1988

A emancipação da cor

por Leon Kossovitch

Resumo

No seu Trattado de Pittura (1390), Cennini aponta que o fundamento da arte é o desenho e o colorir. Alguns anos mais tarde, no Della Pittura (1435) Alberti divide a pintura em circunscrição, composição e recepção de luzes (onde inclui a cor). Para Alberti, branco e preto expressam luz e sombra. Todas as outras cores variam de acordo com a luz e sombras nelas aplicadas. As cores primárias, para Alberti, são associadas aos quatro elementos: vermelho (fogo), azul (ar), verde (água) e cinza (terra). O preto e o branco engendrando tons. A recepção de luzes, por um lado, e o ângulo e a distância, por outro, qualificam a superfície como aparência. A incidência de luz e o lugar do olhar configuram, respectivamente, o construto perspectivista e o claro-escuro.

Em Leonardo da Vinci a cor também é pouco desenvolvida como conceito e desenvolve-se, assim como em Alberti, nos efeitos de luz e sombra e na perspectiva.

Na pintura do Quattrocento e parte do Cinquecento, a cor tem uma noção subordinada em relação ao desenho (que circunscreve os panos cromáticos) e ao claro-escuro. Nos escritos sobre a pintura muito se retoriza a imagem mas não se suprime a ciência; encontramos a perspectiva em Piero, as proporções em Dürer e a luz em Leonardo enfatizadas como investigação e como ensinameno.

Em Da pittura antiga de 1548, Francisco de Holanda estabelece que, embora o desenho dê a essência da pintura, os dois são homólogos: a pintura no desenho participa e, com ela, também participam a escultura e a arquitetura.

Na “Introdução às três artes: da pintura” Vasari trata a cor mas, como em Alberti, ela é subordinada o desenho. Vasari faz uma análise do claro-escuro que, além de relevo das coisas, avança no sentido de uma economia geral da imagem. Na pintura desenho, claro-escuro e cor, na ordem, hierarquizam-se.

Desde meados do século XVI, a hiperbolização do desenho na Itália central vai sendo contrabalançada por escritos, principalmente venezianos. Paolo Pino, faz uma reflexão teórica que valoriza a cor.

A conceituação veneziana e lombarda defende a cor como noção coordenada e confere-lhe autonomia, sem romper com a articulação desenho / claro-escuro / cor e sem declarar guerra ao centro acadêmico.

No fim do século XVI, Gian Paolo Lomazzo equipara, metafisicamente, a cor ao desenho e a distingue como qualidade diferencial, inaugurando um discurso colorista.

Anexando a si a pintura, a cor emancipa-se. No século XVIII outros discursos se produzem mas a cor está confirmada e chega ao Brasil trazida pela Missão Francesa.


O Della pittura está para o Trattato de pittura como a teoria e o preceito humanistas estão para a regra e ensinamento de oficina. Embora menos de cinquenta anos separem o escrito de Alberti, datado de 1435 (a tradução italiana é do ano seguinte), do de Cennini, atribuído ao decênio de 1390, diferem eles fundamentalmente entre si. Conquanto em Cennini se possa localizar alguma passagem que lembre Horácio (rediga-se, desde o século I presente em muito discurso), nenhum humanismo nele se delineia. É certo que Alberti alega visar não a humanistas ou homens de ciência; todavia algum conhecimento de retórica, poesia, ótica, geometria é exigido do pintor. Ainda que a matemática venha exposta de modo simplificado (a construção da perspectiva não está demonstrada geometricamente), a pintura, por considerar o visível, a ela não se reduz; a più grassa Minerva, detendo-se no visível, exclui o invisível da geometria.[1] Do mesmo modo, embora exorte o pintor a frequentar humanistas na invenção da istoria[2] e não explicite a tradução da retórica para a pintura, com que inova e consolida o discurso artístico, o conhecimento dela está pressuposto. Em Cennini, tais proposições são impensáveis.

Confrontem-se, nesse sentido, as definições de pintura dadas pelos dois textos. O Trattato, em que Cennini reivindica para si, via Taddeo e Agnolo, a herança de Giotto, significa:[3]

O fundamento da arte e o princípio de todos os labores de mão são o desenho e o colorir. Estas duas partes desejam o seguinte: saber triturar ou macerar, colar, empanar, engessar e raspar os gessos e os polir […].[4]

Além de se desejar descendente do pintor que domina o Trecento toscano, signo encarecedor da tradição no enunciado, a própria enunciação em Cennini significa: a sucessão de dezenas de verbos circunscreve o ofício, sem que teoria ou doutrina operem na definição de pintura.

A divisão da pintura em desenho e cor fixa-se: mesmo quando desdobrada em subdivisões ou por outras partes substituída, atinge as academias, que lhe dão desenvolvimentos específicos; no século XVII, particularmente, o desenho e a cor tornam-se emblemas de partidos embravecidos. Quando Alberti divide a pintura em circunscrição, composição e recepção de luzes,[5] as duas primeiras consideram o desenho, distinguindo a terceira a cor. Enquanto a circunscrição, prescrevendo leveza no contornar superfícies que impeça o isolamento dos elementos, opera no sentido da composição, esta se desdobra com conceitos que se estendem da geometria à retórica, as quais pensam as superfícies e a istoria. A perspectiva linear cuida do agenciamento das superfícies, sendo extensamente desenvolvida por Alberti; operante em piso trezentista de Anunciação, de Ambrogio Lorenzetti, firma-se com Masaccio e Brunelleschi, a quem Antonio Manetti atribui a invenção.[6] Teorizada por Alberti, a perspectiva de ponto de fuga é princípio compositivo, que regula tanto a locação das superfícies quanto a diminuição delas com a distância. Como a perspectiva, a retórica opera a composição: tratadas as superfícies, sucedem-se, compositivamente, membros, corpos e istoria, segundo modelo gramatical. Como, na sucessão, as partes vão se compondo, a perspectiva aplica-se apenas às superfícies, sendo as demais teorizadas retoricamente. A tradução dos conceitos e preceitos da retórica para a pintura firma-se na história da arte: invenção, disposição, elocução, ação e memória, como partes da retórica, e ornato, verossimilhança, conveniência, gênero, etc., que na mesma retórica legislam, aplicam-se aos membros que compõem o corpo, aos corpos que compõem a istoria e à mesma istoria, visualizada como cena. A persuasão — o instruir, agradar e mover — aplica-se à imagem e suas figuras, em que as atitudes e paixões são analisadas retoricamente. A invenção, tratando da istoria, elege, elegante e grave, os temas adequados, expõe as atitudes e paixões convenientes, podendo ser propostas cenas, como a Calúnia, antes pintada por Apeles e depois refigurada por Botticelli. Os registros, aqui enumerados, evidenciam, aliás, que oposições binárias, da espécie forma/conteúdo, não são cogitadas, pois a pintura é operada, a um tempo, por requisitos múltiplos, que referem, além dos preceitos citados, as próprias partes da retórica, invenção, disposição, elocução (de que se indicam aqui algumas partes) e ação (actio), incluída por Alberti na elocução, enquanto legisla, segundo Quintiliano ou Cícero, sobre as atitudes do corpo, referidas ora ao movimento, ora à decência, ora à exteriorização das paixões da alma.

A exposição da cor é menos detida que a do desenho, estando disseminada no texto. Passo que a valoriza trata da supressão do ouro da imagem, ficando a magnificência reservada aos ornamentos enquadradores: investindo a cor do poder de simular o ouro, evita a indeterminação visual dos seus efeitos;[7] enquanto louva, assim, o ilusionismo da cor, visa prática anterior (e em parte contemporânea sua) da pintura de aparato, hoje designada com o rótulo “gótico”. Esse louvor não implica economia colorista, pois sobrelevam em Alberti os conceitos conexos de desenho e claro-escuro; seria forçado insistir nisso, uma vez que a dispositio das cores é apenas aflorada: a defesa da paleta clara contra a escura — a qual somente no início do século XVI passa a ocupar os pintores, como o Rafael das Stanze — refere à distribuição das cores, o que não basta para a caracterização de uma reflexão alentada.[8]

A cor vem analisada principalmente no conceito abrangente de recepção de luzes, que, com os de distância e ângulo do olhar, definem as qualidades variáveis; as permanentes, “perpétuas”, isto é, as linhas de contorno e seus ângulos, definem a superfície como tal, excluído o olhar. São variáveis as qualidades que, não pertencendo à superfície, modificam-na;[9] assim, a recepção de luzes, por um lado, e o ângulo e a distância, por outro, qualificam a superfície como aparência. A incidência de luz e o sítio do olhar configuram, respectivamente, o construto perspectivista e o claro-escuro.[10]

Em ruptura com o aristotélico De coloribus, que deriva as sete cores da mistura do branco e do preto, fundamentais,[11] Alberti nega-lhes a elementaridade, que atribui ao vermelho (fogo), azul (ar), verde (água) e cinzento (terra)[12]. Cores verdadeiras, pois dos elementos, são, como gêneros, geradoras de espécies, cujo espectro se abre sobre todas as demais, que delas provêm por mistura; aqui, o preto e o branco, destituídos de verdade, pois mistos, acrescem-se às outras, sem as quais não se empregam, engendrando tons.[13] Por visar a pintores,[14] Alberti desloca não só a doutrina fixada no branco e preto fundamentais como também a ótica vinda de Alhazen, que em Ghiberti desempenha papel relevante.[15] O sentido derivado das duas cores em Alberti rebate-se na recusa de seu emprego puro em sombras e luzes; a isso se refere a ironia que exige parcimônia no uso de ambas.[16]

Como os conceitos de luz e sombra prevalecem sobre o de cor, dois efeitos avultam no Della pittura. Por um lado, sendo a cor carregada pela luz, é observável a reflexividade cromática: o rosto tem tons verdes em prado ensolarado.[17] Por outro, a ação de luz e sombra sobre a superfície colorida: como a cor varia com aquelas,[18] o correlato pictórico que as traduz produz-se com branco e preto,[19] mais, enquanto no plano a cor é uniforme,[20] nas demais superfícies a passagem da luz à sombra expressa-se como variação das duas cores.[21] Nessa análise, excluídos da pintura a sombra absoluta e os reflexos materiais do ouro, o claro-escuro é valorizado por produzir o mais alto efeito, rilievo.[22] Neste está o ilusionismo da pintura: o rosto salta para fora do suporte plano do painel,[23] apagando a bidimensionalidade, pois finge escultura, é contraponto de outro apagamento do suporte, este para trás: o painel transforma-se, na perspectiva, em vidro através do qual o olhar entra na cena do mundo.[24] A desmaterialização do suporte, quando ou a figura se projeta para a frente ou a cena se abre atrás, deve-se ao claro-escuro que esculpe e ao desenho que compõe perspectivamente. Nessas operações, fundamentais para a nova pintura, a cor subordina-se ao claro-escuro e ao desenho. Por isso, são “tontos” os pintores satisfeitos com a cor alheia ao claro-escuro.[25]

A articulação conceitual circunscrição / composição / recepção de luzes rebate-se, assim, na também tripla desenho / claro-escuro / cor, na qual a disposição cromática apenas aflora como correlata da divisão “recepção de luzes” dominada pelo claro-escuro. No que concerne ao desenho, a cor também está a ele subordinada, prevalecendo a sequência, comum desde o Trecento, “desenha-se, cobre-se”, lida em Cennini. A anterioridade do desenho em relação à cor refere à execução:

Prefiro um bom desenho com boa composição para ser bem colorida.[26]

Em outro passo, o desenho hiperboliza-se no que concerne ao seu primado:

Nenhuma composição e nenhuma recepção de luzes se podem louvar onde não haja boa circunscrição acrescida. E não raro se vê apenas uma boa circunscrição, isto é, um bom desenho, sendo por si mesmo agradabilissirno[27]

Todavia, o desenho apenas se concebe aceitável com o claro-escuro:

Considero medíocre o pintor que não entende bem a força que toda luz e sombra têm em qualquer superfície. Digo que os doutos e não-doutos louvam os rostos que, como esculpidos, parecem sair para fora do painel e censuro os rostos em que nenhuma arte se vê senão, talvez, a do desenho.[28]

Em nenhum passo a cor se propõe como pretendente a primado; noção subordinada, assim se vê na pintura do Quattrocento. Concebida como segunda no que concerne à execução, é pensada a partir do desenho; quando referida a si mesma, é entendida no claro-escuro, que a pensa.

Embora no De prospectiva pingendi Piero della Francesca desenvolva geometricamente a perspectiva e suas divisões, o conceito de pintura que neste escrito dos anos1470-1480 se propõe não pode ser elidido. As partes da pintura, expostas no livro I, são: desenho; comensuração; colorir. Enquanto “desenho” coincide, em linhas gerais, com a “circunscrição” de Alberti, a “comensuração”, enquanto retém a locação proporcionalizada dos elementos circunscritos, tampouco diverge da “composição”, embora esta seja mais abrangente, determinando-a Alberti com articulações complexas, de que cuidam, além da matemática, a poesia, a retórica, observações anatômicas, etc. Quanto ao “colorir”, prevalece o claro-escuro, um vez que a cor da coisa depende da luz; como em Alberti, a cor é secundarizada na economia conceitual da pintura. Conquanto a paleta clara da pintura de Piero lembre as prescrições albertianas, tem ela retido a atenção dos estudiosos pela geometria que constrói, visual e simbolicamente, tanto o espaço quanta a própria figura.[29]

Os manuscritos de Leonardo, autógrafos, ou não, disseminam-se em conceitos, descrições, máximas, narrações, preceitos, cujos enunciados são concisos. Ora repetitivos, ora complementares, ora mesmo divergentes, os conceitos leonardianos estendem-se por cerca de trinta anos, até a interrupção de 1519. Não compõem unidade expositiva ou sistema; distribuídos muitas vezes aleatoriamente no papel, vêm sendo classificados com empenho temático do século XIX para cá. O Tratado de pintura, nunca publicado por Leonardo, deriva do Codex Urbinas, escrito não autógrafo. Nele, duas definições de pintura devem ser confrontadas:

A pintura compreende duas partes principais: a primeira é a forma, isto é, a linha que define as formas dos corpos e seus pormenores, a segunda é a cor contida nos limites dessas.[30]

Na definição, as duas divisões da pintura são contorno (desenho) e cor. Tal conceito se lê em Cennini, enquanto em Alberti e Piero vem ele tripartido em texto unificado. Todavia, como as definições de Leonardo não se esgotam, pois deslizam e proliferam com as anotações, outro conceito dá partes diferentes para a pintura:

A pintura compreende duas partes principais: o contorno que envolve as formas e os objetos pintados — aquilo a que se chama desenho — e a segunda, a que se chama sombra.[31]

O desenho está fixado nos dois conceitos. Na sequência da segunda definição, ele é louvado hiperbolicamente.[32] Todavia, em outro lugar do Códice de Urbino, a sombra é privilegiada em detrimento do contorno.[33] A cor, parte da primeira, é omitida na segunda definição, significando a ausência sua subordinação ao desenho e ao claro-escuro: como em todo o Quattrocento e parte do Cinquecento, ela vem pensada a partir do desenho e com o claro-escuro.

A cor, em Leonardo, é pouco desenvolvida como conceito à parte, não se espraiando a escritura por ela; diferentemente do desenho e, ainda mais, do claro-escuro, os quais se rebatem nos temas “perspectiva” e “luz-sombra”, a cor tem a ênfase que recebe em Alberti. Ainda no Codex Urbinas, vem exposto o tema das cores fundamentais. Enquanto em Alberti o branco e o preto não são considerados elementares, o que interdita seu uso puro, em Leonardo eles se acrescem às quatro; Leonardo é “mais” pintor que Alberti, pois a inclusão de ambas no conjunto das elementares, por ele também ressaltadas como tais, segue as exigências da pintura:

Há [seis] cores simples, das quais a primeira é o branco, embora alguns filósofos não admitam o branco ou o preto entre elas, pois um é a causa das cores e o outro, a sua ausência. Mas, como o pintor não pode privar-se delas, nós as classificaremos com as outras e diremos que, nessa ordem das cores simples, o branco é o primeiro; o amarelo, o segundo; o verde, o terceiro; o azul, o quarto; o vermelho, o quinto; o preto, o sexto.[34]

As quatro intermediárias correspondem aos quatro elementos, com o amarelo tomando o lugar do cinzento de Alberti. Esta ordem tem sentido ascencional, com a causa, luz, no princípio:

Tomaremos o branco para a luz, sem a qual nenhuma cor pode ser vista, o amarelo para a terra, o verde para a água, e o azul para o ar, e o vermelho para o fogo, e o preto para as trevas que estão acima do elemento fogo, porque lá não há matéria ou espessura que os raios do sol possam penetrar e, por conseguinte, iluminar.[35]

É a paleta do pintor que confere realidade ao preto e branco, que figuram a luz e a sombra. Outro tema albertiano, a amicitia das cores vem sucintamente exposta; a concordância das cores, como em Alberti, não se explicita conceitualmente:

As cores que concordam: o verde com o vermelho ou o violáceo ou o violeta, e o amarelo com o azul.[36]

A análise das cores como tais sendo breve em Leonardo, desenvolve-se, como em Alberti, nos efeitos de luz e sombra e nos da perspectiva. Enquanto em Piero e Alberti a perspectiva fica do lado do desenho, associada à composição, em Leonardo ela se expande, sendo a geométrica, linear, uma de suas divisões. Nela se consideram as diminuições, não só de dimensões, como também as de cor e de nitidez. Das diversas definições convergentes, retenha-se a do Manuscrito Ashburnham:

De como são três as naturezas perspectivas: a primeira trata da razão do diminuir (e diz-se perspectiva diminutiva) das coisas que se afastam do olho; a segunda contém em si o modo do variarem as cores que se afastam do olho; a terceira e última trata da declaração de como as coisas devem ser menos acabadas (finite) quanto mais se afastam e seus nomes são estes:

perspectiva linear

perspectiva de cor

perspectiva de apagamento.[37]

A perspectiva está na base do ilusionismo, sendo a ela atribuído o relevo;[38] albertianamente, é um vidro translúcido em que se vê o mundo;[39] por isso, ela fura a parede, que se desmaterializa, através (no sentido também de Dürer, perspectiva = purchsehung). As variações diminutivas consideram a geometria e a ótica na perspectiva linear; na de cor e de apagamento, os efeitos esmaecedores, que os escritos analisam.

O sentido minguante da perspectiva estende-se às cores das coisas. A intensa experimentação leonardiana também aqui se verifica: observação meticulosa das modificações das cores com a distância; esta, porém, não se determina apenas de modo geométrico, pois intervêm na observação a luz e a sombra, a atmosfera, assim como efeitos diversos, fumaça, neblina, etc.[40] Embora em Alberti se exponha rapidamente e fora da perspectiva o branqueamento no horizonte[41] ou o reflexo de verde em rosto, apenas em Leonardo esses fenômenos são analisados de modo integrado. Passo leonardiano a ser retido pela abrangência da visada está no Codex Trivulziano:

O meio que se acha entre o olho e a coisa vista transmuda essa coisa na sua cor, como o ar azul faz com que as distantes montanhas pareçam azuis; o vidro vermelho faz que aquilo que o olho vê além dele pareça vermelho; a luz que produzem as estrelas à sua volta é ocupada pela treva da noite que se acha entre o olho e a iluminação da estrela.[42]

A multiplicidade de visadas deste texto compacto exemplifica a latitude das indagações de Leonardo. Considere-se, aqui, apenas o efeito de azulamento, que no campo do visível é mais considerado relativamente à modificação cromática. Assim como a linear, que torna mensurável o visível, também a perspectiva cromática (na ocorrência, aérea) deseja ser quantificada. Além das observações que se estendem por escritos bastante alentados,[43] a mensuração do qualitativo — cor — deve ser admirada em Leonardo. A modificação crómática vem exposta em texto tanta vez notado do Manuscrito Ashburnhani:

Há uma outra perspectiva a que chamo aérea, porque, devido à variedade do ar, podem ser conhecidas as diversas distâncias de vários edifícios […]. Em semelhantes ares, as últimas coisas, como as montanhas, devido à grande quantidade de ar que há entre o teu olho e montanha, esta parede quase tão azul como a cor do ar quando o sol se levanta […]. O primeiro edifício, faze-o de sua cor, o mais distante, faze-o […] mais azul; o que desejas estar ainda além outro tanto, faze-o outro tanto mais azul; aquele que desejas estar cinco vezes mais distante, faze-o cinco vezes mais azul.[44]

Aqui, não só a observação opera, como dela se tira preceito para a pintura: as superfícies coloridas, vistas a distâncias variadas, têm azulamento estipulado quantitativamente. A distância é, assim, qualitativa e quantitativa a um tempo. É qualitativa, pois investida de propriedades físicas: efeitos de iluminação solar, lunar, estelar, efeitos de atmosfera combinados com aqueles, efeitos de neblina, poeira, fumaça (estes são analisados em textos que descrevem batalhas ou cataclismas).[45] O qualitativo, contudo, deseja-se estipulado, quantificado. Além das modificações cromáticas, o apagamento é longamente analisado.[46] As três perspectivas, muitas vezes expostas separadamente, convergem na pintura, embora não seja linear o efeito delas em conjunto; a ausência de estalão que as meça simultaneamente tem interesse: os efeitos são analisados observacionalmente.[47]

O que vem observado e medido estende-se à pintura, não sendo nela, todavia, que a coisa vem pensada. A pintura se inscreve, assim, em rol de reflexões que a excedem; nela participando e a ela dirigindo, a investigação leonardiana constitui-se como fecho das pesquisas quatrocentistas, evidentes em muito pintor – Piero, Uccello – escultor – o mesmo Ghiberti aqui referido – arquiteto –  o mesmo Brunelleschi do biógrafo Manetti[48] – assim como do renascentista emblemático, Alberti, ou do ítalo-germânico Dürer. Em Leonardo, a coisa colorida é dominada quanto à dimensão, cor, contorno, sendo transposto para a placa de cristal o resultado de observações e experimentos regrados. A perspectiva, neste sentido, é crivo: instrumento e teoria; ninguém mais distante da prática sem-razão que Leonardo,[49] sendo inútil nele decriptar algum rótulo, como “realismo” ou “naturalismo”. Primeiro, porque tais categorias são impensadas, subordinando a imitação eletiva a observação (eleger = achar = inventar, daí, retoricamente, “elegância”). A imitação prescreve dissimular-se o visível deformado, o hediondo, sendo, no tempo, lidíssimos Plutarco, Plínio ou Quintiliano, este recém-descoberto por Poggio. Essa maneira de corrigir o visível se lê em Alberti.[50] Em segundo lugar, porque a pintura não é unificada em Leonardo por sistema único de regras, “realismo”, etc., antes opera com sentido de reunião — no limite, ela procede a “montagens”[51] como demonstrou Pierre Francastel em relação à justaposição de elementos culturalmente diversificados no Quattrocento. Embora unificação se delineie nas vistas topográficas, por exemplo, cuja execução se vê em desenhos do mesmo Leonardo e, principalmente, em aquarelas de Dürer ou ainda em algum Altdorfer, a pintura associa elementos diferentes assim como vê de modo diferencial, entrando a observação como parte da imagem: Virgem dos rochedos. Por isso, e em terceiro lugar, a observação não é prática imediata; o visível, não sendo um dado, exerce-se com crivos, dos quais a perspectiva dirige a exploração do espaço[52] ou o claro-escuro, a da luz. Fica implícito nos argumentos dessa espécie a generalização do ritrarre, “tirar do natural”, que, já operante em Cennini,[53] não abre os olhos, todavia, para um visível pronto; consiste ele, antes, nas equivalências do observado e do que este observado designa como correlato. Tenha-se, pois, como exemplar (e irônica) a visada da citação:

Se queres adquirir uma boa maneira relativamente às montanhas, que pareçam naturais, ajunta pedras grandes que sejam escoliosas e não polidas; e retrata-as do natural, dando as luzes e o escuro conforme a razão te aconselha.[54] Essas montanhas ainda são vistas em Mantegna, na segunda metade do século XV, e são elas que se observam em Uccello, de cartolina, como também as do Angélico, que vão derretendo as conhecidas de Bizâncio “montanhas-escada”.

Assim como as perspectivas, e com elas relacionadas, a luz e a sombra constituem-se como foco da investigação leonardiana. Também aqui, a ótica pictórica passa por experimentação contínua, que os manuscritos registram. A pesquisa da cor inclui, assim, o claro-escuro, em cujo campo de conceitos e observações ela se pensa. Como em Alberti, o relevo se impõe à cor lisa:

O que é belo nem sempre é bom; digo isso dos pintores que gostam tanto da beleza das cores que apenas lhes dão, e ainda assim com tristeza, sombras muito fracas e quase insensíveis, não tendo qualquer preocupação com o seu relevo.[55]

O branco e o preto traduzem a luz e a treva; os matizes, a sombra. Nas coisas, luz e treva são recíprocas, sendo a sombra a diminuição da luz, no que se distingue da escuridão.[56] Em Leonardo, a pesquisa da luz e da sombra é extensa, classificando-se graus de cada uma delas, lume de lume como lustre, sombras simples e compostas, primitivas e derivadas, etc.[57] As diversas combinações são verificadas por experimentação e análise, subdividindo-se ambas em leque de muito uso na pintura.[58] É neste sentido que se deve entender, sem paradoxo quanto à inclusão do branco e do preto na paleta, a definição daquele como ausência de cor: como possibilidade das superfícies percebidas, ele é potência de cor, receptividade.[59]

É que o branco participa em economia relevante, que extrapola os conceitos, até certo ponto estabelecidos, de relevo: luz e sombra montam com as cores sistema de interações óticas, cujo princípio é a reflexividade. Por um lado, Leonardo analisa a relação de cor com outras quanto aos efeitos óticos;[60] por outro, montando relação objetal, especifica a interação das luzes, sombras e cores. A sombra e a luz não se acrescem apenas à cor, produzindo esplendor ou relevo, antes interagem, tingindo-se com ela. Não há, pois, sombra que se veja com branco e preto; nas coisas, dispostas frente a frente,

A sombra participa sempre na cor de seu objeto.[61]

A interação tem por implícito a reflexividade das cores dos objetos contrapostos sob relação de luz:

A cor do iluminado participa na cor do iluminante.[62]

O que, do objeto, se considera é, evidenteinente, sua não-transparência e superfície:

A superfície de todo opaco participa na cor de seu objeto;[63]

Toda a parte da superfície que circunda os corpos se transmuda em parte da cor da coisa que lhe é posta por objeto.[64]

Nessa relação, como na perspectiva, considera-se quantitativamente a intensidade da interação, referindo-se ora à distância ora à potência:

A superfície de todo corpo opaco participa na cor de seu objeto. Mas com impressão maior ou menor conforme este objeto esteja mais próximo ou remoto ou com maior ou menor potência.[65]

Essa potência é luminosa, o branco explicita-se no corpo como receptividade quantificada:

E tanto mais se tinge a superfície dos corpos opacos da cor do seu objeto quanto mais tal superfície for branca e a cor do objeto, mais luminosa ou iluminada.[66]

O desenho e o claro-escuro, focais no Quattrocento, subordinam a cor também em Leonardo. Todavia, nele se acendem outros focos: as perspectivas, em que se inclui a linear como divisão, e, mais que o claro-escuro, a diversidade de efeitos de luz e sombra, de que o rilievo também não passa de parte. São esses os focos, em muitos planos conjugados, que desenvolvem a cor. A análise da cor como tal, se não ausente, não ultrapassa os limites a ela assinalados no Quattrocento; por isso, as perspectivas, por um lado, e os diversos desdobramentos de luz e sombra, por outro, constituem-se como campos teóricos e experimentais em que Leonardo mais detidamente a considera. Pois, analisando as coisas como distantes e iluminadas, transpõe para a pintura resultados da investigação. Assim, o que se afirma como lugar-comum no século XVIII é pictórico — o tema dos reflexos de luzes e cores —, enquanto em Leonardo é visual, ligado a propriedades que se observam nas coisas.

A interação de cores e luzes, esboçada em Alberti, abala em Leonardo a subordinação: quando na sombra a cor é vista, ela a faz ser vista. A sombra se concebe (e se vê) colorida na oposição das coisas: tingida, a sombra, a luz e a cor operam em economia que, considerando as ações de perspectivas, diminui hierarquias, variando invariâncias (antes de Leonardo, o claro-escuro e o desenho rivalizam no mando da cor, relativamente à qual são constantes). Conquanto possam ser apenas entre si relacionadas na “concordância” (ou “amizade”, de Alberti), não constituem vínculo separado: explicitam, antes, um subsistema que apenas se faz ver na articulação geral.

Embora seja singular o transalpino buscar a pintura-ciência na península que tantas vezes a ele a sonegou, Dürer transpõe, enfim, para o outro lado a ótica e a matemática desenvolvidas principalmente na corte de Urbino: Piero (como depois o também san-sepulcrano Pacioli ou o veneziano Barbaio). Os escritos de Dürer, com visada pedagógica, centram-se na medida (estudos de proporções) e na perspectiva linear (desenvolvem-se nele dispositivos óticos: vidraça quadriculada, queixeira). Dürer não se detém na cor, que, em linhas gerais, submete-se ao claro-escuro na busca dos volumes. Tal subordinação fica logo clara na ordem que lhe é atribuída em projetos de textos:

Da medida dos seres humanos.

Da medida dos cavalos.

Da medida dos edifícios.

Da perspectiva.

Da luz e da sombra.

Das cores e como se igualam as da natureza.[67]

Em outro plano, Dürer cuida da relação da cor com o claro-escuro na obtenção de efeito que mantenha aquela uniforme em toda a superfície do objeto. O exemplo escolhido é o do panejamento, objeto com que se exercita a pintura (basta lembrar o seu estudo em Leonardo); o efeito de uniformidade da cor é, como o estudo das proporções e da perspectiva, busca de pintura-ciência:

Se um homem sem instrução que olha a tua pintura e nela um traje vermelho te diz: “Olha, meu caro, como o traje tem em parte um belo vermelho, mas tem em outra parte uma cor branca ou manchas pálidas”, isso é censurável e tu erraste. É preciso que pintes um objeto vermelho de tal maneira que ele seja vermelho em tudo — o mesmo vale para outras cores — sem perder a aparência do relevo, como também tratar as sombras do mesmo modo, para que não se diga que um belo vermelho está estragado por um preto”.[68]

Para que se produza a constância da cor, interdita-se o emprego do preto como tal.[69] A manutenção da tonalidade ou a harmonização tonal explicitam-se no projeto. A reflexão de Dürer não se detém na cor, pois circula pelos subordinadores dela, desenho (perspectiva nele incluída) e claro-escuro (que não se reduz, óbvio, ao preto e branco).

Em Leonardo e Dürer se pode figurar o fim da pintura investigadora do Quattrocento. Efeitos de luz e sombra como relevo, reflexo, esplendor; proporções do corpo humano e do eqüino (o qual não se reduz à anatomia, pois o animal é valorizado na escultura de glorificação, como no modelo romano do Antonino Pio tantas vezes retomado, ou na figuração batalhista, nas cenas de crucificações e muitas outras); movimentos e poses do corpo; a representação, por ele, das paixões; fisiognomonia; anatomia e fisiologia; o olho e as físicas da visão; perspectivas; superfícies e sólidos: a esta enumeração acrescente-se outra, traduzida da retórica: verossimilhança, decorum, invenção, composição, imitação, conceitos diversos relativos à elocução, o ornato, como copiosidade e variedade, etc. Teoria e observação desdobram-se em preceitos, sem que se constitua doutrina que unifique em algum pintor ou estudioso todo o analisável. No Quattrocento e início do Cinquecento, mesmo quando muito se retoriza a imagem, não se suprime a ciência, a perspectiva em Piero, as proporções em Dürer, a luz em Leonardo, enfatizada como investigação e como ensinamento. Conquanto alguns temas possam ter a preferência de muitos, não se produz êxtase que as feche com unidade temática ou dispositiva (exemplos disso são ulteriores, como o Vignola, ainda corrente no início ao século XX).

No século XVI, pelo menos até a sua metade, o tema, que Leonardo desenvolve principalmente no Codex Urbinas, move os escritores: paragone. Enquanto nele a pintura está confrontada com a poesia, música ou escultura, para se erguer sobre elas como excelente,[70] adiante a rivalidade, evidência dois polos fixos. A emulação da pintura e da escultura chega ao fim (pelo menos, como argumento) com Vasari, quando ambas são declaradas iguais e as disputas, tolas (todavia, a polêmica prossegue pelos séculos XVI e XVII, quando se torna cotejo protocolar). Contra as facções, muito emocionais, pois promocionais, o desenho se impõe. Expondo os arrazoados dos pintores e dos escultores, Vasari os arrola, no que os ironiza como pretendentes iguais, ou, ainda, como iguais em pretensão.[71]

Com o esvaziamento recíproco das oponentes, Vasari as iguala: filhas do mesmo pai, desenho; e ainda propõe a terceira irmã, arquitetura. Com a paternidade, o desenho não só sobressai, rearticulando os conceitos a que, no Quattrocento, subordina, como também se distingue por efetuar a unidade, antes impensada, das três artes (serão “belas-artes”, depois [hoje] “artes plásticas”, “artes visuais”, etc.).[72] Quanto à cor, antes subordinada ao desenho e, em sentido geral, ao claro-escuro, sua distância relativamente àquele se amplia, pois não só na pintura ele se concebe, como também concebe as três artes a um tempo.

Dos fins dos anos 1540, escritos como os de Anton Francesco Doni ou de Francisco de Holanda[73] são contemporâneos do monumental Vidas, de Vasari (1550, com revisão em 1568). Porque unifica as artes com o desenho, as historia em conjunto, modelo que a historiografia ulterior retoma. Neste sentido, I commentari, de Ghiberti, traçando, embora um século antes, a primeira história, não concebe unidas escultura e pintura, que nele desconhecem princípio unificador e discorrem paralelas. Quanto ao desenho, embora em algum passo divida ele com a invenção e o colorido a pintura[74] — essas três partes se propõem, nesta ordem, em Paolo Pino[75] —, fica-lhe estreita tal articulação. Em Florença, o desenho empresta o nome à academia nascente e, na Academia do desenho, ele se torna mais que parte da pintura, mais até que a principal, pois se instala aí como príncipe das três artes e, assim, delas é o pai. Por isso, o mesmo desenho que Vasari louva em Leonardo, fundador da idade superior das artes,[76] eleva-se, separando-se da articulação que o prende à pintura; ainda assim, superior a ela, permanece na articulação e é o seu primeiro: o duplo sentido do desenho exige a instituição de academia.

Enquanto Doni, definindo o desenho em seu Disegno, discorre por muitos lados, principalmente pelo alçamento metafísico do seu conceito na unificação de pintura e escultura[77] e pelo debate conexo da natureza com a arte, Holanda, bolseiro português na Itália, além de pintor e arquiteto, forma-se em Roma no círculo de Miguel Angelo. Seu Da pintura antiga traz o capítulo das cores depois de outros, sendo precedido pelo que cuida do branco e preto. Lacônico, o capítulo tem prudência no desinteresse de Holanda da cor.[78] O tema da concordância das cores é aflorado, com a adjetivação rápida dos efeitos de paleta. Não se estica o passo além dos limites estabelecidos por Alberti ou Leonardo:

As colores, de meu conselho, não devem de ser muito alegres nem todas finas na color mas antes tristes e graves. E no meio da tristeza e sombras acudir com uma ou duas, até tres colores finíssimas e alegres, porque este dessemulado aviso faz grande harmonia e consonância entre as tristes colores, e tem môr primor do que se póde cuidar.[79]

Com uma penada sobre as técnicas, outra pelos pigmentos e o elogio de praxe das cores, o texto de Holanda tem no seu desculpado desinteresse interesse: explicita-se nele, como em Doni, como em Vasari, o sentido comum de desdém pela cor (tal sentido pode receber o nome de empréstimo: “tosco-romano”). É o desenho que se distingue, não em detrimento dos conceitos restantes com os quais, no Quattrocento, estabelece rede de relações; transcendendo-os, refaz rede em outra parte, como articulador das demais artes. Este modo de operar lê-se em Vasari, como também em Holanda ou Doni, embora os sentidos dessa operação difiram nos três contemporâneos. Em Doni a unificação da escultura e da pintura se faz com o desenho divino, ontologicamente anterior e superior a elas:

O primeiro desenho é uma invenção de todo o universo, imaginado perfeitamente na mente [mente] da primeira causa, antes que viesse ao ato do relevo e da cor.[80]

Este desenho, que antecede o relevo e a cor, corresponde em Holanda, antes de mais, àquele que é essência da pintura:

Quem quiser saber em que consiste toda a sciencia e força d’esta arte que celebro [pintura], saiba que ella consiste toda no desenho, ou debuxo.[81]

O desenho, ora contorno, a circunscrição tênue de Alberti, ora esboço, a sucessão rápida de traços que inventam a figura ou a cena[82] é, principalmente, a essência da pintura e seu homólogo, considerada a disposição comum das respectivas partes, retoricamente constituídas. O desenho

tem toda a sustancia e ossos da pintura, antes é a mesma pintura porque n’elle está ajuntado a idea ou invenção, a proporção ou symetria, o decoro ou decencia, a graça e a venustidade, a compartição e a fermosura, das quaes é formada esta sciencia. E o que sómente alcançar o deficel nome de vero desenhador, este tal sem outras colores nem lavrado, tem o preço e honor d’esta arte alcançada.[83]

Em Holanda, “lavrado” e “colores”; em Doni, “relevo” e “cor”: em ambos, o desenho comanda o que é, a um tempo, conceito pictórico e distinção entre escultura e pintura, respectivamente. A elevação conceitual do desenho, que transcende a rede quatrocentista fixada em desenho / claro-escuro / cor, amplia em certa medida o próprio relevo que, de efeito ótico, passa a significar a escultura. O elogio do desenho rememora Alberti, em quem ele é suficiente enquanto agradável, dispensando no efeito a cor e o claro-escuro. Contudo, nos anos 1540, o desenho transcende os dois, distanciamento que também opera, considerando-se as próprias artes. Especificando: enquanto em Doni e Vasari o desenho não se confunde com a pintura, pois transcende as artes, duas naquele, três neste, em Holanda a relação muda. Desenho e pintura, embora aquele dê a essência a esta, são homólogos: a pintura no desenho participa e, com ela, também nele participam a escultura e a arquitetura. Não é fortuito, pois, que os capítulos XLII e XLIII do livro sejam intitulados: “Da pintura statuaria ou scultura” e “Da pintura architecta”. É apenas neste sentido que as três confraternizam; diferentemente de Vasari, em quem nenhuma arte se distingue, em Holanda a pintura é primogênita e designa metonimicamente a pertença das demais ao desenho.

Na “Introdução às três artes: da pintura”, depois de exposição preliminar do desenho, Vasari passa à cor. Das definições de pintura que produz, esta distingue a cor; a pintura é

Um plano coberto de campo de cores, na superfície ou de tábua ou de parede ou de tela, em torno de delineamentos [ ] que, pela virtude de um bom desenho de linhas giradas, circundam a figura.[84]

Como em Alberti, o movimento do contorno subordina a cor; o desenho, que se desenvolve adiante, leva a palma. A mesma superioridade, que o faz irmanar as três artes, na própria pintura se verifica. A citação acima é seguida de análise do claro-escuro que, além de relevo das coisas, avança no sentido de uma economia geral da imagem.[85] Desenho, claro-escuro e cor, na ordem, hierarquizam-se na pintura; em outro lugar, como se viu, as divisões são: desenho, invenção, cor. A análise da cor se faz com o claro-escuro, embora no que se refere à denominação, possa dar-se ênfase oposta. Nessa dupla subordinação da cor, explicita-se o desdém com que é tratada pelo desenho: despicienda, não é mais que aflorada, sendo redefinida, também sem muito empenho, na fórmula muito semelhante à de Alberti e Leonardo, como concordia discors:

A união na pintura é uma discordância de cores diversas concordadas e conjunto.[86]

Na sequência, o sentido instrumental, de que é investida, faz-se patente: as cores mostram, nas figuras, as diferenças; prossegue o texto:

as quais [cores] na diversidade das mais divididas mostram diferentemente distintas uma da outra as partes das figuras, como as carnes dos cabelos, e um pano diverso de cor do outro.[87]

Nas meias-tintas, explicita-se a quantificação técnica do claro-escuro; a divisão continuada dos claros e escuros, com a qual a concórdia se estende sobre a discordância das cores, é prescrita pela harmonia que, nos séculos XVI e XVII, investe, além da pintura, muita filosofia, teologia, etc. Com o contínuo das passagens tonais, constroem-se figura e cena (istoria): o visível pictórico. O predomínio do claro-escuro ainda se vê na tese do sfumato, unificador das cores, como também nos nexos de cor e observação, de cor e polidez, virtude superior, a que não menos patrocina.[88]

Enquanto a cor se subordina ao claro-escuro, concórdia, ou ao desenho, que circunscreve os panos cromáticos, a ela louvores (e poucos) são dirigidos. A ruptura dessa ordem, porém, não é admitida; assim, o elogio de Vasari a Giorgione na “Vida” a ele dedicada é substituído de modo brusco por crítica, em outra vida, de Ticiano. Censura oblíqua? O visado, na elevação do tom das querelas, novas, entre Veneza, que se impõe como centro artístico, e os grupos tosco-romanos, da Academia florentina e do círculo de Miguel Angelo, é personificado por Ticiano, não por Giorgione. Em chave conceitual, contudo, o nome importa menos: Giorgione, segundo Vasari, é o introdutor do uso direto da cor, sem passagem pelo desenho. Usurpação da preliminar e da primeiridade em que a pintura se pensa em todas as suas panes. Para os meios tosco-romanos (não se positive essa designação, pois tem valor indicativo: refere os círculos que escrevem e dirigem), a recusa da hierarquia desenho / claro-escuro / cor compromete não só a pintura como, também, e isso não é menos grave, o discurso que unifica as artes do desenho. No específico e no genérico, Veneza passando a pensar com a cor, rompe o dispositivo teórico e pictórico do desenho.

[Giorgione penetrou] nas coisas vivas e naturais e as contra[fez] do melhor modo que sabia com as cores e as manch[ou] com as tintas cruas e suaves, segundo o que o ser vivo mostrava, sem fazer desenho em papel, [como se] fosse o verdadeiro e melhor modo de fazer e o verdadeiro desenho. Mas não atin[ou] com ser ele necessário a quem deseja bem dispor as composições e acomodar as invenções, com ser preciso primeiro, de muitos modos diferentes, pô-los no papel, para se ver como o todo fica em conjunto. Como quer que seja, a ideia não pode ver nem imaginar perfeitamente em si mesma as invenções, se não abre e no mostra o seu conceito aos olhos corpóreos, que a ajudem a delas fazer bom juízo.[89]

Ideia, aqui, articula desenho: a pintura feita diretamente com cor não pensa. Esta afirmação terá, no século XVII, desdobramentos relevantes. Quanto ao desenho, diferentemente do divino de Doni e do arquetípico de Holanda, Vasari atribui-lhe primado de outra ordem.[90] Enquanto em Holanda o desenho se comunica com a ideia, no que fica patente sua relação com Miguel Angelo,[91] em Vasari ele torna visível a mesma ideia, pois sua expressão, mas a determina sensivelmente. Produz-se, pois, movimento duplo, expressivo, segundo o qual, na ascendente, o conceito, ou ideia, determina-se com os traços no papel, e, na descendente, o desenho a manifesta. O final da citação acima explicita a ascendente, enquanto a definição seguinte, embora expondo a descendente, vincula sensível (juízo) e inteligível (conceito da alma):[92]

Porque o desenho, pai das nossas três artes, arquitetura, escultura e pintura, procedendo do intelecto, extrai de muitas coisas um juízo universal, semelhante a uma forma ou ideia de todas as coisas da natureza, a qual é singularíssima nas suas medidas, segue-se que, não só nos corpos humanos e dos animais, mais ainda nas plantas, e nas edificações, e esculturas e pinturas, conhece a proporção que tem o todo com as partes e que têm as partes entre si e com o todo conjuntamente. E porque desse conhecimento nasce um certo conceito e juízo, forma-se na mente aquela coisa que depois de expressa com as mãos se chama desenho, pode concluir-se que esse desenho não é senão uma aparente expressão e declaração do conceito que se tem na alma, e do que alguém imaginou na mente e construiu na ideia.[93]

O duplo movimento da ideia e do desenho explicita a singularidade de Vasari quando se lêem os discursos vagamente platônicos de um Doni ou um Holanda e que fica ainda mais contrastada no escrito ulterior de Zuccaro. O olhar do espírito e o olhar do corpo se cruzam em Vasari: não se forma imagem interna sem que se trace a imagem externa. Duplo, o desenho é expressão da ideia, ou conceito, e, inversamente, o conceito só se concebe com o esboço da mão. O espírito vê com a mão; o olhar da mão exprime c) espírito. Em Giorgione, Vasari não contrapõe a cor sensível ao desenho inteligível: contra Giorgione, antes, contra Ticiano, é o desenho que reage contra o confisco do visível pela cor.

A articulação anagógica do desenho, pela qual ele se alça à ideia, ou divina ou ar-quetípica, exacerba-se, em chave neo-aristotélica, com Federigo Zuccaro. A circulação que Vasari estabelece entre inteligível e sensível é cortada no Idea, em que a ideia não é mirada pelo desenho, mas é o mesmo desenho, interior. Dividindo o desenho em interno e externo, Zuccaro destrói a definição de Vasari citada acima, evidenciando-a desentendida dos termos que emprega:

Em vez de definir o Desenho interno […], define [Vasari] o Desenho externo, sem mesmo declarar a sua qualidade visual, externa, artificial; além de dizer que o conceito da mente não é o verdadeiro e principal Desenho interno, imaginado e fantástico e o formado na mente; e, por último, não entende o que quer dizer Ideia, porque não se forma na ideia o Desenho, mas é ou a própria ideia ou somente diferente dela por nossa inteligência e conhecimento.[94]

A divisão de Zuccaro hiperboliza o desenho; o interno entende-se como conceito (mental) e como forma (ideia)[95] da inteligência que representa, expressa e distintamente, o seu objeto e termo.[96] Eminentemente mental, pois representante no intelecto do objeto conhecido, não é específico da arte, que é prática; o desenho interno tem, assim, a generalidade do conceito, estendendo-se a todas as espécies de intelectos e a todos os objetos seus internos. O externo é desenho inferior,[97] pois sendo o interno representação do objeto e, assim, princípio intelectual das operações, aquele é operação, prática e, especificamente, arte,[98] na qual se entende como aparência, isto é, como delineamento, circunscrição: o visível.[99] Dividindo-se e subdividindo-se, o desenho externo preside as três artes, e outras.

A definição de pintura, canônica, não se altera; ideado como interno, visível como externo, o desenho se separa tanto na sua definição metafísica (o que se detecta nos escritos dos anos 1540) quanto na específica; apartado na definição de pintura abaixo, no se afasta, porém, da cor e sombra-luz. Impressiona em texto como o de Zuccaro a rarefação da pintura (e das artes irmãs): apenas um capítulo lhe é dedicado e, à cor, algumas linhas, se tanto. O passo que a define, abstraído o desenho, de que cuida o livro todo e que de tudo cuida, traz:

[A pintura] é uma ciência prática, ou arte, que com artifício singular e operação artificiosa vai imitando e retratando a Natureza e o que com artifício humano é construído em forma, espécie e acidente com a força de suas cores, e às vezes tão vivamente e excelentemente com a força de seus claros e escuros, fazendo aparecer com relevo tudo o que ela figura no plano.[100]

O acadêmico de Roma e pintor ilustre do tempo, ressaltando o desenho, apaga-o: sobre a pintura e suas divisões quase nada vem escrito. A doutrina, que captura filosoficamente as artes, minimiza-as como campo de investigação visual. Quanto mais no desenho insiste, tanto mais ele se desloca para dentro (e para cima); quando dele trata, como externo, vem diminuído como prática, ou arte artificiosa. O paradigma quatrocentista, que opera até os anos 1520, está esgotado, muito embora a articulação específica desenho / claro-escuro / cor prossiga operando (até hoje, sem sombra de dúvida, ela luz). Diferentemente do que postulam tantos estudiosos, a teoria da pintura não é repetitiva ou, se o é, não é mais nem menos que outros discursos, quaisquer que sejam, gramática, matemática, etc. O que se intensifica na Itália central dos anos 1540 em diante é o deslocamento da prática artística e de seus discursos: a pesquisa (observação, regras, experimento: Leonardo como exemplo). Neste sentido, há passagens admiráveis em Zuccaro, que recusam, para a pintura, a regra e a matemática, fazendo irromper em cena o juízo do olhar (já se encontra o tema em Vasari); tal modificação não se deseja vista como a sombra projetada do irracional: a matemática não se constitui, evidentemente, como detentora da razão, como alguns hoje afirmam. Feche-se exemplarmente o deslocamento com o mesmo Zuccaro:

A arte da pintura não tira os seus princípios, nem tem qualquer necessidade de recorrer, às ciências matemáticas, para aprender regras e modos para a sua arte, nem tampouco para poder sobre eles raciocinar em especulação: não é filha dela, mas sim da Natureza e do Desenho. Uma lhe mostra a forma: a outra ensina-lhe o operar.[101]

Desinvestido de ciência, o desenho em Zuccaro explicita viragem no discurso da pintura: perspectiva linear, proporções, observação do corpo, do movimento, etc., sendo deslocados por considerações de estilo, elegância, conveniência, etc., significam a corrosão do paradigma pictórico anterior; remontando o dispositivo, embora não deixe de referir os invariantes desenho / claro-escuro / cor, Zuccaro o faz com linguagem de manual. Entre 1540 e 1600, relativamente pelo menos aos discursos acadêmicos de Florença e Roma, o desenho lança-se além da articulação pictórica e, superior, distingue-se a ponto de se alçar a emblema de facção; pois, para emblematizar, o desenho deve, antes, tornar-se visível como conceito distinto dos demais. Tal distinção, efetiva, transforma-o em centro de querelas no século XVII, tanto italiano quanto francês. Neste sentido, seu significado anterior também está deslocado: palavra de ordem mais que conceito, o desenho constitui-se, já no século XVI do norte italiano, como objeto de restrições diversas.

Desde meados do século XVI, a hiperbolização do desenho na Itália central vai sendo contrabalançada por escritos, principalmente venezianos. Em Lodovico Dolce se lê a intensificação de querela regional, e em Paolo Pino, a reflexão teórica que valoriza a cor. Em Dolce, amargo crítico de Miguel Ângelo (personificação tosco-romana), não se escreve contra o desenho — o que aliás também se verifica em Pino —, na promoção de Ticiano. O Aretino, polêmico, sinaliza as articulações conceituais em que a cor é privilegiada; o elogio épico do personificador da cor, lugar-comum no século e nos seguintes, dá o tom: só em Ticiano

Se apreciam reunidos com perfeição todos os aspectos excelentes que se achavam repartidos entre muitos, uma vez que nem em inventiva nem em desenho ninguém nunca o superou. E, logo no colorido, nunca houve alguém que o alcançasse. Mais, só a Ticiano se há-de conceder a glória do perfeito colorido, que, ou não teve ninguém entre os antigos, ou, mesmo que houvesse tido, faltou a todos os modernos, a um mais, a outro menos; porque, como eu disse, ele iguala a natureza, cada uma de suas figuras é viva, move-se e suas carnes palpitam. [Há nele] solidez de mestre, não crueza, senão pastosa e polida naturalidade; e em suas coisas combatem e jogam sempre as luzes com as sombras, diluindo-se e esfumando-se exatamente como o faz a mesma natureza.[102]

Desde 1557, o passo do Aretino repisa passos de 1548, também venezianos, com os quais dialoga, valorizando, na querela, não a cor contra o desenho, mas Ticiano frente a Miguel Ângelo. Também em Pino, a cor excele, não contra o desenho, mas com ele: o Dialogo di pittura personifica a divindade mista de dois deuses, Miguel Angelo, do desenho, e Ticiano, da cor.[103] Enquanto o Dialogo della pittura (Aretino) tem em Ticiano bom desenho e, principalmente, inigualável cor, o claro-escuro a esta se associa como ausência de “crueza”, não se subordinando uns aos outros os termos. Como a crueza das cores é, em Vasari, suprimida pelo claro-escuro harmonizador, só tem aparência de paradoxo a afirmação de Dolce; pois nele não se confrontam conceitos e sim pintores numinosos: se conceito se desprende, ascendente, da articulação, isto ocorre em Florença e Roma; não em Veneza. A cor de Ticiano, em Dolce, iguala a natureza, o que implica perfeita consecução dos movimentos e carnações. As ênfases de Dolce são conceitualmente elaboradas por Pino, que trata da cor depois do desenho e da invenção, sem que a ordem opere a subordinação da terceira ao primeiro:

A terceira e última parte da pintura é o colorido; trata-se de uma composição de cores nas partes acessíveis ao olhar, […] sendo realmente a pintura algo visual. O colorido compreende três partes, e a primeira consiste em discernir a propriedade das cores e entender bem suas composições, isto é, fazê-las semelhantes às coisas naturais, como o mudar das carnes correspondente à idade, a compleição e o grau do que se pinta, distinguir um pano de linho de outro de lã ou de seda, discernir o ouro do cobre, o ferro brunido da prata, imitar bem o fogo (coisa que tenho como difícil), distinguir a água do ar e procurar acima de tudo unir e harmonizar a diversidade das cores num só corpo, pois assim se parece com o natural, de modo que não tenham aspecto de marchetaria e não fiquem nitidamente cortadas umas das outras.[104]

A cor não imita, retrata: tese que, de certo modo, vem proposta em escritos anteriores. Mas a contrafação exclui a igualdade de pintura e natureza, afirmação de escrito polêmico e, assim, laudatório, de Dolce. Aquém da natureza,[105] a pintura torna visível o visível, considerados os seus limites, e ela o faz porque a cor se concebe como colorido, isto é, como economia; o “colorido”, que se vai fixando no discurso pictórico, devido às divisões que analisam a cor em geral, modifica-o: de conceito subordinado, teoricamente pouco visível, a cor passa a exibir-se dividida em subconceitos, o que se vê na própria pintura. Quanto à inoperância da subordinação nos conceitos articulados, a união dos numes é claro exemplo, pois a recusa deles é ironicamente exposta como heresia.

Não só em Veneza, também na Lombardia a cor apaga a hierarquia conceitual que a subordina. Porque valorizada, evidencia, aliás, o paradoxo da historiografia atual que classifica artistas, como Bronzino, no Maneirismo; em Pino, este é distinguido como colorista promissor, não sendo qualificado como excelente em desenho, chave conceitual do Maneirismo atualmente produzido. Algo semelhante ocorre com Giovan Paolo Lo-mazzo, que, de Milão, escreve, no último quarto do século, o Trattato, que pode ser considerado contemporâneo do Idea, de Federigo Zuccaro. Insiste-se no “maneirismo” de Lomazzo; todavia, nele o desenho não é encarecido às expensas da cor. Embora se detenha no desenho (os dois primeiros livros do Trattato, sobre a proporção e o movimento, por ele se orientam, enquanto os seguintes, pela ordem, expondo a cor, a luz, a perspectiva, a prática da pintura e a istoria dele se desprendem) e exponha afigura serpentinata que hoje emblematiza o assim dito Maneirismo, em nenhum momento a cor vem secundarizada.[106] A definição de pintura, que abre o livro I, é, neste sentido, clara:

Pintura é arte que, com linhas proporcionadas e com cores semelhantes à natureza das coisas, seguindo o lume perspectivo, imita de tal modo a natureza das coisas corpóreas que não só representa no plano a espessura e o relevo dos corpos, mas ainda o movimento, e visivelmente demonstra aos nossos olhos os muitos afetos e paixões da alma. [107]

Nessa definição, Clue equipara desenho, cor e luz (claro-escuro), a pintura com os três se determina. Em nenhum momento se explicita visada partidária. “Imitação”, aqui, tem sentido do retrato, contrafação.[108] Em outro passo, Lomazzo como que refreia os excessos dos defensores da cor:

Conquanto [os pintores] sejam excelentes e milagrosos no colorir, se não têm desenho, não têm a matéria da pintura e, conseqüentemente, estão privados da parte substancial dela. Não se nega, porém, que não seja grandíssima a força do colorir.[109]

Aqui, a mesma equidistância da citação precedente. No que concerne à cor, o livro HI, que dela trata especificamente, explicita seguir-se a sua exposição depois do desenho.[110] Nenhum desenvolvimento merece, relativamente a Pino, atenção particular. Além do colorido, voltam os conceitos de “amizade” e “inimizade” das cores, temati-zados anteriormente, assim como o recente de “harmonia”.[111]

Como Zuccaro, Lomazzo teoriza, metafisicamente, em chave neo-aristotélica. Não obstante essa referência comum, outras são as distinções e resultados. A cor, aqui, é fortemente distinguida do desenho, constituindo-se a reflexão do milanês como contrapartida dos excessos do desenho. Enquanto Zuccaro eleva o desenho a ideia, Lomazzo a este distingue como potência do genérico e à cor como particularização de reconhecimento (neste sentido, a cor é mais “macaca” que o desenho). Operado com equivalências, o desenho corresponde à materia, de que tudo se faz, e a cor, com a forma última, que a tudo diferencia. Por isso, a matéria é, para o pintor, artífice, quantidade proporcionada e, indiferente, ela delimita o desenho.[112] Como quantidade e proporção, o desenho é genérico, pois, no múltiplo, distingue o que convém, convergência que a forma suspende enquanto particularização operada pela cor. Sendo o múltiplo referido ao visível, c) desenho figura o que é comum, produzindo a cor a diferença; por isso, em Lomazzo, fica do desenho excluída a semelhança que, em Vasari, lhe garante expressividade. Em Lomazzo, a quantidade proporcionada restringe o desenho à igualdade, enquanto a cor, diferencial qualitativo, busca a semelhança. A este exemplificando com o retrato (que, aliás, é “exemplo”), atribui à cor, não ao desenho, força individuadora: sembianza. A cor é sembianza porque simia. Louvando o desenho, que se distingue sem gerar hierarquia, louva a cor:

Porque, como os homens particulares, se não consistissem senão em matéria, na qual está claro que todos convêm, todos eles seriam a mesma coisa e não se veria no mundo aquela diferença tão grata aos nossos olhos de tantos homens particulares […], assim também se o pintor apenas desenhasse um homem proporcionado, justo e igual ao natural, pois há muitos homens iguais em quantidade, decerto apenas pela quantidade não se faria tal homem conhecido; mas, quando, além do desenho e quantidade proporcionada, justa e igual, acresce a cor semelhante, então dá ele a última forma e perfeição à figura e faz que todo aquele que a vê discerne de que homem é e sabe dizer, por exemplo, que é do Imperador Carlos v ou de Filipe seu filho, que é de homem melancólico, ou de fleugmático, de sangüíneo ou de colérico; que ela é figura de homem que ama, que teme, de jovem, cheio de vergonha e rubor, e por conclusão terá a figura toda a sua natural perfeição, de modo que subitamente se fará nela reconhecido aquele que é retratado e a quem se assemelha.[113]

O interesse do texto de Lomazzo não está apenas na distinção ontologicamente produzida entre desenho e cor, como a de quantidade e qualidade, ou como a de generalidade e individuação; desdenhando hierarquias, a distinção avança pelo qualitativo, valorizando a cor como efeito sobre o observador o lugar-comum do maravilhoso: exposto por Plínio, na História natural, o lugar é retomado desde o Quattrocento. O maravilhoso tem o sentido do engano com que a pintura agrada enquanto surpreende o vedor: é nesta tópica que autores quatrocentistas e quinhentistas encarecem o quadro-janela, qu[114] e ilude com a perspectiva e o relevo, ilusionismo ortoscópico, pois apenas o suporte se transforma em vidraça do mundo; a simulação cenográfica de Peruzzi inscreve-se nessa chave, como também o óculo de Mantegna, do qual figuras escorçadas contemplam os príncipes mantuanos, ou as figuras de Veronese que surpreendem o vedor, que, ao ver, se vê visto. Conquanto a de Veronese seja facécia, a qual surpreende nos jardins e aposentos do tempo, não se extrema como efeito de ininteligibilidade. Esta vem na anamorfose, que torce a imagem, obrigando o espectador a deslocar-se no espaço para que ela se destorça. Da maravilha, esses lugares distinguem a anamorfose como exercício de desenho.

O logro vem tematizado em Zuccaro; enquanto nele o engano é tratado de modo convencional, pois ordena procedimentos fixados, valoriza Ticiano como colorista. Mantendo-se na moldura do desenho e da. cor, descreve com o exemplo o que é reflexão em Lomazzo. Neste, é a cor que opera o logro, sendo irreversível o seu efeito; difere, pois, da anamorfose, que é reversível por estipular geometricamente o sítio correto do espectador. O logro cromático exclui correções, produzindo-se a imagem como hipérbole — “fúria” — que Lomazzo atribui a uso da cor que amplifica os efeitos nas luzes e s[115]ombras. Neste sentido, Lomazzo inverte a articulação desenho/claro-escuro/cor: luz e sombra não se propõem como claros e escuros que se acrescentam à cor, mas é esta que os produz como efeitos, nele excessivos.[116] Não se segue do exemplo hiperbólico de Ticiano a diminuição do desenho, pois este vem louvado em descrição dedicada ao Juízo Final da Sistina.[117]

O logro de Ticiano põe em evidência a inclusão do claro-escuro na cor, relativamente à produção de luzes e sombras. Assim, além dos conceitos que regulam as cores entre si — “amizade”, “conveniência” (harmonia) —, consideram-se elas nos efeitos: a própria hipérbole do logro desloca a noção aristotélica de imitação, pois a semelhança qualitativa, sembianza simia, referindo a cor ao visível, dirige-a por ele. A cor, de díodo patente, fica ligada, doravante, ao “verdadeiro”, à observação, a uma natureza vista.

Os escritos do norte não atribuem superioridade conceptual à cor relativamente ao desenho ou ao claro-escuro; ela é encarecida nos efeitos de verdade (ou melhor, “cromo” — verdade) que produz, afirmando-se enganadora e, assim, especificadora e diferencial, tese que o século XVII francês retoma. Enquanto a articulação desenho / claro-escuro / cor não é conceptualmente abalada em Veneza e na Lombardia, o discurso acadêmico do centro aparta o desenho da mesma articulação. De Vasari (ou Holanda), passando por Doni, o desenho tende ao inteligível: como ideia, é conceito transcendente; em Zuccaro, embora volte à articulação como externo, como interno se alça, tanto nominal, quanto essencialmente, como “conceito” e “forma”. É descabido, pois, propor simetria, que muitos defendem, para as relações do centro e do norte (admitindo-se, ainda, que estes possam petrificar-se como espaços estanques, o que é temerário avançar). A conceituação veneziana e lombarda defende a cor como noção coordenada; estabelecendo para ela princípio distinto daquele que rege o desenho, confere-lhe autonomia. Sem romper, em linhas gerais, com a articulação desenho / claro-escuro / cor, sem declarar guerra ao centro acadêmico, a Itália do norte habilita a cor.

Como os escritos, também a pintura do norte e do centro diferem; não se deve, entretanto, positivar estilisticamente essa diferença, uma vez que não se verifica corte entre ambas; muito do “desenho” se desenvolve no norte, algum colorismo e verismo cuida do centro. Ainda assim, devido à direção acadêmica, é difícil imaginar o surgimento da pintura de Caravaggio em Florença, pois seus antecedentes estão no norte, em tanto pintor que desintensifica as composições retóricas do centro, operando com imagens de efeito verista. Quanto aos Carracci (principalmente Annibale), a Academia de Bolonha, que fundam, valoriza a observação no exercício do desenho (reabilitando, indiretamente, Vasari) e a distinção de gêneros pictóricos (esta tese deve ser preferida à que apressa, para os “Encaminhados” de Bolonha, o “ecletismo”).

O discurso acadêmico do centro sofre abalo com os “Encaminhados”; assim, Giovan Pietro Bellori, reivindicando as doutrinas destes e a de Poussin, que se encaminha seguindo Bolonha (anedotas contam que Annibale não perdia nenhuma oportunidade para desenhar do natural e Poussin era continuamente visto em Roma e seus arredores tirando vistas), tem seu extenso Idea publicado em 1672. Com ressonância de outros escritos do tempo, seus conceitos, embora deslocando o desenho-ideia e a cor-natureza, são convencionais; passam pela bibliografia antiga enquanto repropõem neo-aristotelismo diverso dos indicados acima. Doutrinário, encena epicamente, lugar-comum no discurso pictórico pelo menos desde Vasari, o ressurgimento que produz na arte italiana:

Nessa dilatada comoção, a arte estava sendo atacada por.dois extremos opostos: um, sujeito ao natural, e outro, à fantasia; os autores desse ataque em Roma foram Miguel Angelo de Caravaggio e Giuseppe Arpino; o primeiro copiava os corpos tal e como aparecem ao olhar, sem eleição; o segundo não tinha em conta o natural e seguia a liberdade do instinto; e tanto um quanto o outro, gozando de clara fama, converteram-se em admiração e exemplo de todo mundo. Assim, quando a pintura se dirigia para o fim, astros mais benignos se voltaram para a Itália e aprouve a Deus que na cidade de Bolonha, mestra de ciências e estudos, surgisse um altíssimo talento e que com ele ressurgisse a arte caída e quase extinta. Este foi Annibale Carracci.[118]

A doutrina denuncia não duas facções ou dois sistemas conceptuais em luta, mas dois artistas, a que se atribui a responsabilidade pelo desaparecimento da pintura: no norte, Caravaggio, que imita não aristotelicamente a natureza (sem eleição), no centro, o Cavalier d’Arpino, que a historiografia atual situa na última (e retardatária) “geração maneirista”, cujo desdém pelo natural (não pelo de Caravaggio) o lança na fantasia da ideia (fantástica, a qual é divisão dela em Vasari ou Zuccaro). A pintura deles se salva em Bolonha. Tal recorte, operado pelo assim chamado “Classicismo”, prevalece implicitamente na interpretação atual do “Maneirismo” (termo produzido em fins do século XVIII pelo “neoclássico” Luigi Lanzi) e, até certo ponto, do “Naturalismo”, de Caravaggio e dos que o seguem, não só na Itália, mas em toda a Europa.

Neste discurso se recicla o academismo. Considere-se a referência à cor no norte:

Embora em Veneza tenha a pintura perdurado mais que em qualquer outro lugar, não obstante isso, nem aí nem na Lombardia já se fazia ouvir aquele luminoso grito de cores, que se calou com Tintoretto, até agora o último dos pintores venezianos. Direi, ademais, algo que parecerá incrível: nem dentro nem fora da Itália se achava pintor algum, não fazendo muito tempo que Pedro Paulo Rubens levara, ele, o primeiro, as cores para fora da Itália.[119]

A cena da pintura assediada, que Bellori produz, traz sobrepostas, como em Vasari, figuras duplo-unas: não é mais a do Giorgione-Ticiano do século XVI, e sim a do Ticiano-Rubens, unificados em efígie na operação textual. Este duplo é marcado por sinais opostos, configurado como actante de facção; distante da articulação conceitual, opera nas querelas do século. Ainda assim, o conceitual não abandona Bellori, pois a noção de ideia vem alterada: não se trata da transcendente, como em Zuccaro, da divina ou da arquetípica, uma vez que o purointeligível se esfuma.[120] O sensível que Bellori valoriza não é o atribuído a Caravaggio: a natureza pertence à imitação aristotélica:

Esta Ideia […], originada pela natureza, supera a sua origem e se faz modelo original na arte; medida com o compasso do intelecto, converte-se em medida da mão […}. Assim, a Ideia constitui a perfeição da beleza natural, e une o verdadeiro ao verossímil das coisas visíveis, sempre aspirando ao ótimo e ao maravilhoso, pelo que não só emula, senão a natureza, mostrando-nos suas obras elegantes e acabadas, quando a natureza não costuma apresentar-se perfeita em todas as suas panes.[121]

A crítica do compasso e esquadro de Lomazzo, a da regra e matemática de Zuccaro está desativada, como a mão da maniera de Vasari fica reduzida à prática de uma pintura “fantástica”. Enquanto a ideia apenas inteligível se despede, outra se avizinha da natureza como seleção e embelezamento do visível. Os lugares, vindos da Antiguidade, validam o escrito enquanto retomam passos de Quintiliano, Luciano, Cícero.[122] O que fica excluído é a natureza imperfeita e, assim, a cor, a ela ligada: correção acadêmica, que tem antecedentes inúmeros, dos quais próximo é Baglione, menos rígido ao analisar Caravaggio (e a cor); a maniera, que o caracteriza polemicamente, Caravaggio a

Havia tomado colorindo do natural, embora na representação das coisas não tivésse muito juízo para eleger o bom e deixar o mau.[123]

A naturalidade sem seleção pertence à cor: em boa medida, já no século XV, ela vem associada à observação, fazendo-se esta com o crivo da sombra-luz e da perspectiva. Todavia, é certo que a investigação do Quattrocento está arquivada: por isso, aliás, o texto de Bellori toma o sentido do desenho, não o da exploração do visível, mas o do embelezamento pela imitação.

Na segunda metade do século XVII, está montada na França a cena bélica do desenho e da cor. Embora não tome posição contra a cor, ao retomar a imitação como embelezamento Bellori exclui a contrafação do natural: a sua voz se faz ouvir na cena. Tal posição se inflama na palavra de ordem da Academia Francesa: o desenho preside, virados os anos 1850, tanto a de Paris quanto a de Roma, que os franceses fundam para que os jovens artistas completem a sua formação com o Antigo e com a arte do Renascimento em diante. Os italianos participam da contenda, sendo Boschini o defensor da cor.

Félibien dá o tom das posições acadêmicas. Seu pintor é Poussin, cuja produção o liga a Roma, e de quem Félibien escreve biografia fundamental. No oitavo dos Entretiens, Félibien põe em evidência as relações de Poussin com a Antiguidade (não será de todo inútil assinalar o paralelismo da querela dos “poussinistas” e “rubenistas” e da que opõe, nas letras, os “antigos” e os “modernos”), com os saídos dos “encaminhados” e com os “diversos” (dos quais vem citado, significativamente, Rafael). Fica clara a depreciação da cor e a elevação do desenho:

Embora Poussin baseasse os seus principais estudos nas belas estátuas antigas e nas obras de Rafael, com as quais retificava todas as suas ideias, isso não o impedia de estimar outros mestres. Considerava Domenichino o melhor da escola dos Carracci, devido à correção do desenho e às sólidas expressões. Valorizava, também, os que tinham um belo colorido, pois não se pode negar que no começo aprendeu muito com o colorido de Ticiano. Porém, pode observar-se que, à medida que se aperfeiçoava, interessava-se cada vez mais pela forma e correção do desenho, pois entendeu que esta é a parte principal da pintura, pela qual os maiores pintores quase abandonaram as outras assim que compreenderam em que consiste a perfeição da arte.[124]

Nas escaramuças, os conceitos têm aparados os desenvolvimentos e implicações, tornam-se palavras de ordem e elegem nomes-numes’ (tal é a produção de uno-duplo no partido da cor). Na crispação dos debates (que têm o tom dos usos gentis do tempo), a leitura dos conceitos faz-se em filigrana, pois os desdobramentos tendem a inevitável semivisibilidade. Quanto ao duplo-uno, onde se lê Ticiano vê-se Rubens, como em Vasari vê-se Ticiano com a máscara de Giorgione. No passo citado, a Antiguidade não é apenas nomeada na escultura, ela atravessa o texto com diversos lugares, e os horacianos no comando (daí o paralelismo dos acadêmicos do desenho e do Boileau da Arte poética). O homem prudente corrige, o tempo lhe é favorável; ao ímpeto juvenil (tema recorrente nos acadêmicos), em que o colorido de Ticiano apaixona o pintor, segue-se a maturidade do desenho, bem maior a perfeição. O uir bonus se corrige e corrige.

Em outra passagem, Félibien não traz esta Antiguidade brava, mas expõe outro tempo: o da recepção da obra e da promoção que a envolve em halo; os defeitos, quando vistos, são calados. A própria qualidade dos tempos opera: a juízo refinado, censura aberta. Nesta passagem, Rubens é visto a distância, com a isenção de praxe:

Rubens tinha muitas obras belas que fizeram com que todo mundo o apreciasse e sua reputação foi tão grande que se teria acreditado ser coisa de gente ridícula e ignorante a censura de seus maiores defeitos. Ë certo, também, que no tempo em que trabalhava, a correção não era tão difícil como é hoje, pois embora sintamos muito respeito pela memória desse grande homem, não deixamos de observar suas obras com mais precaução do que a tida em outro tempo.[125]

Essa censura isenta de paixões, ponderada, pois, da Academia, diminui Rubens com os tempos. Félibien prossegue — e aqui desenvolve conceitos que lhe armam a pena — com técnica conhecida, a de antes elevar, amplificando a figura positivamente, para melhor a fazer vista caída com hipérbole dinrinutiva. Como ponderada, pois elogiosa no começo, a censura, lugar-comum, mostra-se superior à querela. O escrito atinge, gradativamente, o centro do debate:

Com respeito ao colorido, que é o seu principal talento, [Rubens] trabalhou com uma liberdade de pincel completamente surpreendente. Serve-se sempre com felicidade do estudo que fez, ern Veneza, de Ticiano, Paolo Veronese e Tintoretto, aproximando-se de seus princípios sobre a condução e a distribuição das luzes, das sombras e dos reflexos das luzes. […] Assim, levado pela rapidez de sua natureza viva e impetuosa, não pensou em dar a suas figuras nem bom porte nem a graça dos contornos, que se acham freqüentemente alterados por sua maneira pouco estudada. […] Essa grande liberdade, que tem ao pintar, faz ver em vários de seus quadros mais prática de pincel que correção nas coisas em que a natureza deve ser exatamente representada, não só em seu desenho, como também em seu colorido, uma vez que os tons das carnes amiúde parecem demasiado fortes e separados uns dos outros, de modo que parecem manchas.[126]

Avançado o colorido como essencial à pintura de Rubens, a pincelada livre é afirmada impeditiva do bom contorno. Ademais, o pouco estudo da figura evidencia, nele, apenas a prática (lembre-se que, em outra chave, a prática descreve pejorativamente os artistas ligados à “ideia fantástica”); por isso, não só o desenho é deficiente, como também o é o próprio colorido (a tonalidade, ou harmonia, torna-se dissonante na mancha). O elogio inicial de Rubens está no colorido; no fim do arrazoado, este o abandona. Nesse movimento, o censor opera com uma série de conceitos pictóricos, que, não analisando a cor, descrevem-lhe as partes de uma definição possível. Destas, é considerável a que associa colorido e pincelada livre (a qual, como prática, refere qualidades do desenho — e da pintura — estabelecidas em Alberti e outros autores que nele se detiveram: presteza e acabamento, ou polidez, distinguem-se entre as virtudes técnicas do pintor). Em Rubens, todavia, a liberdade do pincel não designa destreza e, menos ainda, polidez: classifica-se ela como rapidez impetuosa, característica não profissional, mas passional (ou temperamental, admitindo-se seja ele considerado sangüíneo). A mancha, referida por Vasari, tem para os acadêmicos sentido despiciendo. Constitui-se, assim, uma oposição que, fixada, tem desdobramentos históricos relevantes; a Academia, analisando o desenho, concebe “plasticamente” a pintura, enquanto os do Amor da Cor a entendem “pictoricamente”: Wölfflin, Impressionismo, etc. Negativamente, o texto de Félibien explicita a complexa economia cromática que o século desenvolve, de modo que um Roger de Piles, porta-voz dos amadores, sistematiza o legado e a contribuição dele contemporânea, defendidos pela facção.[127] Nessa economia, a cor, como colorido, fica em evidência; sem se destacar metafisicamente como o desenho, torna-se conceitualmente visível tanto pelas análises que nela incidem quanto pela polarização que a distingue na refrega. É na polêmica que o seu conceito se condensa e se exibe.

De Veneza, ainda, sai em 1664 o Ricche minere, de Marco Boschini, em que se garimpam conceitos que dividem a cor. Mantendo o tom quinhentista de Pino, Boschini repropõe a articulação desenho/cor/invenção. Sereno — Veneza estabelece o comércio dos conceitos —, equipara desenho e cor na diferença: ao primeiro fica assegurado o elogio de praxe com recurso à alegoria da edificação:

O desenho é a base e cimento principal do edifício, e como o edifício sem cimentos não pode subsistir, assim a pintura sem desenho […] não pode ficar em pé. Acreditam alguns que o desenho apenas consiste nos contornos, porém digo que os contornos são necessários ao desenho, sim, mas que se deve usá-los como usa o escritor a pauta que, enquanto escreve, usa-a, mas depois de           escrever, deixa-a. Assim, a pintura deseja ser delicada, pastosa e sem contornos, como a natureza demonstra.[128]

Não é ao desenho que Boschini visa, mas à sua divisão, “contorno”; àquele fica assegurado sentido elevado, pois mantido em chave conceitual ilusionista, a que se referiu aqui.[129] Na imagem, o contorno não ultrapassa o valor de indicação, apagando-se com o colorido: daí a retomada da natureza visível como alheia a linhas. Por isso, a citação abaixo produz metáfora que inverte a distribuição metafísica de desenho e cor: a pintura tem alma porque o colorido prevalece sobre o corpo-desenho.

Devendo estender-me, em segundo lugar, sobre o colorido, digo que a pintura merece este nome em virtude do erudito pincel do bom pintor que, ao vestir o desenho com a cor, o vivifica, já que sem o colorido ao desenho poderia chamar-se corpo sem alma […]. Direi, pois, que, assim como o desenho tem muitas partes, também o colorido se abre em várias circunstâncias e pormenores. Às vezes se usa como empaste e é a base, às vezes como toque e é a maneira, como mescla de cores e é a delicadeza, como tinta ou sombreado e é i diferenciação das partes, como meio para subir ou baixar o tom e é o arredondar, o dar volume, como toque vigoroso e é a franqueza de colorido, ou como frotado e é o retoque para unir. Com estes e outros procedimentos, forma-se o colorido à veneziana.[130]

Como o desenho, a cor se divide; ela se torna visível nos discursos como “colorido”, conceito que Roger de Piles fixa no uso dos pintores. A Boschini se deve a descrição que enumera os procedimentos técnicos, essenciais à compreensão da pintura veneziana e da que se desenvolve a partir dela.

Como os venezianos, Roger de Piles não abandona, apesar da polêmica, o desenho; a chave “cor” vem teorizada fortemente, com incursão ontológica, muito próxima à de Lomazzo. O essencial, nele, é a explicitação da ação do pintor no suporte, que já se fazia entender em meados do século XVI nos teóricos do desenho. Neles implícita, a consideração dos atos pictóricos desloca o discurso do Quattrocento e começo do Cinquecento, que entende o suporte como vidro, metáfora do visível, decerto, mas, antes (e por isso), como campo de tradução do observável. Não tem este suporte a modernidade cezan-niana; outra, não a que traz a materialidade do suporte para a imagem, mas a que a diferencia do visível, é a que explicita os muitos atos pictóricos do pincel. Em seu texto, de 1673, o colorido se define frente à cor e é

uma das partes da pintura pela qual o pintor sabe imitar a cor de todos os objetos naturais e dar aos artificiais a que é mais conveniente para enganar o olhar. […1 A cor é o que torna os objetos sensíveis à visão.[131]

O colorido está para a cor como a pintura para o visível. Não é o desenho (como em Vasari), nem o claro-escuro que mostram o visível: é a cor (como qualidade, semelhança, ela põe em evidência, na pintura, o reconhecível em Lomazzo). A diferença entre cor e colorido é de correlação: a natureza é imitada pelo artifício:

Como os pintores devem considerar dois tipos de objetos, o,natural, ou o que é verdadeiro, e o artificial, ou o que está pintado, devem também considerar dois tipos de cor, a natural e a artificial. A cor natural é a que nos torna visíveis todos os ãbjetos que estão na natureza e a artificial é uma matéria de que se servem os pintores para imitar esses objetos.[132]

Pela cor a pintura imita a natureza; contrafaz os objetos, pois “verdadeira”, enquanto está regida por economia que, legislando sobre os habituais itens da “amizade” da “união”, etc., avança no sentido da correlação. Por ela, a distribuição colorista deve ser “justa”, pois se pauta pelas cores da natureza. Luz e cor sendo inseparáveis, o colorido se produz, consideradas a cor local e o claro-escuro, o qual, desde pelo menos Vasari, refere-se ao elemento e a toda a imagem.

No colorido […], uma vez que na natureza a luz e a cor são tão absolutamente inseparáveis que, em todas as partes onde há luz, há cor, onde se achar cor, achar-se-á também luz. Assim, o colorido compreende duas coisas: a cor local e o claro-escuro. A cor local é a natural em cada objeto, a qual o pintor deve fazer valer por comparação, e este artifício inclui o conhecimento da natureza das cores, isto é, de suas uniões e de sua antipatia. O claro-escuro é a arte de distribuir convenientemente as luzes e as sombras. não só nos objetos particulares, como também no quadro em geral.[133]

A essa economia, principalmente distributiva do colorido, corresponde a subordinação do claro-escuro à cor. Inverte-se, decididamente, o sentido do primado: enquanto no Quattrocento e na primeira parte do Cinquecento o claro-escuro se impunha como análise luminista, em Roger de Piles explicita-se, mais que a subordinação inversa, a própria subsunção dele na cor. Com isso, restam apenas dois polos em relação, os quais, segundo a mais que centenária visada da Itália setentrional, não se anulam. Tal bipolaridade entra em conflito com a articulação vigente, que pode ser topicamente considerada em tal ou qual passo, pois dotada de poder heurístico. No confronto, em que as posições simplificam os conceitos, a articulação é desdenhada.- A cor, assim, torna-se visível conceitualmente; não segue ela, porém, o caminho do desenho em meados do século anterior: vem proposta„ de modo semelhante ao de Lomazzo, como equivalente na distinção. A relação do geral e do particular de Lomazzo dá lugar, em Roger de Piles, à do geral e da diferença, sem que esta refira a semelhança sensível: neste sentido, a argumentação é, antes, lógica, aproximando-se à de Vasari:

O colorido não é, unicamente, uma parte essencial da pintura, senão também é a sua diferença e, por conseguinte, a parte que constitui o pintor, do mesmo modo que a razão, que é a diferença do homem, é a que faz o homem. […] O desenho […] ocupa perfeitamente seu lugar, já que é uma parte essencial da pintura e sem a qual esta não poderia subsistir, como tampouco sem o colorido. […] O gênero […] comunica-se a várias espécies e é por isso que é menos nobre do que a diferença, que é um bem próprio de uma só espécie, e é assim que o grau de animal, que é o gênero do homem, comunica-se indiferentemente ao homem e à besta, e que o grau de racional, que é a diferença do homem, comunica-se unicamente ao homem.[134]

Os efeitos lógicos da exposição de Roger de Piles operam economia distintiva: o argumento do gênero e da diferença tem sentido oposto ao de Vasari (ou Zuccarp), em quem o desenho eleva-se como gênero de três espécies; em Roger de Piles, que considera o desenho gênero da pintura, escultura e gravura, a diferença não opera ontologicamente com a introdução da semelhança sensível, antes, logicamente, como especificação hie-rarquizadora, pelo menos no sentido laudatório. O desenho é o análogo da besta, a coro é da razão: puro efeito, certamente, e irônico (visto que os acadêmicos defendem o desenho como racionalidade). Se a exposição combativa de Roger de Piles não desloca, no essencial, as teses desenvolvidas aqui ou ali desde Paolo Pino, tem interesse como sistematização de argumentos. De mais, é ele quem enobrece a cor.

No fim do século, o secretário da Academia resume os argumentos das facções (logo mais, como a literária dos “antigos” e “modernos”, termina a querela dos “poussinistas” e “rubenistas”). Henri Testelin toma, evidentemente, partido, e seu resumo pode ser resumido: o pintor pintado na bandeira da Cor não é, decerto, Rubens. O interposto Ticiano, considerado bom colorista, erra no desenho, que, além de incorreto nos contornos, falha nas proporções (argumentos lidos em Félibien). O secretário classifica em três chaves o arrazoado colorista: a cor é tão necessária quanto o desenho; a cor eleva o pintor; a cor, desde a Antiguidade, é louvada. As chaves podem ser giradas de três modos: censura-se a cor como contrafação; combate-se a cor como engano; recusa-se a universalidade do louvor recebido pela cor. As três combinações, o desenho as abre como mestre; tem o aval da razão. A primeira razão, como se viu, é a incorreção do desenho nos coloristas, de modo que a boa cor está subordinada àquele; reabre-se a biografia de Poussin, exemplo a ser seguido no translado do sensível (corpo) para o inteligível (espírito). A sensatez do desenho protege a imitação seletiva, não a contrafação cromática, que mancha a pintura. A segunda razão desenvolve-se com a primeira: o engano não é mais que aparência sedutora; como a França retém o sentido convencional de ilusionismo, não o do excesso lomazziano, o relevo é patrocinado pelo desenho. A terceira razão avança pelo bom senso, que não admite a cegueira das aparências; estas seduzem, pois visam ao corpo e seu esplendor luz externo. Considerada a recepção, o engano, que seduz, procura deleitar; a afirmação dos coloristas de atingirem todos os espectadores é revelada por Testelin como falsa generalidade, a dos sufrágios vulgares e não a verdadeira, iluminada, que aos acadêmicos inclua, a da cor subordinada ao desenho. No deleite, em que o louvor se exige em troca, opera subargumento, o da outra generalidade, técnica; recusa-se o argumento de Roger de Piles, que bestifica a generalidade enquanto enobrece a especificidade da pintura, livre da gravura e da escultura, como cor.[135]

Entra-se, enfim, no mérito dos dois conceitos. É aqui que se produz argumentação inovadora: a querela fica deslocada pela questão, metafisicamente proposta, da autonomia dos conceitos. A solução é previsível. Dos conceitos, apenas o desenho é independente de outras causas, uma vez que a cor depende das circunstâncias da luz. O argumento tem desdobramentos cômicos quando exemplifica: assim, o lápis, espacialização do desenho, tem todas as qualidades requeridas para a produção de relevo e o contra-argumento da sua inépcia em tratar do rubor e palor engendra outros argumentos, que demonstram, precisamente, a acidentalidade da cor:

Expôs-se que o desenho que se denomina prático (trata-se do “externo” de Zuccaro) é produto do intelecto e da imaginação, que com urn lápis se imitam todas as coisas visíveis e se obtém não só a forma e a proporção como também se expressam os movimentos da alma sem que se necessite da cor senão para representar o rubor e a palidez, que não são em si mesmos mais que um acidente dependente dos diversos efeitos da luz, pois um corpo muda de tal maneira que, à noite, com o esplendor de uma tocha, o verde parece azul e o amarele) parece branco. Fez-se considerar que a cor, que entra na composição de um quadro, não pode produzir nem colorido nem .tom senão por sua própria matéria, a qual leva em si a sua própria cor, não sendo possível produzir o vermelho com uma cor verde, nem o azul com a amarela; segue-se que a cor depende em tudo da matéria e é por conseguinte menos nobre do que o desenho, que se relaciona com o espírito. Acrescentou-se que a cor depende a tal ponto do desenho que lhe é impossível representar qualquer coisa sem a sua ordem e direção. Assim, é muito evidente que o mérito da pintura consiste mais no desenho que na cor, uma vez que o que nos demonstra o mérito das coisas é o dependerem menos de uma causa alheia; assim, concorda-se em que o mérito do desenho está infinitamente acima do da cor.[136]

Independência e dependência completam as séries disjuntivas que o discurso acadêmico produz; nelas, vêm repartidas as generalidades falsa e verdadeira; a sedução sensível e o deleite inteligível; o espírito e a matéria. As disjunções são de enfrentamento, uma vez que o objetivo acadêmico é hierarquizar: a disjunção constitui-se como instrumento argumentativo da subordinação, que a ultrapassa como rearticulação conceitual e confirmação dos méritos. Por isso, nas séries, os termos são disjuntivamente postos em relação, para que, vencida a facção adversária, cor e desenho reexplicitem a pintura; como correlato e, ainda mais, como exemplo de subordinação, tem-se a alma dirigindo o corpo. Por isso, também, não é, no absoluto, contra a cor que a Academia escreve: é contra a cor insubordinada, que eia entende como pretensão a autonomia. A discussão da autonomia dos conceitos determina-se, assim, como o argumento final gerado de termos disjuntivos. Na reconciliação, desejada, dos conceitos, ilumina-se o claro-escuro, saíd das sombras, como terceiro, da disjunção apagada. Com ele, reaparece a articulação desenho-claro-escuro-cor, pelo menos bicentenária. Na melhor das linhagens dos discursos do disegno, o desenho a um tempo se separa da articulação e nela se instala, dirigente: espécie de pai vasariano. Abstraindo-se o claro-escuro, a pintura é dupla na composição: o desenho deleita o espírito; a cor, o olho. A pintura compõe inteligível e sensível, porque é, olho do espírito e do olho, espírito.

Uma obra não se pode considerar perfeita se nela a cor não está doutamente empregada com economia, o que prova, ainda, sua dependência, uma vez que, se a cor tem a prerrogativa de deleitar os olhos, o desenho tem a de satisfazer o espírito, e como os quadros devem ser agradáveis tanto a uns quanto ao outro, não há qualquer dúvida de que estas duas partes devem concorrer juntas e, por um aprazível acordo, ter cada qual sua parte e grau, e por isso não se deve negligenciar a cor, senão estudar bem seu uso conjuntamente com a luz e o desenho, de modo que o pai das artes possa ser o mestre e o condutor, pois, com efeito, deve dominar todas as partes dessa profissão.[137]

O argumento da autonomia opõe, assim, desenho e cor, pondo em evidência a cisão dos conceitos que se constituem não disjuntivamente no século xv, quando a subordinação opera: a articulação desenho/claro-escuro/cor é conjuntiva. Em meados do século XVI, dois sentidos deslocam a articulação: um, na Itália central, confere visibilidade ao desenho, depreendendo-o dela, para que, nela, ele a dirija; outro, na Itália setentrional, suprime a subordinação, estabelecendo a cor como conceito coordenado. Em fins do mesmo século, a cor recebe as distinções antes conferidas ao desenho: analisam-se as suas partes e discriminam-se as suas técnicas. Com Lomazzo, a cor equipara-se metafi-sicamente ao desenho, ,sendo distinguida como qualidade diferencial; a diferença comanda os discursos coloristas subseqüentes, louvando-se a cor como conceito suficiente, Marco Boschini e Roger de Piles. Ordenadas as partes da cor, também ela ganha visibilidade conceitual própria. Evidenciam-se seus diversos sentidos e usos, que os acadêmicos têm como negativos, e são: a pincelada, isto é, o gesto que se entende além das descrições retóricas do século xv e começo do XVI, nas quais a pintura é louvada quando a execução é pronta e acurada ao mesmo tempo; o gesto especifica-se na pincelada que deposita de modo diversificado a tinta no suporte, a qual também vem considerada em descrições técnicas ligadas à produção da imagem. Censurando a pintura de Ticiano-Rubens, os acadêmicos supervalorizam, pelo negativo, a valorização colorista; denunciando, na bandeira deles, a destruição do desenho, põem na claridade a pintura que dispensa o contorno, proporção, numa palavra, “plasticidade”. Em passagens citadas atrás, Vasari e Pino coincidem, além de suas diferenças, quando aquele atribui à cor o distinguir as partes da figura, como carnes de cabelos, e este a ela confere capacidade no diferenciar panos, metais, etc.; em ambos, a cor opera no sentido da plasticidade e datatilidade, conquanto aquele insista nas distinções, e este, nas uniões. O excesso, em Lomazzo, amolece o que no século XVI subsiste do XV, a “boa forma”. Mostrando-se no suporte o gesto diversificado e os muitos recursos das tintas por ele depositadas, o pincel livre materializa tanto os efeitos da cor quanto o espírito do olho, o que o discurso acadêmico recusa como transgressão. Livre do desenho diretor e sedutora nos efeitos do pincel, a pintura transforma o próprio suporte: o vidro em que o mundo se vê seletivamente é substituído pelo pano ou parede onde o pincel se exibe. Uma economia cromática diferente da do século XV e parte do XVI se opera: inclusiva, a cor vai se estendendo ao gesto, à tinta, ao suporte; referencial, a cor não idealiza, pois figura, símia, as semelhanças qualitativas da carne, do tecido e, desenvolvendo o gênero baixo, paixões cotidianas; relacional, não recusa as amizades, inimizades e harmonias, embora considere os efeitos materiais de empastes, raspagens, toques.

Anexando a si a pintura, a cor emancipa-se. Não se trata, porém, das aquisições do conceito e de sua expansão por partes crescentemente novas: a emancipação é apenas tematizada na querela, sendo o pressuposto desta a coordenação dos conceitos. A querela encena dupla visibilidade com a disjunção; o desenho, separado na metade do século XVI, admite, recusando-a, a cor, que se vinha estendendo positivamente desde os mesmos anos. É com os argumentos da dependência e independência que a cor ressalta. A iluminação que recebe, inépcia, falsidade, sensibilidade, materialidade, constitui-a, não como o outro de coordenação, mas como o outro de exclusão. Como excluída, dirige a visada retrospectiva deste texto, pois visibilíssima: as diversas articulações que com a cor se vão montando são legíveis com a visibilidade extrema da disjunção. No século XVIII outros discursos se produzem. A cor está confirmada e a Missão Francesa desembarca com a doutrina do desenho para dirigir os estudos no Brasil.

 

[1] Leon Battista Alberti, Della pittura, ed. L. Mallé, Florença, 1951, livro 1, P. 55: “Noi perchè vogliamo le cose essere poste da vedere, per questo useremo quanto dicono piú grassa Minerva”.

[2] Idem, ibidem, livro in, p. 104: “Et farassi per loro dilettarsi de poeti et delli horatori; questi anno molti ornamenti comuni col pittore et copiosi di notitia di molte cose”.

[3] Cennino Cennini, illibro de//arte o trattato della pittura, ed. F. Tempesti, Milão, 1975. pp. 29-30

[4] Cennino Cennini, Illibro dei/arte o trattato della pittura, ed. F., Tempesti, Milão, 1975. pp. 31-32: “[…] Queste due parti vogliono questo, cioè: sapere tritare, o ver macinare, incollare, impannaxe, ingessare, e radere i gessi, e pulirli, rivelare di gesso, mettere di bolo, mettere d’oro, brunire, temperare, campeggiare, spolverare, grattare, granare, o vero camusciare, ritagliare, colorire, adornare, e invernicare in tavola o vero in-cona. Lavorare in muro, bisogna bagnare, smaltare, fregiare, pulire, disegnare, colorire in fresco, trarre a fine in seccõ, temperare, adornare, finite in muro”.

[5] Alberti, op. cit.., livro II, pp. 81-3.

[6] Antonio Manetti (o escrito, de fins do século xv, é a ele atribuído), Vita di Filippo di Ser Brunellesco, E. Toesca, Florença, 1927, p. 9: “Cos’ ancora in que’ tempie’ misse innanzi ed in atto, lui propio, quello ch’e dipintori oggi dicono prospettiva; perchè ella è una parte di quella scienza, che è in effetto porre bene e con ragione le diminuzioni et accrescimenti che appaiono agli occhi degli uomini delle cose di lungi e da pres-so”. Sobre pequeno quadro atribuído a Brunelleschi e outros experimentos, cf. pp. 10-13.

[7] Alberti, op. cit., livro II, p. 102, 81-3.

[8] Alberti, op. cit., livro II, pp. 101-102. Além de defender a pintura clara, “di di in di fa la natura che ti viene in odio le chose orride et obscure; et quanto pia faccendo inpari, tanto piti la mano si fala dilicata ad vezzosa gratia. Cierto la natura amiamo le cose aperte et chiare, adunque piú si chiuda la via quale piú stia facile a peccare”, Alberti considera desejável a distribuição que tenha o máximo de cores (princípio retórico da copiosidade e variedade aplicado à cor); a amicitia não se define no texto, operando como dispositio. Transcreve-se o passo: “Vorrei nella pittura si vedessero tutti i generi et ciascuna sua spetie com molto diletto et gratia ad rimirarla. Sarà ivi gratia quando l’uno colore apresso molto sarà del altro diferente, che se ivi dipignierai Diana guidi II coro, sia ad questa nimpha panni verdi, ad quella bianchi, ad l’altra crocei, et cos’ ad ciascuna diversi colori tale che sempre i chiare sieno presso ad altri diversi colori obscuri. Sarà questa comparatione, ivi la bellezza de colori piú chiara et piú leggiadra, et truovasi certa amicitia de’colori, che l’uno giunto con Yalu.° li porgie dignità et gratia. II colore rossato presso al verde et al cilestro si danno insieme honore et vista. II colore bianco non solo adpresso II cienericcio at apresso il croceo ma quasi presso a tutti posto porge letitia. I colori obscuri stanno fra i chiari non sanza alcuna dignità et cosi i chiari bene s’avolgano fra li obscuri”.

[9] Idem, ibidem, livro 1, p. 56: “Delle qualità alcune cosi stanno perpetue alia superficie che, se non alteri, nulla indi possano muoversi: altre sono qualità tali che, rimanendo il medesimo essere della superficie, pur cosi giaciono al vederle che pajono a chi li guarda mutate”. Cf. livro 1, pp. 58-62.

[10] Passagem importante relativamente ao primado da luz sobre a cor e à relação da luz e da sombra com ela; p. 62: “Parmi manifesto che i colori pigliano variatione dai lumi poi che ogni colore posto in ombra pare non quell° che è nel chiarore. Fa l’ombra il colore fusco et il lume fa chiaro ove percuote. Dicono i philo-saphi nulla potersi vedete quale non sia luminato et colorato; adunque tengono gran parentato i colori coi lu-mi a farsi vedere et quanto sia grande vedilo the, mancando il lume, mancano i colori et ritornando il lume tor-nano i colori”.

[11] Em sua edição e tradução, J. R. Spencer traz o texto latino de 1435, suprimido por Alberti quando da tradução para o italiano; indica-se, aqui, o passo latino: “Nolim a peritioribus redargui, quidem philoso-phos sectantur duos tantum esse in rerum natura integros colores asserunt, album et nigrum, ceteros autem omnes ex duorum permixtione istorum oriri” , in Della pittura, ed. Mallé, p. 63, nota 1. Cf. Alberti, On Painting, ed. e trad. J. R. Spencer, New Haven, 1966.

[12] Alberti, op. cit., livro 1, pp. 63-4.

[13] Idem, ibidem, p. 63.

[14] Idem, ibidem, p. 62.

[15] Lorenzo Ghiberti, I commentari, ed. O. Morisani, Nápoles, 1947. Comentário IIi, § 13, pp. 87.- 90. 0 texto de Ghiberti, escrito após 1450, difere inteiramente do albertiano. Não teoriza a pintura com recurso à retórica; constitui-se como a primeira história da pintura e escultura, a que o século XVI muito deve. Quanto à ótica, I commentari liga-se à física da cor e luz, com análise que valoriza a anatomia e fisiologia do olho.

[16] Alberti, op.. cit., livro II, p. 101: “Sarebbe certo utile il biancho et nero si facesse di quelk grossis-sime perle quale Cleopatra clistruggeva in aceto, che ne sarebbono quanto debbono avari et massai et sarebbe-ro loro opera piú al vero dolci et vezzose”

[17] Idem, ibidem, livro I, p. 64

[18] Idem, ibidem, livro II, p. 98.

[19] Idem, ibidem.

[20] Idem, ibidem, p. 100.

[21] Idem, ibidem, pp. 98-9.

[22] Idem, ibidem, p. 99.

[23] Idem, ibidem.

[24] Idem, ibidem, livro I, p. 70.

[25] Idem, ibidem, livro II, p. 100.

[26] Idem, ibidem, p. 99.

[27] Idem, ibidem, p. 82.

[28] Idem, ibidem, p. 99.

[29] Piero Della Francesca, De prospectiva pingendi, ed. G. Nicco Fasola, Florença, 1942, livro 1, pp. 63-4: “La pictura contiene in se tre parti principali, qu.ali diciamo essere disegno, commensuratio et colorare. Disegno intendiamo essere profili et contorni che nella cosa se contene. Commensuratio diciamo essere essi profili et contorni proportionalmente posti nei luoghi loro. Colorare intendiamo dare i colori commo nelle cose se dimostrano, chiari et uscuri secondo che i lumi li devariano. De le quali tre parti intendo tractare solo de la commensuratione, quale diciamo prospectiva, mescolandoci qualche parte de desegno perció che senza non se po dimostraro in opera essa prospectiva; il colorare lasciaremo stare”.

[30] Leonardo, Codex Urbinas, ed. e trad. A. Chastel, Léonard de Vinci, la peinture, Paris, 1964, p. 73 (Urb., 45 v.).

[31] Idem, ibidem, p. 74 (Urb., 50 r.).

[32] Leonardo, op. cit., p. 74 (Urb., 50 r.); seqüência da citação: “Mais le dessin est d’une telle excellence qu’il n’explore pas seulement les ouvrages de la nature, mais une infinité d’autres qui échappent à celle-ci… Aussi conclurons-nous que le dessin n’est pas seulement connaissance, mais une puissance divine que l’on doit nommer avec vénération, une puissance divine apte à reproduire toutes les oeuvres visibles du Très-Haut”.

[33] Idem, ibidem, p. 74 (Urb., 133 v.): “II y a beaucoup plus de savoir et de difficulté dans l’ombre des peintures que dans leurs contours”.

[34] Idem, ibidem, p. 117 (Urb., 75 v.-76 v.).

[35] Leonardo, op. cit., p. 117 (Urb., 75v.-76 v.)

[36] Idem, ibidem, p. 118 (Urb., 75 v.).

[37] Leonardo, vários, ed. J. P. Richter, The Notebooks of Leonardo da Vinci, Nova York, 1970, 2 vols. Vol. 1, p. 16, § 14 (Ms. Ash., 1, 17 v.). Cf. idem, ibidem, p. 17, § 15 (Ms. E., 80 v. Inst. France); p. 17, § 16 (Ms. G., 53 v. Inst. France).

[38] Leonardo, op. cit., p. 17, § 17 (Ms. E., 70 v. Inst. France): “La prima parte della pittura è che li corpi cõ quella figurati si dimostrino rilevati, e che II cãpi d’esse circüdatori, colic br distantie, si dimostrino ètrare dentro alia pariete, doue tal pittura è gienerata mediante le 3 prospective, cioè diminuition delle figure de’corpi, diminuition delle magnitudini e diminuitiõ de’loro colori”. Idem, ibidem, p. 27, § 41 (Ms. A., 38 v. Inst. France): “La prospettiva è di tale natura ch’ella fa parere il piano relievo ei rilievo piano”.

[39] Ed. Chastel, p. 103 (Ms. A. i v., Inst. France): “La perspective n’est rien d’autre que la vision d’une scene derrière une vitre plane et bien transparente, sur laquelle on marque tous les objets qui sont de l’autre coté de cette vitre; us peuvent être reliés par des pyramides avec le centre de l’oeil; et ces pyramides sont interceptées par ledit verre”. É retomada, pois, da pirâmide visual de Alberti.

[40] São muitos os textos; considerem-se, aqui, os seguintes: Ed. Richter, pp. 157-66, §§ 289-307.

[41] Alberti, op. cit., p. 63.

[42] Ed. Richter, p. 160, § 296 (C. Triv. 75)

[43] Idem, ibidem, pp. 160-3, §§ 299-301.

[44] Idem, ibidem, p. 159, § 295 (C. Ash., 1, 10 r.).

[45] Idem, ibidem, pp. 161-3, § 300; p. 163, § 301; pp. 163-4, § 302; pp. 301-2, § 601; pp. 302-3, § 602; p. 306, § 607; pp. 306-10, § 608; pp. 310-3, § 609; pp. 312-3, § 610.

[46] Ed. Richter, p. 127, § 222 (Ms. E., 80 r. Inst. France): “Se inuisibili son li yeti stremi de’ corpi opachi in qualunche minima distantia, maggiormente sarã invisibili nelle lúghe distãtie; e se per li termini si cognosce la uera figura de ciascú corpo opaco e mãcãdo per distantia la cognitiõ d’esso tutto, maggiormète rnancherà la cognitione delle sue parti e termini”. Cf. também pp. 127-33, §§ 223-42.

[47] Ed. Chastel, p. 109 (BN 2038, 12 v., Inst. France): “Tout objet matériel a, par rapport à la vue, trois propriétés: volume, contour et couleur. L’image du volume s’efface plus lentement avec la distance que la couleur ou be contour; en deuxième lieu, la couleur reste plus longtemps visible que be contour”.

[48] Manetti, op. cit., pp. 10-11: “E questo caso della prospettiva, nella prima cosa in che ego mostrò, fu in una tavoletta di circa mezzo braccio quadro, dove fece una pittura a similitudine del tempio (di fuori) di Santo Giovanni di Firenze, et da quel tempio ritratto, per quanto se ne vede, a uno sguardo dallato di fuori: e pare che’ e’ sia stato a ritrarlo dentro alia porta del mezzo di Santa Maria del Fiore, qualche braccia tre, fatto con tanta diligenza e gentilezza, e tanto apunto co’colori de’ marmi bianchi e neri, che non è miniatore che l’avessi fatto meglio; figurandovi dinanzi quella parte della piazza che riceve l’occhio, cos’ verso lo lato dirim-petto alia Misericordia insino alia volta e canto de’ pecori […]; e quanto di quel luogo si vede discosto, e per quanto s’aveva a dirnostrare di ciclo, cioè che le muraglie del dipinto scampassono nell’aria, messo d’ariento brunito, acciò che l’aria e i cieli naturali vi si specchiassono drento; e cosi e nugoli che si veggono in quello ariento essere menati dal vento, quand’e’trae”. Essa montagem brunelleschiana de pintura e espelho que reflete o.céu tem muito interesse para a análise das relações de perspectiva linear e observação.

[49] Retenham-se, neste sentido, dois textos do Codex Atlanticus. Cf. Richter, op. cit., p. 18, § 20 (C. Atl., 75 r.): “II pittore che ritrae per pratica e givditio d’ochio, sanza regione è come lo spechio, che in se imita. tutte le a se cõtraposte cose sanza cognitione d’esse”. Cf. Chastel, op. cit., p. 72 (C. Atl., 221 v.). O texto defende a experiência corretora da pintura; regra, juízo e experiência vêm associadas, valorizando a observação: “Gracê à cues [as regras corretoras da pintura], tu posséderas un jugement libre et sür, car be bon jugement nait du bon entendement et le bon entendement nalt des raisons tirées des bonnes règles, et les bonnes règles sont filies de la bonne expérience. Donc, si tu as bien retenu cc que mes règles prescrivent, tu seras capable, grâce à ton jugement correct, d’apprécier et de reconnaitre toute disproportion dans le travail, tant dans la perspective que dans les figures et ailleurs”.

[50] Alberti, op. cit., livro II., pp. 92-3. Trata-se do locus “ocultamento’ da deformidade: “Le parti brutte a vedere del corpo et l’altre simili quali porgano poca gratia si cuoprano col panno, con qualche fronde et con la mano. Dipignievano li antiqui l’immagine di Antigono solo da quella parte del viso ove non era manchamento dell’occhio, et dicono che a Pende era suo capo lungho et brutto et per questo dalli pittori et dalli sculptori non come li altri era col capo armato ritratto. Et dice Plutarco, ti antiqui pittori dipigniendo i re, se in toro era qualche vitio no volerlo però essere non notato ma quanto potevano, servando la similitudine, l’emendavano”. A semelhança é elegante: elege-se o visível.

[51] Cf. aqui, p. 13, nota 3.

[52] Cf. aqui, p. 13, nota 3 e ed. Richter, pp. 29-30, § 50 (Ms. A., 3 r., Inst. France). Neste passo a perspectiva é apresentada como razão demonstrativa, desenvolvendo os elementos propostos por Alberti no que concerne à pirâmide visual. Cita-se apenas um trecho, aqui bastante: “La pittura è fondata sulla prospettiva: non è altro che sapere bene figurare to vfitio dell’ochio, it quale ofitio s’estède solo in pigliare per pirarnide le forme e colori di tutti li obietti contra se posti [.. 1. Prospettiva è ragione dimostrativa per la quale la sperentia cõferma tutte le cose mãdare all’ochio per linie piramidali la br similitudine”. Ótica e geometria combinam-se na exposição da perspectiva: experiência e razão se confirmam mutuamente

[53] Cennini, op. cit., cap. =Ill, p. 44: “Attendi, che la piO perfetta guida che possa avere e miglio-re timone, si è la trionfal porta del ritrarre di naturale”

[54] Idem, ibidem, cap. LXXXVIII, p. 83

[55] Ed. Chastel, p. 75 (Urb., 72 v.).

[56] Ed. Richter, p. 91, § 159 (Ms. E., 32 v. Inst. France): “Onbra è diminuitiõ di lume. Tenebre è privatione di lucie”. Os manuscritos proliferam nesta definição.

[57] Idem, ibidem, p. 80, §§ 132 e 135 (Ms. Ash., 1, 3 r.; Ms. E., 31 v.) quanto ao lustre; p. 74 (Ms. E., 14 v., Inst. France; Ms. British Mus., 248 v.) quanto à classificação da sombra em simples e composta.

[58] Idem, ibidem, p. 91. § 158 VMs. Windsor, 232 v.), quanto à sombra primitiva e à derivativa; pp. 92-3, §§ 161 e’162 (Ms. E., 31 r. e 32 r., Inst. France) quanto à subdivisão das primitivas e derivativas. O processo de divisão e classificação é proliferante.

[59] Idem, ibidem, p. 149, § 278 (Ms. F., 75 r., Inst. France): “It bianco non è colore, ma è in potentia ricettiva d’ogni colore […], in cãpagna alta tune be sue obre sono azurre”

[60] Ed. Chastel, p. 114 (Ms. H, 17 v., Inst. France): “Un objet monocolore de largeur constante, vu contre un fond multicolore, paraitra de largeur variable. Et si un objet de largeur constante et de couleurs variées est vu sur un champ monocolore, it paraitra de largeur variable”. As cores entram em relação na própria definição da forma percebida; As diversas possibilidades examinadas têm, em Leonardo, sentido combinatório.

[61] Ed. Richter, p. 143, § 265 (Ms. Windsor, 232 v.).

[62] Idem, ibidem, p. 143, § 263 (Ms. G., 37 r., Inst. France)

[63] Idem, ibidem, p. 143, § 264 (Ms. E., 32 v., Inst. France)

[64] Idem, ibidem, p. 143, § 267 (Ms. Ash., 1,2 r.).

[65] Idem, ibidem, p. 143, § 268 (Ms. E., 17 r., Inst. France)

[66] Idem, ibidem, p. 144, § 269 (Ms. Windsor, 240 v.)

[67] Dürer, Lettres, écrits théoriques et traité des proportions, ed. e tract. P. Vaisse, Paris, 1964, p. 163; outro projeto, distinguindo dez itens, põe a pintura em oitavo lugar (idem, ibidem, pp. 163-4).

[68] Idem, ibidem, p. 167.

[69] Idem, ibidem, p. 167

[70] Leonardo, Tratado de pintura, ed. e trad. A. G. Garcia, Madri, 1982, pp. 45-86.

[71] Giorgio Vasari, Le cite, 9 vols., ed. P. Della Pergola, L. Grassi e G. Previtali, Novara, 1967, pp. 34-43 (vol. I).

[72] Idem, ibidem, vol. I, pp. 42-3.

[73] Anton Francesco Doni, Disegno, ed. fac-símile da ed. 1549, por M. Pepe, Milano, 1970. Francisco de Holanda, Da pintura antiga, ed. A. G. Garcia (1 ed. 1548), Lisboa, 1983.

[74] Vasari, op. cit., vol. IIi, p. 381 (“Proêmio da terceira parte”).

[75] Paolo Pino, Dialogo di pittura, ed. e trad. J. Garriga, in: Fuentes y documentos para la Historia del Arte , vol. IV, Barcelona, 1983 (1- ed. 1548), p. 264: “El arte de la pintura imita la naturaleza en tas super-ficies, y para hacerlo entender mejor to dividré en tres partes, a mi modo: la primera parte será disenõ, la segunda, invención, la tercera y última colorido”. É a mesma ordem de Vasari.

[76] Vasari, op. cit., vol. ill, p. 380.

[77] Doni, op. cit., p. 8; diz a Natureza: “II disegno non è altro che speculation diuina, che produce un’arte eccellentissima, talmente che tu non puoi operare cosa nessuna nella scoltura, & nella pittura senza la gui-da di questa speculazione & disegno”. Esta unificação tem sentido metafísico, no que difere da vasariana; terá sido lida e desenvolvida por F. Zuccaro na definição que dá do disegno interno.

[78] Holanda, op. cit., cap. XXXVII, p. 160; o capítulo assim começa: “Muito se podia dizer das colores, mas eu vou já tão cansado que não me atrevo a tanto como era necessario porque materia é que merece grão vagar”.

[79] Holanda, op. cit., cap. XXXVII, p. 160.

[80] Doni, op. cit., p. 8 do fac-símile.

[81] Holanda, op. cit., cap. XVI, p. 98.

[82] Idem, ibidem, pp. 99-100.

[83] Idem, ibidem, cap. XVI, p. 99.

[84] Vasari, op. cit., vol. 1, cap. XV, p. 118.

[85] Idem, ibidem, pp. 118-19; é relevante a distribuição do claro-escuro na economia geral da imagem: “Questo sí fatto piano, dal pittore con retto giudizio mantenuto nel mezzo chiaro a negli estremi e ne’ fondi scuro et accompagnato tra questi e quello da cobre mezzano tra il chiaro e lo scuro, fa che, unendosi in-sieme questi tre campi, tutto quello che è tra l’uno lineamento e l’altro si rilieva et apparisce tondo e spiccato”. Segue-se processo, nas meias-tintas, de subdivisões sucessivas: de cada claro se faz um claro e Outro escuro, até que haja concordância geral e fuja o disforme.

[86] Idem, ibidem, p. 126.

[87] Idem, ibidem, p. 126. Adiante, é retomada a economia do claro-escuro, no sentido da profundidade: “Tutte le pitture adunque, o a olio, o a fresco o a tempera, si debbon fare talmente unite ne’loro colori, che quelle figure che nelle stone sono le principali venghino condotte chiare chiare, mettendo i panni di colore non tanto scuro a dosso a quelle dinanzi, che quelle che vanno dopo gli abbino piú .scuri che le prime; anzi a poco a poco, tanto quanto elle vanno diminuendo a lo indentro, divenghino anco parimenti di mano in mano, e nel cobre delle carnagioni e nelle vestimenta, piú scure”.

[88] Os pintores enfatizados como colOristas, abstraindo-se Ticiano, são, em Vasari, Leonardo, Rafael, Giorgione e Correggio. Cf. Vasari, op. cit., vol. 1, p. 128, Rafael distingue as figuras da cena: “[…] Nd l dipin-to una discordanza accordatissima. Et in questo modo si debbe nel lavorare metter gli scuri dove meno offendi-no e faccino divisione, per cavare fuori le figure; como si vede nelle pitture di Raffaello da Urbino”. Vol. ill, pp. 402-03, de Leonardo retenha-se a observação minuciosa; Vasari trata da Gioconda: “Nella qual testa chi voleva veder quanto l’arte potesse imitar la natura, agevolmente si poteva comprendere, perché quivi erano contrafatte tutte le minuzie che si possono con sottigliezza dipignere. Avvenga che gli occhi avevano que’ lus-tri e quelle acquitrine, che di continuo si veggono nel vivo; et intorno a essi erano tutti que’ rossigni lividi et i peli, che non senza grandissima sottigliezza si possono fare” (“Vita di Lionardo da Vinci”). Vol. III, p. 416, sobre a relação Leonardo-Giorgione: “Aveva veduto Giorgione alcune cose di mano di Lionardo, molto fu-meggiate e cacciate, […] terribilmente di scuro”; p. 417, sobre a união das cores produzindo relevo: “lavoro veramente divino, perché vi è una unione sfumata ne’ colori, che pare di rilievo piú che dipinto” (“Vita di Giorgione da Castel Franco”). Vol. IIi, p. 430, enfatiza as qualidades louvadas na pintura: “Tengase put per certo che nessuno meglio di lui toccò colori, né con maggior vaghezza o con piú rilievo alcun artefice dipinse meglio di lui, tanta era la morbidezza delle carni ch’egli faceva, e la grazia con che e’ finiva i suoi lavori” ; p. 431, expõe a relação desenho-cor: “Ma perché tutto s’impara per condurre l’opere perfette nella fine, il quale è II colorire con disegno tutto quel che si fa; per questo il Coreggio merita gran lode avendo conseguito il fine della perfezione ne l’opere, che egli a olio et a fresco colorí” (“Vita d’Antonio da Correggio”).

[89] Idem, ibidem, vol. VII, pp. 308-9, “Descrizione dell’Opere di Tiziano da Cador”.

[90] Holanda, op. cit., cap. XV, pp. 95-6: “A idea na pintura é uma imagem que ha de ver o entendimento do pintor com olhos interiores em gradissimo silencio e segredo, a qual ha de imaginar e escolher a mais rara e eicelente que sua imaginação e prudência poder alcançar, como um exemplo sonhado, ou visto em o ceo ou em outra parte, o qual ha de seguir e querer depois arremedar e mostrar fóra com a obra de suas mãos propriamente, como o concebeo e vio dentro em seu entendimento”.

[91] A mão apenas executora reafirma-se em Miguel Angelo. Passo de poema célebre, in E. Panofsky, Idea, Madri, 1977: “Non ha l’ottimo artista in se alcun concetto,
Ch’un marmo solo in se non circonscriva
Col suo soverchio; e solo a quello arriva
La man che ubbidisce all’intelletto”.

[92] A habilitação da mão, donde um dos sentidos fortes de maniera, na constituição do conceito está em Vasari, op. cit., vol. i, p. 116: “Quest° disegno ha bisogno, quando cava l’invenzione d’una qualche Cosa dali giudizio, che la mano sia, mediante lo studio et essercizio di molti anni, spedita et atta a disegnare et espri-mere bene qualunche cosa ha la natura creato con penna, con stile, con carbone, con matita o con altra cosa”.

[93] Vasari, op. cit., vol. 1, p. 115.

[94] Federigo Zuccaro, L’idea de’pittori, scultori ed architetti, Roma, 1768 (1- ed. 1607), livro I, cap. XVII, p. 64.

[95] Idem, ibidem, livro 1, cap. II, pp. 6-7. 0 desenho interno é o “concetto formato nela mente nos-tra per poter conoscere qualsivoglia sia, ed operar di fuori conforme alia cosa intesa” ; com “Disegno interno io non intendo solamente II concetto Interno formato nella mente del pittore; ma anco quel concetto, che forma qualsivoglia intelleto […] Disegno interno […]è il concetto, e l’ idea, che per conoscere, e operare forma chis-sisia”. Idem, ibidem, cap. IIi, p. 8: “Disegno non è materia, non è corpo, non è acidente di sostanza alcuna, ma è forma, idea, ordine, regola, termine, o oggetto dell’intelletto, in cui sono espresse le cose intese”.

[96] Federigo Zuccaro, op. cit., livro 1, cap. III, p. 8.

[97] Idem, ibidem, livro II, cap. 1, p. 69.

[98] Idem, ibidem, livro 1, cap. II, p. 9: “Ove il termine dell’operazione esterna è cosa materiale, come la figura disegnata, o dipinta, […] il termine dell’operazione interna dell’ intelletto è una forma spirituale rappresentante la cosa intesa”.

[99] Idem, ibidem, livro II, cap. 1, pp. 68-9: “Dal Disegno interno nasce l’esterno […]; II Desegno esterno altro non è, che quello, che appare circonscritto di forma senza sostanza di corpo: semplice lineamento, circonscrizione, misurazione, e figura di qualsivoglia cosa immaginata, e reale […]. Questa linea […] chiamia-mo Disegno”.

[100] Federigo Zuccaro, op. cit., livro II, cap. VI, pp. 94-5. Cf. também passos sem relevância em: livro 1, cap. II, pp. 6-7; cap. III, p. 8.

[101] Idem, ibidem, p. 101. A polêmica com a matemática prossegue no texto (pp. 102-3), propondo Dürer como exemplo de excesso na inutilidade. Passo sobre o juízo do olhar (p. 102): “Conviene […] che tu ti facci si familiari queste regole, e misurare nell’operare, che tu abbi nelli occhi il compasso, e la squadra: e il giudizio, e la pratica nelle mani. Sicchè coteste regole, e termini mattematici non sono, e non possono essere nè utili, nè buoni”. Antes, Zuccaro recusa as proporções da figura humana. No passo, podem ser reconhecidos discursos de até 1520 (a data não é mais que indicativa para os meios tosco-romanos).

[102] Lodovico Dolce, Dialogo della pittura di M. Lodovico Dolce, intitolato l’Aretino. In: Fuentes y documentos, vol. IV, pp. 298-9 (texto já citado).

[103] Paolo Pino, op. cit., p. 270: “Si Tiziano y Miguel Angel formaran un solo cuerpo, o bien si al di-sefio de Miguel Angel se uniera el color de Tiziano, se les podría Ilamar el dios de la pintura, puesto que a la par son también dioses realmente; y quien sostiene otra opinión es fetidíssimo hereje”. Viu-se nesta passage proposta eclética, o que não é pertinente: ambos os deuses explicitam a excelência de dois conceitos, que compõem, inseparáveis, a pintura. Um pouco antes, o texto faz o elogio do jovem Bronzino como colorista; é discutível, pois, a inclusão dele no “Maneirismo” (que se define como arte do desenho e do design) que, certamente, não terá havido.

[104] Idem, ibidem, pp. 267-8.

[105] Idem, ibidem, p. 268. As cores são a um tempo dirigidas pela contrafação e por economia que as considera recíprocas, sendo elas harmonizadas, ainda, pelo claro-escuro.

[106] Gio. Paolo Lomazzo, Trattato dell’arte della pittura, scoltura et architettura, Milão, 1585, livro 1, cap. 1, pp. 22-3: expõe-se a inclusão dos temas da proporção e do movimento no desenho. Sobre afigura ser-pentinata, cita-se trecho de sua exposição que a atribui a Miguel Angelo: “[deve-se] fare la figura piramidale, serpentinata, & moltiplicata per uno, doi e trè. Imperoche la maggior gratia, & leggiadria che possa hauere vna figura è che mostri di mouersi, II che chiamano i pittori furia de la figura. E per rappresentare questo moto non vi è forma piú accommodata, che quella de la fiamma del foco”.

[107] Idem, ibidem, p. 19.

[108] Idem, ibidem, p. 19. A pintura imitadora é o símio da natureza: “è imitatrice, & come à dire si-mia de l’istessa natura, la cui quantità rilieuo, & colore sempre cerca di imitare” . Assim, desenho (quantidade, aqui), claro-escuro (rilievo) e cor vêm inseparáveis; embora claro-escuro e cor sejam expostos separadamente, os dois últimos podem vir associados e, em certa medida, confundidos. Sobre o colorido, cf. p. 25 (relativamente à imitação): “Procurerà dunque con ogni studio il pittore d’essere valente coloritore; poiche in questo consiste l’ultima perfettione de l’arte”.

[109] Idem, ibidem, p. 24.

[110] Lomazzo, op. cit., livro In, cap. u, p. 189: “Per essere têpo ormai di colorire II disegno di cui si è trattato sin qui, & farlo in pittura pia perfetta che si potrà; habbiamo in questo libro di trattare de’ colori, e delle loro amicitie, & inimicitie naturali, cosi per materia come per apparenza; & ancora della loro conuenienza

[111] Idem, ibidem, cap. VI, pp. 193-4

[112] Lomazzo, op. cit., livro I, cap. 1, p. 24: “È bisogno che’l pittore pigli alcuna cosa in vece de ma-teria, & questa è la quantità proportionata, laquale è la materia de la pittura. II che hanno de considerar molto i pittori, che’l medesimo vuol dire quantità proportionata, quanto disegno, & II medesimo è disegno che la materia sostantiàle de la pittura”.

[113] Idem, ibidem, cap. 1, pp. 24-5.

[114] Zuccaro, op. cit., livro II, cap. VI, p. 99. Aqui, o engano vem ligado a efeitos de realidade que a pintura produz: tradição ortoscópica, vinda da Antiguidade; é ao desenho e, principalmente, à cor que se atribui o engano como facécia: “Non meno ancora a’ tempi nostri sono stati si eccelenti imitatori del vero de alcu-ne cose, che hanno all’improvviso ingannato molti, come fragli altri un ritratto di Carlo V, di man di Tiziano, sí famoso pittore, e un altro di Leon X, di man di Raffael d’Urbino, fra gli eccellenti eccellente; i quali non solo ingannarono piú volte Principi, e Signori, ma il primo l’istesso figliuolo di Carlo V, il gran Filippo, che fu poi il monarca dei Re, e dell’uno, e l’altro emispero; il qual ritratto essendo messo davanti a un tavolino, in-gannato dall’artificio dei colori, cominciò a trattar seco negozi”. A anedota de Lomazzo é recontada por Zuccaro.

[115] Lomazzo, op. cit., pp. 27-8: “[Ticiano] hà voluto gabbare gl’ochi di tutti i mortali […]. Volse inchinare vn poco à l’estremo, & rileuare alquãto piú i muscoli, per demonstrargli eminenti, & fieri in que’ corpi ne’ quali la Natura gl’ hauea assotigliati, come nel corpo di Cristo, & in simili: cosi Titiano per dimostra-re la sua grãd’ art nel rappresentare gl’effetti del lume co’l cobre, quando volea mostrare la pane del corpo, doue percuote la luce con maggior vehemenza, & forza, solea mescolarni di color chiaro vn poco piú di cobre oscuro à parangone de la oscurità de la luce che fere in quella parte del corpo, il che fá rileuare molto la figura, & inganna la vista. [Segue-se análise dos efeitos óticos de luz.] […] E quando le prime parti del corpo rileuano troppo, & le vitime fuggono assai in dentro, para vn rilieuo miraculoso, il che la da à la figura vna furia mirabile; & di questo modo inganna Titiano gl’occhi humani, i quali con marauiglia, & stupore mirano, & considerano l’eccelenti opere sue”

[116] Idem, ibidem, p. 27; embora encareça Ticiano, outros pintores vêm distinguidos na relação de cor e sombra-luz, aqui equipotentes: “[Na observação] d’effetti che fa la luce co’l cobre furono miracolosi, & eccellenti Rafaello d’Vrbino, Leonardo Vinci, Antonio da Coregio, & Titiano, i quali con tanta sagacità, pru-denza, & arte imitarono il cobre insieme con la luce che le figure loro paiono piu tosto naturali, the artificiali. Onde trà l’altre cose si vedono ne le carnagioni de le sue pitture certe macchie, che l’imperito de 1′ arte non sà imaginarsene la cagione”.

[117] Idem, ibidem, p. 21.

[118] Giovan Pietro Bellori, Vite de’ pittors, scultori ed architetti moderni, Roma, 1672, in: Panofsky, op. cit., p. 129.

[119] Idem, ibidem, pp. 128-9.

[120] Bellori, op. cit. In: Fuentes y documentos para Ia Historia de/Arte. Vol. v, Barcelona, 1983 (ed. J. F. Arenas e B. B. i Hugas), p. 62: “Sucede que los cuerpos sublunares estan sujetos a las alteraciones y a la fealdad, y, a pesar de que la naturaleza intenta siempre obtener objetos excelentes por la irregularidad de la materia se alteran las formas, y en particular la belleza humana se confunde como vemos en las infinitas deformidades y desproporciones que hay en nosotros. Por esto los buenos pintores y escultores que imitan ese primer artesano tambiém se forman.en la mente un ejemplo de belleza superior y contemplándolo corrigen la na-turaleza sin errar en el colorido y en los contornos”.

[121] Idem, ibidem, pp. 62-3.

[122] Idem, ibidem, p. 63: “Zeuxis, que con la elección de cinco vírgenes formó la imagen de Elena, tan famosa al ser puesta por Cicerón como ejemplo en el Orador, ensefia a la vez al pintor y al escultor a contemplar la Idea de las mejores formas naturales, a hacer elección en vários cuerpos de lo más elegante. Pues él no pensó poder encontrar en un solo cuerpo todas las perfecciones que buscaba para la belleza de Elena, ya que la naturaleza no hace nada perfecto en todas sus partes”. Os autores e exemplos proliferam neste sentido.

[123] Giov. Baglione, Le vite de’ pittori, scultori ed. architetti, Roma, 1642, p. 138, in: Panofsky, op. cit., p. 96, nota 251.

[124] André Félibien des Avaux, Entretiens sur les vies et sur les ouvrages des plus excel/ens peintresi anciens et modernes, Paris, 1666-85, in: Fuentes, vol. v, p. 308.

[125] Idem, ibidem, p. 152

[126] Idem, ibidem, pp. 193-4.

[127] Lionello Venturi, Histoire de la critique d’art, trad. J. Bertrand, Paris, 1969, pp. 126-31.

[128] Marco Boschini, Le ricche Minere della pittura veneziana, Veneza, 1674, in: Fuentes, vol. v, p. 74.

[129] Idem, ibidem, p. 76. 0 escorço é proposto como deformação que ilude (tal ilusionismo é convencional, remontando ao século xv). Referindo-o na valorização da pintura às expensas da escultura (volta o paragone do início do século xvi), escreve: “0 escultor pode servir-se de todas as medidas sem limitação, enquanto o pintor forma sem forma, isto é, forma com a deformidade a, na aparência, verdadeira forma”.

[130] Idem, ibidem, pp. 76-7

[131] Roger de Piles, L’art de peiniure…, Paris, 1673, in: Fuentes, Vol. v, pp. 195-6.

[132] Idem, ibidem, p. 196.

[133] Idem, ibidem, p. 197.

[134] Idem, ibidem, p. 198.

[135] Henri Testelin, Sentimens des plus habiles peintres …, Paris, 1696. In: Fuentes, vol. v, pp. 209-13

[136] Idem, ibidem, pp. 212-3.

[137] Idem, ibidem, pp. 7

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