A fonte do desejo em Goya
por Fayga Ostrower
Resumo
Entenda-se desejo como força elementar presente em todo homem, tal como um anseio sem objetivo determinado, rumo ao “ser” ou ao “realizar-se”. A metáfora é a da semente que “quer” nascer, brotar e desenvolver-se dentro de sua essência. Logo, o desejo é global; como algo originário, inclusive. No início da vida humana, ele está em aberto. Assim, não há identidade de antemão, mas, consideradas potencialidades inatas, uma persistência em si por meio de reações e escolhas vida afora. “Leitmotiv”, choque, impulso, o desejo é algo tão profundamente enraizado que se torna difícil de explicar. Nesse sentido, não há modelo. Daí, todo um trabalho de descoberta pessoal ao longo da vida.
Assim, não é absurdo procurar analisar Goya a partir do que ele desejou ser, realizou e, até hoje, é. O quê? Um grande poeta da alma. Por que assim defini-lo? Porque o nível poético é o mesmo da realidade da vida, uma vez que o mais elevado da criação, motivo pelo qual, ao condensar a essência da experiência, a poesia – ao contrário do que se costuma pensar – aproxima-se da natureza, que “é”, assim como a poesia. Eis porque, quando se trata de um artista maior, trata-se de um poeta maior, cuja capacidade consiste em vivenciar profundamente a vida e também, diferente dos filósofos, em poder dar forma sensual aos valores dela.
A obra de Goya é moderna. Atual até. Por isso é fácil esquecer que nasceu na Espanha do século XVIII, o que não pode ser, de modo algum, ignorado, por dura que era tal realidade.
Tributos pesadíssimos. Cidades decadentes. Hordas de mendigos. Vinte por cento da população do país constituídos de miseráveis. Corrupção deslavada. Ignorância generalizada. Ou seja: todo peso da Coroa e da Igreja, no auge da inquisição.
Por outro lado, começo da difusão das ideias liberais e iluministas, com as quais Goya identificou-se inteiramente.
Para que se entenda a obra de Goya, tal contraste é essencial, sobretudo porque, na época, ou se trabalhava para a Igreja, ou para o rei. A começar por aquela, Goya pintou, sim, madonas e crucificações – burocraticamente. Era que elas não lhe falavam. Não demorou até que brigasse com as autoridades eclesiásticas.
Já a serviço do rei, pintou 41 composições destinadas à tapeçaria. Representações de costumes de época, como festas, divertimentos populares e brincadeiras infantis. Sob influências holandesa e francesa, pintou quadros bem compostos, bonitos, claros, brilhantes. Mas, aos poucos, as imagens foram se tornando mais complexas e contrastadas. Começava a despontar o estilo de Goya, denso, inclusive emotivamente.
Com o tempo, ele começaria a expressar a dignidade e a liberdade dos retratados, sobretudo os de origem popular. Começa a observar-se a elaboração interior do artista e, com isso, sua liberdade de expressão.
Surgem, então, novos conteúdos, a exemplo do vasto quadro que retrata uma colheita. Enfim, “A nevada”, em que se registram, no frio, a pobreza e a dor.
Mestre da pincelada necessária, direta e significativa, Goya torna-se, a essa altura, retratista célebre.
É o auge do sucesso – menos no íntimo do ser de Goya, que sofre um colapso nervoso que imobiliza suas mãos. Fica surdo para o resto da vida. Parcialmente reabilitado, volta-se para pequenos quadros cujos temas devem aos sonhos, sofrimentos e aspectos psíquicos recônditos, como se vê em “A casa dos loucos” e “O enterro da sardinha”.
Claro esteja que, ao expor o irracional, Goya não deprecia em nada a razão; afinal, é ele um iluminista. Sua obra é, pois, uma fusão entre intensidade emocional e lucidez.
É por essa época que Goya começa a trabalhar nas oitenta gravuras reunidas sob o título “Caprichos”, pelas quais se tornará célebre.
Muitas pinturas brilhantes se seguirão, a exemplo de “Majas no balcão”, “Maja nua”, “Maja vestida”, “Fuzilamento de 13 de maio”… Serão ainda 30 anos de atividade.
Fato é que quando morre, aos 82 anos, Goya tinha realizado um desejo: o de ser Goya.
Parto da noção do “desejo” como uma força elementar que existe em cada um de nós, entendendo-o num sentido global, como um anseio inicialmente sem objetivos determinados. É um desejo de ser e de realizar-se — assim como uma semente “quer” nascer, brotar e desenvolver-se em suas formas características de existência. Transformando-se, pelo mero fato de sua presença, em necessidade interior, o desejo mobiliza as aspirações das pessoas e os eventuais caminhos da realização de suas potencialidades.
Neste sentido, o desejo de ser aproxima-se bastante de uma noção da física moderna que, em suas buscas de estruturas fundamentais do universo, penetrando e ultrapassando as estruturas de moléculas, átomos, partículas subatômicas, ondas e campos de energia, chega a um estado ulterior tão abstrato, mas ao mesmo tempo tão concreto, como a inquietude da própria matéria. Ninguém sabe definir o que seria a inquietude da matéria — mas, em tudo o que percebemos, nós a descobrimos através das múltiplas formas de sua concretização e seu desenvolvimento.
Quero frisar o caráter global do desejo, constituindo a força e fonte de nossas aspirações. No início de vida das pessoas, essa força está, por assim dizer, “em aberto”, indefinida. Evidentemente, Goya não poderia de antemão desejar ser “Goya”, pois ele nem sabia o que significaria tornar-se um Goya. Tampouco quanto às alegrias e tristezas que o aguardavam, ele poderia prever as circunstâncias concretas de seu viver, e nem de que modo ele haveria de entender e de reagir aos vários desafios que encontraria pela vida afora.
O desejo de ser corresponde assim, simultaneamente, à busca de realização de certas potencialidades inatas à pessoa e à busca de sua identidade. Em cada um, esse desejo constitui a força motriz, a tensão e o impulso incessante a moverem a pessoa a vida toda. É algo tão profundamente enraizado e tão nas entranhas do ser, que as pessoas nem saberiam explicar o que é, mas sentem que existe nelas e estão procurando sua realização o tempo todo e das maneiras mais diversas. Não existem modelos para tal realização. Cada um tem de descobri-la por si mesmo. Assim, quando o indivíduo começa a viver, ele começa a empreender uma viagem ao desconhecido. Ele ainda não sabe quem ele é — mas vai descobri-lo através do viver. São as colocações da vida e as respostas que a pessoa for capaz de dar, que vão revelar sua identidade única, sua capacidade de crescimento e sua estatura interna.
Ainda uma observação ao introduzir o tema: Goya é o grande poeta da alma humana. Por que essa observação? Porque o nível poético é o nível da realidade da vida. Em qualquer uma das artes, ele deve ser entendido como o nível mais elevado a ser alcançado na criação artística. Condensando a essencialidade da experiência de vida, a poesia se aproxima de uma maneira extraordinária da própria Natureza; não se afasta dela. A Natureza é; e a poesia é. Por isso, quando falamos de um grande artista, artista maior, estamos nos referindo ao, mesmo tempo a um poeta maior, cuja capacidade consiste em vivenciar profundamente a vida e também (o que o distinguiria de um filósofo) em poder dar forma sensual às suas vivências e aos valores da vida. Condensando-os nos termos sensuais da linguagem artística, ele nos mostra claramente, e objetivamente, a realidade do viver.
A obra de Goya é de tal modo moderna e atual que é fácil esquecer ter ele nascido em 1746, pertencendo, portanto, historicamente, ao século XVIII. Quero dar aqui alguns dados sobre a situação da Espanha na época — sobre o contexto de vida de Goya — a fim de termos referências mais concretas e podermos avaliar melhor seu caminho particular e as formas expressivas de suas buscas e conquistas. Sua vida e sua obra são tão estreitamente interligadas, que seria impossível entender uma sem a outra e, sobretudo, entender o quanto Goya, ao finalmente encontrar-se, ultrapassa o próprio contexto histórico social para identificar-se com a problemática universal da condição humana. Seria impossível, também, avaliar a coragem e coerência de Goya.
No século XVIII, a Espanha era um dos países mais retrógrados da Europa. Tendo perdido as antigas colônias e suas ricas minas de ouro e prata, e incapaz de desenvolver qualquer indústria própria, os pesadíssimos tributos e impostos cobrados à população constituíam praticamente a única fonte de renda do país. As cidades se encontravam em franca decadência. Hordas de mendigos vagavam pelas ruas. A miséria era tão grande que 1/5 da população de Madri vivia de caridade pública, alimentando-se da famosa “sopa dos mosteiros”. À pobreza e ignorância da população correspondia uma corrupção generalizada, as negociatas de títulos, privilégios e cargos representando apenas um efeito “natural” da situação. Só para se fazer uma ligeira ideia do estado de coisas: para uma frota composta de quinze navios de linha e fragatas, havia: um grão-almirante (que era o amante da rainha), dois almirantes, 29 vice-almirantes, 63 contra-almirantes, oitenta capitães de navios de linha e 134 capitães-de-fragata. Igualmente, para um exército de 50 ou 60 mil soldados havia: um generalissimo (que era o mesmo amante darainha), cinco generais, 87 tenentes-generais, 127 marechais, 252 brigadeiros e 2 mil coronéis.
O país era governado pela Coroa e pela Igreja. Quer dizer, a Coroa e a nobreza, havendo ainda uma considerável diferença entre a alta e baixa nobreza: alguns poucos nobres riquíssimos, e muitos e muitos nobres que não possuíam sequer um cavalo e estavam vagando pelo país à procura de algum serviço. A Igreja era o maior latifundiário do país. Além disso, detinha o monopólio da educação e também da censura, através da Inquisição (que permaneceu ativa na Espanha até meados do século passado!), exercendo assim todo o poder sobre a imaginação e as emoções das pessoas. Por um lado, havia cerimônias das mais suntuosas, procissões com relíquias cobertas de ouro e pedras preciosas, e, por outro, os “disciplinantes” que acompanhavam as procissões, flagelando seu corpo nu com chicotes e arrastando-se cobertos de sangue atrás das imagens santas. Quando a hóstia sagrada era levada pelas ruas, todos tinham de abrir caminho. O próprio rei, ao encontrá-la, saía de sua carruagem. Quando o padre a carregava e passava por um teatro, o espetáculo era interrompido e todos se punham de joelhos até o porteiro anunciar que o sino do padre não era mais audível. A comunhão anual era obrigatória e dava direito a um certificado, uma espécie de folha corrida, sem a qual nenhum documento oficial poderia ser tirado na Espanha. Pode-se dizer que a Espanha havia regredido a certas formas medievais, sem, no entanto, conseguir preservar a vitalidade dos valores espirituais da Idade Média.
É preciso ter em mente essa realidade social, contrastando com as ideias liberais e iluministas que circulavam na Espanha, quase como prenúncio da Revolução Francesa, e com as quais Goya veio a se identificar inteiramente. Do contrário, poderiam surgir certos equívocos, ao se projetar uma imagem moderna às condições do século XVIII, ou ao se interpretarem as formas expressivas de Goya em termos individuais que pertencem ao nosso contexto, do século XX. Também perderíamos os parâmetros verdadeiros e, com isso, a possibilidade de entendermos a ousadia de espírito de Goya e a dignidade no seu desenvolvimento, como artista e ser humano.
Francisco José de Goya y Lucientes nasceu em 30 de março de 1746, numa cidadezinha chamada Fuendetodos, perto de Saragoça, na região de Aragão. Embora a mãe fosse de descendência aristocrática, a família era muito pobre. O pai era dourador de molduras. Quando ele morreu em 1781, não fez um testamento porque, como constatou o notário, “não havia bens a legar”. Aos catorze anos, Goya foi trabalhar como aprendiz de um decorador de igrejas em Saragoça.
Aqui começa o caminho do artista. É claro que ele não tinha ideia alguma de que um dia chegaria a ser “Goya”. De fato, seu desenvolvimento, sobretudo no início, foi bastante lento, levando muitos anos.[1] Então, aos catorze anos, Goya entra no ateliê do pintor José Luzán y Martinez. Ao dezessete anos, ele vai a Madri, inscrevendo-se na academia de um artista já mais conhecido, Francisco Bayeu. Este viria a ser cunhado de Goya, que mais tarde casa com Josefa, irmã de Bayeu. Passam-se bem uns dez anos, nos quais Goya tenta obter alguma encomenda, algum trabalho profissional. Ele volta a Saragoça. Volta a Madri. Volta novamente a Saragoça e Madri. Depois, aos 25 anos, ele vai à Itália, lá passando vários meses ou talvez um ano. Contam-se histórias sobre aventuras amorosas e fugas espetaculares, revelando a valentia e o orgulho de Goya. Mas, num nível mais profundo, a estadia na Itália não deve ter sido muito importante para Goya, já que em sua obra praticamente não se detectam influências da arte italiana, renascentista ou barroca. Ele viria a conhecer a obra de Tiepolo, mas isso mais tarde, na própria Espanha.
Goya voltou à Espanha… e continuou não encontrando trabalho. Na época, só havia duas opções para os artistas: ou trabalhavam para a Coroa ou para a Igreja. Inicialmente, Goya até recebeu uma ou outra encomenda para pintar quadros religiosos, madonas, crucificações, através de Francisco Bayeu, que nascera em Saragoça. Das obras que ainda existem daquela época (e que hoje se encontram no Museu do Prado), vê-se que são pinturas corretas, porém desinteressantes, acadêmicas e convencionais, bem ao gosto oficial da época. Goya deve ter tentado “passar nos exames”, procurando de todo modo construir uma base profissional para sua vida. Mas sua alma não estava aí. No final, Goya acabou brigando com as autoridades eclesiásticas — de fato, ele tinha um temperamento bastante impulsivo — e resolveu ir de vez para Madri. E lá, pela primeira vez, recebeu a oferta de uma posição profissional. Goya — entre outros jovens artistas de quem nunca mais se ouviu falar — foi chamado para trabalhar na recém-inaugurada Tapeçaria Real. Sua tarefa consistia em pintar composições (projetos), que depois deviam ser transformadas em tapeçarias para os palácios do rei.
Estamos em 1776. Goya tinha trinta anos quando recebeu o convite. Esse convite era da maior importância. Não só significava um emprego constante (que lhe permitiu casar com Josefa) e um programa de trabalho interessante, como ao mesmo tempo permitiu a Goya entrar em contato com os “ilustrados” e identificar-se concreta e profissionalmente com as aspirações iluministas do Partido Liberal (que reivindicava formas de governo mais democráticas que a monarquia absolutista que reinava na Espanha). Goya permaneceu na Tapeçaria até 1788, e durante esses doze anos criou 41 pinturas. Nem sei se todas serviram como cartões de tapeçaria — na verdade, nunca tive o menor interesse em ver essas lindas pinturas transformadas em ponto de cruz ou algum outro ponto de tapeceiro.
No início, e de acordo com a vontade oficialmente expressa do rei, a temática das tapeçarias girava em torno da representação dos costumes da época, festas, divertimentos populares, brincadeiras de crianças. Nas imagens que então criou, Goya apoiou-se na pintura de gênero holandesa e certas influências francesas, a partir dos artistas com quem ele, afinal de contas, aprendeu a pintar. São quadros bem-compostos, bonitos, de tons claros e brilhantes, como a pintura intitulada Moças com cântaros.
Mas, aos poucos, as imagens tornavam-se mais complexas, surgindo certos contrastes formais e certas caracterizações individuais, acompanhando uma densidade maior na composição e também no clima emocional. O conteúdo já ultrapassava meros sentimentos prazerosos ou divertimentos, e até mesmo a intenção de compor uma imagem bonita. Goya começava a se encontrar.
Entra agora a temática de majas e majos, figuras quase que lendárias na Espanha. De um modo geral, as majas e os majos pertenciam às classes sociais inferiores; eram feirantes ou domésticos, ou talvez artesãos. Mas eles tinham um comportamento social bastante livre, nada convencional. Não casavam, juntavam-se trocando presentes (mesmo estando casados com outros e continuando casados), ou separavam-se destrocando os presentes. Nos dias de festas, eles se exibiam com trajes ricos, bordados, cobertos de rendas, faixas, cetins e veludos. Eram alegres e insolentes, até mesmo arrogantes. Ao mesmo tempo havia em sua postura um grande orgulho e uma altivez, um sentido de independência individual. Esse comportamento, em que se misturavam orgulho próprio e dignidade, como que incorporava a alma da Espanha, o espírito livre. E assim como na França os nobres se fantasiavam de pastores e pastoras, também na Espanha os nobres, e até mesmo os reis, se vestiam de majos e majas. Era uma espécie de símbolo étnico, uma identidade do povo, ainda que imitada pela aristocracia, uma certa maneira de ser, maneira espanhola.
É interessante observar essa temática surgir nas obras de Goya e ver como ele a transforma em conteúdo expressivo; e é igualmente interessante acompanhar como aos poucos o próprio conteúdo se transforma. Se, a princípio, Goya acentua a independência e altivez dos majos, ou nos mostra a “majeza” como forma de romper as barreiras entre as classes sociais (no fundo, uma ilusão), mais tarde ele irá mostrar uma outra face, certas contradições e conflitos existenciais ou mesmo sociais — pois essa sublimação também era utilizada para, apelando à passividade e ao medo das pessoas diante de mudanças sociais, impedir a entrada de ideias novas e progressistas. Em nome das tradições, a majeza acabou tornando-se símbolo para um conservadorismo que hoje diríamos “reacionário”.
Por ora Goya salienta em suas imagens a dignidade e liberdade interior das pessoas. Há sempre certa angularidade na postura do corpo, a cabeça erguida, alta, os ombros recuados, um estreitamento pronunciado na cintura, um alargamento nas saias, um novo estreitamento nos pés, que terminam em ponta.
Com isso, Goya cria tensões espaciais muito características de seu estilo, que será reconhecido à primeira vista. As composições das tapeçarias adquirem agora uma grandeza e um peso maior que nas obras anteriores. Por exemplo, o quadro chamado Venda de cerâmicas.
No primeiro plano vemos feirantes sentados, conversando, gesticulando e oferecendo suas tigelas; em seguida, no plano médio, em torno das grandes rodas há uma movimentação maior de criados, e, no fundo, o rosto da dama olhando através do vidro da carruagem. Vejam o detalhe do rosto. Que linda pintura! Há nessas transparências alguma coisa nova, um sentido de fluidez que não existia antes. Observem como em momento algum as pinceladas perdem a tensão interna ou a delicadeza, e como tudo flui de um modo extraordinariamente livre e justo. Olhar para uma pintura como essa nos proporciona um profundo prazer. Por isso, seria um absurdo transformá-la em tapeçaria. A pintura é inteiramente sentida e realizada em termos de pintura.
Com o passar dos anos, começam a entrar certos sobretons heroicos, e até mesmo trágicos, na temática em si tão inocente de divertimentos populares. Podemos citar, por exemplo, o quadro em que se observa, no meio do povo, a figura de um tocador de guitarra, cego, acompanhado por um menino. Nele pode-se perceber que Goya começa a usar contrastes de claro/escuro — o grupo no primeiro plano, em tons claros, contraposto ao grupo escuro, no fundo — para dar uma dramaticidade maior à cena. Também reparem como as pinceladas se tornam, não vou dizer subjetivas, mas certamente pessoais. O estilo de Goya se define mais claramente.
Na sequência das tapeçarias, podemos acompanhar todo um processo de crescimento e elaboração interior do artista. Vemos Goya conquistando sua liberdade, sentindo a própria técnica de pintar desdobrar-se em possibilidades expressivas novas e diferentes. Os problemas de técnica agora se transformam em problemas de formas expressivas. E também surgem novos conteúdos. Entre as grandes imagens da série há o quadro Colheita. É uma pintura monumental, com mais de quatro metros de largura. Nela, Goya também nos dá um depoimento sobre o sentido da vida. Colheita: é a plenitude do ser, do viver, os camponeses estão descansando do trabalho, o pai brinca com os filhos, os animais estão deitados ao lado dos montes de feno, repousando; em tudo há uma luminosidade e uma paz muito grande. Esse quadro é uma maravilha de composição; em tamanha escala monumental não perder-se em detalhes e manter a unidade do todo por ritmos internos e pela tensão espacial é algo que só um grande artista consegue fazer. Da última fase das tapeçarias, vemos A nevada.
Nessa imagem, Goya já está muito longe de brincadeiras de cabra-cega, piqueniques etc. Aí ele mostra uma outra realidade de vida: inverno, o frio, a pobreza, a dor, o sofrimento. De fato, tanto esse quadro quanto o próximo foram recusados por serem pouco apropriados como cartões de tapeçaria. Realmente não eram temas que convinham ao rei ter em sua sala de jantar. O segundo quadro recusado mostra dois operários ajudando um ferido a levantar-se. Constitui uma temática social absolutamente inédita para a época. Goya não só era profético em termos de estilo dos próximos séculos, ele também era profético em relação a seu próprio estilo. Veremos como, mais tarde, ele retoma o mesmo tema e modifica o seu conteúdo.
Nesta década, Goya começa a receber encomendas de retratos e em relativamente pouco tempo torna-se um dos retratistas mais solicitados de Madri. A princípio, seu estilo é influenciado pela pintura francesa. Vejam o retrato da marquesa de Pontejos.
Tudo nos lembra o Barroco francês passando ao Rococó, com sua estilização e o delicado colorido em tons de pastel e cinzentos. Mas, já no retrato que faz de seu cunhado Francisco Bayeu, Goya entra num caminho bastante mais “realista”. Quero usar essa palavra entre aspas, pois Goya nunca procurou o Realismo como estilo. O que observamos aqui é o abandono da estilização rococó em busca de uma caracterização psicológica mais profunda. Ao mesmo tempo, a pintura se torna mais solta e fluida, não só nas feições das pessoas como também na representação dos trajes, dos interiores ou das paisagens em volta. Podemos vê-lo mais uma vez no retrato que Goya faz de sua mulher, Josefa. O retrato é de uma intimidade muito grande. Os traços finos do rosto, os véus brancos, esses brancos transparentes sobre brancos opacos, brancos contrastando com os tons de cinza das luvas, com o preto e ocre das mangas. Não há uma só pincelada que seja apenas ornamental, que seja demais e que o artista pudesse ter cortado. Tudo é necessário e direto, e tudo se torna significativo. Uma obra belíssima. — Goya teve vários filhos com Josefa (uns dizem vinte, outros dizem cinco), porém, assim como no caso de Rembrandt, de todos apenas um único filho sobreviveu, Xavier, demais querido e amado por Goya.
Através dos retratos, muitos da alta nobreza espanhola, Goya torna-se famoso. Vejam o retrato da duquesa de Alba (Fig. 2), uma das mulheres mais belas e mais célebres de sua época, com quem Goya teve um caso amoroso — aliás, uma grande paixão que depois se transformou em grande amizade até a morte da duquesa (que era bastante mais jovem que Goya e morreu em 1802). Deve ter sido uma relação nada simples de ambas as partes. Goya pintou e gravou as feições da duquesa várias vezes, mostrando tanto sua beleza e atração física quanto seu caráter caprichoso e inconstante. Há mundos profundamente inquietantes nessas imagens. No presente retrato da duquesa, usando trajes de maja, com a mão apontando para baixo, vemos dois anéis, o do dedo médio mostrando o nome “Alba” e o do indicador “Goya” (Fig. 2). O dedo aponta para uma inscrição no chão de areia, onde pisa o pé da duquesa e onde se lê: “Solo Goya” [Somente Goya].
Uma nova encomenda chega a Goya: murais para uma pequena capela que havia sido restaurada, a Igreja de San Antonio de la Florida, em Madri. As pinturas de Goya encontram-se nas paredes laterais do altar e sobretudo na cúpula. O tema: santo Antônio ressuscitando um morto, que fora assassinado, para ele revelar o nome do verdadeiro assassino e com isso inocentar uma pessoa presa. Goya pintou esses murais em 120 dias, apenas quatro meses. Antes de mostrar alguns detalhes, quero que vejam a altura da cúpula e como Goya a utilizou para sua composição.
Ele concebe uma espécie de balaústre circular, onde se vê a população assistindo ao milagre de santo Antônio. Vemos homens, mulheres, crianças, nobres, mendigos, todos reunidos numa grande festa popular. A pintura é tão espontânea que lembra Degas ou Toulouse-Lautrec. Reparem só como o grande pano branco jogado sobre o muro compõe uma cena e leva adiante o nosso olhar, para encontrarmos a figura belíssima da mulher pensativa e, atrás dela, um homem levantando o braço num gesto de admiração.
Todas as pessoas são mostradas participando do evento de um modo ou de outro, enlevadas, assustadas, reflexivas. Só uns garotos não sabem de nada; eles pulam em cima do muro e brincam. E isso faz parte do milagre também. A imagem parece mais um festival pagão, de plenitude e exuberância de vida, que uma solenidade eclesiástica. — De fato, desde cedo Goya era violentamente anticlerical. Mas ele também era místico, o seu misticismo identificando-se com uma visão panteísta da vida. Os anjos, nas paredes laterais, nos seduzem com a beleza de sua presença corpórea e sensual, a sensualidade do próprio viver.
A carreira de Goya continua em ascensão. Em 1780, ele é nomeado pintor da Academia Real, e, em 1790, pintor da Câmara Real. Em termos de carreira profissional, essa nomeação era a mais alta distinção que um artista podia alcançar. Além das honrarias, porém, ela envolvia uma série de obrigações, entre outras, principalmente, a de pintar os retratos dos reis e de toda a família real. No caso, tratava-se de Carlos IV, que havia assumido o trono, da rainha Maria Luísa e de seus filhos, mas também de seu amante, Manuel Godoy. Depois entrarão na fila o rei José Bonaparte, o duque de Wellington e, na Restauração, Fernando VII, figura sinistra na história espanhola e desprezada solenemente por Goya, mas que ele teve de retratar quatro vezes.
A questão era do foro íntimo de Goya e muito delicada. Diante dos retratos que ele pintou, nós ficamos simplesmente encantados, como também encantados deviam ter ficado os próprios reis, tamanho é o esplendor da pintura.
Mas não há artista menos cortesão que Goya. Nem ele perde a individualidade de seu estilo. Vejam como ele é capaz de retratar a rainha como uma mulher inteligente, mas também egoísta e cruel. Nunca, porém, é um insulto que ele faz ou uma caricatura. As coisas se passam em outro nível. Goya tem de pintar os retratos; não há alternativas. Mas jamais ele se rebaixa, mesmo quando tem de pintar um Manuel Godoy. Este não passa de um playboy, um garotão de 24 anos que vai ser amante da rainha. E ela, quando nasceu seu 13º filho, nomeou Godoy (talvez pai da criança), duque de Alcádia, ministro das Relações Exteriores, secretário da rainha, superintendente-geral das Estradas, superintendente dos Correios, presidente da Academia Real, presidente do Instituto de História Natural, do Jardim Botânico, do Observatório Astronômico, com todas as rendas que, acumuladas, chegavam a mais de 1 milhão de reales, uma fortuna na época. — Não dá mesmo para respeitar figuras como essas.
Então Goya tem de retratar Manuel Godoy, o chamado “Príncipe da Paz”; ele não poderia fugir a essa tarefa. E evidentemente tem de retratar o rei Carlos IV, outra figura pouquíssimo inteligente e nada sensível.[2] Mas Goya nunca perde a dignidade. Obviamente não haveria de ter grandes identificações íntimas, e Goya produz retratos “oficiais”. Ele senta o rei em cima de um cavalo, retrata sua fisionomia e o uniforme com todas as medalhas e condecorações, enfim, toda essa parafernália oficial — e, de resto, ele vai pintar. Nessa pintura equestre, como são lindas as manchas brancas na barriga e na testa do cavalo, como retomam o brilho do riacho prateado e contrastam com a paisagem do entardecer: tudo já prenuncia a sensibilidade do Romantismo. Mas nos retratos que o próprio artista escolhe — e aqui estou mostrando obras de diversas épocas — há ainda outra luminosidade, outro calor, outro encontro de emotividade, outra empatia, tanto no que diz respeito à pintura quanto à pessoa retratada. Vejam o retrato de um grande amigo de Goya, dom Ramon Satué.
É um homem que está diante de nós, com a maior naturalidade, sem pose. Tudo é direto: o olhar, a postura, a presença, assim como nos quadros de Rembrandt. Observem a fluidez das pinceladas e as transições de uma cor que vai “deslizando” para outra pessoa, nesses pretos-brancos-vermelhos, os ritmos que são soltos e firmes ao mesmo tempo. — Nessa esplêndida série de retratos que produziu, e que foi crescendo em profundidade psicológica e complexidade estilística, Goya nos deixou um documento das personalidades de sua época, homens, mulheres, e também crianças que ele pintou corn grande ternura.
Goya se encontra no auge do sucesso. Ele tem uma casa bonita, carruagem, empregados; recebe muitas encomendas e convive com a aristocracia em pé de igualdade. Ele se encontra a grande distância de Fuendetodos. Sucesso! Mas, se na superfície tudo parecia ir muito bem, por dentro as coisas não eram fáceis.[3] No fundo de seu íntimo ser, Goya havia chegado a um limite crítico no equilíbrio de sua sensibilidade. Em 1792, Goya sofreu um colapso nervoso, ficando parcialmente paralisado, sem poder mover suas mãos. Quando depois de um ano saiu da crise nervosa, permaneceu surdo o resto da vida, como Beethoven.
Quando Goya se refez, iniciou uma série de pinturas pequenas, sobre as quais ele comenta numa carta a dom Bernardo de Iriarte, vice-presidente da Real Academia de Belas Artes:
Para ocupar minha imaginação tão atormentada pela minha doença, e para compensar as grandes despesas que esta me causara, decidi fazer algumas pinturas pequenas; nelas pude introduzir observações que seriam impossíveis em encomendas, onde a fantasia e a invenção pouco podem expandir-se.
Essas pinturas são pequenas, mas apenas no tamanho físico (medindo mais ou menos 60 X 80 centímetros). Nelas, Goya mostra uma temática e um conteúdo expressivo inteiramente novos. É o mundo psíquico, com seus sonhos e sofrimentos, as profundezas escuras do irracional. Um bom exemplo é o quadro A casa dos loucos, no qual aparecem um louco vestido de imperador, outros dançando nus ou cantando, e, atrás, os espectadores. Na época, o asilo de loucos era uma espécie de casa de espetáculos, que as pessoas visitavam nos fins de semana como se fosse um circo. Então vemos, no fundo do quadro, as pessoas com máscaras vedando o rosto, espectadores desse triste espetáculo. Goya mostra os loucos como prisioneiros de sua própria doença. E quem diz que os imperadores são menos loucos que os loucos dentro do asilo, fantasiados de imperador? Mas Goya não moraliza. Ele mostra realidades psíquicas recônditas que também existem como realidades humanas. Por exemplo, no quadro O enterro da sardinha.
Trata-se de uma dança carnavalesca, da quarta-feira de cinzas. É só uma dança, mas reparem o quanto essa dança se torna macabra, quão pouco alegre ela é. Com seus movimentos mecânicos, as pessoas parecem uns bonecos, marionetes; os grandes intervalos que se abrem em formas triangulares; os contrastes de preto/branco nas roupas e, dominando a imagem, o riso sardônico na bandeira escura: tudo traz um teor de angústia. Essa é uma dança da morte. Nada é inocente, por mais inocente que pareça na superfície. Existe uma outra face por debaixo da superfície que completa a realidade humana.
Os aspectos irracionais e macabros que entram na obra de Goya como que prenunciam o Romantismo do século XIX. No entanto, cabe fazer uma distinção nítida e fundamental entre a atitude de Goya e a dos românticos, por mais que estes possam se sentir influenciados pela obra daquele. O estilo de Goya não é romântico. Na exaltação do irracional acima do racional, das emoções acima da razão, o Romantismo foi um movimento que se opunha à mentalidade industrial e à sua atitude fria, utilitarista e quantificada. Goya não conheceu a industrialização, pois na época a Espanha não era industrializada. De qualquer modo, a visão de Goya transcende o Romantismo, pois ela não contém dicotomias. Revelando-nos as forças do irracional, Goya nunca o faz em detrimento do racional ou em oposição a ele. Jamais ele abandona o Iluminismo, a consciência e a razão. Ao contrário, é justamente em nome desses ideais, na noção de uma consciência mais abrangente e mais sensível, uma verdadeira conscientização, que ele nos fala com tanta paixão. Seu estilo caracteriza-se por esta fusão da máxima intensidade emocional e máxima lucidez. Nem tampouco há na obra de Goya uma apologia do monstruoso. Compreendendo o poder do irracional (do “inconsciente”, como diríamos hoje), Goya jamais sucumbe às atrações do mórbido e satânico que existem tão óbvios no Romantismo, na sua fuga ao exótico, extraordinário e fora do comum. Tanto nas gravuras dos Desastres da guerra como nas pinturas negras, Goya denuncia a crueldade e violência das mortes, e denuncia justamente a estupidez dessas mortes; nunca há uma exaltação da morte, quase como um prazer eroticista na morbidez, que é um aspecto encontrado na arte romântica. Penso que esse ponto precisa ficar. bem claro, para podermos compreender Goya em sua verdadeira grandeza, sem certos aspectos “goyescos” que foram romantizados e, de fato, falsificados.
Vejamos agora o quadro Majas no balcão.
De novo nos encanta o esplendor da pintura, das transparências belíssimas nas figuras e nos panejamentos, cada pincelada parecendo carregada de joias. Mas debaixo da beleza há um clima profundamente inquietante e ameaçador. Isso fica mais evidente ainda se comparamos o quadro de Goya com uma versão que Manet fez sobre o mesmo tema, Mulheres no balcão, claramente inspirado por Goya e no qual também mostra duas mulheres na varanda, pajeadas por dois homens.
Na obra de Goya, os dois majos no fundo aparecem como pesadas silhuetas escuras, somente uma parte de seus rostos estando iluminada, debruçando-se sobre as mulheres. Sua posição inclinada, o intervalo angular vazio entre os chapéus, os contrastes marcantes de claro/escuro, e as grandes tensões espaciais que assim criam, tudo condensa uma carga emocional de conflitos. Em Manet, nada disso acontece. As mulheres na sacada, e os homens atrás delas, se divertem olhando para o movimento da rua. A versão de Manet não deixa de ser uma linda pintura, prazerosa e de grande sensibilidade, mas, em termos de conteúdo expressivo, seria como um Goya domesticado, urbano. Nada de inquietante, nada que aponte para um mundo misterioso e irracional que existe ao lado do racional. Mais uma vez quero chamar a atenção para esse fato, porque Goya era essencialmente um iluminista. Ele acreditava na razão, embora ao mesmo tempo reconhecesse o quanto existe de não-tão-claro e não-tão-equilibrado em cada situação de nossa vida.
Quero mencionar outros quadros famosos: Maja nua e Maja vestida. Ao público que acorre ao Museu do Prado, os guias contam que esses quadros representam a duquesa de Alba. Goya a teria retratado primeiro nua e depois, quando foi informado de que o duque, num acesso de ciúmes, iria visitar a mulher, Goya teria pintado rapidamente outra versão, da duquesa vestida de maja. E com isso o público vai embora, satisfeito por “ter entendido” os quadros. Que ridículo! Mesmo que o duque de Alba tivesse sido ciumento, em que isso pode nos interessar? E seria esse um motivo para querermos ver, e sobretudo rever, as pinturas de Goya, comovendo-nos cada vez de novo? Não. Não interessa a ilustração de uma anedota banal; interessa é ver os quadros. Ver. Ver as cores, as formas. Manet viu muito em Goya. Toulouse-Lautrec viu Goya. Picasso viu Goya. Os artistas vêem e amam Goya. Ele tem tanto a dizer à nossa sensibilidade. Ele sabe pintar o branco e o preto, duas cores dificílimas de ser pintadas. E suas formas! Sensuais e espirituais, e profundamente comoventes. Nas imagens das majas reconhecemos novamente o estilo de Goya, os brancos deslumbrantes, e como ele vai afinando o corpo na cintura, alargando as cadeiras, reafinando a forma das pernas e, nessa ondulação, criando contrastes e grandes ritmos sinuosos que dão vivacidade, sensualidade e profundidade psicológica às figuras, tensões, conflitos, ambiguidades. Comparem, por exemplo, a Maja nua com uma Vênus de Ticiano.
O nu não é nenhuma novidade na arte. Quer dizer, o assunto (motivo) é o mesmo, mas os conteúdos expressivos são sempre outros. Sente-se imediatamente o quanto é calma e natural a nudez da Vênus de Ticiano — ela parece ser parte da Natureza — e o quanto são tensas e nervosas as figuras de Goya. Na Vênus de Ticiano, a mulher parece entregar-se inteiramente a uma sensualidade que existe por ela mesma; ela está nua, não está despida. Em Goya, as coisas são muito menos simples. A maja é sem dúvida bastante sensual, mas sua nudez encerra inquietações e provocações e nunca o puro abandono ao ser. Ela revela uma autoconsciência e uma dimensão psicológica que a tornam bem mais próxima de nós que a Vênus renascentista. Nesta época, Goya começa a trabalhar numa série de gravuras (oitenta gravuras e grande número de desenhos), chamada Caprichos. Infelizmente, só poderemos ver aqui pouquíssimo da vasta obra gráfica de Goya. No entanto, alguns trabalhos já darão uma ideia. Cito agora um dos desenhos preparativos para o que devia constituir o frontispício dos Caprichos, e que depois acabou sendo a gravura n° 43, “O sonho da razão produz monstros”. Esse título Goya explicita pelas palavras: “La fantasia abandonada de la razón produce monstros imposibles; unida com ella, es madre de las artes y origen de sus maravillas” . Monstros. Quais seriam os monstros? São muitos. Goya abre as comportas de nosso mundo interior e encontra um turbilhão de forças ocultas, de desejos inconfessos, de prazeres e tentações, de medos, das bruxas dentro de nós. Mas as bruxas não são apenas angústias, heresias ou alucinações. Elas também fazem parte de uma magia intima da vida, que nunca deixou de existir, pela qual os homens procuram desesperadamente algum fio que os guie no labirinto do ser, que os ajude em sua impotência diante de um destino que não compreendem. Elas são forças muito poderosas. Porém, Goya não procura moralizar ou doutrinar, nem mesmo compartilha da convicção iluminista de que, com a vitória da razão, tais bruxas possam ser erradicadas em nós. Elas integram nossa humanidade. E Goya, como homem e artista que é, as conhece muito bem. Assim ele diz: “[La fantasia] unida com ella [la razón]”, pois as bruxas também constituem o impulso vital para a criatividade. Esse é um lado dos monstros, o lado “mítico”. O outro lado é tudo o que há de mau e terrível dentro das pessoas, as crueldades e as baixezas de que são capazes. Mas para Goya as coisas não ficam na mera conceituação: bruxaria, crueldades, indignidades, ele dá nomes às coisas. Os Caprichos são divididos em duas partes. As imagens da primeira parte representam comentários de humor cáustico sobre os costumes e as convenções da época e sobre as relações entre homens e mulheres, as duplicidades, traições, falsidades, as ambiguidades amorosas. Na gravura nº 5 da série, vemos uma jovem prostituta abraçada a um cavalheiro,[4] e duas velhas sorrindo maliciosamente e comentando. Aliás, é Goya quem está comentando; ele intitulou a gravura “Aves da mesma espécie”. Deve-se reparar como ele cria tensões internas na imagem; note-se a postura da jovem, a cabeça alta, as costas recuando, a entrada angular na cintura, e, contrastando com o preto de seus vastos cabelos e do vestido, e do traje do cavalheiro, o branco de seu rosto e pescoço, e também do véu cobrindo as duas velhas agachadas. A gravura original tem 12 X I8 centímetros. Ampliando-se o rosto das velhas, que deve ocupar aproximadamente 1 centímetro do original, pode-se observar que Goya caracteriza com poucos traços o rosto delas. São linhas bem finas, quase invisíveis. Será possível notar, apesar disso, a carga expressiva que existe no ritmo de cada uma dessas linhas. — Porém, não há só ironia nos Caprichos; também há compreensão e compaixão, nunca condescendência. Vejam a gravura nº 34, “Las rinde el suerio” [O sono as rendeu] , cuja legenda continua: “Não as acorde; talvez o sono seja a única felicidade dos infelizes”.
É uma cena de prisão. A imagem com os fortes contrastes de claro/escuro por si só é eloquente; não precisa de outras interpretações.
A segunda metade dos Caprichos é composta de sátiras políticas e anti-clericais. Goya mostra quem são os maus, os terríveis, os monstros. São os todo-poderosos, os hipócritas e mentirosos, autoridades, dignitários, nobres, padres, todos aqueles que diminuem a vida, que não permitem aos seres humanos viver humanamente. É onde Goya se torna mais violento, vitriólico mesmo, diante dessa pose de hipocrisia que assumem as pessoas, em nome da fé ou do poder, para se locupletarem às custas da degradação dos outros. — Quando Goya terminou a série dos Caprichos e tirou a primeira edição das gravuras, ele foi citado diante do tribunal da Inquisição. Era claríssimo para todo mundo, quem (no Capricho nº 40) seria o asno-médico auscultando o moribundo na cama e perguntando: “De que doença ele morrerá?”. O doente era a Espanha, e o asno, Godoy. A legenda da gravura continua: “O médico está pensativo, compreensivo, de semblante solene; o que mais se poderia querer?”. Ameaçado pela Inquisição e para salvar a liberdade de seu filho único, Goya foi obrigado a entregar a tiragem e todas as matrizes dos Caprichos. Durante o tempo de vida de Goya os Caprichos não foram mais editados.
Chegamos a 1808. Goya tem 62 anos. Em 1789 ocorrera a Revolução Francesa e todos os tronos da Europa tremeram. Vários acontecimentos se precipitaram na Espanha. Em 1807, o rei Carlos IV mandou prender seu filho Fernando, por tentar destroná-lo e matar a rainha e seu amante. Ao mesmo tempo, tropas francesas haviam entrado na Espanha (na realidade, de passagem, a fim de apoderar-se de Portugal). Aterrorizado, o rei abdicou e passou o trono a seu filho Fernando, refugiando-se no palácio de Aranjuez, junto com a rainha e seu amante. Mas o general francês, Murat, não reconheceu Fernando VII. Após todo um jogo de negociatas políticas, em que Napoleão ofereceu uma pensão de 30 milhões de reales em troca da coroa — e os monarcas mais que depressa aceitaram essa oferta, Fernando exilando-se na França, e Carlos IV, Maria Luísa e Godoy na Itália —, o irmão de Napoleão, José Bonaparte, foi coroado rei da Espanha. Só que o povo espanhol não aceitou essa imposição! No dia 2 de maio de 1808 corriam boatos, em Madri, de que o infante Francisco de Paula, filho mais novo do rei, seria levado para a França. Ocorreu um incidente banal: algumas mulheres começaram a insultar os guardas da carruagem e os guardas revidaram. E de repente a revolta alastrou-se pela cidade inteira. No dia seguinte, o general Murat convocou uma corte marcial e ordenou o fuzilamento sumário de todos os cidadãos que se encontrassem nas redondezas. Qualquer um que portasse armas ou tivesse um “semblante patriótico” era considerado subversivo e fuzilado na hora.
Em seu ateliê, Goya começa a trabalhar numa pintura (que permaneceu desconhecida durante o tempo de sua vida, assim como os Desastres da guerra): é o Fuzilamento de 3 de maio.
Nesse quadro grande, monumental, o invasor não tem face; são soldados anônimos, uniformizados, vistos de costas, uma verdadeira máquina de guerra: só há pernas e armas. Contrastando com eles, o povo espanhol é visto de frente, caracterizado pelo homem erguido com os braços estendidos, quase repetindo Cristo na cruz. O branco de sua camisa, o amarelo da calça, refletindo o tom amarelo da lamparina no chão, são os únicos tons claros no quadro, em cujo fundo escuro de noite de breu a silhueta de uma igreja emoldura a fila de homens que vão chegando à execução. No primeiro plano, os fuzilados jazem numa poça de sangue, enquanto outros homens aguardam seu destino, alguns desesperados, outros resignados. Não há saída. Goya mostra essa cena sem comentários e sem floreios. É só pensar nas pinturas históricas, gênero corrente na época, com suas cenas de batalha representando como que desfiles de cavaleiros e bandeiras, para compreender a coragem na concepção dessa imagem tão direta, tão objetiva e tão humana. Agressor contra vítima — o agressor brutalizado e mecanizado, e a vítima, nesse seu último gesto heroico e inesquecível, de peito aberto e braços levantados. Não há qualquer idealização ou glorificação dessas mortes brutais, nenhuma retórica, nenhum simbolismo rebuscado. É uma denúncia permanente do sofrimento do povo espanhol — e de todos os povos e todas as mortes similares.
Até hoje esse quadro tem um impacto extraordinário. Quem o vê, emudece. O quadro é de tal modo eloquente que não há o que explicar. Seu conteúdo expressivo é imediatamente compreendido por todos. Vale a pena nos determos nesse aspecto, pois ele tem muito a ver com questões de arte levantadas em nosso século. É sumamente importante saber que todos entendem o quadro. E do mesmo modo importante é saber que esse quadro representa mais que um mero panfleto contra a guerra. Goya não fez um protesto que eventualmente pudesse ter sido formulado em outros termos. Não, ele pintou uma imagem na qual nenhum traço, nenhuma cor, nenhuma forma poderiam ser alterados ou substituídos por outros sem se perder o significado do todo. Goya criou uma obra de arte. E mais. Ao formular o conteúdo de protesto, Goya conseguiu ampliar a própria linguagem artística, renová-la, enriquecê-la. É isso que importa e que é tão difícil fazer quando se trata de “arte de contestação”. E, de fato, quem são os artistas cuja intenção era contestar a realidade social e que conseguiram conscientizar nossa sensibilidade através da linguagem artística? Além de Goya, temos Daumier, temos Courbet, Picasso, em Guernica, talvez o Dadaísmo como visão de formas, e Käthe Kollwitz até certo ponto. Só. A proposta é extremamente difícil porque, partindo de um protesto, ainda é preciso criar uma obra de arte. Não basta ter boas intenções e nem, obviamente, vai se estetizar a guerra, a miséria, a violência, mas através do protesto é preciso poder ampliar a linguagem. Sem isso, fica sendo uma manifestação decerto válida em si, porém encerrada em seu momento histórico-social. Eventualmente servirá como documento sociológico. Mas não nos comoverá. Então há de ser um muito grande artista para poder fazer “arte de contestação”.
Na mesma época, Goya também inicia uma série de gravuras, os Desastres da guerra. Conta-se que naqueles anos Goya andava pelas ruas de Madri e Saragoça, anotando e testemunhando as pessoas sendo fuziladas, enforcadas, esquartejadas, homens diante de suas mulheres, mulheres violentadas e mortas diante de seus filhos, montanhas de mortos. É bem possível que tenha sido assim. Já as legendas lacônicas das gravuras são significativas: “Eu vi”; “Não há saída”; “Para isto nasceste”; “Enterre-os e cale-se”. Vejamos uma gravura das menos sangrentas e brutais, mas não menos trágica: “Que valor!”.
Uma cena de Saragoça. A jovem, tomando a tocha das mãos do amado e subindo nos corpos dos mortos que cobrem o chão, atira, sozinha, o canhão contra o inimigo. — A série contém noventa gravuras; Goya levou dez anos para concluí-la.
Tentarei esboçar em poucas palavras a sequência dessa guerra. Alastrando-se a rebelião por todos país, no primeiro momento as tropas invasoras foram vencidas. Mas chegaram novos reforços, de 250 mil soldados franceses, e o regime espanhol caiu em quinze dias. Começou então uma guerra de guerrilhas (é quando e onde as guerrilhas se originaram) com crescentes atrocidades de ambos os lados. A essas lutas sangrentas se acrescentaram os efeitos da guerra, fome, doenças e epidemias, que arrasaram a população. Após dois anos havia 20 mil mortos de fome em Madri, 54 mil mortos em Saragoça. Era uma tragédia incomensurável.
Para Goya, e outros intelectuais do Partido Liberal, os “ilustrados” ou “afrancesados” como eram chamados, a situação ainda encerrava outro conflito trágico. Na verdade, os franceses representavam o progresso social para a Espanha. Com uma simples penada, Napoleão havia abolido os pesados tributos e os privilégios da Igreja e da Coroa. Havia no ar uma possível transição para outro regime mais progressista, tanto assim que os liberais simpatizavam com o recém-proclamado rei José Bonaparte. Por outro lado, porém, era impossível ignorar os acontecimentos, a realidade do povo que estava sendo massacrado. Então, essa lealdade dividida entre a visão de um futuro mais livre e a situação concreta de vida, esse conflito de consciência nós o conhecemos muito bem no século XX. Vivemos com lealdades divididas. É difícil definir de antemão “só isto está certo ou errado”, difícil, dentro das complexidades da vida, encontrar o caminho de sua consciência. No entanto, cada momento exige de nós uma tomada de posição.
Nesta altura da derrota militar dos espanhóis surge agora a figura do salvador: o duque de Wellington comandando a tropas inglesas. De qualquer modo, com o fracasso de Napoleão na campanha da Rússia, a posição das tropas francesas dificilmente poderia ter sido sustentada. Assim, em poucos combates, as tropas inglesas derrotam as francesas e as expulsam do solo espanhol, e, em 1812, Wellington entra triunfalmente em Madri. A Espanha está livre. Em pouco tempo começam a ressurgir as Juntas, as antigas instituições comunitárias que haviam sobrevivido no interior do país debaixo de toda repressão da monarquia. Mas esse desenvolvimento deixa o duque de Wellington terrivelmente assustado. Não era isso que ele queria de modo algum. Há uma troca de mensagens bastante significativas entre o duque de Wellington e o secretário de Guerra da Inglaterra, Earl Bathurst:
Duque de Wellington, em 21 de abril de 1813: “Estou muito preocupado com a conduta das Juntas, que parecem querer seguir o exemplo das Assembleias na França… é impossível prever o que farão. Podem até confiscar os bens de meus amigos, da nobreza”.
E novamente, em 5 de setembro de 1813: “Gostaria que me comunicasse o que devo fazer. Se houver uma oportunidade de derrubar a democracia, o governo inglês o aprovaria”?
Ele recebe a resposta do Earl Bathurst, datada de 25 de setembro de 1813: “Pode ter certeza que, se for possível derrubar as tentativas democráticas, sua conduta será inteiramente aprovada”.
Assim tranquilizado, o duque de Wellington traz de volta Fernando VII e restaura a monarquia. Voltam a Igreja, a Inquisição, a polícia secreta, a censura. Instauram-se outra vez tribunais militares para ofensas políticas. Enfim, tudo começa de novo.
Em 1814, Goya se retira do cenário público. Ainda atende a uma ou outra sessão da Academia de Belas-Artes; afinal, ele é pintor da Academia Real, mas sua presença se faz mais e mais rara. Ele se refugia num sítio nos arredores de Madri, chamado a “Quinta del Sordo” [Quinta do surdo], junto com Leocádia Weiss, sua companheira (sua mulher falecera em 1812).
Em 1819, Goya adoece gravemente e de novo leva um ano para se restabelecer. Retomando o trabalho, Goya começou a pintar as famosas pinturas negras. Essas obras, Goya as pintou para si, num diálogo íntimo, terrível — jamais poderia ter imaginado que um dia as pinturas acabassem sendo obras de museu, expostas ao público.[5] Aliás, o próprio Museu do Prado se sente pouco à vontade com elas. Recentemente estive em Madri visitando o Prado, e de lá trouxe um folheto com informações e explicações, que serve de guia para as obras de Goya. A respeito das pinturas negras, há o seguinte texto:
Um dos aspectos mais curiosos é a aparente falta de significado [das obras]. Embora as pinturas contenham indubitavelmente um simbolismo, este ainda não foi suficientemente explicado. […] Numa primeira abordagem, convém lembrar-se que estas pinturas foram executadas por um homem velho, entre 73 e 77 anos, que acabara de recuperar-se de uma séria doença. A solidão de Goya se tornara maior. Muitos de seus amigos haviam morrido e outros se exilaram da Espanha. Goya havia visto as calamidades da guerra (…).
Etc., etc. Tudo nesse tom apologético, como que pedindo desculpas pelas obras. E nenhuma palavra sobre a situação concreta da Espanha na época, ou sobre as condições de vida das pessoas. Acontece, porém, que apesar da doença e velhice, Goya havia preservado a capacidade de indignar-se. Além disso, este representa um dos períodos da mais alta criatividade do artista.
Ora, o significado das obras está mais do que claro. De fato, não é “um” significado; são múltiplas camadas de significação que se superpõem e tornam o conteúdo denso e complexo — e por isso mesmo o conteúdo preserva a vitalidade dos sentimentos, podendo seu significado ser diretamente entendido por nós. Os quadros monumentais (alguns têm até quatro metros de largura) são chamados “pinturas negras” porque Goya só usou cores escuras, preto e alguns tons de ocre e azul. O conteúdo dessas imagens é trágico. Goya mostra cenas de violência, baixeza, ignorância, hipocrisia: dois homens brigando, afundando na lama e já nem tendo mais como ficar em pé, mas continuando a luta feroz até a morte; dois velhos, já quase caveiras, comendo sopa;[6] Saturno devorando seu filho; o povo crédulo participando de atos religiosos, transformados em rituais cínicos e obscenos.
Há como que um grito de desespero ante tanta indignidade e baixeza. Um desespero tamanho que é um verdadeiro milagre Goya não ter se suicidado naquelas circunstâncias de vida.
Quando olhamos para as pinturas negras e as compreendemos, saímos muito tristes da sala. E, no entanto, saímos com renovada coragem. Mas como seria isso possível? É possível porque essa coragem, a tiramos das próprias obras, ou seja, do artista que conseguiu enfrentar o seu desespero, não negando a realidade ou embelezando-a e idealizando-a, mas enfrentá-la cara a cara. E Goya o fez com tamanha honestidade e criatividade, que criou uma nova linguagem, toda ela interiorizada e de uma liberdade extraordinária — obviamente, além de sua grandeza humana, ele teve de possuir a estatura artística para tanto — uma linguagem na qual não há mais convenções, não há cânones ou regras, o que não quer dizer que não existam ordenações internas dentro dessa liberdade. Ao contrário, são ordenações por demais significativas, de ritmos livres, que mostrarão o caminho para uma arte futura.
Diante dessas pinturas, compreendemos também que Goya ultrapassa o movimento romântico do século XIX e até mesmo o subjetivismo de artistas expressionistas como Van Gogh e Ensor. Na liberdade de formas e ritmos, originária de uma profunda reestruturação de sua experiência de vida, e no simultâneo rigor da composição da estrutura interna das imagens, vemos que Goya nunca é arbitrário. Ele não “inventa” nada. Tudo é necessário e tudo se torna significativo. Sua visão subjetiva se interliga intimamente com a da condição humana. É preciso reconhecer a importância dessa visão individual e universal ao mesmo tempo, Goya pode nos mostrar novas possibilidades de ordenações expressivas, porque em nenhum momento — mesmo no mais profundo desespero — ele nos deixa em dúvida sobre a primazia de suas referências internas: para Goya, ulteriormente, o maior bem da vida humana continuam sendo a dignidade e a liberdade.
Em 1820, surge um novo movimento de revolta popular. Para suprimi-lo, o próprio Fernando VII chama as tropas francesas de volta à Espanha. Nova restauração da monarquia. E uma nova e talvez a mais terrível repressão das liberdades sociais (nenhum jornal podia circular, só o Diário Oficial e a Lista de Achados e Perdidos; todas as cartas eram abertas e censuradas, e, se alguém recebesse uma carta do exterior contendo críticas ao governo, era preso na hora; poderia ser preso até por uma simples denúncia anônima de que havia feito observações contra o governo). Goya é citado outra vez diante do tribunal da Inquisição como um subversivo qualquer (estava se fazendo uma investigação sobre o patriotismo de todos os “ilustrados”). Embora retornasse livre do inquérito, Goya se esconde durante três meses na casa do cônego dom José Duaso y Latre, para escapar da perseguição aos intelectuais. Em seguida, resolve fazer seu testamento em nome do neto, Mariano, entrega as matrizes dos Desastres da guerra ao amigo Ceán Bermúdez, para completar as legendas e um dia, talvez, publicar as gravuras (só quarenta anos após a morte de Goya), pede uma licença para tratamento de saúde, e foge para Bordeaux, na França. Ele tem 78 anos.
O poeta Moratín, velho amigo de Goya, também exilado em Bordeaux, escreve numa carta: “Goya chegou, fraco, surdo como uma porta, sem falar uma palavra de francês. Mas está feliz como uma cotovia e ansioso para ver o mundo”. Goya fica alguns dias em Bordeaux e depois vai logo a Paris. Lá visita os monumentos da cidade, os museus, o Louvre, o Salão, onde naquele ano expuseram Ingres, Delacroix, Constable. Ninguém conhecia Goya. Se sabemos desses detalhes, é porque a polícia francesa tinha sido alertada pela polícia espanhola e seguiu Goya em suas andanças por Paris.
De volta a Bordeaux, Goya recomeça a desenhar e pintar. Mais uma vez o estilo se renova, tornando-se marcadamente visionário.[7] O tema: gigantes.
Nessa pintura , vemos surgir, entre cumes de montanhas e nuvens, um ser gigantesco, poderoso, vigoroso, enquanto embaixo os pequeninos homens fogem ou correm entre tendas e carroças. Numa gravura feita na mesma época, o gigante está sentado no horizonte de uma paisagem, olhando para longe, para muito longe, para o cosmos, e ao lado está a lua nascente. O que fica em nossa memória é o silêncio dessa belíssima silhueta gigantesca.
Encantado com o movimento de homens, mulheres e crianças nas ruas de Bordeaux, e desenhando-os incansavelmente, Goya encontra uma outra temática ainda. E novamente articula o conteúdo expressivo numa síntese estilística. O conteúdo: a dignidade do trabalho, a dignidade de ser, do dia que se vive. Esse tema, do “cotidiano”, será redescoberto mais tarde por Courbert, o grande artista do Realismo, um dos maiores artistas do século XIX, século tão fecundo em artistas esplêndidos. Mas Goya não é “realista”, assim como ele não era romântico. Nesta última fase de suas obras, as tendências realistas se fundem com sua atitude visionária, e também se fundem com as fases anteriores, das pinturas negras, dos murais de San Antonio de la Florida, dos retratos, das tapeçarias. Essas experiências não estão ultrapassadas ou invalidadas, mas agora elas foram integradas numa nova síntese, num estilo que nos esclarece uma nova ampliação da própria visão de vida de Goya, de uma espiritualidade toda sensual. Um exemplo é o quadro A forja, que traz uma cena do dia-a-dia, ferreiros que estão trabalhando. Que maravilha de pintura! Que mundos de sensibilidade em qualquer momento do ser! Ou então vejam A leiteira de Bordeaux.
Representa uma simples mulher do povo. Nem bonita ela é. Mas, nas mãos de Goya, ela se torna como que uma deusa ancestral da terra, telúrica, misteriosa, sensual, de uma beleza interior indescritível. A figura da mulher está envolta em pura luminosidade, em véus que a cobrem, em camadas translúcidas de cor, em transparências diáfanas. Parece tão eterna quanto o amanhecer de um novo dia.
Que após os pesadelos dos Desastres da guerra e das pinturas negras Goya ainda tivesse a esperança e a energia espiritual para vislumbrar uma nova humanidade, sonhar com ela, fazer uma pintura tão fresca e aberta ao dia nascente, é um milagre do espírito humano. Aos 81 anos, Goya é capaz de assinar um desenho e de escrever ao lado da assinatura ” Aún aprendo” [Ainda aprendo]. Vejamos o último auto-retrato de Goya. É um detalhe da gravura intitulada “Uma maneira de voar”, da série Disparates. Vemos grandes pássaros, com corpos humanos, asas de morcego e cabeças de águia, planando num fundo negro, céu noturno de uma noite infinita. Debaixo da cabeça de um dos pássaros há o rosto de Goya.
Goya morreu aos 82 anos. O círculo se fechou; as potencialidades se concretizaram; o desejo se tornou vida vivida. Paixão lúcida. Ou lucidez apaixonada. É essa a fonte do desejo em Goya. Nas formas expressivas de sua obra de vida, apreendemos sua grande nobreza espiritual, sua empatia com as presenças humanas e as complexidades, os conflitos e também os sonhos do viver. Goya fala-nos de questões existenciais. E ele nunca se omite diante desses problemas; não nos fala de cima para baixo; ele mesmo os vivencia. Explorando as regiões profundas da consciência, Goya nos expõe o senso trágico, mas também a grande beleza da vida vivida. Ele mostra que o sentido do viver se identifica com a realização de nossas esperanças íntimas, inerentes em nossas potencialidades. Ao vermos suas obras, podemos por um momento nos irmanar a ele e participar de sua visão de uma humanidade maior. Enriquecemos o nosso próprio ser sensível e ganhamos força e um novo senso de liberdade para, talvez criando, enfrentarmos melhor o dia de amanhã.
Notas
[1] Daí, em outra ocasião, podermos discutir um problema atual dos artistas de hoje: por que, ern nossos dias, um jovem de vinte anos deve sentir-se na obrigação de já ter chegado à sua plena realização artística, quando mal começou a viver?
[2] A propósito: quando se vêem os Velásquez, os Ticiano, os Tintoretto e os Goya que estão no Prado, vê-se que nenhum rei mereceu os seus artistas. São outros os mundos. Os artistas tão grandiosos, e os reis tão medíocres e insignificantes. Não fosse pelas obras dos artistas, nenhum deles seria lembrado.
[3] Um comentário a respeito: tenho lido artigos escritos por curadores de museus, que vêem no sucesso artístico de Goya uma atitude de hipocrisia do artista diante dos poderosos. Como poderia Goya, intelectual e liberal engajado, ter sobrevivido aos terríveis anos da monarquia absolutista, à invasão de tropas francesas, à restauração ultra-reacionária de Fernando VII, e por outro lado, ter produzido obras como os Desastres da guerra e o Fuzilamento de 3 de maio? Turncoat [vira-casaca, oportunista] é a expressão usada por um desses auto-eleitos críticos. Que pobreza de espírito! E que ignorância! Pelo seu jargão jornalístico arrogante, vê-se logo que eles não devem ter a mínima ideia do que significa ser artista, do que seja criação, ou autenticidade de estilo. Nem sequer devem saber o que significa tentar viver com integridade. Tudo é reduzido ao nível de sua própria mentalidade vazia, de burocratas sentados em seus gabinetes e despachando “cultura” . Também para essa gente precisávamos urgentemente ter um Goya hoje.
[4] Na época, esses personagens também eram identificados com Maria Luísa e Godoy.
[5] Esta também é uma história bastante significativa: uns cinquenta anos após a morte de Goya, a Quinta del Sordo fora comprada por um banqueiro alemão que residia na França, o barão Emil d’Erlanger . Em 1878, o barão expôs as pinturas negras em Paris e, em seguida, as ofereceu ao Louvre. O Louvre recusou as obras. Assim, o barão d’Erlanger as levou de volta a Madri e, em 1881, as doou ao Museu do Prado.
[6] Evidentemente, o conteúdo expressivo dessa pintura também se refere à tristeza da velhice. Quer dizer, não há apenas o nível da denúncia; há a síntese de diversos significados que se sustentam na complexidade dos sentimentos.
[7] Na mesma época, Beethoven compôs a Nona sinfonia.