A mutação darwinista
Resumo
Freud referiu-se às três grandes feridas narcísicas sofridas pela humanidade. A primeira foi infligida por Copérnico, que mostrou que a Terra não ocupava o centro do Universo. A segunda por Darwin, que reinseriu o homem no mundo animal, reduzindo a nada sua pretensão de ser o coroamento da Criação. A terceira pelo próprio Freud, que anunciou que o homem não é conduzido primariamente pela razão, faculdade da qual mais se orgulhava, e sim em grande parte por forças inconscientes.
O objetivo é explorar a ideia de evolução assim como desenvolvida por Darwin, que, aliás, não foi seu criador, pois, entre seus precursores, estão Diderot, Buffon, Geoffroy, St.-Hilaire e, sobretudo, Lamarck. Mas, de modo geral, eles se limitaram a tratar de como as espécies evoluíam sob o efeito de adaptações a mudanças externas no meio ambiente, sem especificar os mecanismos pelos quais se davam esses processos de transformação. A contribuição personalíssima de Darwin foi identificar o principal desses mecanismos, chamado de seleção natural. Na seleção artificial, os criadores e horticultores produzem variedades novas pelo cruzamento de indivíduos de raças diferentes da mesma espécie, segundo critérios estéticos ou utilitários. Na seleção natural, esse processo de escolha e triagem é efetuado pela própria natureza. Segundo a lei de Malthus, que Darwin generaliza para o conjunto do mundo animal e vegetal, existe uma tendência para que a população de todos os seres vivos cresça mais rapidamente que os recursos disponíveis, o que gera uma terrível “luta pela vida”, que favorece a sobrevivência dos mais aptos. É onde entra em cena a seleção natural. Ao longo do tempo, vão surgindo anomalias, ou diferenças aleatórias, que são então avaliadas pela seleção natural. Os seres dotados das diferenças mais benéficas para o organismo são preservados e transmitem essas diferenças à sua descendência; os outros são descartados.
O que pensar de Darwin, hoje? Uma avaliação interna, baseada na validade científica da teoria, escapa de muito à minha competência. Confio nos especialistas, que dizem que depois de um curto eclipse no início do século passado, a teoria darwinista da evolução é hoje quase universalmente aceita.
Mas quer se queira, quer não, o trabalho dos biólogos prossegue. Como prossegue o trabalho dos cientistas sociais que decidiram incorporar em suas pesquisas a perspectiva evolucionista, em campos novos como a sóciobiologia e a psicologia evolutiva. Em geral, esses profissionais estão longe de corresponder à caricatura que se faz deles. Hoje em dia, são raros os que defendem o determinismo genético, a ideia simplista de que o comportamento humano é determinado por nossos genes. Ao contrário, todos consideram que, sem as informações vindas da cultura, o homem não poderia adaptar-se ao ambiente. E mesmo a adaptação deixou de ser um fim em si, já que, quando excessiva, a adaptação pode levar ao conformismo, que paralisa a evolução, e nesse caso a seleção favorece os não conformistas, os indivíduos capazes de relativizar as certezas culturais. A psicologia evolutiva e a primatologia podem mostrar que muitos comportamentos do homem moderno, como a luta por status, a ambição de poder e a violência contra a mulher, são legados de nossos ancestrais pré-humanos, mas não tiram daí a conclusão de que esses comportamentos são legítimos. Ao contrário, muitos comportamentos que foram adaptativos no passado são hoje disfuncionais e, por isso, precisam ser modificados. Mas esse trabalho terá melhor chance de êxito se as raízes evolutivas que reforçam tais comportamentos forem identificadas. Nisso, como em tudo o mais, é preciso evitar a chamada falácia naturalista, o erro lógico que consiste em derivar o dever ser do ser, a norma do fato. Do fato de que certas tendências estejam inscritas em nossa herança genética não decorre uma norma que as justifique. Porém as chances de mudança melhorarão ao considerá-lo.
Numa conhecida passagem, muitas vezes citada, Freud referiu-se às três grandes feridas narcísicas sofridas pela humanidade. A primeira humilhação foi infligida por Copérnico, que mostrou que a Terra não ocupava o centro do universo. A segunda ocorreu quando Darwin reinseriu o homem no mundo animal, reduzindo a nada sua pretensão de ser o coroamento da Criação. O terceiro golpe narcísico se deu quando a psicanálise anunciou que o homem não é conduzido primariamente pela razão, faculdade da qual mais se orgulhava, e sim em grande parte por forças inconscientes.
São três exemplos de teorias que mudaram a maneira de pensar do homem, introduzindo um corte qualitativo entre o antes e o depois, e nesse sentido equivalem a verdadeiras mutações dentro do pensamento.
Pretendo nesta palestra concentrar-me numa dessas mutações, a introduzida por Darwin, aproveitando a atualidade que o assunto adquiriu este ano [2009], em que se celebram os duzentos anos do seu nascimento e os 150 anos da publicação da Origem das espécies.
Charles Darwin nasceu na Inglaterra, em 1809, há exatamente duzentos anos, filho de Robert Darwin, médico abastado e livre pensador, e neto de uma figura curiosíssima, Erasmus Darwin, poeta libertino e autor de uma Zoonomia em que já aparece a ideia da evolução. Sua mãe era filha de Josiah Wedgewood, industrial que tinha opiniões religiosas igualmente heterodoxas, pois pertencia à seita dos Unitários, que negavam a divindade de Jesus Cristo. Darwin estudou primeiro numa escola em seu condado local, onde se entediou soberanamente, pois todo o ensino se baseava nos clássicos, pelos quais nunca se interessou. Diante disso, o pai resolveu encaminhá-lo à Universidade de Edinburgh, para que ele estudasse medicina. Nessa cidade, grande centro cosmopolita, denominada a Atenas do Norte, Darwin tomou contato com as principais correntes intelectuais do Continente, entre as quais o lamarckismo, que defendia a tese de uma evolução das espécies, sob ação do meio, com base no principio da transmissibilidade dos caracteres adquiridos. Mas a medicina também não era sua vocação. Ele decidiu estudar na Universidade de Cambridge, a fim de preparar-se para uma carreira eclesiástica na Igreja Anglicana. Passou três anos em Cambridge, estudando geometria, teologia e literatura clássica. Foi nessa fase que leu o famoso livro do reverendo William Paley, Evidences of Christianity, que procurava demonstrar a existência de Deus sem recorrer à Revelação, baseando-se numa “teologia natural”, para a qual a ordem e a complexidade do universo e da vida bastavam para comprovar a intervenção de um Criador. Foi o núcleo da ideia do intelligent design, até hoje defendida pelos criacionistas.
Mas decididamente não era fácil organizar uma carreira para Darwin. Assim como interrompera seus estudos de medicina em Edinburgh, ele interrompeu seus estudos para pastor em Cambridge, quando convidado pelo capitão Robert FitzRoy para acompanhá-lo numa viagem de circunavegação, a bordo do Beagle. O objetivo da missão era completar o estudo das costas da Patagônia e da Terra do Fogo e mapear as costas do Chile, do Peru e de algumas ilhas do Pacífico.
O navio zarpou da Inglaterra em dezembro de 1831 e, depois de uma passagem por Cabo Verde, aportou na Bahia em fevereiro de 1832. Foi ali que Darwin teve seu primeiro encontro com a natureza tropical. O termo “delícia”, escreveu Darwin em seu diário de viagem, é “insuficiente para dar conta das emoções sentidas por um naturalista que, pela primeira vez, se viu a sós com a natureza no seio de uma floresta brasileira[…] Para uma pessoa apaixonada pela história natural, um dia como este traz consigo uma sensação de prazer tão profunda que se tem a impressão de que jamais se poderá sentir algo assim outra vez”. Chegando ao Rio, Darwin aprofunda seus conhecimentos da natureza tropical. É convidado por um inglês que ia visitar uma propriedade sua perto de Cabo Frio a acompanhá-lo. Durante o caminho, Darwin não cessa de deslumbrar-se com a mata. De volta ao Rio, hospeda-se numa casa em Botafogo, aguardando o regresso do Beagle, que estava de novo em Salvador. Durante esse tempo, Darwin colecionava insetos e perseguia furiosamente as borboletas, mas também fez um turismo moderado, visitando o Jardim Botânico e admirando o Corcovado: “Nada mais admirável que o efeito dessas colossais massas redondas de rocha nua emergindo do seio da mais luxuriante vegetação. Muitas vezes, eu me entretinha olhando as nuvens, que rolando sobre o mar, vinham formar um monte logo abaixo do ponto mais elevado do Corcovado”.
Em julho de 1832, o Beagle deixou o Rio, a caminho do Uruguai e da Argentina, onde os oficiais e Darwin se encontraram com o general Rosas, que tinha recebido a missão de exterminar tantos índios quanto possível. Darwin parece ter achado normal essa incumbência: afinal, a medida era favorável ao progresso da agricultura e da pecuária. Enquanto FitzRoy mapeava a costa, segundo as ordens recebidas do Almirantado, Darwin fazia incursões em terra, descobrindo, para seu deleite, inúmeros fósseis, alguns de espécies “exóticas” aparentadas com rinocerontes e camelos, enquanto outros eram ancestrais gigantescos de espécies atualmente vivendo na América do Sul, como tamanduás, tatus e antas. O encontro mais espetacular foi com índios da Terra do Fogo, que chocaram Darwin por seu completo primitivismo, sua nudez quase total e a grosseria de sua língua, que mal merecia ser chamada de articulada. O capitão Cook comparara essa língua à de um homem limpando a garganta, mas na opinião de Darwin certamente “nenhum europeu jamais limpou a garganta fazendo sons tão roucos, guturais e estalados”. Eles tinham um grande dom mimético e imitavam os sons emitidos pelos europeus de modo mais exato do que os europeus jamais conseguiriam imitar a fala indígena, mas no conjunto eram “os homens mais degradados do mundo” e tinham escassas perspectivas de progredir, pois a igualdade excessiva entre eles impedia que tivessem um chefe forte, condição essencial do progresso.
Atravessando o estreito de Magalhães, o Beagle chegou ao Pacífico. Foi o trecho mais longo da viagem. Durante intermináveis três anos, Darwin teve oportunidade de visitar Valparaíso, de subir os Andes, de testemunhar um terremoto. Em setembro de 1835, o navio foi às ilhas Galápagos, onde Darwin observou que cada ilha tinha variedades diferentes de tartarugas, de iguanas, de tentilhões, indícios evidentes, mas ainda não percebidos pelo jovem Darwin, de que a seleção natural estava criando novas variações no ambiente confinado das ilhas.
Deixando Galápagos, o Beagle dirigiu-se para a Oceania, onde Darwin visitou o Taiti, a Nova Zelândia e a Austrália, não perdendo ocasião de lamentar que as necessidades do progresso exigissem o extermínio inexorável das raças indígenas e de elogiar o esforço civilizador dos missionários anglicanos.
Em abril de 1836, o navio parou em Santa Helena, onde Darwin se hospedou numa estalagem perto do túmulo de Napoleão. Era uma noite de tempestade. Darwin escreveu a um amigo que era uma ocasião perfeita para que o fantasma do Imperador vagasse pela ilha.
O Beagle ainda voltou ao Brasil, para que FitzRoy pudesse confirmar a exatidão de alguns dados obtidos durante a primeira viagem. E, no dia 2 de outubro de 1836, Darwin desembarcava em solo inglês.
Já não se interessava pela carreira eclesiástica. Com sua riqueza de família, não dependia de trabalho remunerado e podia dedicar-se à organização do vasto material trazido dos seus cinco anos a bordo do Beagle. Em 1839, casa-se com sua prima Emma Edgwood. Fica em Londres até 1842, quando se instala na aldeia de Downe, no condado de Kent. Redige vários cadernos de notas, nos quais esboça teorias que desenvolveria depois em suas publicações. Entre eles está um caderno, iniciado em 1837, em que anotara todos os fatos relacionados com a transformação das espécies. Em 1842, redige um esboço de cerca de trinta páginas, no qual elabora uma teoria da evolução por seleção natural. Em 1844, amplia esse trabalho, num manuscrito de mais de duzentas páginas. Mas hesita em publicar suas ideias. Em carta a um amigo, diz que se sente como se tivesse que confessar um assassinato. No entanto, por insistência do amigo Lyell, começa a redação de um grande trabalho sobre sua teoria. Mas, em junho de 1858, sofre um golpe devastador. Recebe uma carta de um naturalista, Alfred Wallace, encaminhando um manuscrito que contém no essencial todas as ideias de Darwin. Era o fim de sua aspiração à prioridade. Que fazer? Lyell dá a solução. Um mês depois, o ensaio de Wallace é lido numa sessão especial da Sociedade Lineana de Londres, juntamente com o manuscrito de 1844, de Darwin.
Era mais que urgente, agora, divulgar essas ideias em livro. Desistindo de concluir o calhamaço em que estava trabalhando quando recebeu a carta de Wallace, Darwin publica em 1859 um resumo, A origem das espécies, em cuja introdução admite, lealmente, que “o Sr. Wallace, atualmente estudando a história natural do arquipélago malaio, chegou a conclusões quase iguais às minhas sobre a origem das espécies”.
Entre A origem das espécies, em que Darwin apenas insinua a aplicação da teoria da evolução ao próprio homem, e A descendência do homem, em que a origem simiesca do ser humano é proclamada explicitamente, decorre um período de 12 anos. Foi só em 1871 que o livro veio à luz. Com efeito, Darwin hesitou em abordar em A origem das espécies a implicação mais polêmica de sua teoria, a questão da genealogia humana, limitando-se a dizer que a obra lançaria “luz sobre a origem e a história do homem”. É que para o grande público a ideia de que o homem pudesse descender de um animal inferior contrariava a versão bíblica de que ele fora criado separadamente, à imagem e semelhança de Deus. Mesmo os espíritos mais esclarecidos do seu tempo, até os que aceitavam em suas grandes linhas o princípio da evolução, recuavam diante da ideia de que esse princípio pudesse se aplicar ao homem, pois com isso poderiam ser desvalorizados os atributos especificamente humanos de pensamento e moralidade, dos quais dependia a civilização.
Depois de A descendência do homem, Darwin publicou ainda, em 1872, um livro importante, A expressão das emoções humanas no homem e nos animais, em grande parte baseado nas suas pesquisas sobre a filiação humana.
Darwin morreu em abril de 1882 e foi enterrado na Abadia de Westminster.
Recapitulemos agora, rapidamente, as principais contribuições de Darwin no campo da biologia.
A teoria da transformação, ou da transmutação, ou da evolução, não foi inventada por Darwin. Entre seus precursores estão Diderot, Buffon, Geoffroy St.-Hilaire e, sobretudo, Lamarck. Mas, de modo geral, esses autores se limitavam a dizer que as espécies evoluíam sob o efeito de adaptações a mudanças externas no meio ambiente, sem especificar os mecanismos pelos quais se davam esses processos de transformação. A contribuição personalíssima de Darwin foi identificar o principal desses mecanismos: a seleção natural. Na seleção artificial, os criadores e horticultores produzem variedades novas pelo cruzamento de indivíduos de raças diferentes da mesma espécie, segundo critérios estéticos ou utilitários, ou promovem a reprodução de indivíduos que exibam ao nascer características consideradas desejáveis, cujo reaparecimento nas gerações seguintes se pretende favorecer. Na seleção natural, esse processo de escolha e triagem é efetuado pela própria natureza. Segundo a lei de Malthus, que Darwin generaliza para o conjunto do mundo animal e vegetal, existe uma tendência para que a população de todos os seres vivos cresça mais rapidamente que os recursos disponíveis, o que gera uma terrível “luta pela vida”, que favorece a sobrevivência dos mais aptos e leva à extinção dos menos aptos. É onde entra em cena a seleção natural. Ao longo do tempo, vão surgindo anomalias, ou diferenças aleatórias, que são então avaliadas pela seleção natural. Os seres dotados das diferenças mais benéficas para o organismo são preservados e transmitem essas diferenças à sua descendência; os outros são descartados. Por exemplo, em condições de escassez num dado meio que aumentem a competição entre os lobos pela captura das corças, um lobo mais veloz que os outros será o mais apto a sobreviver e a passar essa vantagem competitiva à sua prole. Tornadas hereditárias, essas diferenças criam variedades, que com o tempo vão se transformando em novas espécies. Foi assim que surgiu a “árvore da vida”, pela qual todas as espécies descendem de uma espécie ancestral, esta descende de outra espécie mais antiga ainda, e em última análise a totalidade da vida descende de uma molécula orgânica primordial.
Em A descendência do homem, Darwin trata explicitamente do lugar do homem no processo evolutivo. Num tom um tanto provocativo, pouco característico do seu estilo, Darwin choca o público vitoriano afirmando que o homem descende de um quadrúpede peludo, dotado de cauda, provavelmente arborícola e habitante do Velho Mundo. Essa criatura, se pudéssemos examiná-la, seria classificada como um “quadrúmano” (primata) juntamente com outros mamíferos, descendentes, como nós, de um antigo marsupial, por sua vez descendente de um anfibio, por sua vez descendente de um animal parecido com um peixe, por sua vez descendente do remoto ancestral de todos os vertebrados – um animal aquático, com rabo, hermafrodita e com órgãos como o cérebro e o coração imperfeitamente desenvolvidos. As provas dessa genealogia seriam dadas, entre outras, pela anatomia comparada, pela notável semelhança entre o embrião humano e o de outros animais, e pela existência de órgãos rudimentares, como o cóccix humano, que sugere a presença em nossa árvore genealógica de um animal com cauda, e as mamas em indivíduos do sexo masculino, peculiaridade comum a todos os mamíferos, que denuncia a presença de um animal hermafrodita entre nossos antepassados.
Que pensar de Darwin, hoje? Uma avaliação interna, baseada na validade científica da teoria, escapa de muito à minha competência. Confio nos especialistas, que dizem que depois de um curto eclipse no início do século passado, a teoria darwinista da evolução é hoje quase universalmente aceita. Como diz um dos darwinistas mais fervorosos, Richard Dawkins, “Nossa existência representou outrora o maior de todos os mistérios, mas deixou de ser um mistério porque o enigma está resolvido. Darwin e Wallace o resolveram, mesmo que continuemos durante algum tempo acrescentando notas de pé de página”. O “quase” da minha resposta vai por conta dos adversários religiosos de Darwin, para muitos dos quais o fato de que o último sistema operacional do computador Macintosh chama-se Darwin é a prova de uma conspiração para difundir o ateísmo. Entre esses adversários não figura mais a Igreja Católica. Em pronunciamento feito em 1996 na Academia Pontificia das Ciências, o papa João Paulo II declarou que a evolução era hoje “mais que uma hipótese”, embora acrescentando que, se pelo corpo o homem se aparenta aos animais, distingue-se dele pela alma, criada diretamente por Deus. Dito isto, não tenho conhecimento de objeções científicas sérias à teoria como tal.
Não há a mesma unanimidade na avaliação externa, extracientífica. Darwin era um homem do seu tempo, com ideias e convicções que hoje consideraríamos progressistas e outras que teríamos que julgar “politicamente incorretas”. Entre as primeiras está seu genuíno horror à escravidão, haurido em parte nas ideias liberais do seu pai, médico e livre-pensador, e em parte na sua família materna, impregnada de uma religiosidade não convencional (todos pertenciam à Igreja Unitária), para a qual a escravidão era um pecado imperdoável. Suas impressões do Brasil ficaram indelevelmente marcadas por essa aversão ao regime servil. Testemunhou, perto de Macaé, na província do Rio de Janeiro, uma cena atroz em que um fazendeiro ameaçou vender separadamente os membros da mesma família. Ainda no Rio, era vizinho de uma senhora que usava um instrumento de tortura para esmagar os dedos das escravas. Viu um garotinho de seis ou sete anos ser atingido três vezes na cabeça por um chicote de açoitar cavalos. Teve um sério atrito com o comandante do Beagle, aristocrata e ultraconservador, que sustentava que a escravidão não era assim tão má, e a prova é que assistira um escravo brasileiro afirmar, na presença do seu senhor, que estava satisfeito com sua condição. Ao deixar para sempre as praias brasileiras, Darwin anotou em seu diário: ”Agradeço a Deus e espero nunca visitar outra vez um país escravocrata”.
Esse horror o acompanhou durante toda a vida. Quando estourou a Guerra de Secessão dos Estados Unidos, os estados do sul defenderam a instituição odiosa usando argumentos bíblicos. Darwin podia se dar ao luxo de ignorá-los. As coisas se complicaram quando os sulistas passaram a invocar a ciência. Foi fundada em Londres uma Sociedade Antropológica destinada a defender a ideia de que a escravidão se justificava por motivos puramente científicos. Para eles, os negros constituíam uma espécie diferente da humana e sua única esperança de alcançarem algum bem-estar era através a escravidão. Muitos desses racistas “científicos” defendiam o poligenismo, segundo o qual brancos e negros não tinham uma origem comum, pois as raças haviam surgido separadamente em diferentes lugares da Terra. Segundo eles, os monogenistas como Darwin, defendendo a tese de um ancestral comum, estavam ainda prisioneiros do mito bíblico de Adão e Eva. Já os racistas se consideravam espíritos livres, libertos da superstição religiosa. Foi quando se descobriram na Amazônia, e depois na própria Inglaterra, formigueiros que funcionavam na base do trabalho escravo. O cúmulo dos cúmulos é que as formigas escravizadas eram negras e as “escravistas” eram de uma bela cor ruiva. Assim, a própria história natural, domínio por excelência de Darwin, parecia dar razão aos escravistas. Durante todos esses debates, Darwin permaneceu fiel às suas convicções abolicionistas. Mas em nenhum momento caiu na cilada de fundar sua posição em argumentos científicos. A escravidão era igualmente nefanda, dizia ele, quer a humanidade tivesse um só pai ancestral, quer vinte. Quanto às formigas, elas agiam por instinto, que era uma força moralmente neutra, e portanto não havia culpa, ao contrário do que acontecia no escravismo praticado por seres humanos. Pode-se mesmo inverter a proposição: não somente Darwin se recusava a basear na ciência seu antiescravismo, como sua ciência foi em grande parte um resultado de seu antiescravismo. É pelo menos o que se pode depreender de um livro recente, Darwin’s Sacred Cause, de Adrian Desmond e James Moore, para os quais a força motriz que impulsionou Darwin na elaboração da teoria evolucionista foi a necessidade moral de mostrar cientificamente que brancos e negros, oriundos do mesmo antepassado, eram verdadeiramente irmãos, como sempre sustentara a Revelação cristã.
Respondendo às objeções de que sua teoria era individualista, isto é, baseada em uma seleção natural que só favorecia diferenças úteis para o indivíduo, Darwin esclareceu que a seleção natural operava também no plano comunitário. Eram favorecidas pela seleção natural as comunidades que tivessem o maior número possível de indivíduos dotados de instintos sociais, que inculcassem sentimentos de fidelidade e obediência, e aqueles que estimulassem atos de abnegação, de autossacrificio, primeiro em favor da prole e depois em favor da comunidade como um todo. Em sociedades civilizadas, os instintos sociais eram substituídos pela moralidade, que pressupunha a aquisição de faculdades intelectuais mais desenvolvidas e uma opinião pública capaz de aprovar as ações consideradas válidas e desaprovar as outras, consolidando dessa forma os padrões aceitáveis de comportamento moral. Assim, a evolução teria moldado os primeiros homens a agirem altruisticamente em favor dos seus irmãos e filhos, e depois, por um processo cumulativo de aprendizado cultural, em favor de uma comunidade e eventualmente do gênero humano como um todo.
Mas nem todas as opiniões de Darwin são igualmente admiráveis. Como bom whig, representante de uma burguesia industrial que queria afirmar-se contra a nobreza fundiária inglesa, mas temia a ascensão da classe operária, Darwin jamais teve pelas vítimas da acumulação capitalista a mesma compaixão que estendera aos escravos. É que a escravidão era uma questão moral, e a miséria da classe trabalhadora tinha raízes na própria natureza das coisas, como demonstrara Malthus. A tendência para que a população crescesse em proporção geométrica e a dos meios de subsistência crescesse apenas em proporção aritmética era um fato inelutável, contra o qual de nada valia a filantropia pública, consubstanciada nas “poor laws”. Ao contrário, elas só serviriam para impedir os miseráveis de reagir das únicas formas possíveis: competir no mercado de trabalho, que segundo os princípios da seleção natural premiaria com melhores salários os operários mais diligentes, e retardar ao máximo o casamento, para frear a superpopulação. Alguns “malthusianos de esquerda” preconizavam outro remédio, que era o controle voluntário da natalidade. Na Inglaterra vitoriana, essa medida equivalia a dizer que o sexo podia ser praticado sem estar ligado à reprodução, o que soava como um incentivo à libertinagem. Isso era tão escandaloso, que o autor de um panfleto recomendando métodos contraceptivos, Charles Bradaugh, foi preso, juntamente com sua editora, Annie Besant. Os dois cometeram o erro de arrolar Darwin como testemunha de defesa, convencidos de que o autor de livros tão subversivos tinha de estar do lado dos réus. Darwin recusou, alegando doença, mas na verdade para defender sua reputação moral, ou mesmo por acreditar, como malthusiano convicto, que nada deveria ser feito para inibir a lei natural do empobrecimento da classe operária.
Não foi esse o único pecado político de Darwin. Ele aprovou a política de genocídio de Rosas contra os índios argentinos. E testemunhou o massacre praticado pelos ingleses contra os aborígenes na Austrália e na Nova Zelândia, aceitando-o com fatalismo, pois a seleção natural tinha necessariamente que favorecer os povos superiores em força e inteligência, exterminando os demais.
E teve opiniões um tanto machistas. Segundo ele, os homens eram intelectualmente superiores às mulheres. Os primeiros humanos do sexo masculino tiveram de competir com outros machos pelo favor das fêmeas e defendê-las e defender os filhos contra inimigos de todo tipo. Consequentemente, os homens ficaram mais inteligentes. Mas acrescentou: em compensação, as mulheres ficaram mais bonitas.
O pensamento de Darwin gerou estranhos filhotes nas décadas subsequentes. Ainda em vida de Darwin, seu primo, Francis Galton, alarmado com o rápido crescimento demográfico das classes mais grosseiras e mais incultas, recomendou que os seres humanos assumissem os rumos de sua própria evolução, estimulando a reprodução dos indivíduos mais cultos e mais inteligentes. Com essas ideias, Galton lançava as bases da eugenia, que teria um futuro promissor. Vários países puseram em prática medidas de esterilização, em nome da eugenia e do darwinismo. Por volta de 1940, leis de esterilização tinham sido aprovadas em trinta estados norte-americanos; três províncias canadenses, um cantão suíço, a Estônia; todos os países escandinavos, a maioria dos países do Leste Europeu; Cuba, a Turquia e o Japão. As medidas de eugenia foram especialmente brutais na Alemanha, pois envolveram não somente a esterilização em massa (quatrocentas mil pessoas, em confronto com sessenta mil nos Estados Unidos), mas também a eliminação física, por gás ou injeção letal, de centenas de milhares de pessoas.
O darwinismo gerou o chamado darwinismo social, que enfatizava o individualismo e a competição extremada e advogava o laissez faire, opondo-se à intervenção do Estado. Os capitalistas mais competentes tinham um “diferencial” com relação aos outros, e essa vantagem relativa fazia com que fossem favorecidos pela seleção natural, agindo através do mercado.
Serviu para justificar o imperialismo. Um dos discípulos mais fervorosos de Darwin, Haeckel, usou sua teoria para legitimar as pretensões hegemônicas da Alemanha bismarckiana. E serviu para legitimar a guerra. O homem era um fighting ape, um macaco guerreiro, e assim devia continuar sendo, para que sua nação pudesse manter-se saudável. A guerra era uma medida de saúde pública. Um dos apologistas dessa guerra higiênica não hesitou em dizer que a natureza zela pelo bem-estar do pomar humano podando-o, e a melhor podadeira é a guerra.
Se menciono os aspectos positivos e negativos do darwinismo não é para cometer o ridículo de distribuir boas e más notas a uma das “mutações” mais decisivas do nosso tempo, mas a fim de preparar o caminho para algumas reflexões finais.
Durante boa parte do século passado, o mundo foi compreendido a partir de um paradigma sociológico. Hoje há sinais inequívocos do esgotamento desse paradigma. Estaria se delineando um novo paradigma, de caráter biológico? Há sinais que apontam nessa direção: Para minha geração, tudo era social; hoje tudo é biológico. Antes, procurávamos a etiologia da violência no capitalismo; hoje ele está em nosso DNA,, em nossa taxa de serotonina ou em algum lugar no hemisfério esquerdo do cérebro.
Há aspectos sombrios nessa biologização do mundo. Pensar o homem segundo um modelo biológico não significaria privilegiar o equilíbrio e a adaptação, deixando intactas as estruturas sociais responsáveis pela opressão e pela injustiça?
E não há dúvida de que certas linhas de pesquisa genética podem ter consequências inquietantes. A produção em laboratório de seres humanos dotados das características físicas e intelectuais desejadas por seus demiurgos dá um pouco a impressão de que o homem decidiu fazer por suas mãos o que a seleção natural não tem mais forças para fazer. A seleção artificial, pela qual orquídeas e pombos eram moldados à vontade dos respectivos criadores, tinha servido de modelo para a construção do conceito darwinista de seleção natural. Na era da clonagem, tudo se passa como se a seleção artificial voltasse a ocupar o centro do palco, agora aplicada aos próprios seres humanos.
As implicações são perturbadoras, do ponto de vista social, moral e político. Socialmente, as relações entre os homens correm o risco de transformar-se em relações comparáveis às que caracterizam o trabalho escravo. Pode surgir uma nova forma de estratificação social, em que uma elite genética, composta das pessoas mais eugênicas e mais inteligentes, subjuga a casta inferior, composta de pessoas biologicamente desfavorecidas, predestinadas por seu nascimento a urna posição suballterna. O filme Gattaca retrata essa bioutopia negativa.
Moralmente, a nova ciência biológica pode pôr em questão o livre-arbítrio, na medida em que é a estrutura genética de cada homem que condiciona seu comportamento, e com isso toda a nossa concepção de moralidade entra em colapso. O corolário desse determinismo seria uma política de eliminação do crime através de uma intervenção genética, o que suscita a questão da definição do que deveria ser considerado crime, definição que como se sabe varia no tempo e no espaço. O adultério e a blasfêmia seriam crimes? E o crime político, cujas fronteiras com o crime comum são notoriamente fluidas?
Enfim, politicamente é preciso admitir que a ideia de uma ditadura de cientistas, de uma biocracia, está na lógica de um pensamento para o qual são eles os únicos homens competentes para decidir o que é melhor para a sociedade.
Mas não podemos afastar a suspeita de que o paradigma sociológico seja em grande parte responsável por seu próprio declínio. Ele pecou por omissão, deixando de lado toda a dimensão somática do humano. Tudo tem se passado como se o sujeito marxista fosse um mero suporte abstrato de relações de classe. O olhar marxista não podia captar o trabalhador em sua dimensão biológica, porque o havia construído, originária e constitutivamente, como um ser social, e só dentro dessa grade ele era visível. Sim, temos razão em inquietar-nos com as implicações reacionárias e até fascistizantes de um biologismo cego. Mas isso não justifica uma visão angelista do mundo, o pressuposto neorrousseauniano de que todos os males do homem vêm da sociedade. Esse angelismo tem talvez uma origem religiosa, resultante, quem sabe, de uma contaminação gnóstica, uma gnose anti-physis que só valoriza o lado não corpóreo do homem.
Temos, assim, de um lado, uma perspectiva biológica que por ignorar o social expõe-se ao risco de contribuir para uma biologização totalitária do mundo e, do outro, uma perspectiva sociológica que movida por uma “biofobia” ingênua contribui, por sua passividade, para o advento do estado de coisas que ela mais teme.
Por tudo isso, creio que é chegado o momento da aproximação dos dois paradigmas.
Há precedentes, no campo marxista, para esse desejo de aproximação. No tempo de Darwin, havia boas razões para considerar esse diálogo inteiramente natural. Apesar da apropriação conservadora do pensamento de Darwin que mencionei antes, a teoria da evolução se tornou crescentemente popular junto às classes trabalhadoras. A ideia de que um arcebispo ou um duque tivessem um molusco e um chimpanzé como antepassados bastava para desmoralizar as hierarquias sociais. Além disso, havia algo de exaltante e mobilizador na visão de uma humanidade que, começando de baixo, a partir de origens muito humildes, podia ascender à supremacia absoluta na escala dos seres vivos. Por isso os líderes operários eram grandes leitores de Darwin.
Apesar disso, não há noticia de um encontro pessoal entre Marx e Darwin, embora os dois morassem a poucos quilômetros um do outro, Marx em Londres e Darwin em Downe. Sabe-se apenas que Marx enviou a Darwin a nova edição de Das Kapital, com uma breve dedicatória. Darwin acusou o recebimento do livro, e aparentemente leu as primeiras páginas, o suficiente, apesar de saber mal o alemão, para perceber que se tratava de uma “grande obra”. Ele gostaria, continuou Darwin, “de ser mais digno de recebê-lo, entendendo melhor a importante e profunda ciência da economia política”. Mas, com certeza, os esforços de ambos tendo em vista a “’extensão do conhecimento’ levariam, a longo prazo[…] a aumentar a felicidade do gênero humano”. Alguns parentes e amigos de Marx se encontraram com Darwin ou seus adeptos. Sabemos, por exemplo, que a filha de Marx, Jenny; assistiu a uma conferência de Thomas Huxley; conhecido como o “buldogue de Darwin”, depois de ter dançado por ocasião do aniversário da Internacional Socialista, quase morrendo de sufocação na sala apinhada de gente. Outro membro do círculo de Darwin era um jovem professor de anatomia, Edward Aveling, que para desconforto de Darwin era ateu militante. Aveling viveu em união livre com outra filha de Marx, Eleanor, que acabou cometendo suicídio.
O que Marx e Engels achavam realmente de Darwin? Nossas melhores informações a respeito vêm de algumas cartas. Os dois amigos leram a A origem das espécies desde o aparecimento do livro, em 1859. Em carta de 12 de dezembro daquele ano, Engels escreve a Marx que o livro era “esplêndido. A teleologia ainda não estava totalmente liquidada. Agora está. Além disso, nunca se tinha feito uma tentativa tão admirável de demonstrar o desenvolvimento histórico na natureza, e com tanta felicidade”. A referência à teleologia é muito pertinente, porque de fato uma das façanhas de Darwin foi haver substituído na biologia as causas finais – o olho serve para ver – por causas eficientes – o olho é o que é em sua forma atual porque foi moldado desse modo como resultado cumulativo de inúmeras intervenções da seleção natural, ao longo de milhões de anos. Atrás da teleologia se escondia Deus; atrás da causalidade eficiente está a seleção natural. E a alusão à história na natureza capta com mestria a semelhança e a diferença entre o método de Marx e o de Darwin. Em Darwin é a história da vida, cujo motor é a evolução; em Marx é a história da humanidade, cujo motor é a luta de classes. Em carta a Ferdinand Lassalle, de 16 de janeiro de 1861, Marx diz com todas as letras que a teoria de Darwin é o “substrato, fundado na ciência natural, da luta de classes, fundada na história (naturwissenschaftliche Unterlage des geschichtlichen Klassenkampfes.)”. E em carta a Engels, de 18 de junho de 1862, Marx observa: “Darwin reconhece entre animais e plantas sua sociedade inglesa, com sua divisão do trabalho, competição, abertura de novos mercados, ‘invenções’ e a luta malthusiana pela existência. É o bellum omnium contra omnes, de Hobbes. Recordamo-nos de Hegel, que vê a sociedade civil como ‘um reino animal do espírito’, enquanto Darwin imagina o reino animal como a sociedade civil”. A história da natureza se transforma num reflexo especular da violência social, e esta num pastiche da violência natural. A natureza e a sociedade são habitadas por lobos famintos, em que a luta de todos contra todos faz com que a vida de cada um seja, como disse Hobbes, “nasty, brutish and short”.
Mas essas opiniões não ficaram restritas à correspondência particular. No prefácio à segunda edição de O Capital, Marx escreve que em seu livro “a evolução da formação econômica da sociedade é vista como um processo de história natural”. Certamente foi essa a edição oferecida a Darwin. E nada é mais significativo que esta passagem da oração fúnebre de Marx, feita por Engels:
Assim como Darwin descobriu a lei da evolução na natureza orgânica, Marx descobriu a lei da evolução na história humana; ele descobriu o fato simples, até então oculto pela ideologia, de que os homens necessitam primeiro comer e beber, abrigar-se e vestir-se, antes de se dedicarem à política, à ciência, à arte, à religião etc.; e que por isso a produção dos meios materiais imediatos de vida, e consequentemente o grau de desenvolvimento econômico atingido por um povo dado ou durante uma época dada, forma o fundamento a partir do qual evoluíram as instituições estatais, as concepções legais, a arte e mesmo as ideias religiosas do povo em questão, e à luz do qual essas coisas devem ser explicadas, em vez de vice-versa, como até agora tinha sido o caso.
Enfim, leiam-se as seguintes palavras de Lênin:
Assim como Darwin pôs fim à ideia de que as espécies animais e vegetais eram absolutamente sem ligação interna, fortuitas, criadas por Deus e imutáveis, e foi o primeiro a colocar a biologia numa base científica, demonstrando a mutabilidade e a sucessão das espécies, assim Marx pôs fim à concepção de que a sociedade era um agregado mecânico de indivíduos, autorizando todos os tipos de modificação segundo o capricho das autoridades (ou, se preferirem, da sociedade e do governo) e que emerge e muda aleatoriamente, e foi o primeiro a colocar a sociologia numa base científica, vendo a formação econômica da sociedade como a soma de determinadas relações de produção e demonstrando que o desenvolvimento de tais relações é um processo de história natural.
Esse reconhecimento da importância da perspectiva biológica deveria ser imitado pelos herdeiros contemporâneos do pensamento crítico, marxistas ou não. Tal abertura pressupõe o abandono do que chamei biofobia, a desconfiança a priori com relação à biologia e ao evolucionismo. Abertura não significa aprovação. Certas linhas de pesquisa genética e de engenharia genética (células-tronco, clonagem humana) deveriam de fato ser acompanhadas criticamente pelos cientistas sociais e debatidas em público, como fez Jürgen Habermas em O futuro da natureza humana. As aberrações mons truosas cometidas em nome do darwinismo, que resumi há pouco, estão ainda suficientemente próximas de nós para que possamos nos dar ao luxo de ignorar os riscos de uma volta ao passado.
Mas quer o queiramos ou não, o trabalho dos biólogos prossegue. Como prossegue o trabalho dos cientistas sociais que decidiram incorporar em suas pesquisas a perspectiva evolucionista, em campos novos como a sociobiologia e a psicologia evolutiva. Em geral, esses profissionais estão longe de corresponder à caricatura que fazemos deles. Hoje em dia são raros os que defendem o determinismo genético, a ideia simplista de que o comportamento humano é determinado por nossos genes. Ao contrário, todos consideram que, sem as informações vindas da cultura, o homem não poderia adaptar-se ao ambiente. E mesmo a adaptação deixou de ser um fim em si. Quando excessiva, a adaptação pode levar ao conformismo, que paralisa a evolução, e nesse caso a seleção favorece os não conformistas, os indivíduos capazes de relativizar as certezas culturais. A psicologia evolutiva e a primatologia podem mostrar que muitos comportamentos do homem moderno, como a luta por status, a ambição de poder e a violência contra a mulher, são legados de nossos ancestrais pré-humanos, mas não tiram daí a conclusão de que esses comportamentos são legítimos. Ao contrário, muitos comportamentos que foram adaptativos no passado são hoje disfuncionais e, por isso, precisam ser modificados. Mas esse trabalho terá melhores perspectivas de êxito se conhecermos as raízes evolutivas que reforçam tais comportamentos. Nisso, como em tudo o mais, temos de evitar a chamada falácia naturalista, o erro lógico que consiste em derivar o dever ser do ser, a norma do fato. Do fato de que certas tendências estejam inscritas em nossa herança genética não decorre uma norma que as justifique. Porém as chances de mudança melhorarão se conhecermos esse fato, para melhor contorná-lo.
Mas, por maior que seja a abertura dos cientistas sociais à perspectiva evolucionista, poucos iriam tão longe quanto Marx, que a viu como a infraestrutura, Unterlage, de sua própria teoria. No entanto, talvez não fosse totalmente utópico admitir um modelo bidimensional em que as duas perspectivas fossem vistas como complementares. O antropólogo evolucionista Jerome H. Martow propôs para isso o critério da compatibilidade. Cada vez que uma afirmação sobre o homem feita por um cientista social for incompatível com o que a psicologia evolutiva julga saber, ou vice-versa, surge um problema, que aponta para um erro, cuja correção deve dar origem a novas investigações.
Além de cruzar o darwinismo com o marxismo, eu tinha pensado originalmente em fazer a mesma coisa com a psicanálise – essa outra mutação que revolucionou o pensamento tão profundamente quanto o darwinismo. Mas isso exigiria outra palestra, que para alivio geral não farei, pelo menos agora.