

J’omets que parmy plusieurs Médailles de la Liberté il s’en trouve quelquer unes où elle se voit tenant d’une main une massue, & de l’autre un bonnet avec ces mots, Libertas Augusti ex Sc. ce qui signifie une liberté acquise par la valeur, comme il se remarque dans la Médaille d’ Antonin Heliogabale, oú est ajouté un joug rompu. (p. 124-5, 1o vol. Foi conservada a ortografia de origem).

[9] Edição atual por Minkoff Reprint, Genebra, 1972.

[10] É interessante notar que o dicionário de Gravelot e Cochin traz um novo emblema — um neologismo alegórico — que está diretamente ligado à nossa questão: trata-se da alegoria da Insurreição. É significativo que ela possua, de modo geral, os mesmos atributos da Liberdade adquirida pelo valor; essa semelhança muito grande é possivelmente a causa de que o novo símbolo não tenha vingado. Ei-lo: “On peut representer l’Insurrection sous l’emblême d’une femme irritée, coëffée d’une peau de lion, & s’ appuyant sur une colonne, symbole de la force & du courage, elle foule aux pieds un joug rompu, jette avec indignation les chaines qu’elle vient de briser, tíent de la main droite une pique surmontée du bonnet de la liberté” (emblema no 88, v. 3. Foi respeitada a ortografia de origem).

[11] Mais do que ninguém, Michelet sublinhou o papel dos símbolos e das mulheres durante a Revolução de 1789. Nos acontecimentos de 5 e 6 de outubro, referindo-se ao episódio da troca de laços (as cocardes brancas dos Bourbon ou negras da austríaca Maria Antonieta, substituindo as cocardes tricolores) do famoso banquete do 1o de outubro, oferecido em honra da Guarda Real e aos oficiais do Regimento de Flandres, fidelíssimos à monarquia, Michelet escreve: “Les braves gardes nationaux de Versailles avaient grand-peine à se défendre. Un de leurs capitaines avait été, bon gré mal gré, affublé par les dames d’une enorme blanche: ‘Ces cocardes changeront, dit-il fermement, et avant huit jours, ou tout est perdu’. Il avait raison; qui pouvait méconnaître ici la toute-puissance du signe? Les trois couleurs, c’était le 14 juillet et la victoire de Paris, c’etait la Révolution même”. (Michelet, Jules, Histoire de la Révolution Française, Paris, Robert Laffont, 1979, p. 225.)

Quanto às mulheres, lembremos apenas duas passagens das inúmeras que povoam a História da Revolução Francesa, ambas ligadas ao episódio de 5 e 6 de outubro:

Les hommes auraient-ils cependant marché sur Versailles, si les femmes, n’eussent precedé? Cela est douteux. Personne avant elles n’eut l’idée d’aller chercher le roi. […] Ici, le peuple seul a l’iniciative; seul il s’en va prendre le roi comme seul il a pris da Bastille.

Ce qu’il y a dans le peuple de plus peuple, je veux dire de plus instinctif, de plus inspire, ce sont, à coup sur, les femmes” (op. cit., p. 222).

Este trecho tem um extraordinário interesse, pois revela a assimilação profunda que Michelet percebia (e com ele certamente muito da intelligentsia romântica) entre o povo e a mulher, a quem falta apenas acrescentar a infância e a loucura, que o romantismo descobre como privilegiados possuidores de comportamento e saber instintivo. Há, portanto, uma “essência” feminina no povo: se vemos o quadro de Delacroix a partir dessa perspectiva, a ligação entre a figura alegórica e os personagens que a circundam possui um direito orgânico, ou melhor, ontológico. Essa passagem nos ajuda ainda mais a afastar o princípio de uma articulação artificiosa entre a alegoria e o real na tela de Delacroix.

A segunda passagem indica o papel “natural” das mulheres — particularmente das francesas — nos combates. Assim, a imagem feminina da Liberdade apenas ocupa, no quadro, o lugar que é indiscutivelmente seu: “Ces choses ne se voient qu’en France; nos femmes font des braves et le sont. Le pays de Jeanne d’Arc et de Jeanne de Montfort, et de Jeanne Hachette, peut citer cent héroines. Il y en eut une à la Bastille, qui, plus tard, partit pour la guerre, fut capitaine d’artillerie; son mari était soldat. Au 18 juillet, quand le roi vint à Paris, beaucoup de femmes étaient armées. Les femmes furent l’avant-garde de notre Révolution” (op. cit., p. 226, v. 1).

[12] É impossível afirmar que Delacroix conhecesse o dicionário de Gravelot e Cochin, embora isso seja muito possível, mesmo provável.

[13] Màle, Émile, op. cit. pp. 366, 367.

[14] O excelente catálogo L’Art de l’estampe et la Révolution Française, Museu Carnavalet, Paris, 1977, indica fontes iconográficas imediatas para o monstro, particularmente as quimeras desenhadas por Desprez em 1770 (cf. p. 58).

[15] A gravura, desenhada por Le Clerc e executada por Antoine Carrée, revelaria uma influência de Jean Goujon (La fontaine des Innocents), Poussin e Le Barbier, segundo o catálogo L’art de l’estampe… (op. cit., p. 14).

[16]A. Boppe a montré (Cf. Les vignettes emblématiques sous la Révolution, Paris, 1911), qu’avec la Révolution sont apparus à profusion les entêtes de lettres sur les moindres correspondances administratives, procès-verbaux et papiers militaires; cela dans le désir de souligner la grandeur des nouvelles institutions et la stabilité du régime”. (“L’art de l’estampe”…,op. cit., p. 62).

[17] Cf. o catálogo Faiences révolutionnaires, col. Louis Heitschel, Ville de Saint-Germain-en-Laie, ed. 1978.

[18] Atribuída a E.A. Gibelin (cf. catálogo L’art de l’estampe… p. 14).

[19] O quadro de Régnault, pintado durante a República Jacobina, só se termina sob o Termidor: pareceu então incomodamente anacrônico. Só se possui hoje uma pequena versão, a grande desapareceu. Cf. catálogo De David à Delacroix — la peinture française de 1774 à 1830, exposição no Grand Palais, Edição dos Museus Nacionais, 1974, pp. 573-4.

[20] Ozouf, Mona — La fête révolutionnaire 1789-1799, Paris, Gallimard, 1976. Vovelle, Michel — Les Metamorphoses de la fête en Provence de 1750 à 1820, Aubier-Flammarion, 1976.

[21] Agulhon, Maurice, Marianne au combat, Paris, Flammarion, 1979.

[22] Idem, 1848 ou l’apprentissage de la République, Paris, Seuil, 1973.

[23]Liberté! Liberté chérie,

Combats avec tes défenseurs.

Sous nos drapeaux que la victoire

Accoure à tes mâles accents;

Que tes ennemis expirants

Voient ton triomphe et notre gloire

[24]C’est une forte femme aux puissante mamelles,

A la voix rauque, aux durs appas,

Qui, du brun sur la peau, du feu dans les prunelles,

Agile, et marchant à grands pas,

Se plaît aux cris du peuple, aux sanglantes mêlées.

[…]

Qui ne prend des amours que dans la populace,

Qui ne prête son large flanc

Qu’á des gens forts comme elle, Et qui veut qu’on l’embrasse

Avec des bras rouges de sang.”

[25] Praz, Mario, La carne, la morte e il diavolo nella letteratura romantica, Florença, Sansoni, 1966.

[26] Sobre Mossa, cf. Soubiran, Jean-Roger, Gustav Adolf Mossa et les symboles, catálogo da exposição da Galerie Ponchettes, ed. da Direction des Musées de Nice, Nice, 1978. Note-se um detalhe curioso: se a Liberdade dos dicionários de iconologia tinha um gato aos pés porque ele era considerado atributo da alegoria, na obra de Mossa ele está entre as coxas da menina/gigante, exatamente no lugar do sexo. Os dicionários colocavam-no ladeando uma figura em pé; Manet colocou-o também aos pés, mas de uma figura feminina deitada, a Olímpia, cortesã dos tempos modernos. O gato adquire então misteriosa irradiação erótica, reforçada por seu papel nos textos baudelairianos. Enfim, Mossa o substitui ao sexo feminino, numa identificação evidente. É pouco provável que Manet conhecesse os dicionários alegóricos, já em desuso em sua época, mas é interessante constatar a constituição do gato como símbolo erótico moderno, ao mesmo tempo que perde a sua função de significar liberdade e independência. Notemos ainda que o gato de Mossa tem uma clara legitimação na linguagem popular: em francês chatte (gata) é um dos nomes mais correntes para se referir ao órgão sexual feminino.

[27] Mario Praz (op. cit.) mostra, no capítulo 3 de seu livro, como o Marquês de Sade revela, às gerações posteriores, a alquimia sutil e perversa da mistura entre a dor e o prazer. Praz estabelece um rol imenso de seres magníficos e voluptuosos na pintura de Delacroix, que são atormentados, massacrados, agonizantes, doentes ou cruéis — culminando nessa Liberdade, deusa que caminha entre cadáveres. E termina por, de um modo extremamente convincente, mostrar que o universo visual instaurado por Delacroix, compreendendo os animais, as plantas, o próprio céu e as águas, é tratado com a mesma agitação dramática, sedutora e soturna de que são feitas as carnes que vibram no sofrimento. E lembra as análises de Baudelaire que falam de “un caractère molochiste visible”, a respeito das obras de Delacroix, ou enumeram: “Les villes incendiées et fumantes, les victimes égorgées, les femmes violées, les enfants eux mêmes jetés sous les pieds des chevaux ou sous les poignards des mères délirants; tout cet oeuvre, disje, ressemble à un hymne terrible composé en l’honneur de la fatalité et de l’irrémédiable douleur” (nota 122).

[28] Esses depoimentos foram recolhidos por De Bertier de Sauvigny (op. cit.). Cf. particularmente os do dr. Poumiés de la Siboutie (pp. 141-3), do dr. Prosper Ménière (pp. 143-5), e do duque de Broglie (pp. 145-6). Quanto às cenas da revolução de 1830 descritas 30 anos depois por Victor Hugo, cf. Livro 1o da 5a parte de Os miseráveis, particularmente o capítulo XV para a morte de Gavroche. Sobre a ideia de “povo” em 1830, cf. Hadjinicolau, Nicos: La Liberté guidant le peuple de Delacroix devant son premier public, in Actes de la Recherche em Sciences Sociales, no 28, Paris, junho de 1979, pp. 12-14), onde o autor reúne várias definições dadas na época ao conceito.

[29] Cf. Toussaint, Hélène, La Liberté…, pp. 47-51, para citar o estudo mais recente e minucioso a respeito. Hadjinicolau (op. cit., p. 21) lembra um particular interessante na representação do “povo” — o personagem de cartola, com fuzil na mão. Sabe-se hoje, indiscutivelmente, graças ao estudo de Hélène Toussaint, que se trata de um operário. “Certains ont voulu reconnaître un bourgeois, voire un étudiant, dans l’homme coiffé d’un chapeau haut de forme. C’est là méconnaître les modes du temps, une telle coiffure est portée par tous les citadins quelle que soit leur origine sociale. Le large pantalon de celui-ci, sa ceinture de flanelle rouge, sont caracteristiques d’un ouvrier effectuant un labeur pénible […]. L’homme au fusil est le compagnon, l’artisan, peut-être contremaître ou chef d’atelier qui ne répugne pas à mettre la main à l’ouvrage” (p. 43). É verdade que muitas vezes, como nota Hadjinicolau, estudiosos recentes (e de peso, como Maurice Sérullaz) afirmam ver no personagem um “burguês”. O único elemento da burguesia no quadro — mas particular pelas posições políticas a ele associadas — é o estudante polytechnicien, com seu bicorne, que se encontra no terceiro plano, na altura do ombro esquerdo do personagem de cartola. Como se sabe, esses estudantes republicanos tiveram um papel importante nas lutas de 1830. Uma belíssima pintura anônima do Museu Carnavalet retrata com fidelidade o combate de Rohan, no dia 28 de julho, e coloca em relevo o papel dos politécnicos nas barricadas (fig. 16).

[30] Cf. Rosemblum, Robert, “La peinture sous le Consulat et l’ Empire”, in De David à Delacroix, op. cit., p. 170

[31] As experiências sobre a luz e matéria em Girodet não foram, até hoje, a meu conhecimento, suficientemente sublinhadas. Elas me parecem, no entanto, um dos pontos mais originais e sedutores na obra do pintor de Montargis. Com frequência, sua temática se presta, de modo muito adequado, a essas questões, quer no Sono de Endimião, onde o luar se materializa numa espécie de poeira prateada sobre a pele do adolescente, ou na Danae, cujo corpo se dissolve nos reflexos da chuva de ouro (e onde a luz pôde ser tratada de maneira muito diversificada no espelho ou na lâmpada, à esquerda do quadro), quer seja na Apoteose dos heróis franceses, onde a distinção essencial entre os personagens ossiânicos e os contemporâneos está justamente no tratamento luminoso muito peculiar que lhes é atribuído — a matéria dos personagens da lenda é transfigurada por uma aura luminosa. Sobre Girodet, cf. Bernier, Georges — Anne Louis Girodet, Paris, Bruxelas, Jacques Damase, 1975.

[32] In Géricault raconté par lui-même et ses amis, Pierre Cailler, ed. Genebra, 1947, p. 194.

[33] Ibidem, p. 114.

[34] Ibidem, p. 224.

[35] Sobre as ressonâncias simbólicas da obra de Rude, cf. La Sculpture Française au XIX Siècle, catálogo da exposição do Grand Palais, 1986, Paris, ed. de la Réunion des musées nationaux, p. 170.

[36] Cf. Eulalio, Alexandre, “De um capítulo do Esaú e Jacó ao painel do Último Baile”, Discurso 14, Revista do Depto. de Filosofia da FFLCH da USP, São Paulo, Polis, 1983, e “Ainda reflexos do baile”, in Remates de Males.

[37] Hadjinicolau recolheu as críticas contemporâneas ao quadro, que fazem da Liberdade uma figura popular, suja, vulgar, horrenda, mesmo prostituída — das quais o texto mais célebre é o de Heine, sobre o “Salon” de 1831. Há aí, evidentemente, uma visão preconceituosa do mesmo tipo das que enegreceram as festas do Ser Supremo e da Razão nas igrejas, transformando-as em orgias, como nota Agulhon in Marianne au combat. O mesmo autor fará referência, em outro lugar, à “vieille et solide tradition de dénigrement de la Révolution Populaire, d’après laquelle les rôles de la deésse de la Liberté ne sauraint être joués que par des femmes faciles”. A crítica politicamente conservadora não via o aspecto clássico da imagem, “rebaixando-a para um registro popular, o pretexto maior advindo do ‘brun dans la peau’, como dizia o poema de Barbier e que a figura de Delacroix realmente possui, muito diferente do branco leitoso das belezas da burguesia. Hadjinicolau constata essa questão da cor da pele, mas aceita a imagem criada pela direita” — a Liberdade não é uma alegoria, é uma mulher do povo — apenas esse aspecto não é mais pejorativo: bem ao contrário, ele passa a ser altamente positivo. E, quando os historiadores da arte “burgueses” de hoje lembram o carater clássico da imagem (a comparação de Lee Johnson com a Vênus de Milo parece-me particularmente feliz), Hadjinicolau insinua que talvez isso seja má-fé ideológica — transformando-a numa imagem clássica, o popular fica afastado. Resta o fato de que esse aspecto clássico é realmente existente, e que o perfil grego, as vestes, a nudez dos seios, a monumentalidade não fazem dessa figura um personagem “real”. Compreendê-la apenas como deusa, ou como poissarde, exclusivamente, é não perceber o princípio de ambiguidades sobre o qual o quadro é formado. Quanto ao detalhe dos pelos debaixo do braço da deusa, elemento “realista” sobre o qual Hadjinicolau constrói toda uma digressão sobre a sexualidade no século XIX, eu o cito confiando nos olhos do autor de História da Arte e lutas de classes. Porque devo confessar descobrir sobre as axilas da Liberdade apenas uma depressão escurecida pela sombra e, por maiores esforços que faça, não consigo distinguir os pelos axilares. Mas talvez isso seja miopia ideológica de minha parte. Em todo caso, tudo isso mostra bem o terreno flutuante da história da arte, onde, por vezes, se pode ver o que se deseja.

Resta mencionarmos aqui o artigo de Eric Hobsbawm, “Sexe, symboles, vêtements et socialisme”, Actes de la Recherche en Sciences Sociales, no 23, setembro de 1978. Publicado também na revista History Workshop, deu origem a uma polêmica bastante longa. Hobsbawm toma o nu da Liberdade sem levar em conta a tradição das representações artísticas, dando-lhe um caráter exclusivamente sexual. O texto, por vezes rico, é com frequência mecânico e de uma ingenuidade desarmante. Maurice Agulhon apontou as falhas fundamentais do artigo in “Propos sur l’allégorie politique en reponse à Eric Hobsbawm”, in Actes de la Recherche en Sciences Sociales no 28, junho de 1979. Talvez valesse a pena um dia retomar em discussão os detalhes do artigo do Hobsbawm, particularmente os ligados à questão da nudez, ainda mais que essas considerações — muito discutíveis — devem, em breve, ser traduzidas para o português. O texto do grande historiador social inglês demonstra como é possível se perder num terreno delicado como o das representações em imagens, e como essas representações exigem uma abordagem particular.

[38] Para análise da técnica davidiana a reproduções numerosas de esboços e diferentes etapas, cf. Schnapper, Antoine, David témoin de son temps. Friburgo, Office du livre, 1980.

[39] Sobre o dinamismo que avança para o espectador, cf. a brilhante análise de Argan, Giulio-Carlo, L’arte moderna, 1770/1970, Sansoni, Florença, 1970, pp. 57-61.

[40] Embora os textos sejam bastante posteriores à Liberdade. Delacroix, Eugène — Journal, Plon ed., 1950, tomo II, pp. 88 e 169.

[41] Panofsky, Erwin, Essais d’iconologie, Paris, Gallimard, 1967, p. 108.

[42] A passagem se encontra no capítulo x do 5o livro da 1a parte de Os miseráveis. Eis um momento ilustrativo: “En même temps elle sourit. La chandelle éclairait son visage. C’était un sourire sanglant. Une salive rougeâtre lui souillait le coin des lèvres, et elle avait un trou noir dans la bouche”.

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