A condição humana [Dante]
por Newton Bignotto
Resumo
Se A divina comédia de Dante nos toca ainda hoje, para além do seu valor estritamente literário, é porque, ao narrar uma aventura que começa sob o signo do medo (“Ah que a tarefa de narrar é dura / essa selva selvagem, rude e forte / que volve o medo à mente que a figura”), ele nos fala de um lugar que todos conhecemos: a fragilidade de nossa condição. É a busca do amor que move o poema (o reencontro no Paraíso com Beatriz, a amada morta que é o “princípio de esperança” que ilumina o seu trajeto), na esteira do amor nobre dos poetas provençais e do amor trágico dos italianos Guinizzelli e Cavalcanti. É também a busca de uma virtude apoiada nos pilares tomistas da fé e da razão, mas que não se submete a uma visão doutrinária estreita. Contemplativo e envolvido nas disputas políticas do seu tempo, Dante tem a convicção de que o homem é um ser destinado à liberdade. O que lhe importa é compreender o que os homens fazem, mesmo quando erram e são condenados. No canto V do Inferno, por exemplo, ao narrar com piedade e dor o encontro com Paolo e Francesca, amantes adúlteros que pagaram com a vida por acreditarem no amor como força inexorável, ele nos libera para pensarmos livremente sobre o destino dos dois desafortunados. Do mesmo modo, a aceitação dos valores cristãos não lhe impede de ser tocado pela injustiça que é a exclusão do Paraíso de poetas pagãos, a começar por Virgílio, seu guia. A força permanente da Comédia de Dante está nessa voz pessoal capaz de uma compreensão aberta da condição humana.
Inferno, VII, 73-96
Colui lo cui saver tutto transcende,
fece li cieli e diè lor chi conduce
sí, ch’ogne parte ad ogne parte splende,
distribuendo igualmente la luce.
Similemente a li splendor mondani
ordinò general ministra e duce
che permutasse a tempo li ben vani
di gente in gente e d’uno in altro sangue,
oltre la difension d’i senni umani;
per ch’una gente impera e l’altra langue,
seguendo lo giudicio di costei,
che è occulto come in erba l’angue.
Vostro saver non ha contasto a lei:
questa provede, giudica, e persegue
suo regno come il loro li altri dèi.
Le sue permutazion non hanno triegue;
necessità la fa esser veloce;
sí spesso vien chi vicenda consegue.
Quest’ è colei ch’è tanto posta in croce
pur da color che le dovrien dar lode,
dandole biasmo a torto e mala voce;
ma ella s’è beata e ciò non ode:
con l’altre prime creature lieta
volve sua spera e beata si gode.
Dante Alighieri, La Divina Commedia, Milão, Ulrico Hoepli, 1987. A Divina comédia, São Paulo, Editora 34, 1998.
Inferno, VII, 73-96
Ele, cujo saber tudo transcende,
fez os céus e lhes deu quem os conduz:
se em toda parte cada parte esplende
é que igualmente lhes reparte a luz;
do mesmo modo pra pompa mundana
designou uma ministra e deu-lhe jus
de ir permutando a riqueza profana
de um pra outro sangue, e de gente em gente,
livre do alcance da cobiça humana.
Logo, uma gente impera, e languescente
fica a outra então conforme o arbítrio dela,
que é oculto como na relva a serpente.
É vão vosso querer controvertê-la:
em seu reino prevê, julga e procede
ela só, como, noutro, outro deus zela.
Sua contínua permutação não cede;
necessidade o giro lhe apressura,
assim sempre aparece quem sucede.
Ela é posta em odiosa conjuntura —
mesmo por quem mais deveria louvá-la —
com vã calúnia e infundada censura;
mas, beata, não ouve a vossa fala;
co’ as outras primas criaturas, leda
gira sua roda, e sua ventura embala.
Tradução de Eugenio Mauro
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Em toda viagem há vários mundos que se cruzam. Ao começar seu caminho o viajante carrega consigo um mundo preenchido com suas lembranças, seus medos, seus desejos e amores. Ao longo do caminho outro mundo se desenrola, cheio de paisagens e de cores, que interpelam e modificam a bagagem inicial, fazendo surgir um cruzamento de experiências e de sensações que multiplicam os caminhos inaugurais. Toda obra poética propõe a seu leitor um mundo que é o resultado de um olhar que encontra outro olhar que um dia se pôs a andar pelas paragens da humanidade e inscreveu seus traços no território da linguagem. Se os mundos dos grandes poetas podem se multiplicar, isso se deve ao fato de que são capazes de multiplicar aqueles dos que os leem. Talvez não possamos restituir inteiramente a bagagem que carregaram para dentro de seus caminhos, e talvez não estejamos à altura da aventura que nos oferecem em seu universo de palavras e letras, mas certamente estaremos diante de uma obra maior do espírito se, aos primeiros sons de seus versos, sentirmos a necessidade de continuar a escutá-los para além das imagens e ideias que nos acorrem nas primeiras linhas.
A Divina comédia, de Dante, ou simplesmente a Comédia, como era conhecida no tempo em que foi escrita, abre os trilhos de uma das maiores aventuras que o espírito humano concebeu. Devemos ser modestos na pretensão de descobrir os mundos que descortina, mas, como sugere Borges, “não temos o direito de nos privar de ler a Divina comédia, e de lê-la de forma ingênua”.[1] Depois de mais de sete séculos de leituras e de interpretações sabemos tanto sobre a época de Dante que podemos nos iludir quanto à possibilidade de decifrar seus versos com as ferramentas da erudição. Basta, no entanto, começar a lê-los para deixar-nos surpreender pela angústia inicial do poema, para sermos tragados pela força e pela sedução de uma viagem que começa sob o signo do medo e da tensão. O meio do caminho e a selva obscura fazem parte hoje dos caminhos principais da poesia ocidental, mas não perderam em nada sua capacidade de evocação. Mesmo sabendo que as jornadas do poeta o conduzirão até o paraíso para junto de sua musa, não é possível não sentir o peso de uma narrativa que se inicia e que não concede aos leitores a facilidade das fórmulas poéticas simples e repetidas, que cada época conhece. Como diz Dante: “Ah que a tarefa de narrar é dura/ essa selva selvagem, rude e forte,/ que volve o medo à mente que afigura” [Ahi quanto a dir qual era è cosa dura/ esta selva selvaggia e aspra e forte/ che nel pensier rinova la paura].[2]
A viagem do poeta, e não resta dúvida de que se trata de uma viagem que ele deseja empreender na companhia de seus leitores, não pretende ser uma excursão planejada, dessas que revelam o segredo de seus caminhos desde os primeiros passos. O poeta se encontra no meio da selva e não sabe como lá foi parar: “Como lá fui parar não sei;/ tão tolhido de sono me encontrava,/ que a verdadeira via abandonei” [Io non so ben ridir com’i v’intrai,/ tant’era pien di sonno a quel punto/ che la verace via abbandonai].[3]
A marca de sua poesia é a indefinição de sua vida aos trinta e cinco anos, a dificuldade da procura da virtude, pois esse parece ser o caminho do qual ele se perdeu sem nem mesmo se dar conta. Mas precisamos estar atentos aos signos que anunciam a viagem se não quisermos nos perder muito rapidamente em nossa própria selva.
A viagem de Dante
Lembremos, pois, em primeiro lugar, de analisar a bagagem que o poeta traz consigo ao se perder em sua busca por uma vida mais harmônica. Podemos é claro nos perguntar se de fato ele estava à procura de algo, quando se viu na obscuridade. Logo no início ele sugere que havia perdido a diritta via, que no curso de seus anos deveria ter-lhe conduzido para a virtude. É precisamente essa perda do caminho que torna o poema tão fascinante. Cada um de nós, e cada época, gostaria de poder subir diretamente o monte depois de uma noite tenebrosa. A verdade, no entanto, é que a consciência de nosso desvio vem acompanhada do sentimento de impotência. Dante diante das três feras, dos três vícios sobre os quais tanto se discutiu — a luxúria, a soberba e a avareza, segundo muitos —, teve de recuar: “e pouco a pouco pra trás impelido,/ eu regredia pra lá onde o Sol cala” [che, venendomi ‘incontro, a poço a poço/ mi ripigneva là dove ’l sole tace].[4]
Tivesse ele enfrentado diretamente os desafios e os derrotado sem dificuldades, nos veríamos privados de um guia pelos caminhos tortuosos de nossa própria humanidade. A Divina comédia permanece um poema atual exatamente porque não precisa ser decifrada para nos interpelar em nossas fraquezas e medos. Quantos versos provocam ainda discussões acaloradas entre os especialistas, sem que isso altere a força e o fascínio dos encontros que vão se produzindo ao longo do livro e das realidades que vão se abrindo a nossos olhos! Por isso esse é o primeiro item da bagagem de Dante que devemos reter ao iniciar a viagem: o poeta que nos fala o faz de um lugar que todos conhecemos: o da fraqueza e da fragilidade de nossa condição.
Antes, no entanto, de lembrar mais alguns traços do mundo que conduziram o poeta à “selva escura”, cabe dizer até onde acreditamos poder acompanhá-lo em sua travessia. Como dissemos no início, a direção de nosso olhar inicial trai o alcance de nosso caminho.
Buscaremos em Dante o espelho de nossa fragilidade e o reflexo de nossos medos, mas não podemos deixar de lembrar que seu caminho foi guiado pelas mãos hábeis de Virgílio e pela certeza do encontro com Beatriz. Em nosso texto vamos nos preocupar com as marcas da contingência, com os mundos obscuros que a fortuna nos abre, mas não é lícito fazer do poeta florentino o profeta do desespero. A presença de sua amada é um “princípio de esperança” que ilumina o trajeto todo do poeta, mesmo se dele pretendemos reter apenas a universalidade das ameaças que rondam os que se perderam na “selva obscura” ou a danação daqueles que fizeram de sua vida um desastre irremediável.
Ao prestar atenção ao poeta da contingência e do livre-arbítrio não estamos querendo propor uma interpretação global da Divina comédia. Apenas recortamos nas paisagens complexas de seus versos aquelas que mais nos aproximam das experiências terríveis que, na época de Dante, como no curso dos séculos, nos fazem membros de uma comunidade para a qual vencer as três feras é um desafio e quase sempre votado ao fracasso.
Beatriz e o “Doce Stil Nuovo”
Lembremos, pois, de Beatriz, antes de percorrer alguns dos desvãos do “Inferno” e do “Purgatório”. Dante fala de sua amada e a conduz ao centro de sua vida e de suas esperanças em poeta que sabe o valor das musas e que abriu uma nova clareira no mundo da poesia.
Com efeito, quando ainda na juventude escreve a Vita nuova, ele se faz herdeiro de uma poesia renovada no curso do século XIII pela influência da poesia provençal e pelo acento italiano que ela ganhara com os poemas de autores como Guido Guinizzelli e Guido Cavalcanti.
Os poetas provençais fizeram das amadas seres elevados e etéreos. No jogo complexo de suas referências e de suas alusões inventaram um mundo para poucos, um código que dava acesso, àqueles que o conheciam, a um universo único de significados. De fato, como já observou Auerbach,[5] tratava-se de uma aristocracia do espírito, que admitia muito dificilmente o acesso a seus lugares e a seus valores. O coração puro estava reservado a uma nobreza, que não desprezava o acento social de seus membros, mas que os distinguia ainda mais por suas qualidades morais e sua capacidade de aceder a domínios transcendentes, distantes das preocupações corriqueiras dos homens. Por isso sua poesia era marcada pelo otimismo e por um tom cavalheiresco, que casava bem com uma sociedade que tinha por referência a organização feudal do corpo social. A poesia provençal se confundia com a procura da pureza mística e, por isso, fazia da busca de um coração nobre uma obra de amor muito superior aos simples enlaces entre amantes. Nesse caminho os provençais nos legaram uma poesia na qual a busca da forma perfeita, e o uso das línguas vulgares, confundia-se com a afirmação de uma distância quase intransponível entre os poucos eleitos e os homens comuns.[6]
Ao migrar para a Itália essa poesia levou consigo as experiências formais e o acento místico, mas perdeu sua inflexão aristocrática e cavalheiresca. Guido Guinizzelli — considerado por Dante o pai do dolce stil nuovo e seu mestre,[7] por ser “daqueles que rimas de amor usaram, graça e ternura provendo”[8] —, apesar de ligado a experiências antigas da poesia siciliana, soube renovar os objetos poéticos tomando-os não apenas das fontes que inspiravam o misticismo cristão, mas também do amor, que vai ganhando aos poucos contornos subjetivos.[9] Com sua pena as evocações ainda são por demais intelectuais, como provam os versos iniciais de uma de suas canções, que Dante não cessou de admirar:[10]
Num coração nobre o amor sempre se abriga como faz o pássaro na floresta sob os ramos,
E a natureza não criou o amor
antes do coração, nem o coração antes dele. Desde que o sol apareceu,
no mesmo instante resplandeceu a luz, que não foi a primeira.
O amor escolheu a nobreza como habitação Assim como o calor habita a luz do fogo. [Al cor gentil rempaira sempre amore/ Come l’ausello in selva a la verdura;/ Né fe’ amor anti che gentil core,/ Né gentil core anti ch’amor, natura:/ Ch’adesso con’ fu ’l sole,/ Si tosto lo splendore fu lucente,/ Né fu davanti ’l sole;/ E prende amore in gentilezza loco/ Cosi propriamente/ Come calore in clarità di foco.][11]
Mas esse poeta tão intelectual em sua cadeia de concordâncias e equivalências soube construir um edifício métrico e melódico de grande beleza e leveza. O amor equiparado às forças naturais não perde nada de sua proximidade com os seres humanos ao ser guindado às esferas mais elevadas das camadas de seres. Amar continua a ser um atributo das almas nobres, mas o conteúdo desse amor admite cada vez mais a presença de uma sensibilidade que não quer mais se esconder numa série indecifrável de referências e de ritmos.[12] Com Guido Cavalcanti a figura da musa se desprega de um conjunto de referências sucessivas a elementos da natureza, para produzir uma ideia trágica do amor. Servindo-se de conceitos aristotélicos e por vezes averroístas para sustentar sua visão de mundo, o poeta faz do amor o produto da alma sensível. O intelecto dura para sempre, mas a parte sensitiva da alma, em contato direto com as coisas terrenas, é a responsável pelos acidentes que compõem a vida amorosa. Encontramos uma prova inequívoca da concepção de Cavalcanti da natureza do amor logo no início de uma de suas canções: “Dama me pergunta por que quero falar/ de um acidente que é frequentemente cruel/ por vezes mesmo mortal, que chamamos amor”[Donna me prega, per ch’eo voglio dire/ D’un accidente – che sovente – è fero/ Ed è sì altero – ch’è chiamato amore][13]
A presença da amada deixa o poeta perdido em seus sentidos. O terrível do amor é que não podemos escapar de seus efeitos quando ele se apresenta. O impacto da visão da amada é tamanho que todo o controle imposto pela razão para a operação do intelecto se esvai diante de um fenômeno que a natureza comanda segundo suas próprias leis. A essência do amor é o desejo, que não conhece limites: “A essência aparece quando o querer é tamanho/ que excede a medida natural/ pois o repouso não conhece jamais” [L’essere è quando — lo voler è tanto/ Ch’oltra misura — di natura — torna/ Poi non s’adorna — di riposo mai].[14]
Dante trilhará o mesmo caminho do amigo. Em sua obra Vita nuova, quando pela primeira vez toma contato com Beatriz, a visão de sua doce figura é o primeiro sinal da presença do amor. O amor se mostra, portanto, pelos sentidos, mas também pela evocação. O poeta vê Beatriz passando pelas ruas de Florença, e essa experiência, ou esse “acontecimento”, como prefere Auerbach, é um fato decisivo para a construção da tópica amorosa do poeta. Ao primeiro impacto dos sentidos, que lembra a concepção amorosa do amigo Cavalcanti, segue-se o momento em que a dama saúda o amado e deixa em seu corpo uma marca definitiva:
Tão nobre e casta parece a dama quando saúda
que toda língua trêmula se torna muda e os olhos não ousam olhá-la.
[Tanto gentile e tanto onesta pare/ La donna mia quand’ella altrui saluta,/ Ch’ogne língua deven tremando muta,/ E li occhi no l’ardiscon di guardare.][15]
A ideia da saudação e seu efeito imediato sobre a alma sensível eram compartilhados por muitos amigos de Dante, mas ela receberá outro significado quando diante da morte da amada o poeta se vir diante da necessidade da evocação. A tragédia do amor cantada por Cavalcanti ganha um contorno diferente da simples mecânica de um sentimento fora de controle. Beatriz é no começo da Vita nuova uma jovem capaz de despertar o mais alto sentimento por sua simples presença, e isso ocorreu com Dante como com quase todos os poetas florentinos do dolce stil nuovo. A morte da amada, no entanto, abriria um caminho diferente para seus sentimentos. A lembrança continuada de sua figura muda de forma decisiva a maneira como lhe aparece o mundo.
A evocação amorosa se torna aos poucos algo muito poderoso. Dante o sente quando no começo do capítulo XXIV vê Beatriz se aproximar na companhia da amada de um seu amigo: “estando eu assentado pensativo em um lugar, de repente senti começar em meu coração um tremor, como se estivesse em presença da dama”.[16] A morte de Beatriz irá transportar o poeta para outras esferas. Nos primeiros tempos sua dor foi tamanha que ele era obrigado a se esconder dos olhares que o surpreendiam mergulhado em lembranças, que tocavam seu corpo, como outrora ele sentia a presença da amada.[17] Aos poucos esse amor, que Dante assumira como algo acidental, significando com isso que só existe se tocar diretamente os sentidos — “pois o amor não possui um ser em-si como uma substância, mas é um acidente em uma substância”[18] —, esse amor vai revelando outros mundos, fazendo do anjo desenhado pelo poeta em seus dias de esquecimento[19] um habitante real do paraíso. Ao fim da Vita nuova o poeta prepara o terreno que acolherá Beatriz na Divina comédia. A linda jovem de seus poemas ganhará contornos metafísicos. Ser de carne e osso, capaz de produzir a mágica do amor com um simples olhar e de transtornar o poeta com sua breve saudação, transforma-se no objeto da dor de toda uma cidade. Aos peregrinos que indiferentes atravessam Florença a caminho de Roma ele adverte: “Ela perdeu sua beatriz;/ E as palavras que dela podemos dizer/ têm a virtude de fazer chorar cada um”[Ell’ ha perduta la sua beatrice;/ e le parole ch’om di lei pò dire/ Hanno vertù di far piangere altrui].[20]
A musa ganha o direito de viver junto dos anjos no paraíso e o amor do poeta se vê transfigurado por uma imagem, que deixa o terreno dos sentidos para ocupar aquele do intelecto e das virtudes perfeitas. O amor de Dante por ela está intacto no início da Divina comédia, mas o lugar de sua dama ao lado do criador retira-lhe o frescor da bela jovem da juventude do poeta, para conferir-lhe a gravidade dos sentimentos eternos. A Beatriz capaz de conseguir favores nos céus para seu amado já não saúda a todos e desafia os acidentes que veem nascer o amor dos homens. Por isso mesmo se transformou num “princípio de esperança”, para aquele que não ousava sequer olhar nos olhos apiedados de outras mulheres no ano da morte de sua amada.[21]
Unidade e diferença na filosofia de Dante
Na bagagem de Dante a filosofia ocupa um lugar muito especial.[22] Tocado pela leitura de Boécio, ele chegará a pensar em deixar a poesia como forma principal de expressão para se dedicar mais intensamente aos problemas filosóficos. Seu guia nessa empreitada, que transparece com força no Convívio, será Aristóteles e os filósofos tomistas. Com esses últimos ele fará o mergulho em um mundo povoado pela razão e por sua força ordenadora. Os princípios aristotélicos irão constituir suas ideias sobre a organização do mundo material assim como sobre a ordem moral. O leitor da Divina comédia encontra ao longo do caminho dos dois poetas sucessivas evidências de que a filosofia tomista fornece a base para a compreensão das principais estruturas que sustentam o mundo de Dante.
Do ponto de vista da física, Ptolomeu é o mestre do poeta. No “Paraíso” os círculos concêntricos que povoavam a cosmologia medieval são fundidos com o mundo moral de seus personagens para dar uma ideia de harmonia muito próxima daquela dos discípulos de Tomás de Aquino. De fato, o que prevalece no pano de fundo filosófico da obra é a ideia de uma ordenação do mundo que estende seus laços por todas as esferas da existência. O enorme esforço de conciliação do pensamento de Aristóteles com as verdades da Bíblia encontra em Dante uma poderosa caixa de ressonância. Mas não são apenas as concepções tomistas que estão presentes na Divina comédia. Se a relação entre fé e razão lhe parecia inabalável, a longa tradição medieval de elogio da contemplação ganha força no “Paraíso”, quando Beatriz conduz o poeta pela via ascendente, que pode levar ao desejo último de todos os que desejam a graça: a “visão de Deus”. Nesse sentido os elementos fundamentais da filosofia de Agostinho estão presentes como sinal da pertença de Dante ao universo dos valores cristãos medievais.
Mas seria um equívoco pretender que o poema tenha servido apenas para propagar ideias e valores comumente aceitos. A adesão de Dante à filosofia cristã medieval foi tão verdadeira quanto intensa e, por isso mesmo, ele não deixou de tomar posições claras, ainda que isso pudesse estar em desacordo com uma certa ortodoxia da fé. O caso mais conhecido é o da presença de Siger de Brabante no paraíso, ao lado de Tomás de Aquino, que elogia um pensador que não admirava. Apontando à sua esquerda ele afirma: Este, depois, ao qual a volta aguardo do teu olhar, guarda o espírito austero que o advento de sua morte julgou tardo; é a luz eterna de Siger. [Questi onde a me ritorna il tuo riguardo,/ è ‘l lume d’uno spirto che ’n pensieri/ gravi a morir li parve venir tardo:/ essa è la luce etterna di Sigieri,/ che, leggendo severo que, á rua da Palha ensinando, gravame a si causou silogizando o vero.][23]
Siger foi o maior representante do averroísmo no século XIII e acabou sendo vítima da acusação de heresia por suas doutrinas sobre a “dupla verdade”. Pouco importa que a ideia de que ele defendia uma “dupla verdade” tenha lhe sido atribuída por seus inimigos e represente uma leitura empobrecida de seu pensamento. O fato é que Siger defendia uma separação entre teologia e filosofia e acreditava que era perfeitamente possível chegar a conclusões opostas nos dois domínios.[24] Ora, Tomás de Aquino não só não podia concordar com isso como desaprovava essa ideia como contrária a todo o esforço que dedicara para conciliar sua fé com a filosofia de Aristóteles. Siger, ao contrário, tomou a sério a tarefa de pensar o mundo com as ferramentas da razão e apenas dela, o que o conduzia a posições muitas vezes diversas daquelas sustentadas pela Igreja e pelos tomistas.[25]
A disputa sobre o significado da presença de um averroísta como representante da filosofia no paraíso, ao lado de figuras eminentes da fé cristã, transformou-se num desafio para um grande número de estudiosos de Dante, que estão longe de chegar a uma conclusão única. De nosso lado não tentaremos resolver esse enigma, que continua a desafiar os eruditos. Para nós basta lembrar que esse fato é suficiente para demonstrar que qualquer tentativa de reduzir a poesia do grande poeta florentino a um conjunto de representações de uma visão tomista do mundo está condenada ao fracasso. Não há dúvida de que a estrutura de pensamento de nosso autor tem na filosofia escolástica um de seus sustentáculos, mas é ainda mais verdadeiro que ela existe como uma grande criação do espírito cujas fronteiras estão longe da simples cópia e da figuração de ideias abstratas. Dante pensa o mundo na Divina comédia, mas o faz com as armas da imaginação poética, que o leva para territórios muito diferentes daqueles descortinados pela estrita observância das regras da argumentação.
Não sabemos as razões que levaram Dante a colocar no paraíso personagens que, quando vivos, eram antagonistas.[26] O certo, no entanto, é que em outros momentos de sua obra ele demonstrou claramente que queria se demarcar de seu guia filosófico. O terceiro item de sua bagagem nos oferece a oportunidade para mostrar esse aspecto de seu pensamento. A política, ou melhor, a defesa da dignidade da política é o elemento complementar que o acompanha em sua viagem pelos reinos da Divina comédia. Esse gosto pelo território da ação teve para o poeta um significado muito maior do que o de uma especulação sobre uma das dimensões de nossa humanidade. Integrando-se ativamente à vida pública de Florença a partir de 1295, nosso poeta se envolveu nas disputas entre as facções que atuavam na cidade, ocupando cargos na administração e tomando partido no perigoso jogo de alianças, que naquela época marcavam a política na Itália. O resultado de sua posição contrária ao alinhamento total de Florença ao papado foi seu exílio em 1302, que o condenou a viver fora de sua pátria pelo resto da vida.[27]
Ao refletir sobre as estruturas da política na Monarquia, Dante lançou mão de um procedimento que lembrava as reflexões de Siger e o distanciavam de Tomás de Aquino. Apesar de o Império ser uma força decadente em sua época, Dante defendeu a ideia de que lhe cabia o domínio nas coisas terrenas e não à Igreja, que reivindicava abertamente o poder sobre todos os homens, em todas as situações, em função de seu lugar na condução da vida espiritual. Baseada na distinção, elaborada por Agostinho, entre a “cidade terrestre” e a “cidade de Deus”, uma boa parte da cristandade acostumou-se a pensar a política como uma atividade derivada, cuja função principal era permitir o pleno desenvolvimento daqueles que seriam agraciados e receberiam o dom de penetrar nos reinos mais elevados da contemplação das verdades eternas.[28]
Dante nunca negou o valor da contemplação. O “Paraíso” é uma demonstração clara de que ele acreditava firmemente na possibilidade da iluminação pessoal e no caráter libertador da graça. O que ele procurou mostrar, no entanto, é que na vida em comum dos homens também é possível falar de “beatitude”, mesmo se ela está longe de ter o mesmo significado atribuído aos que podem contemplar a realidade das esferas superiores. Como mostrou Kantorowicz, ao separar Humanitas de Christianitas o poeta não apenas separou claramente o domínio da ação na terra daquele da contemplação, mas mostrou que há valor em bem agir na cidade.[29] Há, pois, um duplo sistema de poder que comanda a vida em comum dos homens, o que implica a necessidade de uma dupla referência para se pensar o poder: a Igreja e o Império. Pouco importa se na época de Dante essas forças não possuíam a capacidade de organizar a vida das comunidades italianas e do restante dos reinos e principados da Europa. O fundamental é que o poeta soube compreender que a vida dos homens não cabe nos quadros estreitos de uma visão de mundo unitária, na qual a política é uma atividade secundária.[30] Bem agir na cidade é também parte de nossa humanidade, mesmo se isso representa o risco de acabarmos nos círculos do inferno.
O papel da liberdade
Ao iniciar sua caminhada, o poeta leva consigo a convicção de que o homem é um ser destinado à liberdade. Na Monarquia ele chega a afirmar: “É na maior liberdade possível que o gênero humano se encontra melhor. Isso aparece claramente se o princípio da liberdade se descobre aos nossos olhos”.[31] O tema da liberdade e do livre-arbítrio é recorrente na obra do poeta e constitui um dos pilares de sua maneira de olhar para a humanidade. Longe de creditar a um destino funesto a responsabilidade pela queda dos que estão no inferno, ou pelas penas dos que esperam no purgatório, Dante procura compreender a trajetória de cada um à luz do que podemos escolher e das circunstâncias que nos levaram a fazer o que fizemos. Contra a visão de um homem impotente em um mundo que lhe é hostil e incompreensível, ele prefere buscar a compreensão de um mundo que só é plenamente humano pelas mãos dos que aqui vivem, mesmo quando erram e são condenados.
Um dos momentos mais belos de sua procura pelo sentido do livre-arbítrio encontra-se no meio de sua ascensão pela montanha do purgatório. Dante atravessava uma densa cortina de fumaça na qual estavam envoltos os “iracundos”, quando foi abordado pela alma de um lombardo chamado Marcos. Ao saber que Dante ainda estava vivo, ele recorda que uma boa parte dos homens gosta de atribuir a forças que lhe são exteriores a causa de todos os males.[32] Sabedor, no entanto, dessa tendência, ele não hesita em colocar a culpa nos homens: “Logo, se o mundo agora se desvia,/ busque-se a causa em vós, que em vós se aninha./ Pra tal, agora te serei o guia” [Però, se ’lmmondo presente disvia,/ in voi è la cagione, in voi si cheggia;/ e io te ne sarò or Vera spia].[33]
A novidade do poeta não está na afirmação da natureza do livrearbítrio. Nesse terreno ele segue quase literalmente Tomás de Aquino. A força de sua interrogação está na exploração dos meandros de nossa liberdade e sua íntima conexão com os atos mais banais do cotidiano. Por isso Dante não é mais otimista do que os autores medievais que consulta quanto à verdadeira natureza dos homens decaídos. Mas se de fato podemos nos voltar para o mal, cabe lembrar que Deus permite aos homens encontrar um caminho na terra para bem agir por meio do estabelecimento das leis:
De pouco bem logo sente o sabor; e aí se engana, e à procura corre,
se freio ou guia não dobra o seu amor, pela lei necessária, que a socorre;
e é necessário um rei que possa ver, ao menos, da veraz cidade, a torre. [Di picciol bene in pria sente sapore;/ quivi s’inganna, e dietro ad esso corre,/ se guida o fren non torce suo amore./ Onde convenne legge per fren porre;/ convenne rege aver, che discernesse/ de la vera cittade almen la torre.][34]
A corrupção de seu tempo não é apresentada como um reflexo imediato do pecado e da busca por todos de bens terrenos. É verdade que o livre-arbítrio permitiu aos homens escolher um caminho e se afastar do paraíso, mas a capacidade de escolher permite que ações corretivas sejam levadas a cabo de tal forma que possamos almejar viver na terra uma vida mais harmoniosa e em paz. Os elementos medievais que povoam os versos de Dante não obscurecem o brilho de um olhar muito pessoal sobre a marcha das coisas humanas. Assim ele não apresenta a decadência de Florença e da Itália como um caso particular da história da queda e da esperança de redenção. A insistência de Dante, ao contrário, é quanto ao fato de que a pretensão da Igreja de ocupar o poder temporal, longe de expor uma tendência universal, destruiu uma solução, que Roma havia legado ao mundo ao partir em dois o campo do poder. Mais uma vez a responsabilidade não é de forças universais abstratas, mas de papas que não souberam frear sua ambição e avareza.[35] Além do mais, a ausência de virtude não seria sentida se não fôssemos capazes de vivê-la em nossas cidades. Na Itália de seu tempo: “Três velhos, só, lá guardam a esquecida/ antiga norma, lamentando o tardo/ apelo à sua almejada melhor vida” [Ben v’èn tre vechi ancora in cui rampogna/ l’antiga età la nova, e par lor tardo/ che Dio a miglior vita li ripogna].[36]
Com isso fica claro que a virtude não é impossível no mundo dos homens, ainda que se faça rara nos tempos funestos que correm pela Itália. Ao contrário de muitos pensadores medievais, Dante acredita que é possível falar de virtude no terreno das relações humanas, mesmo que isso não seja a tônica da vivência do mundo da política.
O amor e a condição humana
No canto XVII do “Purgatório”, Virgílio expõe a teoria segundo a qual o amor é a essência da condição humana: “semente de toda virtude e de todo ato que clame castigo” [sementa in voi d’ogne virtute e d’ogne operazion che merta pene].[37] Na ótica do mestre do poeta, o amor nos conduz pelas veredas de nossa vida, mas nem sempre se realiza de maneira adequada. Ao contrário, nos círculos infernais se encontram muitos que amaram tanto alguma coisa, ou alguém, que perderam a referência do bem. Mas se o amor é um componente essencial de nossa natureza, como se dá que não sejamos capazes de distinguir suas formas? Dante olha para o amor como olhamos para o desejo. Se não podemos negar-lhe a força, também não devemos nos fiar nas representações que dele fazemos. Ao desejar algo esse sentimento pode ser tão poderoso que esquecemos de limitá-lo com as barreiras impostas pela moral e com a busca da realização do bem.
O amor é o elemento central de uma condição humana dirigida para a procura do bem, mas marcada pela possibilidade do erro. Por isso Dante não se satisfaz com a explicação inicial de Virgílio. Somos capazes de desejar, mas, para isso, é preciso que sejamos capazes de optar por aquilo que é bom e de recusar o que é ruim. Essa condição é garantida pelo livre-arbítrio. Virgílio pede que ele se recorde disso quando se encontrar com Beatriz. Ora, esse conselho se revelará precioso exatamente porque a musa lembrará ao poeta que, ao se esquecer de seu rosto, ele havia mergulhado num mundo de tergiversações e de enganos.
Donde ela: Os meus anseios recordando que te davam pra o Bem perseverance bem só se vale do divino mando, que fossos, que correntes, qual provança encontrastes que, de seguir viagem, tivesses de esquecer tua esperança?
E que satisfações ou que vantagem viste, de outrem, bem na testa escrito,
que assumir se fizessem tua miragem?[Ond’ ella a me: Per entro i mie’ disiri,/ che ti menavano ad amar lo bene/ di là dal qual non è a che s’aspiri,/ quai fossi attraversati o quai catene/ trovasti, per che del passare innanzi/ dovessiti cosí splogliar la spene?/ E quali agevolezzze o quail avanzi?/ ne la fronte de li altri si mostraro,/ per che dovessi lor passeggiare anzi?][38]
Em sua vontade de contemplar e venerar a amada, o poeta se vê tocado por profundo arrependimento por seus atos e se dispõe a purgá-los antes de ter a visão das belezas que se encerram nos céus. Tivesse ele tido acesso direto ao reino onde habita Beatriz, e sua poesia se veria privada da força de um olhar capaz de se derramar pelas esferas celestes assim como pelas misérias humanas. Da mesma forma que Virgílio pede a ele que se lembre do papel do livre-arbítrio no momento em que estiver diante da amada, também nós devemos nos lembrar da importância da liberdade na constituição de nossa humanidade, quando partilharmos com o poeta seu olhar das veredas de nossa condição.
O homem de Dante, o mesmo que aspira segundo ele a atingir sua forma mais elevada no ideal do optimus homo, conhece sua condição ao realizar em total liberdade o percurso de seu amor e de seus desejos pelo mundo. Por isso a Divina comédia não é uma obra de moral, ou de condenação do pecado como mal absoluto. A poesia de Dante, ao contrário, é um longo passeio pelas possibilidades de uma matéria complexa, que se constrói ao exercitar sua liberdade o tempo todo de sua existência. Não há homem em Dante sem a liberdade e, por isso, cada história humana deve ser olhada como parte de nossa própria humanidade. Se ao longo de seu percurso pelos mundos infernais e pelo purgatório ele demonstra muitas vezes asco e revolta pelo resultado de algumas vidas, nunca o faz como alguém que não poderia cair no mesmo erro. Ao contrário, sua condição de vivente o faz temer algo que já se realizou em outras vidas e que ele vê exposto em toda a sua crueldade. Os retratos dos condenados e dos que estão esperando expiar suas culpas lembram que os erros são parte essencial da natureza comandada pelo amor e pela liberdade.
Amor e perdição
Com os elementos que anunciamos antes, acreditamos que podemos ainda hoje refazer o percurso de Dante como alguém que mergulha em uma viagem de nossa própria condição. As crenças religiosas, o imaginário medieval que alimenta a fantasia do poeta, não devem apagar a proximidade de nossas vidas com aquelas que, ao longo de tantas jornadas, nos aparecem em sua grande maioria perdidas para sempre. Dante pode caminhar na certeza de encontrar Beatriz, e com isso suportou tão bem os medos e as ameaças de um percurso de iniciação. O fascínio da viagem que ele nos oferece é que rapidamente nos sentimos parte de seu mundo.
A Divina comédia é desses livros que nos acompanham a vida toda e que nunca são lidos da mesma forma. A cada mergulho em suas profundezas realizamos novos encontros e nos emocionamos com novas pessoas. Auerbach, aliás, já lembrou que o poema é território de uma série de encontros.[39] Nele transcorre a história da Itália e a história do poeta no mesmo leito de vidas e amores, que constitui a matéria de nossa condição. A viagem que empreendemos com Dante é assim o fruto de nosso olhar, da bagagem que estrutura a narrativa e de sua eterna capacidade de nos revelar a nós mesmos. Como toda viagem é pessoal, prossigamos em nosso caminho, ou melhor, retornemos a alguns passos iniciais do poeta.
Muitos já disseram que o “Inferno” é a parte mais bem acabada da obra de Dante. Na verdade não há razão alguma para esfacelar um poema que não exige de seu leitor senão que acompanhe os versos com a atenção dos que não desejam se ver perdidos no meio de uma selva escura. Se manifestamos preferência por alguma de suas partes, isso tem a ver muito mais com nossa procura do que com o acabamento formal da poesia de Dante. Nossa atenção se guia, na verdade, muito mais pela convicção de que é no “Inferno” e no “Purgatório” que os meandros de nossa liberdade e de nossa fragilidade se mostram do que por uma visão global da obra. Em sua infinita riqueza somos nós a recortá-la e a escolher nos deter em seus círculos e precipícios.
Quando se aproxima da porta do inferno, Dante é surpreendido pela dureza da inscrição que a domina “Deixai toda esperança, ó vós que entrais” [Lasciate ogne speranza, voi ch’intrate].[40] Os condenados que ocupam os diversos círculos do inferno se encontram nessa situação por ações já cometidas e que não podem mais ser reparadas. Para alguém que se dirige ao paraíso, em busca de um encontro que lhe dá toda esperança, a condição daqueles que sofreram a punição divina provoca um arrepio, pois possui a marca do inevitável e, poderíamos dizer, o terror dos tempos infinitos. Uma vez lançado nos desvãos da montanha invertida do inferno nada mais resta a fazer senão expiar as culpas e pagar as dívidas que contraiu em vida. Com esse pensamento poderíamos imaginar que, ao contrário do que sugerimos antes, a renúncia à liberdade seria um comportamento adequado para aqueles que, incapazes de atingir a virtude, desejam fugir dos vícios extremos que condenam ao reino da desesperança.
Um leitor contemporâneo, acostumado às referências frequentes dos autores medievais à beleza da contemplação, e atento ao fato de que Dante se encaminha com seu mestre para o território privilegiado da beatitude, poderia supor que a inação é uma espécie de meio-termo apático que, se não nos conduz ao paraíso, pelo menos nos salva do inferno. Em nossas sociedades dominadas pelo elogio da apatia, e tão distante do mundo estruturado das virtudes medievais, essa posição pode sugerir um confortável refúgio do qual podemos lançar pequenos olhares desdenhosos para os que pagam alto a tolice de mergulhar nos negócios humanos.
Nada mais distante de Dante. Em nenhum momento isso fica mais claro do que no átrio do inferno. Aí se encontram os que não se arriscaram, os que preferiram se esconder para fazer da liberdade apenas uma palavra vazia e uma tentação inútil. Ao evitar a ação fizeram-se menos do que humanos. Acreditando escapar da própria condição, para refugiar-se no conforto de um mundo povoado por pequenos feitos e inúteis silêncios, acabaram sendo lançados num ponto vazio entre a porta e o primeiro círculo do inferno. Sua condição é tão baixa que Virgílio aconselha seu protegido a esquecê-los: “Lembrança deles o mundo rechaça;/ misericórdia, e justiça, os ignora./ Deles não cuides mais, mas olha e passa” [Fama di loro il mondo esser non lassa;/ misericórdia e giustizia li sdegna:/ non ragioniam di lor, ma guarda e passa].[41]
O que é notável nesse momento da viagem de nosso poeta é que ele não demonstra nenhuma simpatia por esses condenados. Como já mostrou Auerbach,[42] é raro que aos vícios que levaram as almas a serem condenadas aos tormentos eternos não se junte alguma virtude, o que confere tom humano aos muitos personagens e leva o poeta a se condoer da sorte de alguns. Os nove círculos do inferno se organizam de forma coerente a partir da origem dos diversos pecados. Do primeiro ao quinto se encontram os que pecaram por incontinenza; daí em diante os que o fizeram por malizia. A inação não cabe em nenhum dos lugares onde as penas são pagas.
Dante nada tem a aprender com os que renunciaram à liberdade de agir e de viver, pois com isso renunciaram a fazer-se protagonistas da própria vida.
Outro sentimento é manifesto pelo poeta, quando depara no inferno com aqueles cujo desejo de viver e a ousadia de levar às últimas consequências as escolhas que fizeram acabaram por condenar-lhes à vida eterna. Nesse caso não se trata de desculpá-los de alguma forma, ou de julgar injusta a condenação. O fundamental é o fato de que Dante não se sente alheio aos dramas humanos, tanto quando se identifica com os penitentes como quando demonstra clara aversão pelo que fizeram.
Um dos encontros mais célebres se dá no quinto canto do “Inferno”. Acostumado, com os amigos poetas, a fazer o elogio do amor e sabedor das muitas formas que podem revesti-lo, Dante não se sente alheio a nenhuma de suas manifestações. No segundo círculo, o dos luxuriosos, misturam-se personagens históricos e literários a quem: “sombras a quem amor vida desfez”. Ao ver tantas figuras ilustres prisioneiras eternas de suas paixões, o poeta será tomado pela piedade (“piedade me deixou quase esvaído”), que lhe faltara quando contemplara os inativos. Seus sentimentos serão ainda mais intensos quando encontra Paolo e Francesca, dois amantes adúlteros, que pagaram com a vida o fato de terem acreditado que o amor é uma força inexorável, quando se apresenta a nós em suas várias roupagens.
O poeta enfrenta aqui uma das mais duras provas em sua viagem. Nesse momento não lhe é permitida a indiferença. Francesca se dirige a ele servindo-se do verso de Guinizzelli, que ele tanto admirava: “Amor, que alma gentil pronto apreende” [Amor, ch’al cor gentil ratto s’apprende].[43] Como um poeta, que fizera do amor uma força essencial da poesia e de sua vida, pode deixar de reconhecê-lo, mesmo nos lábios de uma mulher condenada? Abandonar Francesca à própria sorte, sem lhe dirigir a palavra, sem procurar explorar seu coração e os motivos que a levaram a agir como agiu, seria perder o sentido essencial de um sentimento que domina os outros, que guia o poeta em sua caminhada até um amor que também um dia povoou seus dias, a ponto de fazê-lo desesperar de sua vida. Francesca lembra ao poeta os riscos que ele corre diante de uma força que, mesmo levando à morte, não pode ser evitada:
Amor, que a amado algum amar perdoa, tomou-me, pelo seu querer, tão forte,
que como vês ainda me agrilhoa Amor nos conduziu a uma só morte; Caína terá quem deliu nosso alento.”
Co’ estas palavras resumiu sua sorte.[“Amor, ch’a nullo amato amar perdona,/ mi prese del costui piacer sí forte,/ che, come vedi, ancor non m’abbandona./ Amor condusse noi ad una morte./ Caina attende chi a vita spense.”/ Queste parole da lor ci fuor porte.][44]
Dante nuançará mais tarde essa ideia da inexorabilidade do amor,[45] mas o fará talvez por já ter deixado há muito os círculos infernais. Diante de Francesca e de Paolo, que permanece em silêncio, ele se vê golpeado por sua história e é levado a inquiri-los sobre como chegaram a se amar, porque para ele o amor é sempre um acidente. Sua necessidade nasce do fato de que, uma vez diante do olhar da amada, nada podemos fazer para evitá-lo. Mas não foi um projeto sórdido que uniu os amantes. O primeiro beijo ocorreu quando liam a história de Lancelote. Assim como um mero aceno da amada pode desencadear um torvelinho de emoções, o amor se manifesta em uma situação corriqueira da vida dos amantes e os une na eternidade do sofrimento e no prazer funesto de uma ligação que nem mesmo os círculos infernais são capazes de dissolver.
Dante, diante das lágrimas que dominam Francesca e Paolo, quando ela narra sua história, é tomado pela piedade e pela dor e nos diz: “e caí como corpo morto cai”.[46] Como já observou Borges, esse é um dos mais sonoros versos da Comédia: “E caddi como corpo morto cade”. Em outros momentos o poeta será tomado de pavor, de espanto e de amor, e perderá os sentidos. Já na entrada do paraíso ele não suportará a visão da amada e desfalecerá.[47] Mas ainda que nesse momento sua emoção seja extrema, ele já se encontra muito longe do lugar onde pela primeira vez conheceu Beatriz. Ela já não é mais a menina que infundia amor pelas ruas de Florença. Seu choque com Francesca vem do fato de que em seu profundo sofrimento ela continua se apegando ao amor fortuito e humano que a uniu a Paolo num dia como qualquer um dos que vivemos.
No inferno as circunstâncias que determinam os rumos de nossa vida são preservadas em toda a sua inexorabilidade, uma vez que não podem mais ser resgatadas. Os dois amantes não são culpados pela intervenção do acaso ou da fortuna, mas porque decidiram se amar. Sabendo que erravam, decidiram agir em liberdade, pois não havia como evitar a força maior de um amor sem limites e sem comedimentos. Como pode um poeta deixar de se emocionar por um gesto tão trágico e tão desesperadamente humano? Em poucos lugares de sua longa viagem sua dor é tão profunda e tão próxima da consciência suprema dos riscos que envolvem a condição humana. Diante de crimes horríveis é possível imaginar que o bom conhecimento dos princípios éticos é capaz de servir de freio e de guia. Podemos, como o poeta, sentir-nos distantes das ações dos tiranos. Em face de um amor avassalador, ainda que adúltero, é possível dizer a mesma coisa? Ao perder os sentidos, Dante não toma posição em favor dos amantes contra os valores cristãos que sustentava. Ele nos libera para pensarmos nós mesmos a condição dos dois desafortunados seres. A liberdade se exerce em um mundo complexo, no qual a necessidade é sempre secundada pela fortuna.
A fortuna e o princípio de esperança
No canto VII do “Inferno”, Dante indagará Virgílio sobre a natureza dessa força. Os homens, com seu amor pelas coisas materiais, gostam de culpar a fortuna por sua situação difícil e imaginam poder desejar sempre um acúmulo de bens, que não seria ameaçado por nada exterior à própria vontade. Mas as coisas não são bem assim. A fortuna não revela seus desígnios a ninguém e dispõe da vida dos homens como bem lhe apraz: “É vão vosso querer controvertê-la:/ em seu reino prevê, julga e procede/ ela só, como, noutro, outro deus zela” [Vostro saver non há contasto a lei:/ questa provede, giudica, e persegue/ suo regno come il loro li altri dèi].[48]
O curioso, no entanto, é que Dante evoque uma deusa romana e fale dos deuses, para mostrar a força da providência divina. O mistério de nossa condição está suspenso em um mundo cujas relações nos escapam, mas não aos desígnios divinos. Por isso pouco importa se a fortuna de Dante não possui a mesma independência de que gozava aos olhos dos antigos romanos. Se aos olhos de Deus ela é necessidade, aos nossos permanece obscura e imprevisível. Conhecemos seus efeitos, somos afetados por eles, mas não os controlamos.
Um aspecto fundamental do poema é o fato de que, narrado na primeira pessoa, nele não se confunde jamais o juízo divino e aquele do poeta. Dante não se insurge contra Deus e segue acreditando na correção das penas impostas aos condenados. Mas a aceitação da ordem do mundo e da força da fortuna, como executora da vontade divina, não quebra seus sentimentos, quando vai encontrando as pessoas que conheceu, ou os grandes nomes da Antiguidade, em algum dos círculos do inferno. Por vezes sua piedade é tamanha que Virgílio deve recordar-lhe que não cabe chorar pela sorte daqueles que merecidamente purgam seus pecados. Esse foi o caso dos adivinhos no canto vigésimo do “Inferno”. Habitando o oitavo círculo, eles têm a cabeça torcida para trás, o que lhes faz sofrer horrivelmente e de forma vergonhosa. Dante não consegue evitar as lágrimas. Seu mundo ainda é o dos vivos, sua percepção não é a de Deus e ele não nos fala do ponto de vista das duras leis da necessidade eterna, mas sim de um lugar que reconhecemos próximo de nossa humanidade. Essa distância, ou o reconhecimento da fragilidade do viajante, mesmo protegido pelo manto divino, oferece-nos um acolhimento e uma familiaridade que poucas vezes encontramos nos grandes clássicos. No meio de seu mundo majestoso, Dante é capaz de nos fazer íntimos de alguém que penetra os mistérios da morte e conserva a marca de sua história pessoal.
Muito se falou dos encontros de Dante durante sua viagem. Alguns insistiram no fato de que a vida política do poeta acabou se misturando aos seus versos e o levou a procurar na literatura uma vingança ou punição, que não podia alcançar na terra. É verdade que a Divina comédia traz a marca da vida de seu autor. Ele nunca quis, aliás, ocupar um lugar neutro e equidistante de tudo enquanto narra sua peregrinação. Mas Dante seria um poeta menor se sua obra fosse apenas o reflexo de sua condição privada. A força da Divina comédia está justamente em misturar a voz pessoal do poeta a uma compreensão aberta da condição humana e de suas muitas possibilidades. Tudo isso sustentado por uma visão filosófica do mundo de grande coerência. A verdade, no entanto, é que nenhum dos elementos citados sustenta sozinho a estrutura do poema. Vários encontros ficaram célebres. Paolo e Francesca no Canto V, Ulisses no Canto XXVI, Bruneto Latini no Canto XV, conde Ugolino no canto XXXII do “Inferno”, ou ainda o de Manfredo no Canto III do Purgatório. Cada leitor acaba fazendo seu percurso pelo complexo mundo de Dante; a cada visita à Divina comédia encontramos um personagem que não havia chamado nossa atenção. Os encontros que nos cativam e a humanidade e torpeza dos muitos personagens, que desfilam pelas páginas do poema, dissolvem qualquer ideia de um mundo que teria sido construído à imagem e semelhança da história pessoal do poeta. Seus amigos e inimigos presos na inexorabilidade da eternidade não perdem a complexidade de traços que compõe uma vida vivida intensamente entre os homens.
Talvez Dante tenha sentido um secreto prazer em encontrar em sua viagem alguns dos que foram responsáveis por seu exílio e pela desgraça de Florença. Mas nada supera sua tristeza em se dar conta de que muitos de seus amigos se encontram no inferno. Esse é o caso de Bruneto Latini. Tendo sido amigo e conselheiro de Dante em matéria literária, Bruneto havia sido condenado por sodomia, o que o poeta parecia desconhecer.[49] O mais interessante no encontro entre os dois é o fato de que a condenação eterna não abala a amizade. Ao contrário, Dante faz questão de demonstrar respeito e de se inquirir sobre a sorte de alguém de quem se sente próximo e que prevê seu sucesso apesar das injustiças cometidas pelo povo de Florença. No inferno as diferenças não se apagam como no paraíso e as disputas continuam a reger a visão de mundo dos que ali se encontram, mesmo se não mais poderão participar da vida política ou influenciá-la de alguma forma. Mais uma vez transparece o desejo de Dante de dizer para o amigo que os laços de afeto que os uniam continuam a valer até porque não é a vontade do poeta que condena o amigo, mas sua história. Nesse sentido seus versos não podiam ser mais claros: “‘Fosse minha vontade ainda cumprida’,/ respondi, ‘não teria chegado a hora de/ expulso serdes vós da humana vida’” [“Se fosse tutto pieno il mio dimando”,/ rispuos’io, “voi non sareste ancora/ de l’umana natura posto in bando”].[50]
Não sendo possível ajudar o pensador a sair de tão horrível situação, Dante preserva a memória de seus laços e o inclui em seu próprio mundo. Diante da previsão de que conhecerá o sucesso e do julgamento de Deus, que alijou para sempre Bruneto Latini do reino dos bem-aventurados, o poeta se conforma: “Não me é essa profecia inopinada:/ faça a Fortuna sua roda rodar,/ como lhe agrade, e o vilão sua enxada” [Non è nuova a li orecchi miei tal arra:/ però giri Fortuna la sua rota/ come le piace, e ‘l villan la sua marra].[51]
Mas o fato de aceitar a força do julgamento divino e a impossibilidade de compreender os desígnios da fortuna não o levam a abandonar seus propósitos nem a mudar seu julgamento sobre as coisas dos homens. No meio de uma viagem que o apavora, Dante permanece fiel à própria história, à sua filiação e às suas amizades, mesmo reconhecendo que apenas os agraciados escaparão da roda da deusa. Para os outros, incluindo aqueles que são seus amigos, resta viver a vida e construir em liberdade o próprio destino. Por isso causa-lhe dor encontrar Bruneto Latini no inferno: um só erro o condenou para sempre. O destino de uma alma generosa e grande pode acabar sendo decidido num momento de fraqueza ou por um detalhe de seus amores e desejos. Contra isso nada pode o homem fazer; essa é a marca de sua condição.
Depois de passar pelo nono círculo do inferno, de ter encontrado os traidores de todas as espécies no reino gelado de Lúcifer, Dante e Virgílio reencontram no sopé da montanha do purgatório os ares humanos e benfazejos:
A amena cor de oriental safira que se formava no sereno leito
do céu, límpido até a sua extrema tira, aos olhos meus reconduziu proveito, logo que achei-me fora da aura morta
que me havia contristado a vista e o peito. [Dolce color d’orïental zaffiro,/ che s’accoglieva nel sereno aspetto/ del mezzo, puro infino al primo giro,/ a li occhi miei ricomciò diletto,/ tosto ch’io usci’ fuor de l’aura morta/ che m’avea contristati li occhi e ’l petto.][52]
Para compreender o alívio de Dante é preciso recordar a inscrição da porta do inferno: “DEIXAI TODA ESPERANÇA, Ó vós QUE ENTRAIS”.[53] O amor é a força universal que domina toda a viagem de Dante, mas é a esperança que conduz dos círculos infernais ao reino celeste. Paolo e Francesca continuam a se amar no inferno, as amizades de Dante seguem valendo e ele pode trazer algum consolo para os desgraçados aceitando falar-lhes ou manifestando seu apreço e mesmo admiração. Mas falta-lhe o poder de quebrar o rígido mundo dos mortos. Ter esperança não é algo que se possa pedir, é uma possibilidade que se inscreve nas almas assim que elas abandonam o reino dos vivos. Mesmo para o poeta, que ainda carrega seu corpo, e que tremeu diante da entrada dos reinos infernais, foi a esperança que o sustentou antes de contemplar as belas cores dos céus do sul.
Essa separação entre os que podem esperar e os que são obrigados a desistir de qualquer expectativa de futuro marca um dos momentos mais melancólicos da passagem de Dante pelo purgatório. No canto XXII os dois viajantes encontram Estácio, poeta latino que teria se convertido em segredo à fé cristã e, tendo cumprido sua pena, agora se apressa a subir a montanha, para finalmente alcançar o paraíso. Pouco importa o fato de que a conversão do poeta seja mera ficção muito a gosto do imaginário medieval. A reunião dos três poetas é uma ocasião rara para compreendermos o papel da esperança na Divina comédia. A admiração que move o convívio dos três poetas não esconde o fato de que uma diferença radical os separa. Para Dante e Estácio a viagem pela montanha do purgatório é uma ocasião para desejar intensamente o encontro com uma esfera transcendente na qual as verdades se mostram. Para Virgílio resta, com os célebres habitantes do nobile castello, pagar a pena por não ter tido a ocasião de adorar ao Cristo segundo os preceitos que regiam o mundo da morte.
Dante não podia deixar de se sentir tocado por aquilo que parece tão flagrante injustiça para com aqueles que tanto mérito tiveram durante a vida. Por isso pergunta a seu mestre se não havia como fugir de tão triste situação, junto com poetas como Homero, Ovídio e Lucano. Mais uma vez seu juízo parece ir contra os desígnios de Deus; mesmo se conformando com os ditames da fé, ele não abre mão de sua humanidade.
Não são o amor, as amizades, as virtudes que produzem o destino final dos homens. Ao longo da viagem dos poetas vimos que mesmo em situações extremas essas qualidades ainda podem ser encontradas. O que separa definitivamente os homens é a possibilidade de que eles tenham esperança ou não. A verdadeira pena do inferno, a que unifica todos os pecadores, é a impossibilidade em que se encontram de esperar. Isso é o que faz tremer o grande poeta, isso é o que até hoje nos desumaniza inteiramente, quando as circunstâncias históricas nos condenam a experimentar na pele a dureza das palavras que presidem o inferno. Não é sem uma ponta de mágoa que Virgílio afirma: “Somos por essa causa, essa somente perdidos,/ mas nossa pena é só esta:/ sem esperança ansiar eternamente” [Per tai difetti, non per altro rio,/ semo perduti, e sol di tanto offesi/ che sanza speme vivemo in disio].[54]
Mesmo sem sofrer os tormentos físicos, os habitantes do Limbo pertencem ao mundo infernal. Podemos hoje identificar os traços de intolerância que presidia a relação do cristianismo com outras religiões e os resultados muitas vezes nefastos a que isso conduziu. Mas estaríamos iniciando outra viagem se decidíssemos agora começar a investigar tudo o que o poeta devia aos preconceitos de seu próprio tempo ao criar seu poema. Mais importante para nós é prestar atenção ao mundo que Dante criou, e nele a esperança tem um lugar essencial. Ela marca uma das fronteiras decisivas de nossa condição. Sem ela toda uma esfera de nossa humanidade fica perdida, mesmo se ainda encontramos prazeres e alegrias no que nos resta a viver no meio de outros homens.
Virgílio abandona Dante pouco antes de seu encontro com Beatriz no alto da montanha do purgatório, para retornar ao lugar que lhe havia sido designado no inferno.[55] Talvez essa seja uma boa maneira de deixarmos o casal de amorosos. Não que o amor tenha perdido para nós sua capacidade de elevação, ou que tenhamos abandonado o desejo de alcançar as esferas superiores da contemplação. Mas o fascínio de nos olhar pelas imagens da poesia, e o terror de encontrar em nós mesmos os riscos de nossa condição, por vezes é tamanho que talvez devamos mais uma vez dar crédito a Borges e nos conformarmos com a ideia de que, depois de um primeiro encontro, retornamos sempre à Divina comédia, qual Narciso em seu eterno enamoramento de seu rosto.[56] Como na época de Dante a visão do inferno e do purgatório continua a dominar nossas viagens. Nelas acabamos nos guiando pela busca da fragilidade de nossa condição e pelo desejo de encontrar traços de humanidade lá onde quase nada restou para atrair nossa admiração. Se o inferno é o lugar mais adequado para a busca de um retrato fiel de nossa condição, a possibilidade de olharmos para o futuro com a certeza de que a liberdade é a marca de nossa existência no mundo serve como esperança de que algum dia também seremos merecedores do aceno da bela jovem, que encantava aos que simplesmente encontravam seu olhar pelas ruas de Florença. Até lá resta a lembrança de uma viagem que nos inicia em nossa fraqueza e em nossos riscos, pois, afinal, já disse Guimarães Rosa: viver é perigoso.
NOTAS
[1] Jorge Luís Borges, Conférences, Paris, Gallimard, 1985, p. 34.
[2] Dante Alighieri, La Divina commedia, Milão, Ulrico Hoepli, 1987, Canto I, 46, p. 3. As traduções são de Eugenio Mauro na edição brasileira: A Divina comédia, São Paulo, Editora 34, 1998. Para facilitar para o leitor citaremos sempre a partir da edição crítica da Società Dantesca Italiana, conservando a numeração dos cantos e linhas como referência, para facilitar a localização em outras edições.
[3] “Inferno”, Canto I, 10-12.
[4] “Inferno”, Canto I, 59-60.
[5] Erich Auerbach, Écrits sur Dante, Paris, Macula, 1998, p. 53.
[6] Ibidem, p. 56.
[7] “Purgatório”, Canto XXVI, 91-105.
[8] Ibidem, Canto XXVI, 98-99.
[9] Erich Auerbach, Écrits sur Dante, cit., p. 56.
[10] Dante cita a canção “Al cor gentil rempaira sempre amore” em vários lugares de sua obra, sempre como uma referência da poesia do dolce stil nuovo. Ver: A Divina comédia, “Inferno”, Canto V, 100.
[11] Guido Guinizzelli, “Al cor gentil rempaira sempre amore…” em Anthologie bilingue de la poésie italienne, Paris, Gallimard, 1994.
[12] Um bom exemplo da recepção da poesia de Guinizzelli encontramos nos versos de Bonagiunta da Lucca dedicados a ele: Voi, ch’avete mutata la mainera/ De li plagenti ditti de l’amore/ De la forma dell’esser là dov’era,/ Per avansare ogn’altro trovatore (em Anthologie bilingue de la poésie italienne, cit., p. 74).
[13] Guido Cavalcanti, “Donna me prega…” em Anthologie bilingue de la poésie italienne, cit., p. 76.
[14] Ibidem, p. 78.
[15] Dante Alighieri, Vita nuova, em Oeuvres complètes, Paris, Gallimard, 1965,
XXVI, p. 57.
[16] Ibidem, cap. XXIV, p. 51.
[17] Ibidem, cap. XXXV, p. 70.
[18] Ibidem, cap. XXV, p. 53.
[19] Ibidem, cap. XXXIV, p. 69.
[20] Ibidem, cap. XL, p. 80.
[21] Sobre a natureza da construção de Beatriz na poesia de Dante, ver Rémy de Gourmont, Dante, Béatrice et la poésia amoureuse (Paris, L’Herne, 1999).
[22] Muito já foi escrito a esse respeito. Uma boa introdução ao problema da relação de Dante com a filosofia continua sendo o livro de E. Gilson (Dante et la philosophie, Paris, J. Vrin, 1986), mesmo se muitos de seus pontos de vista tenham sido questionados pela crítica especializada.
[23] “Paraíso”, Canto X, 133-138.
[24] E. Gilson, Dante et la philosophie, cit., p. 259.
[25] Ibidem, p. 264.
[26] No canto XII do “Paraíso” encontramos também juntos Bonaventura e Joaquim de Fiore, que, quando vivos, tinham se oposto de maneira feroz no tocante a problemas religiosos.
[27] Para um retrato da política na época de Dante, ver John Larner, Italy in the age
of Dante and Petrarch: 1216-1380 (Londres, Longan, 1994), pp. 106-52.
[28] H. Deane, The political and social ideas of Saint Augustine, Nova York,
Columbia University Press, 1963, pp. 100-12.
[29] E. Kantorowicz, The king’s two bodies, Princeton, Princeton University Press, 1957, p. 465. (Ed. bras.: Os dois corpos do rei, São Paulo, Companhia das Letras, 1998.)
[30] Desenvolvemos melhor esse tema em Newton Bignotto, “Dante e a questão republicana”, Síntese, vol. 18, no 53 (1991), pp. 191-200.
[31] Dante Alighieri, Monarquia, em Oeuvres complètes, l. I, 12, 1, p. 649.
[32] “Vós toda causa atribuis somente/ aos astros, como se tudo movido/ fosse por eles necessariamente” (A Divina Commédia, “Purgatório”, Canto XVI, 67-69).
[33] Ibidem, Canto XVI, 82-84.
[34] Ibidem, Canto XVI, 91-96.
[35] “Roma, que seu Império fez jucundo,/ tinha dois sóis, que uma e outra estrada/ mostravam, a Deus e a do mundo./ Um o outro apagou; juntou-se a espada/ ao báculo, e por certo não adianta/ a nenhuma a outra força acresentada” [Soleva Roma, che’l buon mondo feo, due soli aver, che l’una e l’altra strada facean vedere, e del mondo e di Deo. L’un l’altro ha spento; ed è giunta la spada col pasturale, e l’un con l’altro insieme per viva forza mal convien che vada] (ibidem, Canto XVI, 109).
[36] Ibidem, Canto XVI, 121-123.
[37] Ibidem, Canto XVII, 114.
[38] Ibidem, Canto XXXI, 22-30.
[39] Erich Auerbach, Écrits sur Dante, cit., p. 51
[40] “Inferno”, III, 9.
[41] Ibidem, Canto III, 49-51
[42] Erich Auerbach, Écrits sur Dante, cit., p. 129.
[43] “Inferno”, Canto V, 100.
[44] Ibidem, Canto V, 103-108.
[45] “Purgatório”, Canto XXII, 10.
[46] “Inferno”, Canto V, 142.
[47] “Tão funda dor feriu-me o coração,/ que desmaiei; qual minha conjuntura/ só ela sabe quem dera-lhe ocasião. [Tanta riconoscenza il cor mi morse, ch’io caddi vinto; e quale allora femmi, salsi colei che la cagion mi porse] (“Purgatório, Canto XXXI, 88)
[48] “Inferno”, Canto VII, 85-87.
[49] “Sóis vós aqui, indaguei, ser Bruneto?” (“Inferno”, Canto XV,30)
[50] “Inferno”, Canto XV, 79-81.
[51] Ibidem, Canto XV , 94-96.
[52] “Purgatório”, Canto I, 13-18.
[53] “Inferno”, Canto III, 9.
[54] Ibidem, Canto IV, 40-42.
[55] “Purgatório”, Canto XXX, 46-60.
[56] “Depois de tantos anos que esse livro me acompanha, eu sei que se eu abri-lo amanhã ainda encontrarei coisas que haviam me escapado. Sei que esse livro existirá para além de minhas vigílias, para além de nossas vigílias” (Jorge Luís Borges, Conférences, cit., p. 34).