2005

A máquina do mundo [Camões]

por João Adolfo Hansen

Resumo

Num tempo em que a poesia não existia como literatura mas como jurisprudência dos “bons usos” da linguagem, Camões escreve Os Lusíadas para consagrar os feitos da monarquia portuguesa, mas toda a sua poesia, além de ser artifício intelectual (cosa mentale, segundo a expressão de Leonardo da Vinci), figura a experiência de algo que falta no seu presente. Cavaleiro fidalgo mas pobre, ele viveu muitas aventuras e contratempos: perdeu um olho numa batalha em Ceuta, quase perdeu seus manuscritos num naufrágio no rio Mekong, e a publicação de sua epopeia não impediu que morresse na pobreza em 1580. Os temas da perda da esperança, da finitude e do desconcerto do mundo atravessam a sua lírica. Mas Camões é também um platônico: para ele a proporção e a graça do verso alegorizam a Forma do Amor que tudo une. Essa virtude de Eros é que norteia Os Lusíadas, em particular o célebre episódio da Ilha dos Amores e da visão da Máquina do Mundo, no canto X, quando Deus como que se revela aos portugueses (“mas o que é Deus ninguém o entende / Que a tanto o engenho humano não se estende”, ele escreve). Tal visão, porém, contrastava com a crise e as ruínas do reino já na época (até culminar no desaparecimento de Dom Sebastião em Alcácer-Quibir) e com o fato de Camões dizer, no final do poema, que vinha cantar para “gente surda e endurecida”. Assim, é das leituras que ele fez de seu passado e seu presente que a nossa leitura recolhe hoje, na descontinuidade e na estranheza, a maravilhosa ruína que suas palavras nos deixaram.


Canto X

[…]    

Não andam muito que no erguido cume

Se acharam, onde um campo se esmaltava

De esmeraldas, rubis, tais que presume

A vista que divino chão pisava.

Aqui um globo vem no ar, que o lume

Claríssimo por ele penetrava,

De modo que o seu centro está evidente,

Como a sua superfície, claramente.

Qual a matéria seja não se enxerga,

Mas enxerga-se bem que está composto

De vários orbes, que a Divina verga

Compôs, e um centro a todos só tem posto. Volvendo, ora se abaixe, agora se erga,

Nunca se ergue ou se abaixa, e um mesmo rosto

Por toda a parte tem; e em toda a parte

Começa e acaba, enfim, por divina arte;

Uniforme, perfeito, em si sustido,

Qual, enfim, o Arquétipo que o criou.

Vendo o Gama este globo, comovido

De espanto e de desejo ali ficou.

Diz-lhe a Deusa: — O transunto, reduzido

Em pequeno volume, aqui te dou

Do Mundo aos olhos teus, para que vejas

Por onde vás e irás e o que desejas.

Vês aqui a grande máquina do mundo,

Etérea e elemental, que fabricada

Assim foi do Saber, alto e profundo,

Que é sem princípio e meta limitada.

Quem cerca em derredor este rotundo

Globo e sua superfície tão limada,

É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende,

Que a tanto o engenho humano não se estende.

[…]

Luís Vaz de Camões,

Os Lusíadas

__________

Para tratar da poesia de Camões como um dos “poetas que  pensaram o mundo”, vou lhes falar de categorias da mundaneidade do seu mundo. Por “mundaneidade” entendo a estrutura temporal constitutiva da sua existência histórica como homem e como poeta, ou seja, a presença do seu presente. Hoje, quando esse presente está extinto e se tornou estranho para nós, qualquer leitura da poesia de Camões é determinada pela descontinuidade e pela estranheza da ruína. Assim, também a minha fala sobre ela é necessariamente parcial e provisória.

Todos os que leram Camões sabem que sua poesia transforma matérias de diversos tempos que fazem o seu presente, o século XVI, muito mais largo e extenso que os cem anos convencionais. Como tradições de autoridades poéticas, filosóficas e históricas de extensão e duração diversas, algumas dessas estruturas são antiquíssimas, como o grande bloco greco-latino ou as doutrinas e a poesia gregas e latinas da arte como mimese: a doutrina aristotélica da épica exposta na Poética; a doutrina da reminiscência de Platão e Plotino; a doutrina do sublime de Longino e Hermógenes; as epopeias de Homero; a bucólica de Teócrito; a épica de Virgílio; a ode de Horácio; a elegia erótica de Ovídio etc. Outras, mais recentes, datam do século XV, como o platonismo reciclado por Marsilio Ficino, Pico della Mirandola, Cristóforo Landino e Angelo Poliziano na academia florentina de Careggi. Muitas datam dos séculos XII e XIII, como a poesia da coyta e do amor cortês dos trovadores galego-portugueses e provençais; e o “doce estilo novo” italiano, mescla de língua vulgar, formas poéticas e culto da Antiguidade, exercitado nos anos iniciais do século XVI por poetas portugueses, como Sá de Miranda e Antônio Ferreira, que imitam o soneto e a canção de Petrarca, o terceto de Dante, a elegia e os capítulos de Bembo, as éclogas de Sannazzaro, a oitava rima de Poliziano, Bocaccio e Ariosto. Principalmente em Os Lusíadas, Camões figura o conhecimento cosmográfico antigo, fundamentado em Ptolomeu e Euclides, e a experiência empírica das navegações portuguesas dos séculos XV e XVI, sistematizada por autores de tratados de cartografia e história natural, como Pedro Nunes, Duarte Pacheco Pereira, Garcia da Orta etc. Também imita outros gêneros da prosa, como a história de seus contemporâneos João de Barros, Rui de Pina e Diogo do Couto, e tratados teológico-políticos escolásticos que tratam das virtudes do príncipe cristão e da “guerra de devaçam”, expressão de Gil Vicente para a cruzada contra não-cristãos da África e da Ásia. Quando imita essas várias tradições, a racionalidade de Camões é modelada nas tópicas aristocráticas da racionalidade de corte com que autores italianos e portugueses do século XVI, como Baldessare Castiglione, Giovanni Della Casa, d. Jerônimo Osório, definem a excelência do uomo universale, o homem universal, cortesão perito em letras e armas, caracterizado por “engenho”, “discrição”, “prudência”, “agudeza”, “honra”, “amor”, “gentileza” e “graça”. No presente de Camões, o capitalismo monárquico da dinastia de Avis está arruinado e a Contrarreforma doutrina a política católica do reino contra a heresia luterana e maquiavélica, reeditando Aristóteles e santo Tomás de Aquino.

Em seu presente, Camões é antes de tudo um poeta pantécnico ou politécnico, engenhosíssimo e agudo. Domina várias tradições poéticas simultaneamente, compondo poesia que se filia ora a uma, ora a outra, conforme seus gêneros e estilos específicos. Não é necessário classificar sua arte unitariamente por meio de etiquetas evolucionistas exteriores, dedutivas e fechadas, como “clássico”, “maneirista” ou “barroco”. Essas classificações datam dos séculos XIX e XX e não dão conta do seu presente poético. Quando aplicadas, eliminam ou tendem a eliminar justamente o que mais interessa, a especificidade histórica dos seus estilos.

A poesia de Camões não é um reflexo do seu mundo, mas um meio simbólico que põe em cena as figuras relevantes do seu presente, estabelecendo relações entre a experiência do passado e a expectativa do futuro. Desde que foi publicada pela primeira vez, esse presente só tem existência em atos de leitura que produzem versões particulares e parciais da experiência encenada. Para fazer essa experiência, que põe em contato um enunciador e um destinatário, o leitor deve ser coautor e refazer as operações do pensamento do enunciador, efetuando a ilusão da extratextualidade de um “real” — “o mundo de Camões” — como se existisse efetivamente no momento da leitura como causa do poema. Mas, obviamente, não existe, e, como acontece em qualquer poesia, as leituras refazem de modo mais ou menos verossímil e apenas parcialmente — quero enfatizar o advérbio — o ato intelectual da sua invenção.

Esse ato compõe os poemas como interação dinâmica do poeta e seu público, ativando uma experiência imaginária e simbólica refratada e interpretada por normas sociais e preceitos técnicos comuns ou coletivos partilhados assimetricamente por eles em seu presente. Camões constrói figurações, metáforas ou imagens dos discursos do seu mundo, imitando ficcionalmente as opiniões tidas por verdadeiras nos campos semânticos das várias atividades letradas e não letradas dele. Ele as compõe intelectualmente, com proporção, medida e graça: “Eu cantarei de amor tão docemente,/ por uns termos em si tão concertados,/ que dous mil acidentes namorados/ faça sentir ao peito que não sente”. Simultaneamente, sua enunciação faz referência ao ato inventivo, pondo em cena, na variação dos estilos das tradições que escolhe imitar, a experiência anônima das normas sociais e dos preceitos técnicos que aplica. Assim, se relacionamos os poemas com outros regimes discursivos que constituem o seu presente, observamos que suas imagens transformam tópicas extraídas deles, evidenciando os preceitos técnicos com que o destinatário deve avaliar a eficácia da forma efetuada.

Com Norbert Elias, sabemos que, numa sociedade de corte como a portuguesa do século XVI, a capacidade de determinar a natureza e o valor das relações de troca simbólica estava em jogo como padrão de distinção social também nas metáforas intelectualmente proporcionadas da poesia, o que implica a existência de modelos retóricos, poéticos, éticos, filosóficos e políticos partilhados pelo poeta e por seus públicos, por meio dos quais as transferências metafóricas eram processadas, avaliadas e fruídas. Diferentemente da poesia moderna, em que a invenção é uma liberdade livre, a arte de Camões é mimética: sua liberdade de invenção é restrita pelos preceitos retóricos que funcionam como limites convencionais do seu arbítrio poético. Em seu tempo, a maior ou menor deformação engenhosa das imagens operada nos limites prescritos de cada gênero indicava para o destinatário constituído nelas e por elas a maior ou menor amplitude do engenho e da arte aplicados à construção do ponto de vista poético e político adequado para recebê-las. No seu presente, a funcionalidade mimética e valorativa da imagem poética constituía dois tipos de destinatários textuais definidos por padrões da racionalidade de corte, discretos e vulgares, figurados como tipos intelectuais conhecedores do artifício aplicado (discretos) e ignorantes dele (vulgares). Em sua poesia, principalmente a lírica de medida nova de tradição italiana e de medida velha peninsular, a agudeza intelectualista das imagens especifica a superioridade do destinatário discreto, capaz de refazer as operações dialético-retóricas aplicadas à maior ou menor deformação das tópicas tratadas. Como um sinônimo do sujeito da enunciação, o destinatário discreto recebe a representação duplamente, pois é figurado como tipo capaz de compreender não só a significação engenhosa da imagem, mas também a perícia técnica do artifício aplicado à invenção dela. Quanto ao destinatário vulgar, a imagem poética era construída contra ele, como nos autos de Gil Vicente, acusando-o da falta das virtudes convencionais, e para ele, divertindo-o com vulgaridades sem regras aparentes do juízo.

Foucault diz em algum lugar que os inventores de imagens caçam analogias, mas que a verdadeira imaginação poética é a da liberdade que medita sobre a identidade, circulando como imagem pelas imagens, não para fixá-las numa fórmula definitiva, mas para evidenciar o artifício simbólico do ato de fingir. O ato da invenção poética de Camões fornece ao destinatário e ao leitor os preceitos evidenciadores da construção do artifício, por isso lhes fornece também os meios de dissolver a ilusão do efeito que congela a experiência poética na forma rígida de um fantasma. Camões sempre pensa a poesia como o artifício que resulta de operações técnicas: para ele, o poema é literalmente poiema, produto, controlado racionalmente por preceitos.

Na sua poesia, o artifício desse ato é operado como máquina ou maquinação, do latim machina, do grego mékhané, “invenção astuciosa”, como na expressão “máquina do mundo”, do Canto X de Os Lusíadas. Em latim, o equivalente de mékhané é ingenium, de gignere, “gerar”, e designa o talento intelectual da inventio retóricopoética a que geralmente se associa instrumentum, de instruere, “dispor”, como na expressão ciceroniana que define a inteligência, instrumentum naturae, “instrumento da natureza”. Poeticamente, o artifício resulta das maquinações do engenho e do instrumento, significando a ficção produzida com arte ou indústria visando a um fim determinado. Assim, a poesia lírica de Camões é muitas vezes patética, figurando paixões intensas da alma que sofre o desconcerto do mundo, mas nunca psicológica, expressiva ou sentimental, porque sempre feita intelectualmente como artifício do ato de fingir: ela é artificial ou artificiosa. O artificioso da sua invenção não deve ser entendido com o significado pejorativo, “artificial”, que usamos quando somos falados pela ideologia romântica e generalizamos para todos os tempos a crença ingênua e etnocêntrica de que a arte decorre da inspiração e expressa informalmente a bela natureza incondicionada. E, quando pensamos a poesia de Camões como resultado de um ato de fingir construído como artifício, deve ser evidente que também a leitura dela não é natural, pois é uma formalidade prática. É preciso, quando falamos dela, determinar seu conceito de “poético”, ou seja, seu estatuto de “ficção”. Nem sempre a ficção foi literatura, que é uma invenção relativamente recente, datada do final do século XVIII; e nem sempre a leitura literária de poesia, como leitura que refaz a invenção de um ato de fingir, opera sobre textos originalmente inventados como textos literários. No mundo de Camões, a poesia era certamente ficção, mas não era literária.

Para especificar historicamente o efeito fictício que ocorre no intervalo temporal e semântico estabelecido entre ela e sua leitura, é possível, evidentemente, propor várias coisas, que também são sempre coisas particulares e parciais. Digo isso lembrando que a quantidade dessas parcialidades produzidas pelas leituras de Camões desde o século XVI é a tal ponto monstruosa, extensa e diversa, que torna materialmente impossível qualquer veleidade de totalização. Mas seria útil saber que, entre os séculos XVI e XVIII, as leituras foram miméticas e prescritivas, ordenadas por preceitos retóricos e poéticos da tradição greco-latina. Elas pressupõem os mesmos preceitos de gênero, engenho, artifício, verossimilhança, decoro etc. que o poeta aplica aos poemas e todas elas estão de acordo acerca da concepção substancialista da arte como mímesis, imitação e emulação, discordando aqui e ali sobre a maior ou menor adequação dos preceitos aplicados à invenção e à elocução dos poemas. A partir do século XIX, com o Romantismo e a subjetivação crescente da experiência estética, os modos contraditórios de definição política do sentido da história na base das leituras tornam as interpretações apenas descritivas, pois não há mais nenhuma unidade absoluta como fundamento da história, da arte e da crítica. Devemos desistir de encontrar qualquer unidade ou totalização final do sentido da poesia de Camões. As leituras que mitificaram e mitificam sua vida e sua obra, apropriando-se delas para inventar ideologias nacionalistas, como as que justificaram o colonialismo português no século XX, afirmam um sentido único e fechado para elas. Tais leituras costumam eliminar as estruturas constitutivas da mundaneidade do seu tempo ou as interpretam anacronicamente por meio de critérios políticos e artísticos exteriores.

A historicização de conceitos como “poético” e “ficção poética” pressupõe modos de conceituação que especificam regimes descontínuos de funcionamento das categorias autoria, obra e público.

No presente de Camões, a poesia não existia como literatura, como disse, ou seja, não existia como o regime de textos lidos como ficção oposta a textos científicos, filosóficos, pragmáticos que circulam publicamente como mercadoria determinada por critérios jurídicos, econômicos, estéticos etc. como “direitos autorais”, “originalidade”, “plágio”, sistematizados principalmente a partir das estéticas de Kant e Hegel. A prática da poesia e da prosa era então como uma jurisprudência dos “bons usos” da linguagem regrados como imitação de modelos fornecidos pelas autoridades dos gêneros antigos. A poesia se incluía naturalmente na hierarquia definida pela metafísica escolástica, que postula como fundamento do mundo uma Causa Primeira, Deus, que cria a natureza e o tempo e os orienta providencialmente, segundo as analogias de atribuição e proporção, como seus efeitos e signos. Fundamentada pela autoridade de santo Tomás de Aquino, a hierarquia era doutrinada pelos juristas contemporâneos do poeta como unidade de integração do corpo político do reino. A doutrina definia a liberdade dos indivíduos e dos grupos sociais como subordinação a papéis estamentais constituídos e limitados pelos privilégios reais. Central nessa política era o conceito de “bem comum”, definido pelos juristas jesuítas e dominicanos e cantado pelo poeta em Os Lusíadas como a harmonia que nasce do autocontrole dos membros individuais do corpo político do reino que reprimem os apetites particulares para obter e manter a concórdia do todo como unidade pública da paz. No caso, “política” era a arte de obter, manter e ampliar o poder monárquico. Nela, o conceito político-econômico de “interesse” prescrevia que cada indivíduo e cada grupo deviam contentar-se com o que eram e faziam, colaborando para a concórdia e a paz do bem comum do todo para terem atendidos seus interesses particulares. O autocontrole da vontade e da liberdade era ostentado como adequação da representação pessoal às formas institucionais da hierarquia. As virtudes da Ética a Nicômaco interpretadas escolasticamente constituíam tais representações que encontramos metaforizadas em Os Lusíadas como autocontrole dos heróis, como Vasco da Gama, na forma de virtudes católicas e fidalgas anti-heréticas, antimaquiavélicas e antiluteranas, que caracterizam a superioridade social dos “melhores”, definidos então como “gente de representação” em oposição à plebe.

Nessa sociedade corporativista, a distinção iluminista-liberal de público/privado não existia; no caso das artes e das letras, a autoria, as obras e o público eram concebidos de modo diferente do nosso. Camões tinha a posse, mas não a propriedade das suas obras poéticas, pois não conhecia o mercado como regulação objetiva da livre concorrência de mercadorias como “livro”, “originalidade”, “direitos autorais” e “plágio”. Seus poemas circulavam na oralidade, principalmente nos círculos restritos da corte, eram copiados e recopiados em manuscritos; obviamente, os copistas produziam alterações, variantes e novas versões, que muitas vezes eram atribuídas ao nome do autor. É o caso da lírica de Camões: como não a publicou em vida, depois de sua morte as edições passaram a incluir poemas, principalmente sonetos, que provavelmente não eram dele, mas feitos no estilo dele, o que até hoje constitui uma questão filológica e crítica.[1] Como os modelos poéticos e os preceitos técnicos não eram propriedade exclusiva do poeta, mas parte do todo social objetivo, um poema como Os Lusíadas não tinha autonomia artística ou crítica, pois punha em cena matérias coletivas, integrando-se assimetricamente, quando era consumido, aos decoros das ocasiões solenes e polêmicas da hierarquia. Basta lembrar que o poema é dedicado ao rei d. Sebastião, de quem o poeta espera o favor. Logo, também o público de Camões não era, como é a partir do século XVIII, a “opinião pública” dotada de representatividade garantida formalmente nas constituições democráticas e de iniciativas críticas específicas dos interesses contraditórios da particularidade ideológica de um grupo ou de uma classe. O “público” de Camões era “o peito ilustre lusitano” ou a totalidade mística do corpo político do reino, figurada em Os Lusíadas como unidade do bem comum. Na sua lírica e na sua épica, o destinatário é representado como tipo sempre incluído nessa totalidade, ou seja, como tipo que reconhece a sua posição subordinada quando recebe a representação. O espaço público figurado é a totalidade do bem comum do reino, por isso a poesia é como a cena de um teatro corporativista onde se revela o próprio público para o destinatário particular como totalidade jurídico-mística de destinatários[2] integrados em ordens e estamentos subordinados ao rei. Em outras palavras, a poesia de Camões reproduz aquilo que cada membro do corpo místico do Império já é, prescrevendo simultaneamente que ele deve ser ou persuadindo-o a permanecer como o que já é. Logo, a celebração dos “melhores” do reino, como ocorre em Os Lusíadas, era plenamente prevista como celebração da hierarquia na qual o poeta se incluía como pequeno fidalgo subordinado, letrado e soldado, dependente do favor do rei e dos grandes. Pina Martins lembra que, no início do século XIX, os primeiros românticos alemães se apropriaram de uma ideia de Giambattista Vico sobre Dante e Homero. No século XVIII, Vico escreveu que Dante era para a Itália o que Homero fora para a Grécia, propondo que ambos demonstram a universalidade do seu gênio nacional. Em 1804, no curso sobre a literatura portuguesa e espanhola que seria publicado em Viena, em 1846, como a lição XI da História das antigas e novas literaturas, Friedrich Schlegel retomou Vico, para afirmar que Os Lusíadas são a mais importante das epopeias modernas ou “o poema universal da era moderna”.[3] Os românticos portugueses do século XIX, interessados em produzir tradições nacionais e nacionalistas, retomaram Schlegel e mitificaram a vida acidentada de Camões, inventando-o como o gênio solitário e incompreendido da raça e da nacionalidade. Nas comemorações do jubileu do poeta, realizadas em 1880, sua mitificação como gênio-símbolo da nação foi definitiva. O historiador português Fernando Catroga demonstra que a escolha de Camões aparecia como lógica, então, depois de sua mitificação pelos românticos e da difusão de sua obra feita nos anos 1870 por Teófilo Braga e Oliveira Martins. O próprio Augusto Comte consagrara um dia santificado ao poeta no calendário da nova religião da humanidade que é o positivismo, canonizando-o como um santo laico. A ritualização do passado era uma invenção de tradições acompanhada pela apologia incondicional do poeta-gênio, mas quase nunca uma preocupação historiográfica. O mito Camões tinha o carisma da heroicidade e da incompreensão e significava a epopéia que engrandecia o povo português, dando uma contribuição decisiva para a gênese da modernidade. Simbolizava tanto a nação quanto a humanidade; permitia reivindicar para Portugal um papel decisivo na construção do progresso humano, ao mesmo tempo em que a denúncia da apagada e vil tristeza de seu mundo sugeria comparações críticas com o presente. Além disso, as comemorações eram realizadas num momento em que as novas potências europeias lançavam sombras sobre os restos do império colonial português. Apesar da sua situação mínima no contexto dos novos impérios do século XIX, Portugal ainda teria uma grande missão a realizar no mundo, desde que soubesse extrair do passado o exemplo para a ação futura. “Fizemos a epopeia sublime, traduzida pelo Camões na divina linguagem do seu estro. Façamos hoje a epopeia mais modesta da liberdade, da ciência e do trabalho”, dizia o republicano Latino Coelho.[4]

Como ler Camões como poeta que pensa seu mundo? Adiante, tratarei do ato intelectual da sua invenção poética. Antes disso, com o auxílio de estudiosos, quero lembrar alguns dos seus poucos dados biográficos conhecidos, montando-os numa sequência cronológica.

Felizmente, a poesia não é a vida; mas alguns desses dados são estilizados na sua lírica amorosa e elegíaca e em Os Lusíadas. E todos eles evidenciam o modo do ser social do homem e do poeta Luís Vaz de Camões em seu presente como tipo que se define, antes de tudo, como aristocrata, católico, letrado e soldado. Provavelmente nascido em 1525, Camões pertencia a uma família galega da pequena nobreza que se instalou em Portugal no reinado de d. Fernando I, no século XIV. Um documento de 1572, citado por Antônio José Saraiva, classifica-o como “cavaleiro fidalgo da casa real”.[5] Jorge de Sena demonstrou que d. Inês de Castro era antepassada do poeta.[6] Cavaleiro fidalgo, mas pobre. Saraiva o diz bem: em Portugal, no século XVI, quando o aumento da circulação dos metais preciosos e dos bens mobiliários desvalorizava os direitos fixos pagos aos senhores pelos camponeses, a nobreza não era uma classe homogênea. O poder de cada família dependia do seu valimento na corte, com o que seus membros obtinham cargos administrativos no reino e no ultramar, garantindo o enriquecimento e a manutenção da posição. Os pequenos senhores de terras ou simples soldados sem grande herança familiar que não obtinham o favor real estavam condenados a depender da generosidade dos grandes que, sabemos, quase sempre é pequena. Parecendo incapaz de adaptar-se a um mundo em que a riqueza rapidamente se tornava o critério principal da hierarquia, o fidalgo pobre, que se tornou um tipo nas letras de Portugal e da Espanha, orgulhava-se da nobreza, desprezava o trabalho manual, tinha antipatia pelo comércio, valorizava a carreira das armas[7] e, a partir principalmente da segunda metade do século XV, passou a valorizar as letras, até então desdenhadas pela nobreza como coisa de homens de saia. Jorge de Sena diz que todo o heroísmo e toda a sujeição da gente da pequena fidalguia como a de Camões a serviço dos reis e dos grandes também significavam uma lealdade que confundia a pátria com o senhor que garantia a tença, garantindo a reprodução da estrutura senhorial de corte estabelecida a partir de 1415 pela dinastia de Avis, que deu início às navegações e às conquistas na África, na Ásia e na América.[8] Pouco se sabe do modo como Camões adquiriu as letras; talvez tenha estado na Universidade de Coimbra ou estudado com os frades de Santa Cruz do local. Sua vida ali terá sido a dos moços da sua posição: nos intervalos do latim, da lógica, da retórica, da dialética, da teologia, perambular armado de espada, rodela e elmo, jogo, bebida, poemas, arruaças e mulheres de várias condições, alguma fidalguinha, plebeias e as “damas de aluguer” do Malcozinhado, nome que o poeta deu a um bordel da cidade. Entre 1542 e 1545, ele está nas proximidades da corte do rei d. João III, onde dominam os modelos italianos da conversação e da cortesia sistematizados por Baldassare Castiglione em Il Cortegiano, de 1528. Aí obtém fama de bom poeta, mas seu feitio brigão e altivo lhe causa contratempos. Alguns biógrafos falam de suas relações com damas de alta linhagem, como d. Francisca de Aragão e d. Catarina de Ataíde, esta de altíssima condição, por quem se teria apaixonado, celebrada na sua lírica como Natércia. Outros afirmam que teria ousado cortejar a infanta d. Maria, filha do rei d. Manuel. O amor por pessoa ou pessoas de tanta representação lhe teria custado o desterro para Constância. Mas, como era relacionado à casa do conde de Linhares, d. Francisco de Noronha, por volta de 1549 foi para Ceuta, no Marrocos, lá ficando até 1551. Sair de Portugal e ir para a África, a Ásia e o Brasil era rotina na carreira militar dos moços fidalgos pobres que não eram filhos primogênitos ou que não tinham entrado para o clero. Camões refere a experiência marroquina numa elegia, “Aquela que de amor descomedido”. Em Ceuta, perdeu o olho direito, furado por uma flecha moura. De volta a Lisboa, parece ter retomado a vida típica dos jovens fidalgos de então. Datam dessa época duas cartas satíricas em que descreve a qualidade dos amores das mulheres, a vida dos jovens e a que levou entre 1551 e 1553.[9] No Dia do Corpo de Deus de 1552, feriu com espada a nuca de um cavalariço do Paço, Gonçalo Borges, e foi preso na cadeia do Tronco de Lisboa. Foi libertado em 24 de março de 1553 por uma carta régia do dia 7 desse mês. A carta declara que é “mancebo pobre que me vai este ano servir à Índia”.[10] Embarcado na armada de Fernão Álvares Cabral, que ia para a Ásia, o homem de letras Camões vai como homem de armas, realizando a tópica “letras e armas” do humanismo cívico que lemos nos versos da penúltima estrofe de Os Lusíadas: “Para servir-vos, braço às armas feito;/ Para cantar-vos, mente às Musas dada” (X, 155, 1-2).[11] Nesse tempo, o capitalismo monárquico português está em crise e ninguém mais quer ir para a Índia. A viagem demora entre cinco e seis meses e é sempre incerta, como podemos ler na História Trágico Marítima, de Bernardo de Brito, e na Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto. Na véspera de sua partida para Goa, Camões é, como diz Saraiva, homem sem ofício certo, vivendo à lei de fidalgo, de língua chistosa e dardejante; de espada pronta, pobre e desemparado, posto à margem por uma sociedade que se tornava palaciana, regrada e beata e em que os pergaminhos de nobreza, para valerem, tinham de ser lustrados com dinheiro.[12] Demasiado fidalgo para poder governar-se como pobre, e demasiado pobre para poder permitir-se liberdades de fidalgo, como diz o crítico, trata da sua perdição em inúmeros poemas da sua lírica: “Erros meus, má Fortuna, Amor ardente/ em minha perdição se conjuraram./ Os Erros e a Fortuna sobejaram,/ que para mim bastava Amor somente”. Ou: “Em prisões baixas fui um tempo atado,/ vergonhoso castigo de meus erros”. Logo depois de chegar a Goa, em fins de 1553, participa de uma expedição comandada pelo vice-rei d. Afonso de Noronha contra o rei da Pimenta ou de Chembé. Camões se refere à expedição numa elegia, “O poeta Simônides falando”. Numa carta desse tempo, expõe suas primeiras impressões da Índia. Como o historiador Diogo do Couto, acusa a decadência, afirmando que o ânimo guerreiro dos fidalgos do século XV foi trocado pela vulgaridade dos mercadores: “Da terra vos hei de dizer que é mãe de vilões ruins e madrasta de homens honrados”.[13] Entre fevereiro e novembro de 1554, embarca na armada comandada por d. Fernando de Meneses, que vai ao estreito de Meca combater navios muçulmanos. Parece que data desse tempo outro poema famoso, a canção “Junto de um seco, fero e estéril monte”. Em 1556, o governador Francisco Barreto, para quem Camões escreveu uma peça de teatro, o Auto de Filodemo, nomeia-o “provedor-mor dos bens dos defuntos e ausentes nas partes da China”, com residência em Macau. Conforme alguns biógrafos, seu comportamento no Extremo Oriente não teria sido exemplar, pois, quando Leonel de Sousa retorna do Japão, leva-o quase à força de volta para Goa, acusado de desencaminhar os bens confiados à sua guarda. Quando voltava, seu navio naufragou na foz do rio Mekong, no Camboja, em fins de 1558 ou no início de 1559. No desastre teria perdido tudo do nada que possuía, menos a vida, obviamente, e o manuscrito quase acabado de Os Lusíadas. Na estrofe 128 do Canto X do poema, quando Tétis descreve o rio Mekong, profetiza o naufrágio e fala da injustiça da prisão do poeta e da sua destituição do cargo:

Este receberá plácido e brando

No seu regaço o Canto que molhado

Vem do naufrágio triste e miserando,

Dos procelosos baixos escapado,

Das fomes, dos perigos grandes, quando

Será o injusto mando executado

Naquele cuja lira sonorosa

Será mais afamada que ditosa.

No desastre teria morrido uma moça chinesa que o acompanhava, o que forneceu matéria para o conjunto dos belíssimos sonetos a Dinamene, como aquele que começa “Ah! Minha Dinamene! Assim deixaste/ quem não deixara nunca de querer-te!/ Ah! Ninfa minha! Já não posso ver-te/, tão asinha esta vida desprezaste!”. Ou este soneto comovente e triste:

Quando de minhas mágoas a comprida

maginação os olhos me adormece

em sonhos aquela alma me aparece

que para mim foi sonho nesta vida.

Lá numa soidade onde estendida

a vista pelo campo desfalece

corro para ela, e ela então parece

que mais de mim se alonga, compelida.

Brado: Não me fujais, sombra benina!

Ela, os olhos em mim c’ um brando pejo,

como quem diz que já não pode ser,

torna a fugir-me, e eu gritando “Dina…”

antes que diga “mene”, acordo e vejo

que nem um breve engano posso ter.

Maria Lucília Pires propõe que dessa experiência talvez tenham surgido as redondilhas da elegia “Sôbolos rios” ou “Babel e Sião”.[14] Em 1560, ele está em Goa. Sua situação é tão precária que pede a proteção do vice-rei d. Constantino de Bragança. Depois de algum tempo, preso por dívidas, várias vezes suplica ao novo vice-rei, d. Francisco Coutinho, que o mande libertar. Em 1567, já acabou Os Lusíadas e está compilando a obra lírica. Nesse ano, vai para Moçambique, onde Diogo do Couto o encontra em 1569, vivendo de amigos e pedindo esmolas. Na Década 8ª, da Ásia, Diogo do Couto escreve que Camões compunha então “um livro mui douto, de muita erudição, que intitulou Parnaso de Luís de Camões, porque continha muita poesia, filosofia e outras ciências”.[15] Mas a obra foi roubada e nunca mais se achou. Voltando para Portugal, Camões trata da publicação de Os Lusíadas, que saem em 1572. O rei d. Sebastião, a quem é dedicado, concede-lhe uma tença ou pagamento anual de 15 mil réis, insignificância paga irregularmente que mal livra o poeta e sua mãe da miséria total. Alguns biógrafos contam que ele tinha levado para Portugal um escravo jau, que saía à noite pelas ruas de Lisboa pedindo esmolas para sustentá-lo. Em 10 de junho de 1580, Camões morre numa casa pobre da Calçada de Santana e é enterrado em campa rasa, na igreja de Santa Ana. O lençol que o amortalha é emprestado. Pouco tempo depois, um fidalgo amigo das letras, a cujos antepassados o poeta tinha dedicado versos, mandou esculpir em pedra a seguinte inscrição: “Aqui jaz Luís de Camões Príncipe dos Poetas de Seu Tempo. Viveu pobre e miseravelmente e assim morreu no ano de 1579. Esta campa lhe mandou pôr d. Gonçalo Coutinho, na qual se não enterrará pessoa alguma”.[16]

Como ler Camões como poeta que pensa seu mundo? Como disse, sua poesia é intelectual e autorreflexiva, teórica ou contemplativa, composta engenhosamente com a proporção que ordena, nos casos poéticos da invenção e nos ornatos da elocução, os conceitos de um saber só de experiências feito. Ela põe o leitor em contato com o mundo puro da arte, figurado como experiência da contemplação de uma medida superior que falta irremediavelmente à história. Se fosse possível atribuir-lhe profundidade material, poderíamos usar de uma alegoria e dizer que é como a superfície lisa, transparente, luminosa e calma de um bloco de gelo sob o qual se agitam pedaços sombrios e disparatados de coisas desconcertadas. Seu leitor faz uma experiência dupla: as tópicas de sua poesia lírica, principalmente a de tradição italiana, quase sempre são as do não-ser, a finitude humana, o sem-sentido da dor, a perda das esperanças, a indeterminação da angústia, o desconcerto do mundo. A forma que dá a esses lugares-comuns do informe, contudo, tem total proporção e extrema graça, pois ele a compõe intelectualmente como um aceno da beleza intelectual, aquela beleza metafísica do Tratado Oitavo da V Enéada, de Plotino.

Ordenada como experiência da contemplação do ato do intelecto que inventa os mundos possíveis da arte que transcende o tempo, a forma pressupõe a matéria da história, onde se recorta como a escultura numa pedra. Camões acredita que a pedra não tem beleza ou que, se a tem, é bela não como pedra, mas em virtude da Forma da Idéia introduzida nela pela arte do escultor, como lemos no Platão, no Plotino, no Marsilio Ficino, no Angelo Poliziano e no Leão Hebreu que cita em seus sonetos, canções e elegias.[17] A forma pelo escultor não está no material da pedra, mas no intelecto do artífice, antes de entrar na pedra. Como a pintura em Leonardo, a poesia em Camões é cosa mentale, coisa mental. Assim, não há beleza na história, que é tempo e destruição, mas na poesia, um meio de domínio intelectual das contingências pelo qual o instante se eterniza na forma proporcionada para além da morte que o determina. O mundo possível da poesia é regrado com número e medida; nele, a liberdade do intelecto faz do poeta um demiurgo: o que Deus criou o poeta o concebe pelo ato intelectual e o figura nas formas que inventa como ordem na precária matéria do mundo, atestando a potência criadora participada pelo divino no homem. A poesia não é apenas uma operação do mundo sensível, como sensação envolvida e perdida nas aparências, porque é, antes de tudo, ação da ordem do inteligível: “Transforma-se o amador na cousa amada/ Por virtude do muito imaginar/ Não tenho, logo, mais que desejar,/ pois em mim tenho a parte desejada”.

Assim, a invenção poética articula a sensação numa percepção sucessiva e seletiva, intelectualmente proporcionada, que mimetiza o ritmo da alma na progressão da sua reminiscência do Bem: “esta linda e pura semidéia/ […] está no pensamento como ideia”, diz, propondo que o “imaginar”, que é um ver interior inteligível sempre orientado pela discrição do juízo, produz com a memória dos casos poéticos a semideia ou semideusa como semi-ideia ou quase-ideia, construção intelectual da ascese da alma. Logo, assim como a pedra e o que é esculpido nela são sempre menores que a beleza intelectual, também as armas e os barões assinalados nada são sem a arte, que lhes dá a forma poética superior que os salva do esquecimento. Há em Camões uma extraordinária alegria das formas sensíveis onde transluz a beleza graciosa do Amor universal, alegria condensada intelectualmente na alegoria da Vênus terrestre e celeste, como podemos ler no episódio da Ilha dos Amores, que várias edições padrescas de Os Lusíadas censuram justamente porque odeiam o sensível e o intelectual. Camões é um platônico, mas sem nenhum ódio da empiria, sem nenhuma misologia, pois é discreto e seu juízo é movido pela caritas cristã, reconhecendo no sensível do mundo e da linguagem os vestígios, os rastros e as sombras do Amor que move o sol e as estrelas da grande máquina do mundo. Ele acredita poeticamente, com Aristóteles, que a arte corrige a natureza; por isso, não se contenta com as coisas empíricas, mesmo quando belas, pois sabe que são tempo, imperfeitas, e passam, efêmeras. Em sua poesia, todas as figurações da beleza sensível são metáforas da beleza do ato intelectual que reproduz o ato da Criação. Por isso, a poesia não imita as coisas do mundo, que já são imitações inferiores, mas produz a forma superior à beleza do sensível na proporção do verso em que reluz o ato do intelecto iluminado pela lei da Graça: “E aquela humana figura/ que cá me pôde alterar/ não é quem se há de buscar:/ é raio de fermosura/ que só se deve de amar…/ é sombra daquela Idéia/ que em Deus está mais perfeita”, lemos em “Sôbolos rios”.

Muitos críticos demonstram que em sua lírica domina o sentido do olhar em detrimento dos outros, principalmente o tato. Os platônicos florentinos do século XV afirmam que o tato é um sentido animal, material e inferior. Camões partilha dessa ideia. Em sua poesia, são “funções nobres” as mesmas propostas pelos florentinos: o pensamento (cogitatio), o olhar (aspetus) e a audição (auditus), aplicados ao número (mensura), subindo à proporção (proportio), vendo a luz (lux; gratia), contemplando a beleza (pulchritudo). São “funções baixas” os outros sentidos, como o tato, que operam o peso (deformitas), a massa (tenebra), a matéria (umbra).[18] Assim, o olhar físico é metáfora do outro, o olhar intelectual, que faz a teoria ou a contemplação da beleza superior: “Porque essa própria imagem, que na mente/ me representa o bem de que careço,/ faz-mo de um certo modo ser presente./ Ditosa é, logo, a pena que padeço,/ pois que da causa dela em mim se sente/ um bem que, inda sem ver-vos, reconheço”.

Quando trata do amor de homem e mulher, a posição do “eu” que vai falando nos poemas é a da melancolia da delectatio morosa, a deleitação morosa da ascese perversa que caracteriza o amor cortês e o petrarquismo: o “eu” se vê a si mesmo vendo a parte superior do corpo, olhos e rosto da mulher, em uma estrutura contemplativa que Deleuze dizia ser a de um tempo composto, “tenho amado”:[19] “Dizei, Senhora, da Beleza idéia:/ para fazerdes esse áureo crino,/onde fostes buscar esse ouro fino?/ de que escondida mina ou de que veia?”. Nela, o particípio passado, “amado”, identifica e petrifica o visto na imagem de objeto inalcançável e perdido para sempre, como naquela visão da Vida Nova que possuiu Dante quando pela primeira vez viu Bice, Beatriz, desde então para sempre intocada de morte. Simultaneamente, o presente do “tenho” corresponde à repetição obsessiva do desejo barrado, aqui-agora: “tenho”, “tenho”, “tenho amado”: “Lembranças que lembrais meu bem passado/ para que sinta mais o mal presente”. O intervalo entre “tenho” e “amado” é preenchido com as figurações do ato intelectual que se contempla na contemplação do perdido e transcende a impossibilidade mantida de efetuar o contato com ele, gozando de um prazer superior, o da visão ou teoria da essência do Amor: “Este amor que vos tenho, limpo e puro,/ de pensamento vil nunca tocado,/ em minha tenra idade começado,/ tê-lo dentro nest’alma só procuro”.

Em Camões, essa estrutura é recorrente e não é apenas uma tópica lírica tratada com idealização, como se diz, porque é a forma matriz do seu pensamento, que erotiza também as experiências não eróticas, como a viagem de Vasco da Gama à Índia e as guerras medievais dos reis portugueses, pois ele pensa a beleza intelectual do Eros como virtus unitiva, virtude unitiva universal superior às contingências. A poesia é inspiração erótica e evidencia que todos os seres são ligados pelos laços da concórdia do Eros; e que todos eles trocam como generosidade recíproca suas naturezas e seus nomes. A proporção e a graça da forma do verso alegorizam justamente a contemplação extática da Forma do Amor universal que tudo une. Por isso mesmo, em sua lírica, essa forma matriz também modela as tópicas associadas à temporalidade: a transitoriedade da vida, a Fortuna madrasta e, principalmente, o desconcerto do mundo, que sempre lhe aparece como incongruente e absurdo, embora intelectualmente creia que Deus é o fundamento erótico que dá sentido também à forma poética que figura o desconcerto: “cá neste escuro caos de confusão,/ cumprindo o curso estou da natureza./ Vê se me esquecerei de ti, Sião!”. Também suas redondilhas platonizantes, como as de “Sôbolos rios”, referem uma terra de glória jamais conhecida pela memória dos olhos sensíveis do corpo, mas presente na reminiscência do olhar intelectual da alma.

Ezra Pound dizia que para nós é muito mais fácil imaginar um inferno que um paraíso. No presente de Camões, Deus existe e dá sentido à história portuguesa como Causa Primeira e Final que a orienta providencialmente: “Mas o melhor de tudo é crer em Cristo”, escreve num soneto em que define o mundo como um lugar de desamor onde “Cousas há i que passam sem ser cridas/ e cousas cridas há sem ser passadas”. Como essa transcendência é definitivamente impossível para nós, lemos Camões talvez interessados pela tópica do desconcerto do mundo, que é o tema da nossa vida enquanto estamos aí e duramos na presença do nosso presente, sofrimento sem sentido e sem redenção. E porque ainda somos mortais e não temos respostas para a angústia, a melancolia de Camões pode comover. De todo modo, a descontinuidade que há entre seu tempo e o nosso não pode ser esquecida, pois é determinante do sentido da sua poesia. Talvez — sugere a leitura dela hoje — todo esforço humano seja fútil, inútil e irracional, quando observado do ponto de vista da morte, que é nada e nenhum. Talvez — sugeria a leitura dela em seu tempo — o que aparece como irracionalidade da vida bem pode ter um sentido secreto e providencial que a simples razão humana não alcança. Porque Camões é cristão e acredita — ou pelo menos sabe disso intelectualmente — que todo ente, porque é finito, está sujeito ao mal, moral ou natural. A finitude torna impossível ao homem escapar ao mal como sofrimento; no entanto, como cristãmente o mal não é imanente à estrutura ontológica dos seres, mas decorre de causas extrínsecas ao ser que sofre, o sofrimento corresponde a uma inadequação qualquer das conveniências que regem as criaturas. O desconcerto do mundo é uma falta de Bem ou uma inadequação que decorre, enfim, da liberdade e da finitude humanas: “cá, neste labirinto, onde a nobreza/ com esforço e saber pedindo vão/ às portas da cobiça e da vileza”, como diz num soneto. Mas há Bem.

Tratando desse por enquanto, sua poesia condensa de maneira absolutamente comovente a experiência histórica de seu mundo, porque o núcleo da sua arte é o pensamento do tempo no pensamento da forma. Como qualquer poeta, Camões pensa seu tempo historicamente, condicionado pelas categorias feudais e capitalistas, fidalgas e mercantis, escolásticas e empiristas, bélicas e humanistas de seu mundo. Quando o pensa, seu pensamento é a surda comoção intelectualmente controlada da experiência do espanto com a falta aparente de sentido da própria experiência formulada poeticamente, não obstante com total proporção e graça:

Quem pode ser no mundo tão quieto

ou quem terá tão livre o pensamento,

quem tão experimentado, ou tão discreto,

tão fora enfim de humano entendimento,

que, ou com público efeito ou com secreto,

lhe não revolva e espante o sentimento,

deixando-lhe o juízo quase incerto,

ver e notar do mundo o desconcerto?

Com justeza e justiça, Arlette Farge diz que o sofrimento humano nunca é anedótico, pois é parte fundamental da história, mais ainda quando é sofrimento anônimo, que não encontra expressão nem redenção. A capacidade de dar voz ao sofrimento, fazendo falar o que também em nós permanece anônimo, solitário e silenciado, faz de Camões um poeta máximo. A figuração do sofrimento do desconcerto do mundo em sua poesia é um momento fundamental da história, momento que seus poemas superam artisticamente, evidenciando o ato intelectual que os inventa como transcendência da angústia que figuram como sua causa. Não mais cremos nem podemos crer na transcendência artística e divina a que sua poesia alude, pois a única metafísica que conhecemos é a da mercadoria; mas a figuração do ato intelectual que encontramos nela permanece como uma metáfora, vamos dizê-lo assim, do nosso desejo de outra vida, pois a nossa evidentemente não presta.

Ainda quando épica e animada de som e fúria, como Os Lusíadas, sua poesia é ordenada pela mesma forma matriz plotiniana que figura a experiência de algo superior faltante no seu presente vivido como tempo de uma austera, apagada e vil tristeza. Algo melancolicamente dado como perdido, passado e, simultaneamente, aludido como futuro ainda não vivido por ninguém e por nada. Sua epopeia canta guerras barulhentas e viagens perigosas, grandes conquistas políticas e feitos brutais de homens ilustres, mas talvez o sentido maior do canto esteja além dessas coisas contingentes, naquelas alegorias da Ilha dos Amores e da grande máquina do mundo, onde as contradições do seu mundo encontram sentido como superação artística da história. Hoje sua poesia ainda pode ativar no leitor o imaginário da arte como figuração do “real absoluto” de que falaram os platônicos do século XV e os primeiros românticos alemães. E isso porque, nela, a beleza sensível da forma intelectualmente proporcionada transcende a si mesma sob a pressão dessa verdade, além aludida, que anuncia o conceito de sublime. O mundo a que a poesia de Camões aspira, um mundo de beleza intelectual, ocorre na leitura, principalmente na leitura de Os Lusíadas, como a figuração de um não-representável sensível que desliza sob os atos do intelecto do leitor, pois a brutalidade da matéria histórica não é conciliável com o ideal a que as imagens aludem. Ideal e material se afastam um do outro e o leitor faz a experiência melancólica do vazio do infigurável da transcendência da história figurado alegoricamente no ato intelectual que inventa a forma. Aqui, a melancolia proporcionada de Camões nos faz pensar no que dizia Auden: os grandes poetas nos fazem alegres com a felicidade da forma com que representam as maiores dores. A poesia de Camões tem essa alegria da forma porque felizmente não é a vida: a vida não tem nenhum sentido dado, mas a poesia sim, pois tem proporção, número, medida, luz e beleza que propõe mudamente para o leitor, perguntando-lhe se trouxe a chave, como diz outro poeta intelectual também melancolicamente comovido com o remorso que é a história.

Como ler Os Lusíadas? Desde o século XVIII, o épico é um gênero morto e provavelmente hoje nenhum de nós os leria numa só sentada, pois também é muito longo para o nosso tédio pós-moderno habituado à banalidade norte-americana. Aqui, para tratar do episódio da máquina do mundo do Canto X, vou antes falar do modo como o poema figura a ação de Vasco da Gama, relacionando-a com o maravilhoso, a ação dos deuses, principalmente Vênus. Para isso, quero lembrar que os teóricos alemães da estética da recepção demonstram que o texto de poesia funciona como a sua própria poética: sua enunciação é construída como figuração intencional de um ato de fala fingido ou contingente, em que o papel do autor se relaciona com o próprio texto, não com os objetos, ações e eventos figurados nele como coisas exteriores. A enunciação poética finge um ato de comunicação que transforma matérias sociais produzindo efeitos de realidade para o destinatário. Quando ocupa o lugar do destinatário de Os Lusíadas, o leitor estabelece uma relação de comunicação fingida com as coisas figuradas. Seu papel como leitor, como diz Stierle, independe do contexto da sua história pessoal como leitor. Sabemos, com os alemães, que a unidade mínima de leitura do poema é a palavra ou o significante, como “armas”, o primeiro termo do primeiro verso da proposição de Os Lusíadas, “As armas e os barões assinalados”, para o qual o leitor deve atribuir um significado, fazendo uma equivalência ou tradução com que reconhece uma figura relevante.[20] Evidentemente, a palavra poética não está em “estado de dicionário”: seu significado não é unívoco, pois não é só gramatical, mas retórico, resultando de uma enunciação intencional, que se relaciona com matérias simbólicas contemporâneas ou anteriores. A enunciação poética refrata, desloca e condensa a significação, fazendo que a palavra admita significações simultâneas, decorrentes das associações semânticas da sequência do texto e das referências culturais que ele imita. Em Os Lusíadas, “armas” é uma sinédoque, uma parte pelo todo, valendo por “guerras” ou “feitos militares”, as guerras da história medieval portuguesa, principalmente, que Camões lê nos cronistas medievais, como Fernão Lopes, e historiadores do seu tempo, como Damião de Góis, Rui de Pina e João de Barros. Mas também é uma tópica do gênero épico doutrinado na Poética e relaciona-se às virtudes feudais que definem o caráter e a ação do herói como força, coragem, lealdade e honra. Em terceiro lugar, é citação do primeiro verso da Eneida, de Virgilio: Arma virumque cano, “canto as armas e o varão”. Em quarto, é um preceito de leitura: indica que o leitor deve ler de um modo determinado e não de qualquer modo, ou seja, que o estilo é alto, sublime, “tuba canora e belicosa”, não lírico ou pastoral, de “agreste avena ou frauta ruda”, como lemos na estrofe 5 do Canto I. Como leitores, temos de escolher, entre os inúmeros significados possíveis de cada palavra e da combinação das palavras e dos versos, os significados mais adequados ao contexto discursivo do poema e não apenas ao contexto do nosso imaginário, que evidentemente é outro. O ato de ler é uma redução, diz Stierle, um ato produtor de sínteses parciais.[21] Como as palavras do poema se ordenam em sequência, o leitor também deve saber que a ordem sintática é funcional: a sintaxe de Camões funciona como esquema das relações dos significados com que contextualiza e diagrama o significado de cada palavra isolada para construir novas significações horizontais com a relação estabelecida entre elas. No caso, o leitor deve observar que o termo “armas” está imediatamente ligado à expressão “barões assinalados”, que significa “varões”, homens, também “barões”, fidalgos, que são “assinalados”, famosos por seus feitos, tendo por isso a honra e a glória históricas que o canto épico começa a eternizar. Assim, a expressão “armas e barões assinalados” é uma antecipação, uma síntese prévia da matéria, do gênero e do estilo do poema, matéria figurada gramaticalmente como um objeto direto posto em realce, antes de tudo, como os dois primeiros termos épicos da proposição de uma epopéia de estilo sublime. O leitor deve observar, enfim, que o poema fornece já no primeiro verso o protocolo da leitura adequada. Logo, também deve saber que o verbo desse objeto direto aparece só quinze versos depois, “espalharei”, do verso “Cantando espalharei por toda parte”, porque o poeta ocupa catorze versos para especificar sua longa matéria histórica: a história de Portugal, do século XII ao XVI — como história das guerras do reino e das conquistas feitas a ferro e fogo pelos reis das dinastias de Borgonha e de Avis — e a viagem de Vasco da Gama à Índia, no final do século XV, como as coisas principais condensadas e anunciadas em “armas e barões”.

O leitor deve dominar vários repertórios de informação, enfim: esquemas de ação verbal, como a informação de que o canto é composto com engenho, a faculdade intelectual do juízo, e com arte, os preceitos técnicos do gênero épico. Também deve conhecer normas de regulação social do tempo de Camões, como a oposição de honra fidalga e vulgaridade mercantil que atravessa todo o poema. E informações factuais, como as relativas aos contatos portugueses com lugares da África oriental, Melinde, Mombaça, Sofala etc. E referências poéticas, versos e personagens de Homero, Virgílio, Ovídio, Horácio, Boiardo, Ariosto etc. E referências mitológicas, deuses olímpicos, ninfas aquáticas e seus atributos. E referências filosóficas, teológicas, éticas, hagiográficas, categorias e classificações que remetem a leitura para os sistemas simbólicos de várias tradições transformadas metaforicamente no texto.

A significação de cada palavra e de cada verso isolados do poema é obtida por uma hipótese que o leitor constrói por meio de procedimentos de seleção, redução, equivalência, tradução e contextualização dos significados dos termos relacionados em sequência. Evidentemente, o poema relaciona o significado de termos, versos e episódios com interpretações culturais contemporâneas do poeta que especificam o que é verdadeiro e verossímil. As interpretações prescrevem e determinam associações que hoje, quando o mundo de Camões está extinto, nem sempre são familiares ou evidentes. Por isso, o leitor tem de fazer uma hipótese sobre a relação horizontal ou presente dos termos e dos versos; e também sobre as relações deles com referências ausentes, imitadas, citadas, estilizadas ou parodiadas pelo poeta. Para isso, o leitor deve preencher os vazios semânticos que se produzem na justaposição e na distância dos termos e também no estilo sublime, nas referências a poetas, filósofos, historiadores, geômetras e astrônomos antigos. E também deve observar a alternância da narração épica, em que o poeta conta a ação diretamente, e da encenação dramática, em que personagens como Vasco da Gama e Paulo da Gama falam, narrando a ação. O leitor deve se orientar pela maneira da invenção da forma, enfim, entendendo a forma como produto artificioso de um ato de fingir ordenado por preceitos miméticos do gênero épico que transformam a matéria histórica do reino de Portugal. Para reconstituir essa estrutura fundamental determinada pelo gênero, deve refazer a cada momento as escolhas feitas pelo poeta, e, simultaneamente, fazer as associações da sua liberdade de leitor sempre limitada pelas regras dessa estrutura. Há sempre um desnível entre a enunciação do poema e a leitura dele, evidentemente, e a significação tende a ser a tensão de fechamento e abertura, clareza e hermetismo, determinação e indeterminação. A leitura transforma a estrutura do poema num valor-de-uso inesperado, que é produzido como introdução de indeterminação semântica na determinação semiótica do mesmo. Luiz Costa Lima demonstrou inúmeras vezes que a significação do texto de ficção não se esgota na interpretação temporalmente variável dele. Mas, em qualquer leitura, por definição variável, o leitor deve encontrar a estrutura básica do texto, que permite justamente a comunicação do ato da sua invenção com a sua leitura.

José Maria Rodrigues e Afonso Lopes Vieira afirmaram que o caráter decisivo da poesia de Camões consiste no sentido da realidade. Antônio José Saraiva criticou certa ingenuidade filosófica dessa afirmação;[22] mesmo assim, lembrando que as grandes inovações culturais do final do século XV e dos trinta primeiros anos do século XVI já são passado no presente contrarreformista controlado pelo Santo Ofício da Inquisição em que o poeta compõe o poema, a afirmação tem interesse para especificar algumas de suas articulações principais, como o maravilhoso.

Saraiva e outros críticos propuseram que Os Lusíadas são uma epopeia de imitação, como a Eneida no tempo de Augusto, diferentemente da épica grega, a Ilíada e a Odisseia, em que os deuses não são erudição, ficção, mitologia ou metáforas, mas religião viva. O conceito de “epopeia de imitação” relaciona-se imediatamente com a enorme erudição do poeta e os materiais históricos transformados por ele quando maquinou a forma. Antes de Camões, vários eruditos e poetas dos séculos XV e XVI, como Angelo Poliziano e Antônio Ferreira, propuseram aos reis d. João II e d. Manuel que a matéria histórica das navegações portuguesas devia ser transformada num poema épico de celebração dos feitos da dinastia. Quando se dispôs a escrevê-lo, Camões teve de trabalhar com elementos heterogêneos de várias tradições, principalmente poéticas e históricas, integrando-os artificiosamente na forma épica. Tratarei esquematicamente de suas articulações principais para especificar alguns tópicos da ação dos deuses e relacioná-los ao tema “a figuração da máquina do mundo”. Encontramos no poema três narrativas básicas: a da viagem de Vasco da Gama à Índia, em 1498, que inclui a descrição de fenômenos marítimos (a tromba-d’água, o fogo-de-santelmo), de lugares (a costa oriental da África) e de doenças (o escorbuto) etc. Paralelamente, lemos uma história dos reis e guerreiros portugueses das dinastias de Borgonha e de Avis, entre os séculos XII e XVI, que Camões imita principalmente dos cronistas medievais, como Fernão Lopes, e historiadores do seu tempo, como Damião de Góis, Rui de Pina e João de Barros. A viagem é narrada pelo poeta e, no Canto III, pelo próprio Vasco da Gama ao rei de Melinde, reino árabe da África oriental, e, no Canto VII, por Paulo da Gama, que explica ao Catual, ministro do Samorim, rei de Calcutá, o significado das imagens estampadas nas bandeiras que pendem dos mastros dos navios portugueses. No Canto X há uma história dos feitos da Índia, narrada como profecia feita pela ninfa Tétis a Vasco da Gama. A terceira narrativa põe em cena deuses latinos, amigos e inimigos dos portugueses, Júpiter, Vênus, Marte e Baco, imitados principalmente da epopeia de Virgílio, com o cuidado ortodoxamente católico — a Inquisição é atuante no presente do poeta — de afirmar por meio da ninfa Tétis, na estrofe 82 do Canto X, que são fábulas, “[…] porque eu, Saturno e Jano,/ Júpiter e Juno…/ só para fazer versos deleitosos/ Servimos…”. Há também descrições geográficas do mundo conhecido então, Europa, África e Ásia, com referências à flora e à fauna indianas, além de elementos de costumes de populações da África oriental e da Índia e uma pequena menção à América e ao Brasil. Também há episódios soltos de romances de cavalaria, como o dos Doze de Inglaterra; e episódios trágicos, como o da morte de d. Inês de Castro; e episódios hagiográficos, como a história dos milagres de são Tomé; e, no Canto X, a figuração cosmográfico-político-metafísica da grande máquina do mundo, que arremata o poema. Além disso, em várias passagens, o poeta faz comentários sentenciosos e vituperações.

Os episódios são montados como caixas chinesas,[23] justapondo-se como grandes cenas soltas e alternadas de quadros dentro de quadros de estilo sublime e eloquente, pictórico e visualizante, que ora aproxima, ora distancia o foco da ação. No Canto I, depois da proposição da matéria, da invocação às musas do Tejo e da dedicatória ao rei d. Sebastião, a narração começa, obedecendo ao preceito antigo da ordem artificial do gênero épico: a ação começa do meio da história a ser narrada, não do início dela. Quando começa a leitura, o leitor encontra a frota de Vasco da Gama já em alto-mar. É quando ocorre o concílio dos deuses olímpicos, que deliberam o futuro da iniciativa. Júpiter é favorável a ela, mas encontra a oposição de Baco, que teme perder o poder nos reinos árabes na costa oriental da África e na Ásia. A defesa dos portugueses é feita por Vênus, que tem o apoio do amante, Marte. Quando a frota entra no Índico e chega a Moçambique, Baco inspira o régulo local contra os portugueses; mas, inspirados por Vênus, partem para Quíloa e logo chegam a Mombaça. Enquanto isso, Baco continua fazendo planos para perdê-los. E novamente a deusa intervém, salvando-os. E assim vai: os dois eixos narrativos da viagem de Vasco da Gama e da história de Portugal vão sendo atravessados pela narrativa da ação dos deuses, até a chegada da armada em Calicute. No caso, o maravilhoso da ação deuses é decisivo para a coerência estrutural do poema, mas sua significação é objeto de interpretações polêmicas.

Como já mencionei, o tempo de Camões crê numa Causa Primeira e Final da natureza e do tempo, Deus, que os cria como seus efeitos e signos, orientando-os providencialmente. A concepção cristã da natureza e da história é o pressuposto doutrinário da interpretação do poder dos reis e dos fidalgos portugueses em Os Lusíadas, legitimando o poder deles como ação iluminada e orientada pela luz da Graça inata. Platão e os estoicos gregos sistematizaram a alegoria do piloto que conduz o navio a um porto seguro através do mar tempestuoso, para significar o bom governante que conduz a cidade com segurança através das dificuldades políticas. Essa alegoria modela a viagem de Vasco da Gama e também constitui sua exemplaridade como herói emblemático da fidalguia portuguesa. Vários críticos, no entanto, principalmente Saraiva, afirmam que Vasco pouco age como herói épico, pois o poeta fala doutrinariamente por ele, declarando as virtudes que o fazem herói, ou o faz falar com majestade, dignidade e prudência sempre constantes, sem as fúrias e indecisões patéticas dos heróis de Homero e de Virgílio. Se a ação de Vasco é mais oratória e eloquente que épica e heroica, isso ocorre, no entanto, não porque Camões erre poeticamente, mas porque o inventa como emblema que condensa as virtudes cristãs e fidalgas do “peito ilustre lusitano/ a quem Netuno e Baco obedeceram”. Enquanto vai atravessando o mar, Vasco é um emissário emblemático da monarquia católica que, desde o século XII, atravessa virtuosamente o mar alegórico das dificuldades da história interna do reino e das suas guerras contra o Islã e Castela. A navegação à Índia e a derrota final de Baco reconfirmam a finalidade superior da condução do reino pela monarquia de Avis, que o leva com a concórdia e a paz do “bem comum” pelos mares das dificuldades da história. Por isso mesmo, as virtudes de Vasco da Gama são as da interpretação neoescolástica da Ética aristotélica corrente em Portugal no presente de Camões. Podemos caracterizá-las com a definição de virtude do Tratado da Nobreza Cristã, de d. Jerônimo Osório, contemporâneo do poeta: “[…] [a virtude é] uma inclinação constante do ânimo, disposta pela deliberação, e que consiste em um certo meio, que é determinado pela recta razão”.[24]

Vasco da Gama age com pouca intensidade porque é herói caracterizado pela mediania, o meio-termo da reta razão das coisas agíveis da Escolástica, a prudência. A prudência define a medida racional da eficácia da sua ação, exprimindo o momento em que seu conhecimento dos primeiros princípios, sempre referido à razão, realiza-se em sua ação. É a prudência que o faz subordinar-se livremente ao seu rei e escolher o melhor, em cada ocasião da viagem, mantendo o caráter uniforme e constante quando delibera o futuro. Vasco também tem a reta razão das coisas factíveis, ciência e arte dos preceitos técnicos, como a arte da navegação e as técnicas militares, necessários para atingir virtuosamente o fim da ação. Sempre guiado pela reta razão dos agíveis e pela reta razão dos factíveis sempre iluminadas pela luz da Graça ou o Amor de Deus, ele é dotado dos princípios éticos e dos instrumentos técnicos que dão conta da imprevisibilidade da navegação.

O Amor de Deus que o orienta é figurado em Vênus, que é, divertidamente, uma causa segunda ou instrumento da Providência a proteger a armada contra as ciladas dos árabes inspirados por Baco. Diversamente do que acontece com Vasco da Gama, que sempre mantém o caráter prudente — e de novo lembro a leitura de Saraiva —, os deuses agem com intensidade patética. Para proteger seus eleitos, Vênus é muito humana: implora, lacrimeja, trapaceia, faz beicinho, seduz Júpiter, que se excita com a beleza seminua da filha. E está sempre presente com seu séquito, Cupido e as nereidas, para empurrar navios, desviar ondas, amainar ventos, desfazer armadilhas, inspirar sonhos, oferecer prazeres aos navegantes etc. Saraiva lembra a sentença de Voltaire: um maravilhoso tão absurdo desfigura a obra aos olhos de leitores sensatos, pois é inverossímil a aliança de Vênus e seus prazeres sensuais com o Deus católico e suas virtudes medianas.[25] Outros intérpretes propuseram que a ação dos deuses é simples ornato com que o poeta demonstra sua erudição nas coisas antigas, recheando com a fantasia a ação real de sua gente. Mas, de novo com Saraiva, podemos dizer que a ação dos deuses é funcional, como elemento que relaciona as narrativas da história do reino e da navegação de Vasco da Gama, dando-lhes coerência artística superior. E, discordando de Saraiva, também podemos dizer que não há contradição de humanismo pacifista e feudalismo bélico em Camões, pois, no caso de Vênus, estamos novamente diante da forma matriz platônica, a concepção de Eros como virtude unitiva do universo. A ação dela e dos demais deuses é uma alegoria humanista e platonizante que traduz poeticamente a teologia escolástica; e esta, no presente de Camões, doutrina e justifica as virtudes guerreiras ou feudais da política católica como ação iluminada providencialmente pela luz natural da Graça.

Ezra Pound disse que Camões é o Rubens do verso, lembrando a plasticidade visualizante de suas imagens. Podíamos também dizer que o estilo sublime de Os Lusíadas faz dele um Giulio Romano do verso. E, no caso dos deuses, um Botticelli do verso, pois o desenho alegórico e o sentido erótico da sua Vênus saem diretamente dos textos dos platônicos da Academia de Careggi, Marsilio Ficino, Pico della Mirandola, Poliziano, Landino, que no século XV traduziram e adaptaram Platão e Virgílio e outros antigos ao cristianismo, entendendo que suas obras já continham profeticamente as verdades da revelação cristã. Cristóforo Landino interpretou a vida de Enéias, na Eneida, como alegoria da alma humana que deve sair da vida dos sentidos (Tróia), passando pela vida ativa (Cartago) antes de atingir a contemplação beatífica (Itália). Landino afirma que, na Eneida, o mar e seus monstros alegorizam “o apetite do sensível” e também que a descida de Enéias ao Hades, no Canto VI do poema, é “a procura da natureza do mal e do vício”. Juno, inimiga de Enéias, é o princípio da vida ativa ou o movimento das coisas empíricas. E a Vênus celeste, uma alegoria do princípio da aspiração ideal.

Em Os Lusíadas, o amor da Vênus terrestre e o amor da Vênus celeste correspondem à mesma virtus unitiva que lemos na lírica do poeta, a virtude unitiva ou amorosa que ilumina com o sentido transcendente a viagem de Vasco como ação participada analogicamente da luz eterna e invisibilíssima de Deus. É dela, difundida nos orbes da grande máquina do mundo, que o herói tem a visão no Canto X, comovido de espanto e do desejo do Bem. Como se sabe, antes do episódio da máquina do mundo a Vênus terrestre prepara para os navegantes uma ilha povoada de ninfas espacejantes que os esperam para um banquete e o sexo. Na ilha, “o que mais passam na manhã e na sesta/ que Vênus com prazeres inflamava/ melhor é experimentá-lo que julgá-lo./ Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo”, versos de malícia audaciosamente irônica, se lembramos que o leitor principal do reino, d. Sebastião, era um beato com medo de mulheres que fez voto de castidade. Com o episódio da Ilha dos Amores, Camões refigura política e metafisicamente a aventura mercantil e militar portuguesa, fazendo convergir na alegoria a grande poesia grega e latina, a Escolástica, as virtudes feudais do cavaleiro cristão, o platonismo cristianizado pelos florentinos do século XV e a doutrina do poder monárquico de seu tempo. O episódio tem dupla significação, espiritual e política: a comida e o sexo que os portugueses recebem na ilha significam a vida material antes da ascese da sua alma. E a união deles com as ninfas marinhas significa o casamento de Portugal com o mar e sua posse sacramentada pelo divino.

Vejamos como se dá a ascese dos portugueses na figuração da grande máquina do mundo com que o poeta arremata a obra. No Canto X, a ninfa Tétis diz a Vasco da Gama:

Faz-te mercê, barão, a Sapiência

Suprema de cos olhos corporais

Veres o que não pode a vã ciência

Dos errados e míseros mortais.

Segue-me firme e forte, com prudência,

Por este monte espesso, tu com os mais.

Assim lhe diz, e o guia por um mato

Árduo, difícil, duro a humano trato.

Chamo a atenção para quatro coisas dessa estrofe: Tétis afirma que é a Sapiência Suprema, Deus, que faz mercê do que vai ocorrer. A experiência de Vasco tem a forma de visão física, “cos olhos corporais”, da Forma invisibilíssima ou substância metafísica do universo não atingida pela ciência humana. Tétis manda Vasco segui-la com prudência, ou seja, com sua reta razão iluminada pela Graça. E sobem um monte espesso, coberto de mato. O mato é “Árduo, difícil, duro a humano trato”, figuração que encontramos em textos platônicos dos séculos XV e XVI, como no romance alegórico Hypnerotomachia Poliphili [O sonho de Polifilo], publicado em 1468 por Francesco Colonna. Como nesse texto, aqui o mato alegoriza a vida sensível, que vai ficando para trás com o esforço firme e forte da escalada do alto do monte onde: “[…] um globo veem no ar que o lume/ Claríssimo por ele penetrava,/ De modo que o seu centro está evidente,/ Como sua superfície, claramente” (X, 77). Na estrofe 80, a deusa diz a Vasco:

Vês aqui a grande máquina do mundo,

Etérea e elemental, que fabricada

Assim do Saber alto e profundo,

Que é sem princípio e meta limitada,

Que cerca em derredor este rotundo

Globo e sua superfície tão limada,

É Deus; mas o que é Deus, ninguém o entende,

Que a tanto o engenho humano não se estende.

Novamente chamo a atenção para o termo “máquina” e a informação de que a máquina do mundo é fabricada. Como disse, em grego o termo designa qualquer invenção produzida com arte pela inteligência astuciosa, a métis. A forma do universo revelada na máquina do mundo é artifício do engenho divino, que a gera com razão, doutrina e ordem. A máquina do mundo é o universo fabricado artificiosamente pelo engenho de Deus, o autor máximo. Nela se vê tudo que é; e a inspiração divina que a anima também faz ver o que será. Ela é, por isso, uma síntese do mundo poético de Camões.

Um platônico do século V da nossa era, Proclo de Lícia, no texto grego publicado em 1553 do seu Comentário do primeiro livro dos Elementos de Euclides, traduzido para o latim e editado em Pádua em 1560, fala de certa ciência matemática universal que compreende simultaneamente todas as disciplinas matemáticas.[26] Essa ciência precede todas as outras e tem o lugar principal nelas, às quais comunica seus princípios, que estão difundidos por todos os seres do universo. Ela é uma mathesis universalis e dá conta das razões, proporções, composições, divisões, conversões, permutações, do igual, do desigual e também da beleza, da ordem e do método, da semelhança e da diferença das coisas em figuras, números e movimentos. Sua universalidade está para além do matemático e associa-se à reminiscência das verdades eternas, fazendo o intelecto humano movido pela aspiração do ideal subir da matéria escura até a luz do conhecimento intelectual e a intuição sem palavras do Ser enquanto Ser. Como vimos, Tétis o diz, opondo olhar sensível e olhar intelectual: “Faz-te mercê, barão, a Sapiência/ Suprema de cos olhos corporais/ Veres o que não pode a vã ciência/ Dos errados e míseros mortais” (Canto X, 76). Também vimos que a máquina do mundo tem a forma de um globo que paira no ar, atravessado da luz que permite ver-lhe o centro e a superfície. “Qual a matéria seja, não se enxerga”, lemos na estrofe 77, porque a quintessência, a substância da parte celestial da máquina, é imponderável, não apreensível pelos sentidos. “Mas enxerga-se bem, que está composto/ De vários orbes, que a divina verga/ Compôs, e um centro a todos só tem posto”, prossegue a deusa. Aqui, Camões reproduz a cosmografia de Ptolomeu, pondo a Terra no centro dos vários orbes concêntricos que compõem o universo. O uso da figura do círculo para figurá-lo não é arbitrário e corresponde à definição antiga de Deus que podemos ler no tratado do Pseudoareopagita sobre as hierarquias celestes ou em Nicolau de Cusa: Deus como círculo infinito e perfeito que tem o centro em toda parte e a circunferência em nenhuma.[27] Na máquina do mundo, a perfeição infinita do círculo sem circunferência de Deus desce pelos vários orbes circulares e finitos como Amor da sua Forma invisibilíssima, que neles participa analogicamente. Enquanto todos sobem eroticamente movidos para ela, cada um deles se assemelha simpaticamente à Forma, por atribuição, e participa hierarquizadamente da sua razão, por proporção. O espetáculo da máquina evidencia ou faz ver a ordem divina do mundo de que Tétis descreve o movimento:

Volvendo, ora se abaixe, agora se erga,

Nunca se ergue ou se abaixa, e um mesmo rosto

Por toda a parte tem, e em toda a parte

Começa e acaba, enfim, por divina arte, Uniforme, perfeito, em si sustido,

Qual enfim o arquétipo que o criou.

Aqui, Camões aplica a definição euclidiana da esfera como superfície de revolução produzida pelo movimento da circunferência em torno do diâmetro, movimento que faz que os círculos cresçam até o meridiano e depois diminuam. Por isso, o verso diz “ora se abaixe, agora se erga”. Ao mesmo tempo, diz a deusa, a esfera nunca se ergue nem se abaixa, mas conserva o mesmo rosto, significando a superfície curva da esfera cujos pontos distam igualmente do centro. A máquina do mundo é finita, como efeito e signo fabricados por artifício divino, mas ilimitada: “em toda a parte/ Começa e acaba, enfim, por divina arte”. Sua racionalidade atesta que é divina a arte inventada pelo Arquétipo, a pura esfera inteligível, nua, pura e invisível de Deus. Absolutamente indeterminado e inacessível à razão humana, Deus a cerca com seus nove coros de anjos, movendo-a com Amor.

Assim, Tétis passa a resumir o universo para Vasco da Gama e, na estrofe 80, diz que a máquina é etérea e elemental. No caso, refere-se às substâncias metafísica e física da máquina e às suas partes: a parte etérea é a celestial, feita da quintessência imutável e lúcida; a parte elemental corresponde aos orbes compostos dos quatro elementos pitagóricos, ar, terra, água e fogo. A seguir, a deusa explica o que são os círculos em ordem decrescente, da borda da máquina até o centro, a Terra, onde o leitor está com os portugueses a contemplar o todo. A máquina do mundo revela-se como sinfonia de correspondências analógicas na qual cada nível de existência é uma hipóstase que vibra e sobe para o nível superior donde desce o Amor como virtude unitiva do todo. A alegoria da máquina é, nesse sentido, um meio poético-metafísico com que Camões figura a alma portuguesa em estado de receptividade extática da unidade invisível do divino. A união sexual dos navegantes com as ninfas aquáticas e a de Vasco da Gama com Tétis alegorizam o casamento de Portugal com o mar. A visão da máquina do mundo alegoriza seu contato extático com o princípio metafísico, o Bem para além do movimento aparente das esferas, que fundamenta e orienta providencialmente a união e a viagem por meio de Vênus, seu instrumento ou causa segunda. Em outras palavras, o episódio da máquina do mundo fundamenta o domínio físico do mar e das novas terras da África, da Ásia e da América como domínio teológico-político da monarquia católica sobre regiões e religiões gentias e infiéis, divinizando a história de Portugal.

Na descrição da máquina, o primeiro dos círculos “está com luz tão clara radiando/ Que a vista cega e a mente vil também,/ Empíreo se nomeia…”. O Empíreo corresponde ao Paraíso, onde estão as puras almas; sua luz radiante cega o olhar sensível e a razão humana, incapazes de vê-lo e entendê-lo. Camões o figura provavelmente lembrado do Canto XXX do “Paraíso”, em que Dante fala dele como um rio de luz. Como se lembram, Beatriz o censura por querer compreender o inefável e lhe diz que a luz visível que o cega é sombra ou prefácio de sombra, como alegoria da Verdade invisibilíssima: “son di lor vero umbriferi prefazii” (“Par.”, XXX, 78). É o Empíreo que governa os outros orbes da máquina. Na passagem, Camões é cauteloso, como disse, protegendo-se de uma das principais causas da vil tristeza de seu tempo: a Inquisição. Tétis afirma, na estrofe 82, que no Empíreo só estão os verdadeiros seres divinos, declarando que ela mesma e os demais deuses antigos são fábulas que só servem para fazer versos agradáveis. A autonegação da deusa explicita o uso alegórico do mito, pois ela afirma que Deus obra no mundo por causas segundas ou instrumentos da sua Providência, como ela mesma e Vênus.

O segundo círculo é o Primeiro Móvel, que gira e faz girar as outras esferas; logo abaixo dele, vem o Céu das Estrelas Fixas, de que Tétis enumera as constelações na estrofe 88. O quarto orbe é o de Saturno, seguido dos orbes de Júpiter, de Marte, do Sol, de Vênus, de Mercúrio e da Lua. No centro, está a Terra elemental. Feita a exposição do macrocosmo, Tétis começa a descrever a Terra; na estrofe 92, fala rapidamente da Europa e, até a estrofe 97, conduz o olhar de Vasco da Gama pela África. A viagem do olho refaz o percurso das navegações portuguesas, pois Tétis começa pelo norte da África e vai para o sul, pela costa ocidental do continente, contorna o cabo da Boa Esperança e continua, pelo lado oriental, até Suez. Em seguida, leva o olhar de Vasco pelas Arábias, pela Pérsia, até a Índia. Descreve suas províncias e costumes e continua, até o Japão, para depois levá-lo e ao leitor a Bornéu, Timor e o Ceilão. E, a partir da estrofe 138, indo para o Ocidente, profetiza a chegada de Cabral ao Brasil, falando do nome da nova terra, Santa Cruz, e do pau vermelho que produz. A exposição cosmográfico-metafísica da deusa se acompanha de inúmeras referências a batalhas e vitórias portuguesas na África e na Ásia, tendo o nítido sentido de legitimar a política do reino com a lei eterna da Providência divina. Quando termina a exposição, Vasco da Gama e os navegantes sabem os futuros feitos de Portugal e, divinizados, retornam. Assim, se definimos o episódio da máquina do mundo como figuração da Providência que orienta a ação portuguesa, o concílio dos deuses, as astúcias de Baco, as intervenções de Vênus salvando os portugueses, o episódio da Ilha dos Amores e a mesma visão da máquina do mundo têm a função de integrar alegoricamente, como interpretação platônica cristianizada, as virtudes feudais da “guerra de devaçam”, validando a teologia escolástica em que Deus é Causa Primeira e Final, Providência e luz eterna difundida como luz natural da Graça na história do reino.

Na narração da viagem à Índia e da história dos reis de Os Lusíadas e em muitas passagens da lírica camoniana, há evidentemente mais referências filosóficas, históricas, teológicas, científicas, retóricas e poéticas de duração e extensão diversas. Em Os Lusíadas e na maior parte da lírica composta com a medida nova italiana, o verso decassílabo e formas fixas, figuram-se tópicas do humanismo renascentista: o culto do saber teórico ou contemplativo; a erudição das coisas antigas; a metafísica platônica; o amor da donna angelicata, a dama angélica do petrarquismo; a filosofia do cavaleiro perito em letras e armas etc., adotados por setores das elites letradas de Portugal desde o século XV, quando foram associadas à ética aristocrática do projeto senhorial de expansão mercantil e dominação religiosa da dinastia de Avis.

Conhecido como capitalismo monárquico, foi inicialmente, na bela alegoria do historiador português Manuel Nunes Dias, uma luta do mar e da caravela contra o deserto e a caravana.[28] Financiada por banqueiros e mercadores, em 1415 a Coroa portuguesa ocupou Ceuta, no Marrocos, interessada no ouro africano carregado pelas caravanas transaarianas dos nômades cameleiros. A presença portuguesa no estreito de Gibraltar pôs termo às invasões marroquinas da península Ibérica, o que permitiu dar início à abordagem atlântica da Terra dos Negros, nome que os portugueses davam à África, pelas caravelas do infante d. Henrique. As navegações iniciais que foram dilatando a Fé e o Império e as terras viciosas andaram devastando, como diz Camões, e tinham objetivo econômico e político imediato: controlar as regiões africanas produtoras de ouro e especiarias, como a pimenta-malagueta. Na Idade Média, a malagueta, abundante na Guiné, era levada por cameleiros árabes, que a adquiriam de populações negras ao sul do Saara, no Mali e em outras regiões, até o litoral do Mediterrâneo, onde era comprada e revendida por mercadores italianos. Além de pimenta, os portugueses adquirem escravos, madeiras de lei, goma, marfim, peles, plumas e, principalmente, ouro. Por volta de 1505, compram escravos dos régulos do Benim, que capturam grandes quantidades deles nas guerras constantes que fazem uns aos outros. Os portugueses compram cada negro por cerca de 12 a 15 manilhas ou argolas de latão ou cobre, que os corretores de Lisboa então adquirem na praça de Antuérpia e em cidades do sul da Alemanha. Na Costa da Mina, revendem os escravos para outros negros, e recebem em ouro. Na Mina, eram vendidos pelo dobro do preço de Lisboa, o que era bom negócio para a Coroa, os comerciantes e os banqueiros de Flandres, Nuremberg e Augsburg. A maior parte do ouro vem então principalmente da Guiné e é drenada para o norte da Europa, pagando as compras de latão, cobre e prata dos corretores portugueses. A prata alemã fornece a moeda com que os feitores portugueses adquirem especiarias na Ásia.

Manuel Nunes Dias demonstra que o ouro africano e as especiarias asiáticas intensificam a circulação dos metais, a prata e o cobre alemães, e dos tecidos flamengos, muito cobiçados na corte portuguesa, produzindo grande demanda de capitais mobiliários caracterizada pelo uso progressivo do crédito no estrangeiro. As novas exigências de capitais para financiar as expedições, a construção e o sustento de feitorias e de fortificações na África e na Ásia para garantir a regularidade das trocas transformam radicalmente a economia europeia. Em Portugal, tipos sociais como o mercador, o banqueiro, o artesão, gente juridicamente vulgar, que Camões despreza, passam a opor-se à ordem antiga dos senhores da terra, da fidalguia da espada, do clero e dos servos.[29]

Há um episódio em Os Lusíadas, o do Velho do Restelo, em que um ancião de aspecto venerável vitupera a aventura marítima com o topos da vanitas. Quando a armada de Vasco da Gama está para sair de Belém, acusa a navegação de “glória de mandar e vã cobiça/ desta vaidade humana a que chamamos fama!” e fala com desdém da “aura popular” e do “povo néscio” que apoia a viagem, defendendo a conquista do Marrocos e o abandono da Índia. Muitos intérpretes afirmam que sua fala corresponde à posição do próprio Camões e de setores da antiga aristocracia portuguesa postos à margem do processo econômico. Antônio José Saraiva, por exemplo, propôs que o projeto de conquistar o Marrocos, reino que se supunha riquíssimo, abandonando-se a política das feitorias na Ásia, era apoiado por setores da fidalguia da espada no final do reinado de d. João III e no tempo de d. Sebastião, quando a empresa comercial do Oriente já estava em ruínas. Esses setores tinham valores guerreiros e, como Camões, faziam da espada o ganha-pão. Dessa maneira, o episódio do Velho do Restelo entraria em contradição com o encômio da ação heroica no poema.[30]

De todo modo, para especificar os condicionamentos da matéria histórica das navegações transformada na invenção de Os Lusíadas, é útil lembrar, ainda com Manuel Nunes Dias, que no final do século XV uma nova forma de cidade tinha surgido em Lisboa, onde se concentrava uma população voltada quase exclusivamente para o comércio exterior. A realeza dos Avis conservava a propriedade e o monopólio do comércio, que defendia militarmente, pois o patrimônio ultramarino era o seu capital. O rendimento do tráfico era repartido entre a Coroa e os particulares estrangeiros, mas quase nada ia para a população, pois Portugal praticamente não tinha mercado interno e produzia pouco para exportar.

O novo mundo que surge na segunda metade do século XV é caracterizado pelo extraordinário desenvolvimento das ciências, da escrituração e das técnicas de construção de máquinas. Fidalgo e humanista, Camões acredita que o saber teórico é superior aos saberes técnicos dos oficiais mecânicos e, como já foi apontado por vários estudiosos, faz descrições sumárias deles em Os Lusíadas.

Mas, ainda que tenha cuidado em reproduzir o modelo ortodoxo e tradicional de universo que vimos no episódio da máquina do mundo, opõe o saber da experiência empírica ao saber livresco tradicional, provavelmente porque também estiliza a sua própria experiência, além de citar textos de contemporâneos adeptos dela. Em seu Tratado da Esfera, de 1537, Pedro Nunes escreve que o contato dos portugueses com as novas realidades físicas e humanas dissipou “muitas ignorâncias” da cosmografia ptolomaica e escolástica. Numa parte desse texto, o Tratado em defensam da carta de marear, afirma que “os descobrimentos de costas, ilhas e terras firmes não se fizeram indo a acertar, mas partiam os nossos mareantes mui ensinados e providos de instrumentos e regras de astrologia e geometria; que são as cousas de que os Cosmógrafos hão de andar apercebidos”.[31] O conhecimento obtido empiricamente é novidade que pressupõe e valoriza a experiência vivida, não a experiência textual das autoridades escolásticas. Assim, no Esmeraldo de situ orbis, de 1502, Duarte Pacheco Pereira diz que a experiência vivida é “madre das cousas” que ensinou “radicalmente a verdade” e “o contrário do que a maior parte dos antigos escritores disseram”. Também Garcia da Orta, no Colóquio do benjuy, na metade do século XVI, pede que não lhe ponham medo com Dioscórides nem Galeno, autoridades antigas, porque não vai dizer senão a verdade do que aprendeu pela observação. E o historiador João de Barros, cuja história Camões põe em verso quando conta a história dos reis portugueses, escreve, em seu Ropica Pnefma ou Mercadoria Espiritual, de 1532: “[…] se agora cá viesse Ptolomeu, Strabo, Pompônio, Plínio ou Solino com suas três folhas, a todos meteria em confusão e vergonha, mostrando-lhe que as partes do mundo, que não alcançaram, são maiores que as três em que eles o dividiram”. Camões diz quase o mesmo: “Se os antigos filósofos que andaram/ tantas terras por saber segredos delas/ as maravilhas que eu passei passaram/ a tão diversos ventos dando as velas,/ que grandes escrituras que deixaram!”. É ainda a experiência vivida que, na estrofe 149 do Canto X, caracteriza os portugueses como gente que sabe “O como, o quando, e onde as cousas cabem”.

Joaquim de Carvalho propôs que nas navegações portuguesas há três formas de saberes desiguais, que também são figurados em Os Lusíadas.[32] Primeiramente, o saber técnico e de domínio da natureza, a que Camões dá atenção superficial, talvez porque o mundo que mais lhe interesse é o dos princípios teóricos do seu platonismo. Em segundo lugar, um saber de compreensão e de explicação, principalmente da nova imagem da natureza. Vimos no episódio da máquina do mundo: Camões mantém a concepção ptolomaica que põe a Terra no centro do universo. A concepção tinha sido desmentida pelas navegações do século XV, mas, repito, quando Camões termina Os Lusíadas, em 1567, as inovações e a velha fidalguia já tinham sido substituídas pela Inquisição, pela censura intelectual, pela perseguição religiosa e pela mentalidade mercantil. O canto presente faz a apologia do projeto imperial de conquista do mundo pela fé e pelas armas, e, simultaneamente, o poeta afirma que vem cantar “a gente surda e endurecida”, na estrofe 145 do Canto X. A terceira forma de saber figurada no poema é o saber das virtudes ético-políticas da ação. É útil falar dela examinando os dois tempos figurados no poema, o passado das grandes navegações e das inovações figuradas no enunciado como “memórias gloriosas”, e o presente da enunciação, como “apagada e vil tristeza”. Novamente, é a matéria histórica que fornece índices para esclarecer essa oposição.

Depois que a Coroa passa a ter o ouro da Guiné, no século XV, lança-se à conquista dos mercados da África oriental, dos entrepostos da Malásia e dos mercados do Pacífico asiático. Principalmente entre 1482, ano da construção do castelo de S. Jorge da Mina, até 1521, ano da morte de d. Manuel, Portugal tem proeminência marítima mundial. A Coroa domina o ouro africano e a pimenta asiática; funda a Casa da Índia, órgão de controle do tráfico ultramarino, e organiza em Antuérpia sua principal agência captadora de financiamento para manter a empresa colonial com adiantamentos, tecidos flamengos e metais alemães. Nesse tempo, Lisboa, a Índia, Flandres e cidades do sul da Alemanha dependem estreitamente umas das outras e das frotas africanas e asiáticas. A corte do tempo de d. João II e d. Manuel vive o luxo, mas a crise já existe, principalmente na dificuldade de obter créditos para financiar as expedições. Manuel Nunes Dias propõe que a transição do patrimonialismo agrário, continental, monárquico, senhorial e militarista para o patrimonialismo mercantil, ultramarino e atlântico da Coroa, ou seja, o capitalismo régio, estabelecia um monopólio sufocante, que prejudicava a livre iniciativa particular. Além disso, o capitalismo monárquico subordinava o econômico ao político-religioso. O investimento econômico, que pressupõe a impessoalidade das relações financeiras e mercantis, chocava-se com a teologia política escolástica baseada nas relações corporativistas e na intolerância religiosa.[33]

Assim, o curto período de riqueza econômica da corte portuguesa — do tempo do rei d. João II, que governa a partir de 1481, até a morte de d. Manuel, em 1521, ou, talvez, a data de 1535, ano do estabelecimento da Inquisição no reino — corresponde a uma extraordinária inovação feita principalmente como arqueologia ou restituição humanista da Antiguidade grega e latina associada à experimentação empírica e ao nominalismo. Por ordem de d. João II, Diogo de Azambuja funda o Castelo de S. Jorge na Costa da Mina, em 1482; e Diogo Cão chega ao rio Zaire, em 1485, percorrendo toda a costa de Angola em 1486. No ano seguinte, Bartolomeu Dias dobra a ponta meridional da África, o cabo das Tormentas, que d. João II rebatiza com o nome de cabo da Boa Esperança, estilizado por Camões como o gigante Adamastor. Como se sabe, o termo “humanismo” provém da expressão latina artes humanitatis, artes da humanidade, e humaniores litterae, letras mais humanas, como culto das letras antigas, chamadas de humanidades. Nesse tempo, o conhecimento do grego, do latim e do hebreu é tido como base necessária de toda a ciência e das humanidades. Obras como as Opera, de Cataldo Áquila Sículo, em 1500; a Nova Grammatica Ars, de Estêvão Cavaleiro, em 1516, e Epistola Plinii secundum veram lectionem et exquisitissimis et antiquissimis exemplaribus, de Angelo Poliziano, em 1529, são recebidas com entusiasmo na corte portuguesa.[34] Então, a expressão “signo do latim” significa “educação do gosto”. A importação erudita de termos antigos amplia extraordinariamente o léxico português, como o leitor observa nos incontáveis latinismos e helenismos de Os Lusíadas.

Simultaneamente, desenvolve-se o culto da língua vulgar, que retoma o tratado De Vulgari Eloquentia, de Dante, e outros textos de humanistas do século XVI, como Prose della Volgar Lingua (1525), de Pietro Bembo, e o Diálogo de la Lengua (1535), de Juan de Valdés. O uso do português como língua de cultura é sistematizado por João de Barros na Grammatica da Lingua Portuguesa com os Mandamentos da Santa Madre Igreja, de 1539. João de Barros propõe o caráter imperial da língua, escrevendo que com ela “muitos povos da gentilidade são metidos em o curral do Senhor”. A mesma concepção imperial se acha em Os Lusíadas, onde lemos que a língua portuguesa faz quem a ouve pensar que é latim. Na Crônica do descobrimento e conquista da Guiné, Zurara tinha escrito que a Alemanha é grande, a França gentil, a Inglaterra forte, mas só a Itália sábia. Nesse momento, o final do século XV, intensificam-se extraordinariamente as viagens de prelados e fidalgos portugueses à Itália, cunhando-se a expressão “cobiça da Itália”, pois é de lá que vem o que um amigo de Michelangelo, Francisco de Holanda, chama, no seu Da Pintura Antiga, “os primores e gentilezas” que educam o gosto. No tempo de d. João II, a corte portuguesa mantém contato contínuo com a Florença dos Médici e circulam em Portugal as obras de Angelo Poliziano, Marsilio Ficino, Pico della Mirandola, Cristóforo Landino etc. O dolce stil nuovo, o doce estilo novo italiano, é exercitado por Sá de Miranda nos anos 1520.[35] Membros da corte e da universidade fazem contato com Erasmo de Roterdã, Juan Luís de Vives, Budé e outros humanistas. Na primeira metade do século XVI, a Universidade de Lisboa é famosa por seus latinistas e gramáticos, que estabelecem novos modelos de classificação gramatical, subordinando a lógica à dialética e à retórica. A ignorância do latim é classificada como rudeza do pensamento. Imitar Cícero para falar com clareza e elegância substitui a argumentação escolástica baseada no silogismo. Bolsistas do rei frequentam as universidades de Salamanca, Alcalá de Henares, Pádua, Oxford, Cambridge, Louvain e, principalmente, Paris. No reinado de d. João II, quase todos os bolsistas vão estudar na Itália; no tempo de d. Manuel, vão para a França e, de 1521 a 1540, no início do reinado de d. João III até a fundação do Colégio das Artes, em Coimbra, muitas dezenas de estudantes portugueses estão em Paris, onde discutem Occam e o nominalismo.[36] Vários círculos eruditos se formam na corte, na universidade ou em academias. A infanta d. Maria, que só fala em latim com a mãe, faz-se acompanhar da famosa Luisa Sigéa, que fala e escreve fluentemente em grego e latim, conhece hebreu, aramaico, árabe, siríaco, teologia, astronomia e história, compõe poemas em metro italiano e conversa familiarmente sobre Platão, Plotino, Aristóteles, Cícero etc.[37] A irmã de Luisa, Ângela, não lhe fica atrás. E também outras damas de companhia da infanta, como Joana Vaz, d. Leonor de Noronha, d. Helena da Silva, distinguem-se pelas maneiras elegantes e pela alta cultura letrada. Joaquim de Carvalho afirma que a Itália então ensina, pelo exemplo do convívio, a polir o gosto e a prezar o latim como idioma da eloquência, mas que é nas escolas de Paris que a inteligência portuguesa fica ágil na controvérsia teológica e na disputa dialética. Ainda segundo Carvalho, o nominalismo parisiense representou, na passagem do século XV para o XVI, a reação do bom senso empírico contra os excessos metafísicos do realismo escolástico. O nominalismo levaria a simplicidade onde havia complicação, dando incentivo ao espírito de observação ou, mais precisamente, à apreensão do concreto na sua realidade e circunstâncias particulares.[38]

  1. João II morre sem herdeiro em 1495 e é sucedido por d. Manuel, que governa até 1521. No seu reinado, os judeus e os mouros foram expulsos do país, em 1496, levando os grandes capitais de que a empresa colonial necessitava; os judeus que ficaram foram obrigados a converter-se ao catolicismo, passando a ser chamados de cristãos-novos. Em 1498, Vasco da Gama chega a Calicute. Em 1550, Cabral chega ao Brasil, e Gaspar Côrte Real ao Canadá. Na Índia, os vice-reis d. Francisco de Almeida, Duarte Pacheco e Afonso de Albuquerque conquistam regiões produtoras de especiarias. As mercadorias do Oriente chegam a Lisboa, que recebe navios de todo o mundo. Viajantes afirmam que sentem à distância o perfume da cidade, mistura de canela, cravo, gengibre, benjoim e pimenta. A corte de d. Manuel é refinada e sempre gasta mais do que pode; mantém trocas diplomáticas e comerciais com reinos da África, da Ásia e com cidades de Flandres, da Alemanha, da França e da Itália; eruditos portugueses continuam mantendo contato com as universidades europeias, Paris, Oxford, Cambridge, Pádua, Bolonha, Salamanca, Alcalá de Henares. É também o tempo da construção do mosteiro dos Jerônimos, da torre de Belém, de Santa Cruz de Coimbra, do convento de Tomar.
  2. Manuel foi sucedido pelo filho, d. João III, que reinou de 1521 a 1557. No seu governo, o império colonial se desmantela de vez. Carola, d. João III estabelece o Santo Ofício da Inquisição, em 1535, e patrocina Inácio de Loyola, Francisco Xavier e Simão Rodrigues na fundação da Companhia de Jesus, que passa a controlar todo o ensino português, restabelecendo a Escolástica em chave contrarreformista. A Índia passa a ser governada por corruptos e os abusos colonialistas causam inúmeras guerras que esgotam o reino. Várias praças do norte da África, como Arzila e Azamor, são abandonadas aos mouros por falta de recursos para defendê-las. Quando o ouro da África desaparece, faltam totalmente o crédito, a prata, o latão e o cobre do norte da Europa para pagar as especiarias. Os gastos suntuários da Coroa continuam, enquanto a concorrência internacional aumenta, com a reação das cidades italianas, como Veneza. O Islã ataca no Oriente e, sem capital, a Coroa não mais consegue manter militarmente o monopólio comercial, como fazia desde o início do tráfico. Os ataques de piratas franceses às frotas tornam-se rotineiros e ousados. Os piratas não mais se dão ao trabalho de ir à África, à Ásia e ao Brasil, mas esperam na foz do Tejo os navios que voltam. Em péssimo estado, as embarcações naufragam. O grande afluxo da prata americana levada pelos galeões espanhóis torna-se fator de retração do mercado dos metais alemães e, por consequência, do comércio ultramarino português. Já no tempo de d. Manuel, a Coroa não tinha dinheiro para pagar o cobre reclamado pela tesouraria da Casa da Índia. Com d. João III, a Coroa reconhece a impotência para manter o monopólio oficial. Decreta a falência da feitoria oficial de Antuérpia em 1548 e o fechamento da Casa da Índia, em 1549.[39]

Quando d. João III morre, nenhum de seus muitos filhos está vivo; é então sucedido pelo neto, d. Sebastião, com três anos e meio de idade. A regência é exercida por d. Catarina, a rainha viúva; depois pelo cardeal d. Henrique. Em 1568, aos catorze anos, d. Sebastião é declarado maior. Cercado de padres contrarreformistas e mulheres devotas, recebe uma educação catolicíssima; possuído pelo imaginário heroico da cavalaria andante, torna-se um fanático. Já em 1564, todas as determinações do Concílio de Trento tinham sido declaradas leis do reino, o que fez de Portugal o campeão do combate às heresias religiosas. Desde 1535, quando d. João III estabeleceu o Santo Ofício da Inquisição, as inovações são reprimidas pela Contrarreforma, que as constitui como ideias libertinas, opondo a elas o modelo de uma vida beata iluminada pelo fogo dos autos-da-fé. Em 1547, sai a primeira lista do Índice dos Livros Proibidos. Movido pela ideia fixa da cruzada contra infiéis e heréticos e pretendendo recuperar o Marrocos e as praças perdidas pelo avô, d. Sebastião fez, em 1573, uma expedição de surpresa a Tânger e Ceuta, mas não realizou os feitos que esperava. Em 1578, o imperador do Marrocos, Muley-Ahmed, destronado pelo tio, Abd-el-Melik, pede-lhe auxílio. O rei passa à África e desaparece com milhares de homens na batalha de Alcácer-Kebir, em 4 de agosto de 1578. Conta-se que Camões fica em estado de estupor quando recebe a notícia do desastre. No final de Os Lusíadas, aconselha d. Sebastião a meter lanças em África e dar continuidade ao projeto senhorial, fidalgo, mercantil, católico e guerreiro da dinastia. Hoje, quando tudo isso é nada, só existe parcialmente para além da morte e do esquecimento nas metáforas com que a leitura reconstitui o ato intelectual da invenção de Camões. Pois, como diz Hölderlin, permanece o que fundam os poetas.

NOTA

[1] C. f. a monumental edição dos sonetos feita por Cleonice Serôa da Motta Berardinelli, Sonetos de Camões: Corpus dos Sonetos Camonianos, Lisboa/ Paris/ Rio deJaneiro, Centre Culturel Portugais/ Fundação Casa de Rui Barbosa, 1980.

[2] Hélène Merlin, Public et littérature en France au XVIIe siècle, Paris, Belles Lettres, 1994, pp. 385-8.

[3]  José V. de Pina Martins, “L’humanisme dans l’oeuvre de Camões”, em Humanisme et Renaissance de l’Italie au Portugal: Les Deux Regards de Janus, Lisboa/Paris, Fondation Calouste Gulbenkian, 1989, 2 v., v. II, pp. 681-2.

[4] Fernando Catroga, “Ritualizações da História” em Luís Reis Torgal, José Amado Mendes & Fernando Catroga, História da História em Portugal: sécs. XIX-XX, Lisboa, Círculo de Leitores, 1996, pp. 551-5.

[5] Antônio José Saraiva, Luís de Camões, 2 ed. revista, Lisboa, Publicações Europa-América, 1972, p. 15.

[6] Jorge de Sena, “Ascendentes e parentes de Camões, Os Lusíadas, e o mais que adiante se verá”, em A estrutura de “Os Lusíadas” e outros estudos camonianos e de poesia peninsular do século XVI, Lisboa, Portugália, 1970, pp. 5-54.

[7] Antônio José Saraiva, Luís de Camões, cit., p. 16.

[8] Jorge de Sena, “Ascendentes e parentes de Camões …”, cit., p. 39.

[9] Antônio José Saraiva, Luís de Camões, cit., pp. 24-6.

[10] Ibidem, p. 27.

[11] Os Lusiadas de Luis de Camões, Com Privilegio Real. Impressos em Lisboa, com licença da Sancta Inquisição, & do Ordinario: em casa de Antonio Gõçalvez Impressor. 1572.

[12] Antônio José Saraiva, Luís de Camões, cit., pp. 28-9.

[13] Citado por Antônio José Saraiva, Luís de Camões, cit., p. 30.

[14] Maria Lucília Pires, “Camões (Luís Vaz de)” em Biblos: Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa, Lisboa-São Paulo, Verbo, 1995, vol. 1, pp. 885-6.

[15] Citado por Maria Lucília Pires, “Camões (Luís Vaz de)”, cit., p. 886.

[16] Antônio José Saraiva, Luís de Camões, cit., pp. 35-6.

[17] Como Marsilio Ficino escreve: “A beleza dos corpos não consiste na sombra da matéria, mas na claridade e na graça da forma; não na massa obscura, mas numa espécie de harmonia luminosa; não num peso inerte e estúpido, mas no número e na medida conveniente. Luz, graça, proporção, número e medida que percebe-

mos pelo pensamento, pela visão e pela audição. É para isso que tende o ardor do verdadeiro amante. O desejo dos outros sentidos, que arrasta para o material, pesado e informe — contrário à beleza, ao amor — não é o amor, mas um apetite estúpido, opressor e perfeitamente feio”. Cf. André Chastel, Marsile Ficin et l’ art, Genebra, Droz & Lille, Giard, 1954, p. 87.

[18] Alegoricamente, escreve Ficino, a imagem da Beleza deve levar uma açucena numa das mãos e uma esfera e círculo na outra, porque a beleza aparente é medida e proporção, como número.

[19] Gilles Deleuze, “Porcelana e Vulcão” em Lógica do Sentido, trad. Luiz Rober-

to Salinas Fortes, São Paulo, Perspectiva, 1974 (Estudos, 35), pp. 157-65.

[20] Karlheinz Stierle, “Que significa a recepção dos textos ficcionais?” em Luiz Costa Lima (seleção, coord. e tradução), A Literatura e o Leitor: Textos de Estética da Recepção, 2 ed. revista e ampliada, São Paulo-Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2002, p. 138.

[21] Ibidem, pp. 149-51.

[22] Antônio José Saraiva, Luís de Camões, cit., pp. 61-2.

[23] Ibidem, p. 193.

[24] D. Jerônimo Osório, Tratados da Nobreza Civil e Cristã, tradução, introdução e anotações de A. Guimarães Pinto, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1996, p. 141.

[25] “O principal objectivo dos Portugueses, depois da fundação do seu comércio, é a propagação da fé, e Vênus encarrega-se do sucesso desta empresa. Falando a sério, um maravilhoso tão absurdo desfigura completamente a obra aos olhos dos leitores sensatos”. Cf. Antônio José Saraiva, Luís de Camões, cit., p. 185.

[26] Citado por Giovanni Crapulli, Mathesis universalis: Genesi di uma idea nel XVI secolo, Roma, 1969, p. 166, em Frédéric de Buzon, “Mathesis Universalis” em Michel Blay & Robert Halleux (org.), La science classique: XVIe-XVIIIe Siècles. Dictionnaire Critique. Paris, Flammarion, 1998, pp. 611-61.

[27] A mesma imagem de eternidade encontra-se na figura circular da cobra que morde a cauda no Hieroglyphica, livro de emblemas editado por Aldo Manúcio em Veneza, no final do século XV, atribuído a um sacerdote egípcio do século IV d. C., Horapolo.

[28] Manuel Nunes Dias, O Capitalismo Monárquico Português (1415-1549):

Contribuição para o estudo das origens do capitalismo moderno, Coimbra, Facul-

dade de Letras da Universidade de CoimbraInstituto de Estudos Históricos Dr. António de Vasconcelos, 1964, 2 vol., vol. II, pp. 7-16.

[29] Ibidem, pp. 7-42.

[30] Antônio José Saraiva, Luís de Camões, cit., pp. 156-8.

[31] Citado por Joaquim de Carvalho, “Influência dos descobrimentos e da colonização na morfologia da ciência portuguesa do século XVI” em Estudos sobre a Cultura Portuguesa do Século XVI, Coimbra, Acta Universitatis Conimbrigensis, 1947, vol. I, p. 37.

[32] Cf. Joaquim de Carvalho, “Sobre o humanismo português na época da Renascença” em Estudos sobre a Cultura Portuguesa do século XVI, Coimbra, Acta Universitatis Conimbrigensis, 1948 vol. II, pp. 1-72.

[33] Cf. Manuel Nunes Dias, “O malogro do capitalism monárquico: as contadições do sistema” em O capitalismo Monárquico Português (1415-1549), cit., pp. 367-80.

[34] Joaquim de Carvalho, “Sobre o humanismo português na época da Renascença”, cit.

[35] Idem, p. 29

[36] Cf. Joaquim de Carvalho, “Sobre o humanismo português na época da Rensacença”, cit

[37] Cf. João Palma Ferreira, Academias Literárias dos Séculos XVII e XVIII, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1982, p. 11.

[38] Joaquim de Carvalho, “Sobre o humanismo português na época da Renascença”, pp. 27-31

[39] Manuel Nunes Dias, “O malogro do capitalismo monárquico”, pp. 352-6.

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