A descoberta da linguagem
por Francisco Bosco
Resumo
O mundano é o jogo dos discursos do mundo. Praticar a mundaneidade é jogar as partidas dos códigos, demonstrando sua habilidade ou falta dela. Um ser murcho não é tanto alguém que as perde, mas alguém incapaz de recusar-se a jogá-las, mesmo as perdendo (de antemão). Quem é constantemente enfraquecido pelo mundano deve abandonar o tabuleiro e passar à dimensão onde não se disputam as partidas, e sim se formulam as regras do jogo. Ou seja: onde a linguagem não é dada como moral cristalizada para uso social, mas percebida e praticada como origem fundante e refundante do mundo. Entrar na escrita é entrar nessa dimensão, que Sartre sintetizou assim: “O gênio não é um dom, mas a saída que se inventa nos casos desesperados”. Daí que se entende “gênio” não no sentido romântico da palavra, mas como possibilidade subjetiva de criação, sendo que se encontra na criação a saída do mundano desesperador para a reinvenção do mundo.
Essa renúncia e a, consequente, entrada no plano da prática ativa da linguagem é uma ascese. Ou seja: uma prática pela qual o sujeito procura a ampliação de seus poderes, por meio tanto da renúncia a uma tentação que enfraquece as capacidades individuais, como do cultivo de uma qualidade difícil de conquistar que as fortalece. A ascese é a passagem do passivo ao ativo, do jogo ao metajogo, do mundano à origem do mundo. Uma vez que se abandonou o mundano, pode-se voltar a frequentá-lo, pois já é possível disputar suas partidas com a altivez de quem não reconhece a legitimidade de suas regras e opõe, a elas, suas próprias.
A ascese é portanto – e simultaneamente – renúncia e cultivo, negatividade e positividade, destruição e construção. Fato é que não se é capaz de sair do mundano sem que tenha sido aberto outro lugar, que o sujeito deverá consolidar para nele florescer, com sua linguagem ativa, refundante do mundo. E as portas que dão para ele são os livros.
Sobre um largo período de minha vida não tenho memória. Essa ausência o ilumina.
Para escrever estas palavras recolhi todas as fotos de determinados períodos de minha existência de que disponho. Sobreviveram algumas dezenas de imagens da infância. Há em quase todas elas uma alegria genuína. Ora estou sozinho, fazendo poses engraçadas, fantasiado para o Carnaval ou em frente a uma mesa de doces; ora estou em grupo, com familiares ou amigos, brincando, jogando bola, pulando na piscina. A alegria que emana do meu rosto e do meu corpo é a mesma que emana de certas melodias. Sou então um ser em adequação – até onde isso é possível – consigo e com os outros. Toda infância é feita de pequenos traumas. A vida é desmedida, exorbitante, diante de uma subjetividade em formação. Mas o sentido predominante da minha experiência infantil, pelas lembranças que tenho – e que as fotos comprovam – é o da alegria. Eu era um bom aluno, hábil em esportes de terra, com boa posição na hierarquia da violência social infantil (apesar de baixo, era até temido por colegas mais altos e mais tímidos) e desejado por algumas meninas.
Lembro as experiências de sexualidade nessa época como mais prazerosas do que dolorosas, da perspectiva do narcisismo. Nunca tendo sido um protagonista, parece que eu tinha em suficiente medida o que uma psicanalista chama de “narcisismo de base”: a confiança do ser, e no ser. Mas comigo me desavim.
São dezenas de fotos da infância, centenas de fotos do começo da vida adulta em diante – mas apenas escassas imagens do período que cobre dos 12 aos 16, 17 anos. A etimologia de adolescente percebe essa fase como aquela em que o ser queima em chama intensa. Adolescere significa transformar-se em vapor, em fumaça, e também passar de um estado a outro – crescer, desenvolver-se. O adolescente se consome, ardentemente, enquanto, paradoxalmente, cresce e se desenvolve. Olho para minhas fotos. Nela, um adolescente não arde; se apaga. Não explode, nem implode; murcha. Não se desenvolve; definha. O riso, quando há, é tímido e já nada tem daquela alegria melódica da infância. É antes um signo de riso, índice de alguma profunda cisão. Nas duas imagens em que estou no meio de amigos, apareço deslocado, dois tons abaixo dos demais. A postura, o olhar, os gestos – tudo é desbotado. Na mais aguda das imagens, aquela em que meu ser parece ter sido mais bem capturado, estou sentado, com o olhar perdido e a coluna mole, mastigando, com uma mandíbula sem vitalidade, um sanduíche. Atrás de mim, o nome justo da lanchonete: Chaplin. Visto uma camisa com um símbolo dos surfistas, que só acentua o desacerto de meu ser consigo e o mundo. Adolescente, era já um adulto, no pior sentido, também etimológico, da palavra: particípio passado de adolescere, fósforo queimado, inútil, e no meu caso sem nem ter conhecido o apogeu da chama. Não posso viver comigo, nem posso fugir de mim. Mas por que comigo me desavim?
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O “narcisismo de base” é formado nos primeiros anos da infância. Os efeitos das primeiras identificações efetuadas na mais primitiva infância serão gerais e duradouros. Mas o imaginário é uma estrutura, ainda que solidificada pelas identificações infantis, passível de transformar-se. Novos traumas podem alterar a estrutura profunda do eu. E os traumas não são necessariamente episódios pontuais violentos, podendo também ocorrer como processos traumáticos. Além de contingências concretas (mudei-me de casa para um lugar relativamente afastado, aos 12 anos) e desencaixes típicos da adolescência, sofri, nessa época, um processo que talvez se possa chamar de traumático. Não posso narrá-lo aqui, por discrição com as pessoas nele envolvidas, mas é suficiente que explicite o seu sentido. Esse processo minou meu narcisismo de base e me melancolizou. O ser que aparece nas fotos apresenta essa baixa irradiação, essa chama tíbia da melancolia. Essa espécie de reflexo da luz, não solar, mas lunar. Luz fria, pálida. Luz para dentro. Que o mundo não ilumina, nem ela ilumina o mundo. Lua, penumbra, onde as coisas não têm solidez nem consistência. Onde o ser é incerto, frágil. Trago a mim comigo tamanho inimigo de mim.
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Tudo isso – infância alegre, adolescência melancólica – é como que a pré-história do meu eu. Assim como a história das culturas, a história do meu eu começa com a escrita.
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Da perspectiva subjetiva, a prática da escrita é o marco de uma mudança decisiva do ser para consigo e o mundo: por ela inaugura-se um modo ativo de constituir-se pela linguagem, no lugar da passividade de apenas ser constituído por ela. Um ser doente é um ser atravessado por linguagens enfraquecedoras. Perdido nas tramas dos discursos do Outro. Atópico, à deriva em meio ao palavrório do mundo, incapaz de identificar-se com suas representações e, reciprocamente, de ser reconhecido por elas.
O mundo é um conjunto de discursos. Cada discurso tem a sua moral, um código de certos e errados, que determinam a adequação de um sujeito a ele. Há o discurso da beleza. O discurso das roupas. O discurso da sexualidade. O discurso da política. O discurso de cada grupo e subgrupo social. O discurso das posturas corporais. O discurso das relações familiares etc. Um ser murcho é um ser negativamente afetado por esses discursos. Um ser que, ao entrar em contato com esses discursos, se enfraquece. Um ser para quem a algaravia do mundo é criptonita.
Mas os discursos do mundo são tão irreais quanto as vozes ouvidas nas alucinações dos psicóticos. Se se consegue percebê-los como irreais, eles se calam. A questão portanto é: como calar o mundo?
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São muitos os discursos do mundo, mas sua matéria é a mesma: a linguagem. Para calar o mundo deve-se entrar na linguagem como quem entra numa linha de montagem, compreende o modo como as máquinas produzem seus produtos, e as sabota. A linguagem é a origem do mundo. Calar o mundo é reprogramá-lo desde a sua origem. Calar o mundo é renomeá-lo: a escrita.
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O mundano é o jogo dos discursos do mundo. Praticar a mundaneidade é jogar as partidas dos códigos, demonstrando sua habilidade ou falta dela, exitando ou fracassando, mas, fundamentalmente, jogando o jogo. Um ser murcho não é tanto alguém que joga mal as partidas do mundo, mas alguém incapaz de, mesmo sistematicamente derrotado, de antemão derrotado, recusar-se a jogá-las. Quem não cessa de ser enfraquecido pelo mundano deve abandonar o tabuleiro e passar à dimensão onde não se disputam as partidas, e sim se formulam as regras do jogo. Onde a linguagem não é dada como moral cristalizada para uso social, e sim é percebida e praticada como origem fundante e refundante do mundo. Entrar na escrita é entrar nessa dimensão. Sartre tem, sobre esse processo, uma frase esplêndida: “O gênio não é um dom, mas a saída que se inventa nos casos desesperados”. Entendamos gênio não no sentido romântico da palavra, mas como possibilidade subjetiva de criação, e temos a criação como saída do mundano desesperador para a reinvenção do mundo.
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Essa renúncia ao mundano passivo e entrada no plano da prática ativa da linguagem é uma ascese. Uma ascese é um processo pelo qual o sujeito procura a ampliação de seus poderes, por meio tanto da renúncia a uma tentação que enfraquece as capacidades individuais, como do cultivo de uma qualidade difícil de conquistar que as fortalece. A ascese é a passagem do passivo ao ativo, do jogo ao metajogo, do mundano à origem do mundo. Uma vez que se abandonou o mundano, pode-se voltar a frequentá-lo e ter encontros fortalecedores com ele, pois se disputam suas partidas com a altivez de quem não reconhece a legitimidade de suas regras e opõe, a elas, as suas próprias.
A ascese é portanto – e simultaneamente – renúncia e cultivo, negatividade e positividade, destruição e construção. Não se é capaz de sair do mundano sem que tenha sido aberto outro lugar, que o sujeito deverá consolidar para nele florescer. Esse outro lugar é o da linguagem ativa, linguagem refundante do mundo. E as portas que dão para ele: os livros.
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Nessa sombria e fulgurante recherche do surgimento da vocação literária que é Les mots[1].
Sartre relata o ambiente intelectual em que nasceu. Seu avô, Charles Schweitzer, era um austero professor de línguas, que tinha pelos livros uma consideração sagrada. “Eu ainda não sabia ler”, conta Sartre, “mas já era bastante esnobe para exigir os meus livros.” Notável, nessa frase, não é o pequeno traço de caráter (“bastante esnobe”), mas a cópia de uma postura. Criança ainda não alfabetizada, o pequeno Jean Paul já desejava ler. A cultura da leitura precedeu, na formação de seu eu, o próprio desenvolvimento dessa capacidade. “Fui preparado desde cedo a tratar o magistério como um sacerdócio e a literatura como uma paixão”, ele explica. Os livros foram para ele objeto de uma identificação imaginária, primitiva, logo profunda. Mas também alienada, num sentido mais dramático que o das alienações imaginárias de que todo eu é constituído. Criança, Sartre foi sonhado como leitor e escritor pelos outros. Os livros, para ele, se confundiram, desde a origem, com um desejo de agradar. Não os desejava por si próprios, mas por ter percebido neles a possibilidade de satisfazer o desejo dos outros. Essa impostura, como sabem os leitores de Les mots, marcará decisivamente sua relação com o universo das palavras, e por toda a sua vida Sartre terá como questão encontrar uma autenticidade capaz de superar essa alienação originária. Ora, a literatura, a filosofia, a arte, em suma, o verdadeiro conheci- mento – (que talvez signifique verdadeiro desejo de conhecimento)-, pois bem, o conhecimento e a alienação formam uma contradição em termos. O conhecimento é justamente o “lugar” onde a experiência se desaliena e se torna autêntica. Diferentemente do pequeno Jean-Paul, a literatura começou para mim pelo começo, isto é, pela verdade de seu encontro desalienante. Não fui uma criança desrealizada como Sartre, vivendo protegida pela família, desprezada pelas demais crianças, relegada a seu mundo de imaginação, alimentando devaneios de epopeias. Nunca me sonhei escritor. Não nasci numa cultura letrada, nem propriamente numa família que cultivasse os livros com paixão. E entretanto eles estavam lá. Meus pais tinham em casa estantes repletas de excelentes livros. Mas nunca basta que os livros estejam em algum lugar, pois eles não fazem parte do lugar em que estão. Estando no mundo, não são do mundo. Fisicamente ofertados, só são efetivamente abertos por movimentos subjetivos sempre acidentais e improváveis, sobretudo numa cultura não letrada como a nossa. Ter os livros à mão não é condição suficiente, pois não é à mão que eles se realizam.
Mais para o Genet de Sartre que para o Jean-Paul de Sartre, o caminho que me levou aos livros não foi o de uma identificação imaginária e alienada, mas o de uma atopia social e existencial. Não me faltava realidade, mas ela me enfraquecia. Melancolizado, oprimido pelos discursos familiares, não mais capaz de identificar-me ou ser identificado pelos grupos sociais disponíveis, os livros foram a saída que inventei para uma situação desesperada. Acredito que é por isso, por ter resultado de uma dificuldade concreta, que em meu caminho intelectual nunca me abandonei completamente às especulações teóricas hipertrofiadas. O conhecimento para mim significou, desde o início, sobreviver aos discursos que me oprimiam. Meu drama, na origem, era um drama essencialmente privado. Daí que, outra consequência, eu tenha levado anos até estabelecer uma ligação entre meu conhecimento e os aspectos coletivos da realidade que não diziam respeito diretamente à minha vida. Durante anos, li e escrevi com o interesse voltado exclusivamente ao aprimoramento de minha existência, a um cuidado de si. Ignorava o valor dos acontecimentos no jogo mais amplo da cultura. Um livro era um livro para mim, ou seja, eu o lia tendo como único interesse o modo como ele contribuía para o esclarecimento de minha realidade individual e imediata. Só fui me relacionar com a cultura, a história das ideias, a política, muito tempo depois, quando já tinha consolidado um eu, já estava seguro dele para poder abrir-me ao mundo exterior. Sempre me causa certo espanto quando hoje vejo adolescentes já tão seguros de si que transam com segurança com a realidade externa, manipulando códigos, jogando o jogo da cultura, sem que antes tenham tido, como eu, que construir essa segurança, que inventar um eu a partir de seus cacos.
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Para mim, essa invenção contou com a intervenção decisiva de um acontecimento.
Em meu período obscuro, já frequentava livros por desejo próprio (fora das obrigações escolares). Talvez eu intuísse que havia ali uma saída, mas o seu mundo era derrotado pela força superior do mundano, que me enfraquecia. Aos 17 anos, sofri um acidente grave, que me deixou hospitalizado por duas semanas, acamado por um mês e convalescente por mais outros. Como um deus ex-machina às avessas, esse acontecimento me retirou do mundano e possibilitou que a força construtiva dos livros se impusesse sobre ele. O real que, por um processo traumático, me melancolizara, agora, pela via torta de um acidente, me salvava. Isolado, eu lia. Lendo, transformava o isolamento em solidão. A atopia em lugar. O mundano em mundo. Ao fim desse processo, começa a história do meu eu. A história escrita. O eu ativamente reinventado. O que reconheço como fundamental do meu eu tem início aí. E o fundamento é a linguagem. A linguagem como o que calou o mundo. Minha história começa nesse silêncio.
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Num vídeo visto ao acaso na internet, um lagarto troca de pele, em meio a reentrâncias de pedras, em algum mato ermo. A metáfora é tão tentadora e habitual quanto equivocada. A linguagem não é a epiderme do ser, mas seu âmago (ou um de seus âmagos). Trocar de linguagem é trocar de ser.
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Aos 19 anos publiquei um primeiro livro, de poemas. Tendo saído do mundano, e não mais refém de sua moral, poderia agora retornar a ele. Poderia estar no mundano, agora que já não era dele. Essa marca de transcendência, como um sinal existencial de renascimento, me imunizava. Tendo realizado uma transformação subjetiva, era preciso conferir a ela um estatuto também social. Reinventava-me socialmente como poeta. O livro se chama Florestado. É ingênuo e confunde um acontecimento importante de ordem privada com um inexistente interesse público (como todos os livros ulteriormente renegados por seus autores). Seus sonetos pré-modernistas, seu vocabulário amplo e inadequado (pomposo, revelando ignorância justamente ao desejar ostentar conhecimento), seu lirismo démodé, seu entusiasmo patético, seu tom sombrio – tudo nele descreve uma subjetividade fora do tempo e do lugar. Mas, precisamente, essa impertinência pública (um livro anacrônico) era o atestado de autenticidade de um evento privado: a saída do mundano e a descoberta da linguagem. O ser melancólico e atópico é objetivado e interpretado, e por esse lance mesmo, paradoxalmente, reinventa-se como alegre e portador de um lugar. Não importaria, no futuro, que aquela linguagem fosse má, da perspectiva pública; e sim que ela fosse ativa. Um patético poema de abertura termina com o dístico “São só dezoito anos da manhã/ e já me sinto tão cansado”. O não melhor poema seguinte, intitulado “Implosão”, começa com as estrofes “Nas curvas do meu intestino/ no turvo imbróglio cefálico/ na aspiração involuntária/ no dilacerante pulsar// Algo me corrói as entranhas… / qual ácido ascórbico efervesce…”. Para se perguntar, ao final: “Serão palavras as minhas hemácias?”. Para a história do meu eu, apesar dos prejuízos sociais (no ambiente literário) causados por essa estreia, importaria sobretudo essa prova de reinvenção do ser na linguagem. Um ser que implodiu, botou abaixo sua linguagem. Que, ao contrário de Rimbaud, segundo Mallarmé, “se operou em vida”, não da poesia, mas para ela. Com o tempo, a tarefa seria reconciliar essa linguagem tão marcada pela renúncia ao mundano com a sensibilidade histórica de meu tempo. Tendo sido doente na história e encontrado a saúde fora dela, levaria anos até que pudesse conquistar a contemporaneidade. O contemporâneo exige o mundano; a solidão é extemporânea. Como todos, fui eterno na infância, mas velho na adolescência e progressivamente jovem na vida adulta. Se a história privada do meu eu começa nessa retirada do mundo e reinvenção do ser na linguagem, a história pública do autor que sou só começa quando essa linguagem se reconcilia, finalmente, com o mundo a que ela um dia teve que renunciar
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Trocar de linguagem implica toda uma crise de sociabilidade. Para mim, teve como consequência abandonar quase todas as minhas relações de amizade. Há uma ligação profunda entre amizade e linguagem. Uma hiância é aberta quando se deixa a linguagem alienada e alienante e se passa à linguagem do conhecimento. Essa passagem é aquela do consenso ao dissenso, do unívoco ao plural, do conhecido ao desconhecido. No âmbito da linguagem do consenso forjam-se amizades sólidas, impenetráveis como o próprio consenso. Já no âmbito da linguagem do dissenso as amizades são mais ricas – pois fundadas na diferença – e mais frágeis – pela mesma razão. Os amigos no dissenso unem-se pela distância mesma que os caracteriza. São os judeus da linguagem: uma comunidade errante. Aqueles que passaram ao dissenso, à dúvida, ao infinito jubiloso e angustiante do conhecimento se apartam para sempre dos que são amigos no consenso. Podem mascarar esse acontecimento, podem continuar amigos, mas a amizade será enfraquecida por essa apostasia cognitiva, subjetiva, existencial. Essa ruptura é intuída, obscuramente, pelos do consenso como uma espécie de perigosa deserção, pois como toda deserção chama a atenção para a natureza do que foi abandonado. Durante muitos anos encontrei meus ex-amigos do consenso sem que eles soubessem exatamente que tinham se tornado ex-amigos, menos ainda que soubessem por quê. Quando estavam à minha frente, eu os olhava de longe, da distância que em mim se abrira – e eles me olhavam de lado, desconfiados de que algo – mas o quê? – acontecera. A maior parte deles até hoje não sabe quem sou eu, pois só são capazes de reconhecer pela igualdade, não pela diferença. De incerto modo, morri para eles, e assombro a paz do seu consenso como um fantasma.
Desde que respeitados alguns mandamentos, o morto que sou pode ser imperfeitamente feliz no mundo dos que abandonei. Os principais são: não ficarás muito tempo com eles e não ficará” excessivamente próximo deles. Infringir esses mandamentos produz consequências desastrosas e possivelmente irreversíveis. Na duração e na intensidade, a linguagem e suas distâncias encontram ambiente propício para dominar o espaço e devolver ao fosso sua real dimensão. Pior, nesse momento a solidão é como que duplicada. Pois, sendo obrigado a falar por um tempo prolongado a linguagem do outro – já que a possibilidade de o outro passar à minha linguagem é nula, por definição -, sinto-me sufocado por ela, dadas suas limitações estreitas, e de repente não apenas assoma o velho conhecido fosso entre mim e o outro, como ainda um novo fosso, punitivo, entre mim e eu mesmo. Sufocado pela linguagem do outro e impossibilitado de falar a minha própria, perco-me do outro e de mim, e é como se regressasse assim ao estágio confuso, indistinto, perdido, que vivi antes do cisma originário (e que depois pude nomear como o Tempo da Anomia), cisma fundador, pelo qual me tornei o que sou. Não chego a regressar a esse ponto, pois em nenhum momento perco minha linguagem, que é de resto a única coisa que agora só posso perder se morrer de vez. Mas estar impossibilitado de exercer minha linguagem remete a esse tempo indistinto, pré-histórico ou pré-subjetivo, de que tenho verdadeiro horror. E, em reação, sou tomado por um ódio ao outro, outro que sinto estar me desapropriando de mim mesmo. Por delicadeza, deixei as coisas chegarem a esse ponto (não é fácil estabelecer limites de proximidade aos seres do consenso: gregários, não compreendem a necessidade da solidão), mas nesse momento todo o meu ser libera uma cerca elétrica de repulsão. Nem é preciso explicitar, o outro imediatamente se afasta.
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Enquanto trocava de linguagem afastei-me dos amigos. Afastei-me de todas as pessoas, mesmo daquelas poucas de quem me mantive fisicamente próximo. Foi um momento em que isolamento e solidão confundiram-se, mas já se tratava da ambiência de uma autenticidade. Na precária memória de minha pré-história, tenho esse momento como o de maior plenitude de toda a minha vida. Só, éramos o mundo e eu. Terá sido um período quase místico, de descoberta do mundo pela linguagem. Provavelmente exagero; mas cada um que invente como puder sua cena de origem. Nunca, nem mesmo quando criança, me senti à vontade na sociabilidade do consenso. Adolescente, minha atopia social atingiu o auge do desconforto. O primeiro ambiente social com que me identifiquei, em que fiz amizades fundadas na autenticidade do meu eu (e nas dos meus amigos), foi a Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Após ter encontrado um lugar para minha própria subjetividade, finalmente eu encontrara um lugar para a subjetividade do outro. Só aí minha crise de sociabilidade foi superada. Eu finalmente encontrara o espaço social de minha linguagem.
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Mesmo após ter-me reinventado, a inscrição melancólica continuou, claro, viva no meu eu. Minha troca de linguagem alterou meu imaginário (não poderia ser diferente, pois mudou minha autoimagem e, o que talvez venha a ser o mesmo, a imagem que o mundo me devolvia), mas essa marca permaneceu no seu núcleo. Progressivamente encoberta, com o passar dos anos, em algumas situações ela desabrochava sua flor de penumbra. Numa relação amorosa turbulenta, após mais uma cena de agressivo desespero atuada por mim, a mulher que eu amava disse me julgar “mimado”. Não me incomodou tanto o adjetivo desabonador quanto a incompreensão sobre a constituição do meu eu. Podendo por vezes parecerem iguais, o melancólico e o mimado são profundamente diferentes. Ambos reagem com exaspero e cólera diante de determinadas frustrações. Mas o melancólico, tendo a marca do abandono no centro do seu imaginário, desespera-se com as frustrações narcísicas em que sua imagem é deflacionada, atualizando o abandono primitivo. Sua reação é como a do peixe fora d’água: debate-se por desespero. Agride o causa dor da frustração para tentar fazer cessar a fonte do anulamento de sua imagem. Sua agressão e desespero são a manifestação de sua implosão imaginária naquele momento. Obviamente, um enfant gâté é, ao contrário, alguém que teve o imaginário inflacionado desde a infância. Sua marca narcísica constitutiva é o excesso, não a falta. Diante das frustra ções, seu imaginário não é abalado (tão seguro e completo de si, o outro não pode fragilizá-lo), e suas reações, perto da profundidade desesperada do melancólico, são pueris e superficiais. O enfant gâté perpetua, na vida adulta, o sentimento de centro do mundo que: lhe foi inoculado quando criança. O melancólico tem uma insegurança imaginária que se irradia para o mundo. Não só o seu ser é frágil: o ser é frágil. Destituído da certeza ontológica da infância, reage como criança e age como velho, não sendo nem um nem outro. Fora do tempo, eternizado, há um vazio no centro do seu eu. O melancólico é um inconsistente.
Que eu estabeleça a história do meu eu a partir de uma troca de linguagem, isso explica minha relação neurótica com a língua portuguesa. Meu eu é fundamentalmente minha linguagem; e essa, por sua vez, se confunde com a língua portuguesa. Por isso me é mais fácil me desterritorializar radicalmente em diversos planos – moral, sexual, imaginário, político -, desde que na língua portuguesa, do que me deslocar para línguas estrangeiras. Nelas, é o núcleo do meu eu que não se realiza plenamente, abalando meu imaginário e enfraquecendo todas as minhas potências. Não é apenas que meu conhecimento de tal ou tal língua seja precário (nas poucas que falo, é um bom conhecimento sob os critérios da comunicação e da leitura): meu eu é precário fora da língua portuguesa.
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Para escrever este texto, tenho que recorrer à memória. E no entanto quase não tenho memória. Se me pedem para contar um romance ou um filme, ignoro a narrativa e me detenho no significante ou no sentido. Se me contam uma fofoca ou uma anedota, não retenho os personagens ou a intriga; interpreto imediatamente o seu sentido e é ele que transmito. Meu modo de compreensão do mundo é conceitua!, logo vertical e metafórico, em vez de narrativo, logo horizontal e metonímico. Quase não tenho memória, mas esse vazio é intensificado quanto ao período que venho chamando, por isso mesmo, de pré-história do meu eu (e que ocupa metade de minha vida). Tendo a pensar que esse lapso é um lapso, um vazio cheio de sentido.
Duas hipóteses. Primeira: terei recalcado, por vergonha, esse período. Alguns de seus episódios e sentidos estou evocando aqui pela primeira vez.
Segunda: soterrado pelos discursos do mundo, minha subjetividade era uma massa amorfa de linguagem, confusa algaravia, uma indistinção tal que tornava difícil o trabalho da memória. A memória talvez pressuponha uma superfície mental mais lisa, sobre a qual certos acontecimentos serão destacados como baixos-relevos. Mas minha subjetividade era como um ruído branco, incontrastável, em meio ao qual os acontecimentos se embaralhavam no parco sentido e parca memória resultantes dessa coalescência mental, dessa geleia geral cognitiva e psíquica.
Será absurdo cogitar que isso me familiarizava com a experiência de certas drogas? Há dois grandes paradigmas de drogas: as drogas da realidade e as drogas do real. As drogas da realidade (o álcool, por excelência) são aquelas que suavizam a neurose cotidiana, afrouxam – como quem afrouxa o nó muito apertado de uma gravata, após o expediente – as restrições pulsionais, o olhar vigilante da moral, o chicote do super eu. As drogas da realidade servem àqueles “bem” constituídos na realidade, isto é, na neurose. Já as drogas do real não tornam mais leve a realidade, mas questionam a própria realidade, desnaturalizando-a, revelando sua construção social, sua natureza de teatro humano. Essas drogas revelam o vazio que sustenta a realidade. Ora, esse vazio é o real. Sua experiência, assim, se dá na fronteira tênue entre o sublime e a angústia, o todo e o nada. Que eu fosse mal constituído na realidade, que minha subjetividade estivesse sempre unconfortably numb, numa espécie de neblina, talvez isso tenha tornado possível que eu frequentasse essas drogas do real sem ter delas uma angústia muito maior do que aquela que já era a atmosfera habitual do meu estar no mundo. À medida que construí com maior solidez minha neurose, que meu psiquismo foi se tornando claro como um jardim francês, a experiência dessas drogas se me tornou pavorosa. Demorei a conquistar a realidade; senti-la ameaçada de inconsistência me lançava de volta a uma consciência angustiada que me custou muito superar.
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Não tenho memória, e ela não me faz falta. Não tenho interesse em minha infância e em minha adolescência senão como a negatividade de onde, silenciando-as, fundei o meu eu. Não tenho memória porque para mim o mundo recomeçou nesse silêncio. Remontando a ele foi possível ouvir, como aconteceu aqui, o palavrório desencontrado do que fui. Já não sinto embaraço nessa pequena arqueologia particular. Faço minhas as palavras de Elstir[2], pacientemente endereçadas a um jovem eu em busca de si:
Não existe homem, por mais sábio que seja, que não tenha, em certa época de sua juventude, pronunciado palavras, ou até levado uma vida, cuja recordação lhe seja desagradável e que ele desejasse ver abolidas. as não deve lamentá-la de todo, pois não pode estar seguro de se ter tornado um sábio, na medida em que isso é possível, sem passar por todas as encarnações ridículas ou odiosas que devem precedê-la. Sei que há jovens, filhos e netos de pessoas célebres, a quem os preceptores ensinaram a nobreza de espírito e a elegância moral desde o colégio. Talvez nada se tenha a dizer de suas vidas, poderiam assinar e publicar tudo o que disseram, mas são pobres espíritos, descendentes sem força dos doutrinadores, e cuja sabedoria é negativa e estéril. A gente não herda a sabedoria; é preciso descobri-la por nós mesmos depois de uma trajetória que ninguém pode fazer por nós, e que ninguém nos pode evitar, pois ela é uma forma de ver as coisas.