1996

A careta de Garrick – O comediante segundo Diderot

por Luiz Fernando Franklin de Matos

Resumo

O século XVIII reconheceu a estética como disciplina filosófica autônoma, o que se deveu, em parte, à incorporação dos sentidos ao que se entendia por conhecimento.

Diferente da tradição aristotélica, que se restringia à poesia dramática, a nova teoria teatral, que deve muito a Diderot, resgatava o “comediante” ou ator, e assim a materialidade e a natureza espetacular do teatro.

No livro “O paradoxo sobre o comediante”, diálogo ficcional entre dois atores, Diderot expõe uma tese que assim pode ser resumida: o ator, homem de discernimento, deve dispor de frieza e tranquilidade, além de penetração (em oposição à sensibilidade). Assim pensa um personagem do livro. E o outro? A acreditar na interpretação clássica, ele pensa segundo o senso-comum.

Daí, o título do livro, já que, nele, o sentido de paradoxo, diferente do praticado hoje (pejorativamente), era, segundo a Enciclopédia, o de uma opinião que diverge exatamente do senso-comum. E, quanto ao resto do título, ou seja, o “comediante”? Um artista, que associado à depravação ou à imoralidade, era desprezado pela sua época. Por outro lado, segundo a Enciclopédia: “Uma profissão honrada na Inglaterra, onde um Olfieds pode ser enterrado ao lado de um Newton”. Contrário a isso, eram Rousseau e o próprio Diderot (que escreveu o verbete mencionado). Por quê? Porque, em termos racionais formais, se o preconceito contra o ator era atemporal e universal (como se acreditava na época), a causa para ele era necessariamente atemporal e universal. E qual seria? A essência da profissão mesma, que é a dissimulação. Daí, segundo Diderot, a raridade de um ator ou atriz decente.

Enfim, Diderot rende-se à sensibilidade como atributo dramatúrgico superior, uma vez que ela, por meio da intuição, encontraria a unidade entre esforço e pensamento. Mas não só. Afinal, há também “a arte de tudo imitar”, adquirida e passível de evolução.

Trata-se do antes e do depois da representação, quando se mede, combina, aprende, coordena… No início, há o caos. Segue-se o esboço – que parece bastar, até que se passe à “natureza ordenada”, composta por “traços característicos”, que sintetizam não um avaro, mas o Avaro. Vai-se ao coração da criação mesma. Ela que foge ao filósofo. Já que se trata de uma inflexão, só resta esperar… até que, de repente, há a comoção e o esboço esculpido. É então o triunfo do ator. Qual? O que imita tão bem a sensibilidade que engana o público.

“O paradoxo” termina por criticar tanto a ideia de natureza, ou seja, a imitação pura e simples, quanto a imaginação desprovida de conhecimento, que resulta no maneirismo puro e simples. O que resta então? O constante trabalho da “natureza” como ordem ou “idealidade”.


1

Ao século XVIII nós devemos, entre outras coisas, a invenção da estética como disciplina filosófica reconhecida e autônoma. Até então, a poesia, a pintura, a escultura, a música eram pensadas em distintos domínios do saber, mas a partir daquele momento todas as artes passaram a ser examinadas numa perspectiva sintética, a fim de se reduzirem a um mesmo princípio.

É bem verdade que nem todas as condições que tornaram possível a disciplina foram formuladas no século XVIII. Que se tome como exemplo o conceito de belas-artes — que, afinal, é o objeto mesmo da estética: como se sabe, tal conceito constituiu-se apenas após uma longa e vagarosa elaboração, que teve início no final do Quattrocento em Florença, quando a pintura começou a recusar o rótulo de “arte mecânica” que lhe fora atribuído pela Idade Média, reivindicando-se, dir-se-á em breve, como “cosa mentale”.[1] Outra condição fundamental da disciplina, aparecida antes do século XVIII, é a concepção cartesiana de ciência como mathesis universalis, segundo a qual se deve submeter à razão todo e qualquer domínio do saber e do fazer humanos.[2] É sabido que Descartes não se empenhou na elaboração de uma estética, mas outros assumirão a tarefa em seu lugar. Segundo a perspectiva geral do cartesianismo, se a natureza está sujeita a alguns princípios que podem ser enunciados de modo preciso e simples, não há razão para que a arte, rival da natureza, deixe de submeter-se à mesma exigência.

Bem própria do século XVIII, entretanto, e absolutamente essencial para a formulação da estética, é a postura filosófica que concede “direito de cidadania” à sensação, recusando-se a considerá-la como uma “intrusa” no processo geral do conhecimento.[3] Quando isso se dá, a materialidade das artes passa a ser reconhecida e, como bem observa Jacques Chouillet, a “uma metafísica do Belo” opõe-se a partir de então “a descoberta das técnicas” que são específicas a cada arte. Para ilustrar o processo, que se tome como exemplo a concepção de teatro formulada nos escritos de Diderot. Até ela, certa tradição que remonta à Poética de Aristóteles pensava o teatro enquanto poesia dramática, recusando-se a reconhecer como essenciais os trabalhos do ator e do encenador.[4] Com Diderot, porém, o teatro é resgatado em sua materialidade e começa a ser visto propriamente como espetáculo. Ao enfatizar as dimensões “pré” e “extraverbal” do teatro,[5] Diderot o concebe sobretudo como uma arte do acento e da pantomima, o que explica a enorme importância que seus escritos concedem à reflexão sobre um dos dados “materiais” mais fundamentais do teatro: o desempenho do ator (ou, como se dizia mais correntemente no século XVIII, do comediante). Com efeito, tal reflexão ocupou Diderot desde seus primeiros escritos, que datam dos anos 40, ganhou especial relevo quando da campanha pela reforma da cena francesa, na década de 50, e assumiu o primeiro plano de suas preocupações no Paradoxo sobre o comediante, diálogo escrito e reescrito durante os anos 70, período de plena maturidade do filósofo.

É bom lembrar que Diderot não foi o primeiro no século XVIII a debruçar-se sobre a psicologia do comediante e nem mesmo o primeiro a afirmar a posição desenvolvida no Paradoxo. Antes dele, em 1747, certo Rémond de Sainte-Albine, ciente da novidade de seu empreendimento, publicara o livro O comediante, no qual defendia a tese de que a principal qualidade do grande ator é a sua capacidade de identificar-se à personagem que representa.[6] Poucos anos depois, em 1750, o ator François Riccoboni contestava a afirmação em A arte do teatro, sustentando que para bem representar o ator não deve efetivamente sentir as paixões de suas personagens, mas apenas parecer senti-las.[7] Esta é, em resumo, a tese do Paradoxo,[8] mas inscrita no interior de outro interesse teórico. Com efeito, se Décio de Almeida Prado tem razão ao afirmar que o livro de Sainte-Albine expressa o ponto de vista do “amador” e o de Riccoboni, o do “profissional do palco”,[9] pode-se sustentar que Diderot atribui um conteúdo filosófico à tese deste último. Como se verá em seguida, a reflexão diderotiana sobre a “psicologia” do comediante está integrada no movimento de uma reflexão mais abrangente, que trata da arte em geral.

2

O paradoxo sobre o comediante é um diálogo entre dois interlocutores, designados sumariamente como Primeiro e Segundo, que discutem a brochura Garrick ou Os atores ingleses, traduzida do inglês pelo ator Antonio Fabio Sticotti, suposto amigo do segundo interlocutor. A tese central do diálogo, enunciada pelo primeiro logo no início da conversa, afirma o seguinte: “Quanto a mim, quero que [o comediante] tenha muito discernimento; acho necessário que haja nesse homem um espectador frio e tranquilo; exijo dele, por consequência, penetração e nenhuma sensibilidade, a arte de tudo imitar, ou, o que dá no mesmo, uma igual aptidão para toda espécie de caracteres e papéis”.[10]

Como se vê, a tese é lida com oposições aparentemente inconciliáveis e exibe-se em termos contundentes e radicais; apenas em seguida contará com contornos e matizes que lhe darão um enunciado mais flexível. Por enquanto, o objetivo parece ser ganhar o máximo possível de terreno sobre o adversário e, num segundo momento, fazer os recuos convenientes. Mas quem seria exatamente esse adversário?

A acreditar na interpretação que Yvon Belaval[11] dá ao título do diálogo, podemos sustentar que o inimigo de Diderot nesse texto, encarnado nas figuras do autor de Garrick e de seu suposto amigo, é o senso comum em pessoa. Segundo Belaval, de fato, não se deve atribuir ao termo paradoxo, aqui, uma conotação pejorativa (no sentido em que alguns no século XVIII costumavam referir-se a Rousseau), mas defini-lo à maneira da Enciclopédia: “É uma proposição absurda em aparência, por ser contrária às opiniões recebidas, e que, entretanto, é verdadeira no fundo, ou ao menos pode ganhar uma aparência de verdade”. Segundo a própria etimologia, o “paradoxo” sustenta uma opinião “ao lado” da doxa, da opinião comum e, portanto, contra ela. Pois bem: se assim é, em que consiste esta no século XVIII quanto à figura do comediante?

Antes de mais nada, a opinião corrente despreza o comediante, associando-o à depravação e à imoralidade. No verbete Comediante, publicado no terceiro volume da Enciclopédia, em 1753, Diderot escreveu: “A profissão de comediante é honrada na Inglaterra; lá, não se tem dificuldade em conceder à srta. Olfields um túmulo em Westminster, ao lado de Newton e dos reis. Na França, ela é menos honrada. A Igreja romana os excomunga e lhes recusa sepultura cristã, se não renunciaram ao teatro antes da morte”.[12] Aqui, decerto Diderot simplifica voluntariamente o problema, dando apenas a intolerância do clero como causa do desprezo ao comediante. A Carta a D’Alembert, de Rousseau — que não hesitou nem mesmo em mobilizar certos preconceitos da opinião contra o projeto de instalação do teatro em Genebra —, contestou vigorosamente essa explicação. O “preconceito” contra a profissão de comediante, declara Rousseau, existe em toda parte e, sendo “universal”, só pode ter uma “causa universal”. Atribuir essa causa “às declamações dos padres” não resolve o problema, pois já entre os romanos, antes do aparecimento do cristianismo, os atores eram considerados “infames”, e não por força da ignorância popular, mas de leis expressas, que lhes recusavam o direito de cidadania.[13] Em poucas palavras, para Rousseau o comediante é desprezado em toda parte devido a algo intrínseco a seu ofício: fazer da simulação uma profissão. No Paradoxo, Diderot reconhece que, de fato, “um comediante homem educado e uma atriz mulher honesta [são] fenômenos raros”; virtualmente, porém, eles são para o filósofo “os mais eloquentes pregadores da honestidade e das virtudes” e, contestando a opinião corrente, o Paradoxo pretende mostrá-lo.

Além disso, a mesma opinião acredita que o comediante é fundamentalmente um homem sensível, que desempenha um papel fazendo uso de sua sensibilidade natural, experimentando as paixões que representa. É a tese de Sticotti, que não faz mais que retomar Sainte-Albine,[14] cujo Comediante, por sua vez, afirma:

Horácio disse: “Chorai se quereis que eu chore”. Dirigia essa máxima aos poetas. Pode-se dirigir a mesma máxima aos comediantes. Os atores trágicos querem nos provocar ilusão? Devem provocá-la em si mesmos. É preciso que imaginem ser, que sejam efetivamente aquilo que representam, e que um feliz delírio os leve a crer que são eles que são traídos, perseguidos. É preciso que este erro passe de seu espírito para seu coração, e que em várias ocasiões uma desgraça fingida lhes arranque lágrimas verdadeiras.[15]

Tão forte é essa convicção no século XVIII que o próprio Diderot um dia rendeu-se a ela: “Felizmente”, escreveu ele em 1757, “uma atriz, de um discernimento limitado, de uma penetração comum, mas de uma grande sensibilidade, capta sem esforço uma situação da alma, e encontra, sem pensar, o acento que convém a vários sentimentos diferentes que se confundem e que constituem essa situação que toda a sagacidade de um filósofo não analisaria”.[16]

Esse texto lida com os mesmos termos do Paradoxo: discernimento, penetração, sensibilidade (o que mostra que a problemática do diálogo já estava constituída nos anos 50), mas pensa-os de modo radicalmente contrário. Na perspectiva do Filho natural, onde nada podem a penetração e o discernimento do filósofo, a sensibilidade capta e encontra a unidade sob a diversidade, realizando a operação com meios que lhe são próprios: “sem esforço”, “sem pensar”, quer dizer, por intermédio da intuição. No Paradoxo, Diderot dará à sensibilidade uma outra acepção, definindo-a, conforme bem observa Belaval, como emotividade e insistindo sobre seus fundamentos fisiológicos:

A sensibilidade, segundo a única acepção que se deu ao termo até o presente, é, a meu ver, aquela disposição companheira da fraqueza dos órgãos, consequência da mobilidade do diafragma, da vivacidade da imaginação, da delicadeza dos nervos, que inclina alguém a compadecer, fremir, admirar, temer, perturbar-se, chorar, desmaiar, socorrer, fugir, gritar, perder a razão, exagerar, desprezar, desdenhar, não ter nenhuma ideia precisa do verdadeiro, do bom e do belo, ser injusto, ser louco. Multipliquem as almas sensíveis, e multiplicarão na mesma proporção as boas e as más ações de todo gênero, os elogios e as censuras exacerbadas.[17]

Nessa nova formulação, a sensibilidade já não aparece como portadora de uma função cognitiva própria. A capacidade de distinguir as relações verdadeiras é agora atribuída ao discernimento (jugement), que pressupõe, por sua vez, a observação. Como bem nota Belaval, a “arte de tudo imitar” — e imitar, aqui, significa imitar a natureza — pressupõe a penetração da observação. Ainda segundo Yvon Belaval, em poucas palavras a tese pode ser assim resumida: para bem desempenhar um papel, o comediante deve imitar a natureza. Contra a tentação de acentuar unilateralmente a insensibilidade, não custa insistir sobre o lado positivo da tese, que dá importância à observação.

3

Nas páginas seguintes, Diderot trata de apresentar as provas dessa tese.[18] Como se sabe, uma boa observação tem dois traços: seus resultados são algo de adquirido e, a partir de tal aquisição, o progresso é possível. Portanto, a imitação dirigida pela observação está garantida por resultados firmes e é suscetível de tornar-se melhor. Donde a primeira prova (ou contraprova) da tese: se o comediante fosse sensível, ele seria desigual e incapaz de progresso.

Que se tome, por exemplo, o ator que “desempenha com alma”: dotado, como Mlle. Dumesnil, terá momentos sublimes, mas ficará sempre na dependência de sua sensibilidade, quer dizer, de estar ou não “no seu dia”; “alternativamente forte e fraco, quente e frio, rasteiro e sublime”, seu desempenho não é composto e, como não pode repetir-se, não progride. Em contrapartida, o ator que representa “com reflexão”, como La Clairon, não se esgota de uma apresentação a outra, seu desempenho é composto e repetível, fortificando-se e melhorando. Enquanto o primeiro, abandonado a si mesmo, submete-se à inspiração do momento e logo chega ao fim da própria riqueza, o segundo esquece sua individualidade, jamais prescinde da observação e mergulha “no fundo inesgotável da natureza”. O que ele imita precisamente? Conforme Diderot, seu papel é composto segundo um modelo ideal da natureza, forjado “com memória”, se o emprestou à história, “com imaginação”, se o criou por si mesmo, como um grande fantasma ao qual procura conformar-se.

Adiante voltaremos a esse conceito. Por enquanto, notemos, com Yvon Belaval, que as observações acima só se aplicam ao comediante antes e após a criação do papel, mais precisamente, “quando desempenha”, quando “tudo foi medido, combinado, aprendido, ordenado em sua cabeça”, em resumo, “quando a luta passou”. Entretanto, se presenciássemos os “estudos” do comediante — a criação do seu papel —, nós o veríamos “ofegante” e atormentado, como o escultor De Quesnoy às voltas com um bloco de mármore. E por que no ator o processo de criação não comportaria “furor”, “capricho”, “delírios do entusiasmo”, se nada distingue esse processo dos meandros da criação no poeta, no pintor, no orador, no músico?

Segundo o Paradoxo, esse processo comporta basicamente dois momentos. Antes de mais nada, o primeiro jato, que é o surgimento da ideia diretriz, do esboço, do ponto de partida. Enquanto esboço, esse produto do entusiasmo é ainda informe, um “delírio”, mas, sem ele, nada começa. Mais: é apenas graças a ele que “os traços característicos” do modelo ideal se apresentam. Entretanto, “cabe ao sangue-frio temperar os delírios do entusiasmo”, afirma enfaticamente Diderot. Desse modo, num segundo momento, eis o gênio em presença de seu esboço: ele o compara à natureza. Pousa alternativamente um olhar atento sobre um e outro. Julga, deve manter-se frio para captar as insuficiências do esboço. Conforme Belaval, o artista o completaria sem maiores dificuldades se precisasse apenas recopiar a natureza subsistente: o que busca, porém, é a natureza enquanto ordem, são os “traços característicos”. Não um tartufo, dirá Diderot adiante, mas o Tartufo, não um avaro, mas o Avaro. Caberia ao discernimento o papel de encontrá-los?, pergunta-se por sua vez Belaval. Não, pois o discernimento pode suprimir, discernir o falso, o ilógico, condenar a banalidade — mas ele não cria. Aqui, tudo se passa como se Diderot se deparasse com um limite, para além do qual nada pode o olhar do filósofo. Para ele, o artista é condenado a esperar os traços característicos (“não se sabe de onde vêm, eles se parecem com a inspiração”). Esse surgimento é súbito, ele espanta. O discernimento prepara sua vinda e é por isso que aparecem em momentos tranquilos e frios. Mas sua chegada é comovente, porque ilumina o esboço, melhora-o, suscitando no criador uma reação de triunfo: eis por que ele “luta”, “ofegante” e “atormentado”.

Como se pode ver, Diderot renuncia desde já à radicalidade da tese e dá um certo papel à sensibilidade no processo de criação. O que se passa é que já não a pensa no centro desse processo, a exemplo de escritos anteriores, quando concebe o gênio como entusiasmo (que, no Dicionário filosófico, Voltaire define como “emoção das entranhas, agitação interior”[19]). No Paradoxo, Diderot renuncia às páginas exaltadas que testemunham a inspiração e o furor do gênio diante do sublime espetáculo da natureza. Antigamente, definia aquele, em poesia, como oposição às regras e, em filosofia, como recusa do espírito de sistema.[20] Agora, sem renunciar a tal perspectiva, Diderot pensa o gênio como uma “certa conformação da cabeça e das vísceras”, na qual tem especial destaque o “espírito observador”.[21] É que, como bem observa Belaval, se o discernimento frio prepara o traço de inspiração esse discernimento deve, por sua vez, ser preparado pela observação cotidiana do mundo físico e moral. A gente não pode ser aquilo que observa; fora de si, o violento não observa a violência; para ser capaz de reproduzir os efeitos, é preciso saber como se produzem, e isso só é possível graças à observação.

Entretanto, insiste Diderot, a observação de que se trata aqui não deve ser confundida com “aquela espionagem cotidiana das palavras, ações e semblantes”, tão própria das mulheres. O que define o espírito observador do gênio é que ele se exerce sem esforço ou contenção (termos curiosamente aplicados à sensibilidade no Filho natural) e talvez só possa ser entendido se recorrermos à “hipótese do inconsciente”, marca da influência de Leibniz sobre Diderot, segundo Belaval. O que importa ressaltar, afinal de contas, é que a sensibilidade já não é, para Diderot, a qualidade dominante do gênio, capaz de tudo imitar. Mais que isso ainda, o homem sensível é, na verdade, o grande modelo do homem de gênio, seu objeto privilegiado de observação. Por isso, Diderot pôde escrever: “Na grande comédia, a comédia do mundo, aquela para a qual sempre volto, todas as almas quentes ocupam o teatro; todos os homens de gênio encontram-se na plateia”.[22]

Não custa lembrar, aliás, que essa concepção não surgiu de uma hora para outra, como pretendem alguns. Há quem sustente que a crítica do entusiasmo já aparece na primeira versão de O sobrinho de Rameau, que é de 1760.[23] Mesmo sem recuar tanto, Paul Vernière mostrou que a evolução decisiva deu-se entre 1765, quando Diderot travou conhecimento com Garrick, e 1769, quando redigiu O sonho de D’Alembert. É então que a oposição caracterológica entre o “homem frio” e o “homem sensível” vai deixando de ser apenas “literária” e acaba ganhando uma formulação “científica”, baseada na fisiologia organicista do médico Bordeu. A distinção repousa de fato, pensa agora Diderot, “sobre uma oposição fisiológica de dois órgãos, o ‘cérebro’ e o ‘diafragma’, ou antes de dois centros nervosos; o cérebro sendo o sensorium commune, centro geral da inteligência e da vontade consciente e controlada, o diafragma, que nós chamaríamos de plexus solar, sendo um centro autônomo da sensibilidade inconsciente ou antes não dominada”.[24]

4

Segundo Yvon Belaval, a argumentação anterior pretende mostrar que só se imita observando, que só se observa ficando frio e que, por consequência, o comediante não pode ou não deve ser sensível. Por serem contrárias à opinião comum, como já vimos, tais afirmações constituem um paradoxo. Entretanto, se nos dermos ao trabalho de interrogar os próprios comediantes, logo veremos que nenhum admite a tese da insensibilidade (os grandes, diz Diderot, para não revelar aquilo que é o “seu segredo”; os medíocres e novatos, porque efetivamente apostam no sentimento; e outros, enfim, porque acreditam sentir). Mais decisivo ainda é que o desempenho do ator imita tão bem a sensibilidade que todos nós nos deixamos enganar. Para provar ainda uma vez que ele é insensível, Diderot recorrerá à experiência, confrontando a sensibilidade real e natural, que nos subjuga na vida, e as aparências de sensibilidade que o comediante nos propõe em cena.

Esse confronto passará por três oposições.

1) O comediante ensaia e se repete, sem o que seria desigual. O que implica a repetição? Memória e hábito — algo adquirido, o contrário do espontâneo e do natural. Eis por que a sensibilidade fingida do comediante não se parece com a nossa nem antes, nem durante, nem após sua expressão. Nem antes: seus acentos são preparados, os nossos nos escapam; são previstos, os nossos imprevisíveis; são medidos, integrados num sistema de declamação, e os nossos, por natureza, ignoram qualquer decência. Nem durante: nossa emoção apanha-nos por inteiro, ao passo que o ator conhece de memória os seus sinais, recita-os graças ao hábito, vigia-se e critica-se, não conhecendo aquele choque de surpresa que a emoção verdadeira desencadeia. E nem depois: após ter exprimido sua emoção, o comediante não experimenta perturbação, dor, melancolia ou enfraquecimento de alma. Tais sentimentos são antes os do espectador, e o que fica reservado ao ator é no máximo o cansaço físico. Portanto, não se pode negar, diz Diderot, que seu desempenho não passou de um “trejeito patético”, de uma “macaquice sublime”.

2) Se o comediante ensaia e se repete, é porque tem em vista uma finalidade consciente e seus acentos concorrem “para a solução de um problema proposto”. Sua sensibilidade fingida e as de seus parceiros se concertam entre si, fortificam-se “para obter o maior efeito possível”: por aí se vê que estamos longe da desordem da sensibilidade natural, que não é escolhida, nem composta. Mesmo que se admita que o ator experimente uma “perturbação passageira em suas entranhas”, essa emoção é de origem central, enquanto a nossa, não fingida, é de origem periférica. Essa afirmação pode ser verificada mediante a terceira oposição.

3) Segundo Diderot, a emoção verdadeira resulta de um choque imprevisto que perturba nossa ação; ela força nossa crença, é o contrário de um jogo, pois seu objeto é real. Entretanto, quanto mais nos afastamos do real, mais essa emoção se degrada. Para demonstrá-lo, Diderot compara dois tipos de coisa: de um lado, os efeitos produzidos em nós por um acontecimento real e pelo simples relato de um acontecimento real, e, de outro, os efeitos que tem um relato feito em sociedade e o desempenho do comediante.

Quando presenciamos um acontecimento trágico, “num instante, as entranhas se comovem, solta-se um grito, a cabeça se perde e as lágrimas correm”. Eis a emoção instintiva: nenhum atraso, as lágrimas são instantâneas, nenhuma ideia daquilo que é ou não conveniente fazer — a cabeça se perde, não é ela quem domina as entranhas, mas é dominada por elas.

Tentemos agora substituir a presença do acontecimento pelo relato de uma testemunha. Quando se ouve o relato de algo comovente, é “primeiramente” e “pouco a pouco” que “a cabeça se embaralha”, e somente depois “as entranhas se comovem” e as “lágrimas rolam”. É manifesta a diferença entre a emoção espontânea e a emoção provocada.

E se se trata de um relato patético feito em sociedade, que efeitos ele produz sobre quem relata? A lembrança do próprio acontecimento comove suas entranhas e entrecorta sua voz; aquele que relata sente e produz um grande efeito, mas fala como qualquer um e em momento algum lança gritos. Como não aprendeu de cor o seu relato, este o esgota. Se tiver que repetir a história para um recém-chegado, dessa vez a contará sem a mesma emoção.

Afastemo-nos ainda mais do real e apliquemos essa observação ao comediante que representa. Ele não vive o acontecimento, ele “recita”. Além disso, preparou-se tendo em vista um efeito a ser produzido: ensaiou, repete e se repetirá sem cansaço de alma, sem desigualdade, melhorando. E, sobretudo, seu relato é “um conto de pura invenção”, dirigido ao nosso imaginário, mesmo que o pretexto da peça seja histórico e, por isso, não acreditemos verdadeiramente naquilo que vemos.

A Cleópatra, a Mérope, a Agripina, o Cina do teatro são mesmo personagens históricas? Não. São fantasmas imaginários da poesia; digo muito; são espectros do feitio particular deste ou daquele poeta. Deixai essa espécie de hipogrifos em cena com seus movimentos, seu comportamento e seus gritos; figurariam mal na história; provocariam gargalhadas num círculo ou outra reunião da sociedade. As pessoas se perguntariam no ouvido: Será que está delirando? De onde vem esse d. Quixote? Onde é que se fazem dessas histórias? Qual é o planeta em que se fala assim?[25]

Dessa argumentação, Diderot retira duas conclusões. A primeira serve apenas ao dramaturgo e interessa-nos menos: em matéria de teatro, se quisermos comover, usando as leis da sensibilidade natural, é melhor optar pela visão de uma ação em detrimento da audição de um relato (o que contém, lembra Belaval, toda a crítica de Diderot ao teatro clássico francês e o novo ideal dramatúrgico por ele proposto). A segunda, que nos interessa mais de perto, aponta para as preocupações do teórico da arte: a experiência ensina que o verdadeiro no teatro não é, como o verdadeiro comum, um acordo com o real sensível. “É a conformidade das ações, dos discursos, da figura, da voz, do movimento, do gesto, com um modelo ideal imaginado pelo poeta, e muitas vezes exagerado pelo comediante.”[26]

Inútil acentuar que, apesar de uma certa vibração platônica, o conceito de modelo ideal tem implicações empiristas e, entre os mestres gregos, lembra antes Aristóteles. Num livrinho luminoso, ao qual teremos ocasião de voltar adiante, Erwin Panofsky fornece todos os elementos para se pensar, por assim dizer, a ligeira tensão platônico-aristotélica do conceito diderotiano. Segundo Panofsky, entre a Antiguidade e o século XVII, inverteu-se “o sentido conceitual da Ideia platônica, a ponto de [se] fazer dela uma arma contra a própria concepção platônica da arte”. A reinterpretação possui dois traços fundamentais: em primeiro lugar, já não se concebem as Ideias como substâncias metafísicas que existem fora do mundo sensível, mas como representações que residem no espírito do homem; por outro lado, se para Platão a arte é o domínio da Imagem e não da Ideia, para esta outra tradição é “perfeitamente natural que as Ideias sejam reveladas preferencialmente na atividade do artista”. Para pensar o lugar de Diderot no interior dessa tradição, seria preciso apenas acrescentar um elemento que, segundo Panofsky, explicita-se de vez no século XVII. Com Giovanni Pietro Bellori, teórico do neoclassicismo, “essa ideia, que se encontra no interior do espírito do artista, já não tem direito nem a uma origem nem a uma validade metafísicas”; na verdade, ela “provém da intuição sensível, com a única diferença de que esta parece conferir-lhe uma forma mais pura e mais sublime”.[27]

Para os nossos propósitos, importa destacar que, se é verdade que o comediante desempenha seu papel segundo um modelo ideal; se é verdade ainda que o modelo ideal é “a projeção no objeto individual da lei geral” (Belaval); segue-se necessariamente que o comediante não representa a si mesmo ou mediante sua sensibilidade natural. E, com efeito, é bem isso o que ilustra uma porção de anedotas, que Diderot não se cansa de relatar umas após as outras, e que provam à saciedade a fleuma e a presença de espírito de todos os grandes atores. Em Inês de Castro, de La Motte, e em Polyeucte, de Corneille, Mlle. Duclos e Quinault-Dufresne dirigem-se às plateias malcomportadas e as repreendem; em Semíramis, de Voltaire, Lekain acaba de esganar a própria mãe, mas, no momento seguinte, empurra com o pé, para os bastidores, o incômodo pingente que se soltou da orelha de uma atriz; em Zaíra, do mesmo Voltaire, Mlle. Gaussin agoniza e, assim mesmo, chama a atenção de seu confidente para a cara meio burlesca de um espectador que chora. O exemplo mais chocante talvez seja o daquele casal que faz O despeito amoroso, de Molière, e representa, simultaneamente, duas cenas: uma, para os espectadores, é o colóquio de dois ternos amantes, outra, para si mesmos, é um vulgar bate-boca de marido e mulher. Mas o caso mais impressionante é o da gama de sentimentos expressos pela face do grande ator:

Garrick mete a cabeça entre os dois batentes de uma porta e, no intervalo de quatro a cinco segundos, seu rosto passa sucessivamente da louca alegria à alegria moderada, dessa alegria à tranquilidade, da tranquilidade à surpresa, da surpresa ao espanto, do espanto à tristeza, da tristeza ao abatimento, do abatimento ao pavor, do pavor ao horror, do horror ao desespero, e torna a subir deste último grau àquele de onde descera. Será que sua alma pôde experimentar todas essas sensações e executar, de acordo com seu rosto, essa espécie de gama? […] Será que a gente ri, será que a gente chora à discrição? O que a gente faz é a careta mais ou menos fiel, mais ou menos enganadora, conforme se é ou não se é Garrick.[28]

Se quisesse, poderia ainda multiplicar os exemplos, proporcionados tanto pelo palco como pela “comédia do mundo”. Todas as historietas do Paradoxo pretendem provar que, quer compondo, quer desempenhando, é preciso ordenar a expressão espontânea da sensibilidade, subir das entranhas à cabeça, do periférico ao central. Somente para aquele que domina as próprias entranhas o desdobramento é possível, e, como se sabe, sem esse desdobramento não se tem acesso ao modelo ideal, sem o qual, por sua vez, amesquinha-se a arte.

5

As concepções de ator e de gênio sustentadas no Paradoxo desencadearam uma enorme controvérsia entre os estudiosos de Diderot, que acabaram assumindo duas atitudes opostas.

Alguns pretenderam que tais concepções eram incompatíveis com tudo aquilo que o filósofo escrevera ao longo de sua obra, e, por isso, denunciou-se o Paradoxo como um “paradoxo” na estética de Diderot. É o caso de Daniel Mornet, segundo quem, aliás, Diderot era uma espécie de homo duplex, dilacerado entre as inclinações de pensador e artista, entre as convicções de materialista determinista e moralista consumado. Por isso, a unidade de sua obra deveria ser buscada em outra parte, mais precisamente em seu “temperamento”, “que sabe assimilar, diversificar e animar de uma vida intensa ideias que eram comuns ou, ao menos, que não eram revelações”.[29]

Essa complacência foi logo contestada pelo livro, tão justamente célebre, de Yvon Belaval, que se rebelou decididamente contra a denúncia de contradição e procurou a unidade no próprio plano da filosofia e da estética de Diderot. Conforme Belaval, entre os escritos dos anos 50 e o Paradoxo o que muda é o próprio objeto da reflexão de Diderot ou, se quisermos, seu ponto de vista acerca de um objeto muito complexo. Os primeiros textos considerariam a atividade artística da perspectiva da criação, enquanto o Paradoxo a estimaria no momento da execução (e, não por acaso, partiria de uma reflexão sobre o desempenho do comediante). Assim, “se o ponto de vista mudou desde os primeiros manifestos, o Paradoxo não os contradiz, entretanto, nem sobre a criação, nem sobre a execução”.[30]

Embora Belaval contestasse com toda justiça as tentativas de desqualificar a filosofia de Diderot em nome de seu suposto temperamento de escritor, é certo que, conforme Paul Vernière lembrou mais recentemente, os “esforços dialéticos” de seu livro só fazem atenuar aquela “impressão de escândalo intelectual”[31] e — acrescentaria eu — acabam por conferir uma coerência doutrinal excessiva ao Paradoxo e aos demais escritos de Diderot. A meu ver, o Paradoxo e os livros anteriores certamente sustentam teses opostas, mas tal oposição, ao invés de mostrar as supostas hesitações de Diderot, aponta na verdade para a unidade dos problemas postos ao seu pensamento. Conforme se verá, o Paradoxo sobre o comediante não é um livro alheio a esses problemas, mas o rigoroso desdobramento dialético de algumas antíteses com as quais Diderot se debatia anteriormente.

De fato, nos escritos da década de 50 e principalmente nas Conversas sobre o filho natural, o gênio dominado pelo furor poeticus e o ator sensível são figuras estratégicas para combater o amaneiramento do teatro clássico francês. Como se sabe, esse teatro tende a sujeitar tanto o dramaturgo como o comediante a regras estritas, em prejuízo da imitação direta da natureza. Conforme bem observa um comentador:

No teatro clássico, onde dominava o discurso, o ator devia se submeter às exigências de um ritmo estrito que o enlaça e o determina, devia se elevar ao nível de um estilo doutamente construído, dos grandes gestos e movimentos representativos, devia transcender os limites de sua personalidade humana para adaptar-se às proporções ideais de uma realidade mítica e legendária, ao mundo das grandes peripécias da história. […] O ator de teatro que Diderot anuncia procura a proximidade, preenche um espaço bem delimitado de coisas concretas e descreve aqueles que aí vivem em suas relações cotidianas. Ele fala aos sentidos, torna visível a ação, dirige-se menos à orelha interior que ao ouvido. O teatro torna-se espetáculo, a cena torna-se quadro animado, o caráter de uma peça é agora determinado pela entonação. E é o ator sensível, quer dizer, o ator que tem por qualidade predominante a sensibilidade, que encontra esse tom, que faz da peça uma demonstração perceptível aos sentidos. A expressividade e a ação direta dominam, e é o gesto do ator, mais verdadeiro, mais imediato, mais natural do que o discurso, que as comunica. Esse gesto já não será evidentemente o gesto estilizado e simbólico do teatro clássico, mas o movimento natural.[32]

Em poucas palavras, a um teatro da tirada, no qual as paixões se exprimem mediadas pela razão e pelo discurso, o Filho natural opõe uma dramaturgia dos acentos e dos gestos, onde estes expressam diretamente uma energia primitiva, à qual a cena deve dar voz; contra uma estética que pensa a arte como imitação das obras do passado, Diderot insiste numa concepção que tem a arte como um confronto sempre renovado entre o artista e a realidade. Numa palavra, enfim: a uma estética e uma arte maneiristas, Diderot opõe um ideal naturalista de arte (ou, no mínimo, deixa de tomar qualquer precaução para não parecer naturalista).

O Paradoxo sobre o comediante está cheio de farpas contra Corneille e Racine, aos quais contrapõe mais de uma vez o gênio de Shakespeare, “colosso informe, grosseiramente esculpido”. Portanto, em nome da “imitação da natureza”, Diderot continua a criticar com toda virulência o empolamento e a exacerbação do teatro clássico, mas, desde o princípio, adverte: “Nada se passa em cena exatamente como na natureza”.[33] A armação teórica do livro é antecipada pela sua abertura, que distingue três tipos de ator: “o comediante imitador”, “o comediante por natureza” e “o grande comediante”. O primeiro é apenas arte, ou melhor, é proprietário de uma técnica e, por isso, “pode chegar ao ponto de representar tudo passavelmente”; ele imita os grandes mestres e, assim, seu desempenho estará sempre sujeito a um protocolo que varia de nação para nação. A contrapartida desse tipo de ator é “o comediante por natureza”, que desempenha fazendo uso deste dom que é a sua sensibilidade; ele “é amiúde detestável e às vezes excelente”, ou, ainda, “é alternadamente forte e fraco, quente e frio, trivial e sublime”. O “grande comediante”, afinal, será a síntese dos anteriores, quer dizer, ao mesmo tempo natureza e arte: “Cabe à natureza”, diz Diderot, “dar as qualidades da pessoa, a figura, a voz, o discernimento, a fineza. Cabe ao estudo dos grandes modelos, ao conhecimento do coração humano, à prática do mundo, ao trabalho assíduo, à experiência e ao hábito do teatro, aperfeiçoar o dom da natureza”.[34] Natureza e arte — eis o que confere ao grande comediante “a arte de tudo imitar ou, o que dá no mesmo, uma igual aptidão para toda espécie de caracteres e papéis”.

Se a natureza sem a arte não pode fazer um grande comediante, inversamente a arte sem a natureza só formará um comediante passável: essa tese nos introduz de imediato na perspectiva clássica, ou antes neoclássica, do Paradoxo. Panofsky sustenta que o neoclassicismo reanimou e tornou programática a dupla exigência do Renascimento em relação à arte. Quer dizer: a arte deve ser a “reprodução fiel” da natureza e, ao mesmo tempo, um “triunfo” sobre ela. Quer dizer ainda: a arte não será nem maneirista nem naturalista. Como bem afirma Panofsky, para Bellori

Os naturalistas são condenáveis por não formarem em si próprios absolutamente nenhuma ideia e, obedecendo apenas ao modelo, recopiarem, sem submetê-los à crítica, todos os defeitos que apresentam os objetos da natureza; são condenáveis igualmente aqueles que, sem nada conhecer da verdade, exercem sua arte em razão de uma simples prática e, desprezando o estudo da natureza, procuram trabalhar num estilo amaneirado ou a partir de uma simples ideia da imaginação.[35]

Embora a ênfase do Paradoxo não seja precisamente a mesma, é bem esta a sua perspectiva. A arte que despreza o “estudo da natureza”, que enfatiza as regras, a prática, a maneira ou, se quiserem, “uma ideia da imaginação”, essa arte segue sendo desqualificada na figura do “comediante imitador” e, principalmente, do teatro clássico francês. Porém, o ponto de vista da crítica já não é naturalista, como anteriormente. Mais: mediante a recusa obsessiva do ator sensível, Diderot faz do naturalismo o seu alvo favorito. A arte não é imitação “servil” e direta da natureza “sensível”, mas imitação de “modelos ideais”, isto é, da natureza como “ordem”, como “idealidade”. As provas: os desempenhos de Garrick ou da Clairon, a pintura de La Tour, a escultura de Pigalle, o teatro grego ou Shakespeare. As contraprovas: a Dumésnil e a Riccoboni, os quadros de Lagrenée expostos no Salão de 1767.

Esta interpretação, como se vê, recusa-se a encarar o Paradoxo como uma espécie de excrescência no pensamento estético de Diderot e o concebe como a rigorosa solução dialética das contradições anteriores. Só nos restaria perguntar o que teria tornado possível tal solução. Qualquer que possa ser a explicação, não se pode desprezar a importância decisiva que certamente desempenhou no processo a atividade do filósofo como crítico de arte. Como se sabe, de 1759 a 1881, Diderot escreveu para a Correspondência Literária, Filosófica e Crítica sobre as exposições de pintura realizadas no Louvre de dois em dois anos. É sabido que, em razão de sua atividade como crítico de arte, passou a frequentar ateliês, a conhecer pintores e escultores, a vê-los em ação. O diretor da Enciclopédia, que já não ignorava a importância da técnica em geral, aprofundou-se desse modo no estudo das técnicas próprias a cada arte. Muito reveladores, nesse sentido, são o tom e o conteúdo do seguinte testemunho: “Vi pintar La Tour; ele é tranquilo e frio; não se atormenta, não sofre… Não faz nenhuma daquelas contorções do modelador entusiasta… Nunca se extasia; nunca sorri em seu trabalho. Permanece frio e entretanto sua imitação é quente…”.[36]

Notas

[1] A expressão é de Leonardo da Vinci. Ver Jean Lacoste, A filosofia da arte, Rio de Janeiro, Zahar, 1986, p. 7.

[2] Ver Ernst Cassirer, “Les problèmes fondamentaux de l’esthétique”, in Philosophie des Lumières, Paris, Fayard, 1970, pp. 278 ss.

[3] Ver Jacques Chouillet, L’esthétique des Lumières, Paris, puf, 1974, pp. 9 ss.

[4] Segundo Aristóteles, “mesmo sem representação e sem atores, pode a tragédia manisfestar os seus efeitos”. Ver Poética, Porto Alegre, Globo, 1966, trad. de Eudoro de Sousa, p. 76.

[5] As expressões são de Jean Starobinski, “L’accent de la vérité”, in Diderot; org. Jacques Chouillet, Paris, Comédie Française, 1984.

[6] No Paradoxo, Diderot afirma: “De resto, a questão que aprofundei foi outrora discutida entre um medíocre literato, Rémond de Saint-Albine [sic], e um grande comediante, Riccoboni. O literato defendia a causa da sensibilidade, o comediante defendia a minha. É uma anedota que ignorava e que acabo de saber”. Paradoxe sur le comédien, in Oeuvres esthétiques, ed. Paul Vernière, Paris, Garnier Frères, 1967, p. 365.

[7] Chama-se expressão a destreza pela qual a gente faz sentir ao espectador todos os movimentos de que se quer parecer penetrado. Digo que se quer parecê-lo, e não que se é penetrado verdadeiramente.” Riccoboni citado por Patrick Tort, em L’origine du Paradoxe sur le comédien, Paris, J. Vrin, 1980, p. 43.

[8] Os comentadores insistem apenas na anterioridade de Riccoboni sobre Diderot, mas, que eu saiba, esquecem de referir que, anos antes do Paradoxo, Rousseau também sustentara a mesma coisa. Na Carta a D’Alembert, em 1758, escreve: “O que é o talento do comediante? A arte de simular, de revestir-se de outro caráter que não o seu, de parecer diferente daquilo que se é, de apaixonar-se com sangue-frio, de dizer outra coisa do que aquilo que se pensa realmente, e de esquecer enfim seu próprio lugar à força de tomar o de outrem”. Lettre à D’Alembert, Paris, Garnier-Flammarion, 1967, p. 163.

[9] Décio de Almeida Prado, João Caetano e a arte do ator, São Paulo, Ática, 1984, p. 21.

[10] Paradoxe, p. 306.

[11] Yvon Belaval, L’esthétique sans paradoxe de Diderot, Paris, Gallimard, 1950, p. 168.

[12] Encyclopédie, Genebra, Chez Pellet, 1777, vol. III. Este texto — que não passa, aliás, de uma retomada de Voltaire — faz menção à morte da atriz francesa Adrienne Lecouvreur em 1730, que não teve enterro cristão e cujo corpo foi lançado numa fossa.

[13] Ver Lettre à D’Alembert, pp. 157 ss.

[14] Patrick Tort pretende que o Garrick é “um plágio bastante inabilmente disfarçado do Comediante” (op. cit., p. 17). Outros estudiosos sustentam, porém, posição diversa, assim resumida por Décio de Almeida Prado (op. cit., p. 153): “O livro de Sainte-Albine foi adaptado para o inglês, saindo em Londres sob o título The actor: a treatise on the art of playing, com numerosa exemplificação local, girando em grande parte em torno de Garrick, o ator de maior prestígio europeu em todo o século XVIII. Retraduzido em 1769 por Antônio Fábio Sticotti, que ignorava as suas raízes francesas, com o nome de Garrick, ou Les acteurs anglais, deu origem […] ao Paradoxo”.

[15] Citado por Tort, op. cit, p. 43.

[16] Diderot, Entretiens sur le fils naturel, in Oeuvres esthétiques, p. 104.

[17] Paradoxe, p. 343.

[18] A exposição que segue não passa de um resumo de parte do livro de Belaval, a mais exaustiva leitura “estrutural” do Paradoxo de Diderot.

[19] Voltaire, Dicionário filosófico, São Paulo, Abril Cultural, 1978, p. 164.

[20] Ver Génie, in Oeuvres esthétiques, pp. 9-17. Conforme Vernière, este artigo publicado no vol. VI da Enciclopédia, durante anos atribuído a Diderot, é na verdade de Saint-Lambert. Entretanto, Vernière segue incluindo o texto em sua edição dos escritos estéticos de Diderot, devido à inegável influência que exerceu sobre a concepção do artigo e ao papel que parece ter tido em sua redação.

[21] Ver Sur le génie, in Oeuvres esthétiques, pp. 19-20.

[22] Paradoxe, p. 311.

[23] Arthur Wilson, “The biographical implications of Diderot’s paradoxe”, Diderot’s Studies, nº 3, Genebra, Droz, 1961.

[24] Paul Vernière, “Diderot, du Paradoxe sur le comédien au paradoxe de l’homme”, in Lumières ou clair-obscur?, Paris, puf, 1987, p. 300.

[25] Paradoxe, p. 315.

[26] Ibidem, p. 317.

[27] Erwin Panofsky, Idea: a evolução do conceito de belo, São Paulo, Martins Fontes, 1994, pp. 12-3, 103.

[28] Paradoxe, pp. 328-9.

[29] Daniel Mornet, Diderot. L’homme et l’oeuvre, Paris, Boivin, 1941, pp. 12, 35.

[30] Yvon Belaval, op. cit., p. 275.

[31] Paul Vernière, op. cit., p. 296.

[32] Herbert Dieckmann, “Le thème de l’acteur dans la pensée de Diderot”, Revue Philosophique, Paris, puf, jul.-set. 1984, nº 3.

[33] Paradoxe, p. 304.

[34] Ibidem, p. 303.

[35] Erwim Panofsky, op. cit., pp. 103-4

[36] Diderot, Salon de 1767, in Oeuvres complètes, Paris, Hermann, 1990, t. XVI , p. 240.

    Tags

  • acrescenta
  • acrescentar
  • acreto
  • antes
  • aparência
  • aprendido
  • aprendizagem
  • Aristóteles
  • arte
  • arte de imitar
  • artista
  • artista marginal
  • ator
  • atriz
  • avareza
  • avaro
  • banaliza
  • banalização
  • belo
  • cansaço
  • capricho
  • características
  • causa
  • cena
  • ciência
  • combinação
  • combinado
  • comediante
  • comoção
  • comove
  • composição
  • conhecimento
  • conteúdo
  • conteúdo filosófico
  • criação
  • criador
  • criatura
  • crítica
  • criticar
  • decente
  • delírio
  • depois
  • depravação
  • descoberta
  • descoberta das estéticas
  • desencadeamento
  • desigual
  • desordem
  • desordem natural
  • diálogo
  • diálogos
  • discernimento
  • disciplina filosófica
  • dissimulação
  • dissimulada
  • dissimulado
  • dor
  • drama dramático
  • dramáticas
  • emoção
  • encenador
  • Enciclopédia
  • ensaia
  • ensaiar
  • ensaio
  • equilíbrio
  • esboço
  • escultor
  • escultura
  • esforço
  • espetáculo
  • estática
  • estética
  • estéticas
  • filósofo
  • fisiologia
  • fisiológica
  • François Ricobionni
  • frieza
  • furor
  • ideal
  • idealidade
  • ideia
  • ideias
  • ideias dramáticas
  • ilumina
  • imaginação
  • imitação
  • imitar
  • imoralidade
  • inflexão
  • Inglaterra
  • inglês
  • ingleses
  • inspiração
  • intuição
  • Isaac Newton
  • maneirismo
  • maneirista
  • marginalidade
  • materialidade
  • mathesis universalis
  • mediação
  • mediador
  • medida
  • melancolia
  • memória
  • metafísica
  • metafísica do belo
  • modelo
  • modelo ideal
  • natureza
  • natureza espetacular
  • Olfields
  • oposição
  • oposições
  • ordem
  • ordenação
  • ordenado
  • paixão
  • paixões
  • papel
  • paradoxo
  • paradoxo sobre o comediante
  • parecer
  • parecer sentir
  • penetração
  • pensamento
  • personagem
  • perturbação
  • poesia dramática
  • ponto de inflexão
  • preconceito
  • preparação
  • preparada
  • preparado
  • previsível
  • progressão
  • progresso
  • público
  • Rémond de Sainte-Albine
  • repete
  • repetição
  • repetir
  • representação
  • representação composta
  • representação equilibrada
  • resultado
  • Roma
  • romanos
  • Rousseau
  • sangue frio
  • século XVIII
  • sensibilidade
  • senso comum
  • sentido
  • sentidos
  • sentimento
  • sentir
  • sinais
  • sinal
  • súbito
  • sublime
  • sublimes
  • suprime
  • suprimir
  • teatro
  • temperar as paixões
  • teoria
  • trabalho
  • traços
  • traços característicos
  • tradição
  • tranquilidade
  • triunfo
  • unidade
  • universal