2005

A poesia confluente [Eliot]

por Benedito Nunes

Resumo

O poeta crítico e o crítico poeta se juntam em T. S. Eliot, para quem a poesia tem uma dupla tarefa: aperfeiçoar a língua e mobilizar o pensamento para o mito, a religião e a filosofia. Disso resulta uma unidade múltipla: combinação do antigo e do novo, fragmentarismo das imagens (instantâneo de algo complexo que se desenrola temporalmente) e convergência dramática de vozes literárias do passado num sujeito silente. É o que vemos em A terra desolada (1922), o mais assombroso poema da literatura moderna, segundo Otto Maria Carpeaux, e nos Quatro quartetos (1943), suas obras mais conhecidas. Ambas podem ser ditas culturais e de conteúdo místico. Ambas revelam uma unidade temporal centrada na duração, no instante (“cada instante é uma nova e chocante / avaliação de tudo o que temos sido”, ele escreve nos Quartetos), mas voltada para a eternidade, como a forma de um vaso chinês “que ainda se move / perpetuamente em seu repouso”. Numa época marcada pela incerteza do homem quanto ao destino do seu impulso religioso e pela ressurgência de crenças antigas como o ioga, o ocultismo e a teosofia sob a crosta dos hábitos urbanos, Eliot junta platonismo, cristianismo, hinduísmo e taoísmo numa nova religiosidade sincrética, a memória da História servindo para a libertação do passado e do futuro. O homem está no mundo para purgar-se das desventuras históricas a caminho de uma Redenção que lhe foi prometida. Pensamento religioso, portanto, que interroga a História através da poesia.


À memória de Angelita Silva, tradutora dos Four Quartets

THE WASTE LAND

APRIL is the cruellest month, breeding

Lilacs out of the dead land, mixing

Memory and desire, stirring

Dull roots with spring rain.

Winter kept us warm, covering

Earth in forgetful snow, feeding

A little life with dried tubers.

Summer surprised us, coming over the Starnbergersee

With a shower of rain; we stopped in the colonnade,

And went on in sunlight, into the Hofgarten,

And drank coffee, and talked for an hour.

Bin gar keine Russin, stamm’ aus Litauen, echt deutsch.

[…]

Unreal City,

Under the brown fog of a winter dawn,

A crowd flowed over London Bridge, so many,

I had not thought death had undone so many.

Sighs, short and infrequent, were exhaled,

And each man fixed his eyes before his feet.

Flowed up the hill and down King William Street,

To where Saint Mary Woolnoth kept the hours

With a dead sound on the final stroke of nine.

There I saw one I knew, and stopped him, crying ‘Stetson!

‘You who were with me in the ships at Mylae!

‘That corpse you planted last year in your garden,

‘Has it begun to sprout? Will it bloom this year? 

‘Or has the sudden frost disturbed its bed?

‘Oh keep the Dog far hence, that’s friend to men,

‘Or with his nails he’ll dig it up again!

‘You! hypocrite lecteur! — mon semblable, — mon frère!’

T.S. Eliot,

Poesia, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1981.

 

A TERRA DESOLADA

Abril é o mais cruel dos meses, germina

Lilases da terra morta, mistura

Memória e desejo, aviva

Agônicas raízes com a chuva da primavera.

O inverno nos agasalhava, envolvendo

A terra em neve deslembrada, nutrindo

Com secos tubérculos o que ainda restava de vida.

O verão nos surpreendeu, caindo do Starnbergersee

Com um aguaceiro. Paramos junto aos pórticos

E ao sol caminhamos pelas aléias do Hofgarten,

Tomamos café, e por uma hora conversamos,

Bin gar keine Russin, stamm’ aus Litauen, echt deutsch.

[…]

Cidade irreal,

Sob a fulva neblina de uma aurora de inverno,

Fluía a multidão pela Ponte de Londres, eram tantos,

Jamais pensei que a morte a tantos destruíra.

Breves e entrecortados, os suspiros exalavam,

E cada homem fincava o olhar adiante de seus pés.

Galgava a colina e percorria a King William Street,

Até onde Saint Mary Woolnoth marcava as horas

Com um dobre de morte ao fim da nona badalada.

Vi alguém que conhecia, e o fiz parar, aos gritos: “Stetson,

Tu que estiveste comigo nas galeras de Mylae!

O cadáver que plantaste ano passado em teu jardim

Já começou a brotar? Dará flores este ano?

Ou foi a imprevista geada que o perturbou em seu leito? Conserva o Cão à distância, esse amigo do homem,

Ou ele virá com suas unhas outra vez desenterrá-lo!

Tu! Hypocrite lecteur! — mon semblable —, mon frère!”

Tradução de Ivan Junqueira

__________

1

Eliot pensou a respeito da poesia: sobre sua natureza, suas funções, seu nexo com a sociedade e a história. Pensou sobre a crítica, como poeta crítico e crítico poeta que foi, atento à feitura e à difusão da experiência humana verbalizada. Pensou que na poesia a emoção se cristaliza na palavra e que na palavra se cristalizam os sentimentos. Válvula de escape da emoção, é também a poesia um desvio da personalidade, em vez de ser a expressão dela. Os poetas estão à busca de outra linguagem. E nessa busca, segundo Eliot nos diz expressamente, formam uma comunidade inconsciente. A tarefa direta que lhes incumbe é com a sua língua; contribuem para preservá-la, distendê-la e aperfeiçoá-la. Mas Eliot também pensa na e com a poesia, ou seja, é poeta que mobiliza o pensamento na direção do mito, da religião e da filosofia, fazendo-os confrontar-se. A linguagem poética torna-se, então, uma força de convergência.

É singular que essa força de convergência atue de encontro ao que há de heterogêneo e dividido na matéria e na forma poética eliotianas — a sua dispersividade — impondo, afinal, à composição toda, uma unidade múltipla, a dos fragmentos, feita de contrastes, à semelhança da bela harmonia oculta, visada por Heráclito de Éfeso.

A dispersividade e o fragmentarismo — dois traços exemplares que igualmente distinguem a fisionomia da poesia moderna —  marcam de diferentes maneiras A terra desolada[1] e Quatro quartetos,[2] as duas mais conhecidas obras poéticas de T. S. Eliot.

A terra desolada compõe-se de cinco partes, cada qual com um título — “O enterro dos mortos”, “Um jogo de xadrez”, “O sermão do fogo”, “Morte pela água”, “O que o trovão disse” — e um determinado número de estrofes. “O enterro dos mortos” compõe-se de cinco estrofes, poeticamente autônomas, embora formem um só conjunto. A dispersão da matéria nessa poesia — abastecida por um considerável corpo de notas, de referências, esclarecedoras, eruditas — corresponde ao fragmentarismo de sua forma.

Fragmento é pedaço ou parte de um todo. Noção preponderantemente espacial, valorizado com Schlegel na estética do Romantismo alemão, fragmento também significa o instantâneo de algo complexo a desenrolar-se temporalmente e, como tal, equivalente ao seccionamento da linguagem comum na qual se investem as múltiplas experiências da poesia eliotiana.

Nessa poesia a sempre crueza do real está encimada por arcadas alegóricas. Quem são os mortos a serem enterrados na primeira parte de A terra desolada? A multidão que transita pela Ponte  de Londres, mas sob a arcada de uma cidade irreal, unreal city: “Sob a fulva neblina de uma aurora de inverno/ Fluía a multidão pela Ponte de Londres, eram tantos,/ Jamais pensei que a morte a tantos destruíra”.

Mortas são as flores, os lilases, morta a terra, embora raízes grimpem por toda parte. Morrem os jacintos e já em outra estrofe a célebre vidente, Madame Sosostris, põe cartas. Experiência, pois, sucede a experiência. Mas, opostas ao polo da vida, essas experiências são fundamentalmente literárias. “Como nos heróis de Flaubert, a fonte de saber do poeta (e do homem Eliot), não é a vida imediata”, observa Kathrin Rosenfield.[3] Tudo o que ele sabe desta vida, mas também dos ciclos vitais e dos mistérios fertilizantes e regeneradores, absorve, truncada e indiretamente, de livros de antropologia (Eliot cita Frazer e Miss Weston como fontes principais). Ora, as notas de Eliot nunca remetem a uma experiência vivida, apenas recuperam possíveis experiências por meio de textos e de representações artísticas… A própria vida é vista por um olhar alheio: o do personagem Tirésias, espécie de “encruzilhada” onde inúmeros personagens — externos e internos — do poema encontram-se e confundem-se, conforme Eliot esclarece  em  A  terra  desolada.[4] É o  olhar  de  Tirésias,  o  vidente homérico, que acompanha o enterro dos mortos; ele assiste à partida de xadrez e conclui: “Penso estarmos na alameda dos ratos/ Onde os homens mortos perderam seus ossos.

Segundo o próprio Eliot, o Tirésias do poema é aquele que vê a poesia se fazendo. Mas não apenas isso: esse sujeito ostensivo também vê o exterior, sobretudo os elementos marinhos e vegetais da natureza, e ao ver a poesia se fazendo torna-a uma força de convergência dramática, associando-a ao mito, à religião e a outros universos poéticos. No entanto, é um sujeito quase silente, tantas são as vozes que falam ou que têm a palavra nesse poema, como as duas que se sucedem na primeira estrofe de “O enterro dos mortos”: uma, um eu singular; outra, a plural de um nós:

Abril é o mais cruel dos meses, germina

Lilases da terra morta, mistura

Memória e desejo, aviva

Agônicas raízes com a chuva da primavera.

O inverno nos agasalhava, envolvendo

A terra em neve deslembrada nutrindo

Com secos tubérculos o que ainda restava de vida.

O verão nos surpreendeu, caindo no Sternbergesee

Com um aguaceiro. Paramos junto aos pórticos

E ao sol caminhamos pelas aléias do Hofgarten, Tomamos café, e por uma hora conversamos.

A terra desolada, ao mesmo tempo sátira, balada metafísica e Apocalipse, “é, para Otto Maria Carpeaux, o poema mais assombroso da literatura moderna”.[5] Por que assombroso? Não só por essa mistura de gêneros, que confirma a sua dispersividade temática, mas também pela lancinante visão da Sibila de Cumes nele evocada e por ele transportada — à custa de seu próprio fragmentarismo — do mundo antigo, onde está morrendo,[6] ao nosso mundo, lacerado, dividido por múltiplos conflitos e mortes.

No meio desse mundo ressoa um mítico trovão entre sagradas palavras do hinduísmo — datta, sayadhvam, damyata (dar, compreender, controlar) — constantes de um dos Upanishads. Sob tal aspecto, os versos eliotianos parecem concentrar uma longa sessão purgatorial, se não uma saison en enfer:

Eu, Tirésias, embora cego, palpitando entre duas vidas,

Um velho com as tetas engelhadas, posso ver,

Nessa hora violácea, o momento crepuscular que luta Rumo ao lar […]

Já os Quatro quartetos — cada qual levando o nome de um lugar visitado, “Burnt Norton”, “East Coker”, “Little Gidding”, “The Dry Salvages” — “são  quatro  grandes  poemas  filosófico-religiosos…”.[7] Mas quem nesses versos olha, fala, reflete? Quem é o personagem fabular dos  Quatro  quartetos,  cada  qual  com  o aspecto externo inteiriço dos poemas tradicionais longos, com mais de 180 e menos de 270 versos, compostos de cinco estrofes, mas internamente dispersivos quanto à matéria e fragmentários na forma?

Sabemos que esse personagem está perto; mas também sabemos que ele, um tanto vidente e um tanto filósofo, um tanto adivinho e um tanto reflexivo, vem de longe, trazido da Grécia pré-clássica, citando Heráclito no começo, em dois fragmentos, ou vem da Índia vedântica, como leitor dos Upanishads. Os Quartetos assombram pela sua envolvência intelectual e mítica — mítica e mística, acentuamos—, mas como meditação das ideias e visão das coisas, que atestam a sua presença sensível, mormente vegetal: “Alho e safiras na lama…/ o girassol…/ a clematite… o rio… o mar… a rosa… a pomba… o fogo… a incandescência”. A sua envolvência é proporcional à complexidade dos componentes. Nele, há os mais díspares: biográfico, cósmico, poético, metalinguístico, histórico e metafísico.

O biográfico, que assoma em “East Coker” não tem a ver com o indivíduo, mas com uma geração de poetas que tenta compreender o mundo e aprofundar seu significado:

Assim, eis-me aqui na metade do caminho e vinte anos se passaram

— Vinte anos a rigor desperdiçados, os anos de l’entre deux guerres — tentando aprender como empregar as palavras […]

O componente cósmico acompanha o tempo, mas também o precede, quer seja o rio ou o mar, quer seja a água ou o fogo: “A água e o fogo escarvarão/ Os poderes fundamentais que olvidamos”.

Em várias passagens, os Quartetos nos falam do cósmico entrelaçado ao poético, sendo o poético identificado ao movimento da linguagem. Quando há poesia, são as palavras que se movem; e o fazem na direção do silêncio em que recaem. Mas aí o movimento é um detalhe da forma de que necessitam para alcançar esse fim:

As palavras se movem, a música se move

Apenas no tempo; mas o que apenas vive

Pode apenas morrer. As palavras após a fala alcançam O silêncio. Apenas pelo modelo, pela forma

Podem as palavras ou a música alcançar

O repouso, como um vaso chinês que ainda se move Perpetuamente em seu repouso.

Quem as provoca ao movimento é o poeta, tentando sempre aprender a empregá-las, e de novo começando a fazê-lo em cada tentativa. E tudo o que aprende é escolher a melhor das palavras, que deve ser sem pompa ou tímida. Eliot nos dá assim o delineamento de sua própria poética: é essa palavra, correntia, correta e digna, essencial, que veicula o “natural intercâmbio do antigo com o novo”.

Assim como não é o indivíduo que está em jogo nesses versos, assim não é a pequena mas a grande História o que pulsa no movimento da humanidade, acima do qual se projeta o plano religioso da Redenção (sabe-se que Eliot converteu-se ao catolicismo anglicano): o ponto crítico porém metafísico dessa história se dá quando a não-História a move.

A  mais  apropriada  descrição  dos  Quatro  quartetos,  feita por Helen Garden, diz-nos que esses poemas apresentam “uma série de meditações sobre a existência no tempo, a qual, começando de um lugar e de um ponto no tempo e voltando para outro lugar e outro ponto, tenta descobrir nesses pontos e lugares qual é o significado e o conteúdo de uma experiência, o que a ela nos leva e o que dela deriva, o que nós lhe trazemos e o que ela traz para nós, mas qualquer  dessas  descrições  terá  de  ser  breve  e  abstrata…”.5  A  matéria temática do poema não é uma ideia ou um mito, mas em parte certos símbolos comuns, como aqueles quatro elementos que os pensadores gregos antigos nomearam: a água, o ar, a terra, o fogo.

Mas com isso ainda não se esgotou a fecundidade material e formal do poema eliotiano. Acompanhando o dispersivo da matéria, a forma, anteriormente descrita como inteiriça, fragmenta-se em estrofes intermediárias, às vezes pequenas e em cantábile:

O tempo e o sino sepultaram o dia

Nuvens negras arrebatam o sol […]

 

O mundo inteiro só nos vale de hospital […]

 

Senhora, cujo santuário se alteia sobre o promontório

Orai por aqueles que se fazem ao mar.

 

A pomba mergulhando rasga o espaço

Com flama de terror incandescente. […]

O poema é rico em imagens como símbolos dispersos e recônditos, mas eminentes, como o fogo, o teixo e a rosa, mar e pedra, a memória e a morte, e outros menos eminentes, como a urtiga e as crianças na macieira. A memória, que está para além do desejo, liberta-nos do passado e do futuro. Esse nascimento é tanático, pois que “morremos com os agonizantes” e “nascemos com os mortos”. Pela poesia efetiva-se, em parte, esse morrer. Não é cada poema um epitáfio? O passo decisivo, sempre mortal, é o nascimento: “É um passo rumo ao todo, ao fogo, uma descida à garganta do mar/ Ou à pedra indecifrável — e daí é que partimos”.

Esse limite mítico do poema, falando-nos do nosso princípio e do nosso fim, mostra-nos a sua força de convergência, que mobiliza o pensamento. Quer isso dizer que Quatro quartetos convoca poetas e filósofos; alia-os à linguagem, citando-os, do mesmo modo que cola textos religiosos e filosóficos à sua própria escrita.

2

É como se a experiência humana do Ocidente, culturalmente situada, se filtrasse nos relevos que constituem a orografia doutrinária do grande poema; as fontes em que o poeta bebeu, as concepções de que se apropriou podem ser recolhidas no fluxo geral das imagens e ideias, como se nascessem da própria experiência do poema. Do ponto de vista crítico e mesmo para uma leitura mais acurada, impõe-se destacar os espécimes filosóficos e religiosos que ingressaram no ciclo poético dos Quartetos, seja os greco-latinos e cristãos, seja os orientais, chinês e hindu.

Já havia Eliot adotado em A terra desolada processo semelhante, recorrendo, por exemplo, aos Upanishads. Revivendo filosofias, religiões e mitos essenciais, a poesia dos Quartetos representa para a nossa época o que a Divina Comédia foi para o medievo. Dante ergueu o seu poema na base da crença dominante — a teologia cristã, em que o homem encontrava a satisfação espiritual desejada. A poesia de Eliot reflete, precisamente, a incerteza do homem contemporâneo quanto ao destino de seu impulso religioso — incerteza que hoje nos conduz à aventura espiritual e a uma condição que só não é de inteira disponibilidade em razão das heranças do passado.

A nossa época é um ponto de confluência. Descem sobre nós, como por efeito de brusca inclinação do plano da história, diversas formas de pensamento, que procuramos assimilar e manter à custa de uma atividade exaustiva, assinalada, no Ocidente, por essa inquietude do espírito, inventando crenças, retomando fórmulas mágicas, teúrgicas e ascéticas: a propagação da ioga, o interesse pelo ocultismo, o desenvolvimento da teosofia, o estudo da filosofia vedanta etc. Mas a nossa época é também, pelo mesmo motivo, um plano de dissidências.

A visão intuitiva daquilo que Eliot desenvolve eleva-se desse acervo cultural misto. O poeta pressupõe que existe uma profunda unidade por baixo da extrema diversidade — a unidade do espírito humano, destinado a cumprir um tipo de aventura, que promove, em distintos tempos e espaços, a eclosão de mitos, símbolos, arcabouços teóricos, vicissitudes e técnicas.

O acento mítico e místico dos Quartetos, que é marcante, alimenta-se de certo realismo antropológico. E quando, além de sua própria experiência, Eliot utiliza como matéria poética a experiência dos sábios, santos e filósofos, é porque pretende fazer mais do que uma antropologia: quer escrever a justificação do homem, ou seja, uma antropodiceia.

Em um dos poemas a unidade da experiência humana é considerada uma corrente, que jorra do manancial primitivo, dos mitos que perduram mesmo sob a crosta formada pelos hábitos da vida urbana, pela técnica e pela ilustração intelectual. É o primitive terror, como diz em “The Dry Salvages”:

[…] Eu disse antes

Que a experiência passada revivida pelo sentido

Não é a experiência de uma só vida apenas

Mas de muitas gerações — não esquecendo

Alguma coisa que é provavelmente toda inefável

O olhar para trás além da segurança

Do que a história registra, o futuro olhar para trás

Sobre o ombro, na direção do terror primitivo.

O poeta tenta fazer uma antropologia porque invoca as atitudes fundamentais do homem, recuperadas, em parte, nos mitos, e esse propósito está de acordo com a acepção moderna da mitologia. Naquilo que têm de mais primitivo, os mitos, para empregar as expressões de George Gusdorf, constituem o formulário ou a estilística do comportamento humano em seu processo de inserção na realidade. Dotados de consistência ontológica, por eles descobrimos como o homem reage ao mundo e qual o sentido primeiro que retira das coisas e de sua própria existência. Nos Quartetos encontramos toda uma ontologia primitiva: a situação do ser humano é descrita e avaliada segundo os elementos essenciais que integram o simbolismo mítico e as práticas místicas.

O aproveitamento da religião e da filosofia atesta que o autor deu aval à sua experiência das coisas o cunho de revivescência da cultura. Por isso, tanto  os  Quatro  quartetos  como  A  terra desolada podem ser considerados poemas culturais, pois filtram ou decantam certos valores humanos, quer religiosos quer filosóficos. Esses poemas, de modo especial, mostram o que há de plástico, maleável e receptivo na atual busca de padrões espirituais. Revelam o que essa postura tem de angustiante; as indecisões e as tentativas repetidas, a escolha desta ou daquela forma de pensamento, às vezes equivalentes não pela certeza que asseguram, mas pela origem comum nas vicissitudes da espécie ou no terror cósmico primitivo. Justamente sob esse aspecto, os Quartetos são a contraparte da Divina Comédia. Nesta, a firmeza do espírito acerca-se da teologia cristã; naqueles, a insegurança intelectual espraia-se e não adota uma forma determinada.

O tema radial do grande poema de Eliot é a temporalidade. Considera, a par do caráter efêmero das coisas e dos seres, o processo histórico, tentando relacioná-lo com o destino humano para mostrar que a experiência coletiva é tão inefável quanto a experiência de cada indivíduo. A reflexão sobre a temporalidade implica outros temas essenciais: nascimento e morte, ser e movimento, fim e princípio, ação e inação (ou ação e contemplação).

Os Quartetos harmonizam diferentes atitudes e formas de pensamento. Sua poesia foi capaz de unir o que a especulação filosófica, a racionalização do sentimento religioso — e a influência do espírito de grupo ou classe — separaram em distintos formulários, doutrinas, dogmatismos e igrejas. Daí o admirável sentido universalista desses poemas, como busca da eternidade no fluxo do tempo.

3

Nos Quartetos a experiência do tempo foi amplamente desenvolvida em toda a sua complexidade. Trata-se, por certo aspecto, do circular das mitologias, decorrente da sucessão uniforme das coisas, e do movimento cíclico em que se alternam nascimento e morte. Assim aparece no verso do terceiro quarteto, “The Dry Salvages”: “Tempo o destruidor é o tempo preservador”.

Nesse poema sobreleva o acordo entre dois elementos — mar e tempo — associados miticamente. A água sempre foi considerada fator de formação, de gênese, antes mesmo de Tales, quer pelos gregos, quer pelos egípcios, babilônicos e hebreus. Homero chamou ao oceano de pai dos deuses. Está escrito no “Gênese” que o espírito de Deus pairava sobre as águas. Os órficos atribuíam ao tempo a mesma função geradora das águas: é a primeira causa entre todas as coisas, ou o primeiro dos deuses, imortal e ilimitado, engendrando o fogo, o ar e o elemento líquido. Unindo o mar e o tempo, Eliot não constrói uma alegoria, mas simboliza uma sobrevivência mítica:

Não podemos pensar num tempo que fosse sem oceano

Ou num oceano não juncado de destroços

Ou num futuro que não fosse passível

Como o passado, de não ter destino.

Na mesma ordem de simbolização, mas em contraste com o oceano, o poeta nos fala do rio como um elemento dócil, tratável, que serve para demarcar fronteiras ou conduzir mercadorias. Domesticado pelo construtor de pontes, esquecido pelos habitantes das cidades, ele é, entretanto, “um forte deus moreno, indomável, intratável”. As relações humanas, os processos da técnica, toda a civilização, enfim, encobrem ou disfarçam a realidade primitiva, sem jamais extinguir a sua presença. E nessa matriz reside a força perene de criação, pela qual o homem se renova, juntamente com os outros seres:

[…] Desonrado, desfavorecido,

Pelos adoradores da máquina, mas espera, vigia e espera.

Seu ritmo estava presente nos quartos das crianças,

No viçoso ailanto do jardim de abril,

No perfume das uvas na mesa do outono

E no círculo noturno, na luz de gás do inverno.

O rio está dentro de nós, o mar está todo à nossa volta; O mar é a borda da terra também, o granito

Dentro do qual ele chega, as praias onde atira

Suas sugestões de uma outra e mais remota criação […]

O tempo, posto em relação com a água, é menos a ordem de sucessividade no enlace das coisas (para empregar o conceito de Leibniz) do que a substância mesma do mundo e da vida. Por isso, por outro aspecto, o tempo apresenta-se como duração no sentido bergsoniano, correspondendo à consciência de ser ou de existir. Ser consciente quer dizer durar. Cada momento é a convergência do passado na forma de lembrança e do futuro como expectativa. Assim, sucessão das coisas confunde-se com a própria atividade da consciência. Não há, portanto, senão uma unidade temporal, que se apresenta ora subjetiva ora objetivamente.

O tempo não é apenas medida do movimento; é o próprio movimento indecomponível e concreto da vida, que cria sem cessar. Mas a inteligência, em sua função prática de adaptar o homem ao fluxo contínuo das coisas, delimita-o em porções, submetendo-o à categoria do espaço. Entretanto, não existem dois momentos iguais, do mesmo modo que não existem dois estados de consciência que sejam idênticos. “Se tudo está no tempo, tudo muda interiormente, e a mesma realidade concreta nunca se repete”, disse Bergson. Consciência das coisas, que esse oceano perpétuo deflui. O tempo, assim entendido, é duração, e exprime, igualmente, a continuidade na sucessão de estados que parecem descontínuos ou uma só direção unitária que se diversifica em seu curso. Segundo Bergson escreveu em L’évolution créatrice, a duração “é o progresso contínuo do passado que se alimenta do futuro e vai crescendo à medida que avança”. Completando esse pensamento, observa que, para um ser consciente, existir consiste em mudar, mudar em amadurecer, amadurecer em criar a si mesmo, indefinidamente.

A intuição bergsoniana está presente nos Quartetos. Confirmam-no, especialmente, certos versos, como estes de “East Coker”:

[…] Há, parece-nos,

Quando muito um limitado valor

O conhecimento impõe um padrão e falseia

Porque o padrão é novo a cada instante

E cada instante é uma nova e chocante

Avaliação de tudo o que temos sido […]

Poderíamos, assim, tentando apreender o sentido da experiência do tempo no poema de Eliot, reduzi-la aos padrões mais óbvios que certamente incorporou. No primeiro caso, seria a experiência temporal da realidade objetiva; no segundo, atividade consciente que liga o passado e o futuro pelo que há de único e irreiterável em cada momento. Aproximando-se ali das fontes míticas do pensamento humano, aqui da forma viva e atuante de uma das mais sedutoras filosofias da nossa época, o bergsonismo, Eliot tenta exprimir algo que não pode ficar restrito a nenhuma dessas duas modalidades, por ser uma intuição mística.

Fundamentalmente, o tempo não é sucessão, nem mudança indefinida (criação incessante). É ordem ou lei das coisas, sem dúvida, mas recobrindo a quietude, transcendendo a dissipação dos momentos e a instabilidade da consciência. Daí a ambiguidade do tempo. Cada momento é trama do passado com o futuro; transição que remete do que foi para o que será. Mas essa fuga permanente, essa inconstância, é apenas o signo visível da realidade imutável, do eterno presente que serve de eixo em torno do qual gravitam passado e futuro. Se o tempo não representa a eternidade, toda a existência é uma dissipação absurda, porque desprovida de sentido. Pois o verdadeiro tempo, o tempo real, não se divide em antes ou depois — é um agora e sempre, nunc et semper, disfarçado  nas coisas  e nos homens,  encobrindo  nestes a quietude mística do espírito e naquelas a íntima correspondência que faz de todas uma só coisa, como se a grande ilusão dos sentidos fosse a multiplicidade, quer espacial, quer temporal. Traduzindo esse  ponto de vista, que é o leitmotif dos Quartetos, Eliot reencontra a concepção platônica: tempo conhecido por meio da experiência, é o reflexo mutável de uma realidade imutável descoberta por iluminação. Vários trechos permitem essa interpretação. Em “Burnt Norton” encontramos o seguinte:

Tempo passado e tempo futuro

Ambos permitem uma pequena consciência.

Ser consciente não é estar no tempo,

Mas só no tempo, o momento no jardim das rosas.

O momento na igreja delineada na fumaça

Podem ser lembrados; envolvidos em passado e futuro Somente através do tempo, o tempo é conquistado.

Para precisar a significação do influxo platônico antes assinalado no aproveitamento do tema central — o tempo —, vejamos resumidamente quais as variações desse mesmo tema nos Quatro quartetos.

No primeiro surge a intuição do tempo como reflexo da eternidade. Procura-se o ponto estático do universo e, simultaneamente – tanto quanto podemos conceber a expressão simultânea em poesia —, a quietude da alma, mesmo considerados os impulsos e as tendências que condicionam o seu dinamismo. No segundo, “East Coker”, o poeta focaliza a própria atividade humana (adotando, por sinal, a ênfase do Eclesiastes). Põe a descoberto as suas fases cíclicas, a recorrência de certas atitudes, numa sucessão uniforme de atos pelos quais se realiza a humana aventura (o nascimento, o trabalho, a construção, a procriação etc.). Também relaciona a experiência individual com a experiência transmitida, de uma geração para outra, e o que, nesse intercâmbio, é perdido ou conservado.

A título de elemento de transição indispensável entre “East Coker” e “The Dry Salvages”, o que completa essas ideias é a função contemplativa da alma. Ligada ao mundo inteligível ou das essências, seu impulse fundamental, desviado pelas impressões dos sentidos, leva-a à contemplação do ser, do supremo inteligível. Estamos diante da propensão platônica dos Quartetos.

Libertar a alma, purificá-la, praticar a ascese que sublima o desejo, significa dar-lhe o seu rumo natural, que é a contemplação ativa, como estado de plenitude. A ascese tem nos Quartetos o sentido de recuperação do tempo — do tempo real ou verdadeiro. Por meio dela, o que é ação transforma-se em quietude. O homem vive no tempo apenas simbolicamente. Alcançando a santidade, o revestimento temporal de sua existência desprende-se, passando a viver no eterno presente, sem antes nem depois, sem princípio nem fim.

Confirmando no último quarteto, “Little Gidding”, a ascendência do platonismo em sua concepção do tempo, Eliot termina por mostrar que a própria História é também a expressão temporal da eternidade, como se enfim homens e coisas fossem apenas manifestações do ser uno, de que tudo nasce, no qual tudo se mantém e para onde tudo retorna.

4

Pelo que já expusemos, são inegáveis as fontes místicas dos Quartetos. Neles confluem, interpretando-se, o hinduísmo do Bhagavad-Gita, a concepção penetrante de Heráclito e a contemplação serena de Lao Tzu. Mas, a nosso ver, foi em As confissões de santo Agostinho que Eliot encontrou o molde no qual melhor se ajusta a vivência do tempo expressa em seus poemas. Platonismo, cristianismo, taoísmo unem-se, desse modo, em uma só estrutura poética.

A existência do mal afetou santo Agostinho, determinando o processo agônico de sua conversão. O problema do tempo exerceu enorme influência sobre o pensamento e a imaginação cintilantes do bispo de Hipona. Pois se os gregos tinham a ideia serena de que tudo existe eternamente, os Padres da Igreja retomaram filosoficamente o princípio bíblico da criação do mundo, ex nihilo, por um ato de inteligência e vontade supremas, estabelecendo a ordem dos seres a partir do início absoluto do tempo. Aos que perguntam o que Deus fazia antes da criação, santo Agostinho, em suas Confissões, responde, perturbado, que o obreiro de todos os tempos não pode ficar sujeito à sucessão dos séculos, pois a sua existência é um eterno “hoje”, que transcende passado e futuro. Diz ele em outra passagem: “Na eternidade, ao contrário, nada passa, tudo é presente, ao passo que o tempo nunca é todo presente. Esse tal verá que o passado é excluído pelo futuro, e que todo o futuro toma origem no passado, e todo o passado e futuro são criados e dimanam daquele que sempre é presente”. O tempo procede de Deus, o que equivale a afirmar que a eternidade é o sentido oculto do tempo. Passado e futuro são formações contingentes, condicionando a vida em sua aparência de movimento, dissipação, trânsito entre o ser e o nada. No início dos Quartetos — a grave abertura de “Burnt Norton” — irrompe esse pensamento:

Tempo presente e tempo passado

Presentes são ambos talvez em tempo futuro

Se todo o tempo é eternamente presente

Todo o tempo é irredimível.

O que podia ter sido é uma abstração

Permanecendo uma perpétua possibilidade

Somente um mundo de indagação

O que podia ter sido e o que foi

Apontam para um só fim sempre presente.

A eternidade disfarçada pelo ritmo do movimento é neste apreendida como forma (pattern), que se realiza por meio do movimento. Heráclito não afirmara somente que as coisas se apresentam como fluxo incessante; concebe uma razão oculta (logos) ou unidade, que condiciona e transcende o movimento. O fragmento 2 do filósofo de Éfeso, que Eliot utilizou, juntamente com o de número 60, como epígrafe dos Quartetos, segundo o texto estabelecido por H. Diels (“Die Fragmente der Vorsokratiker”), diz o seguinte: “Apesar de que a razão seja comum, a maioria vive como se tivesse uma razão individual”.

Essa razão universal que em tudo se manifesta é também o Caminho (Tao) dos taoístas, criação velada e eterna, transeunte no tempo, que não sofre mudança ou decadência, que é imperturbável e fixa, segundo o Tao Te King, atribuído a Lao Tzu. Torna-se fácil reconhecer a marca de tais influências em “Burnt Norton”:

No ponto imóvel do mundo em movimento, nem a carne, nem a ausência da carne

Nem de, nem para onde; no ponto imóvel lá está a dança,

Mas nem parada nem em movimento. E fixidez a isto não chamemos

Onde passado e futuro são recolhidos. Nenhum movimento de,

nem para onde

Nem ascensão nem declínio. Se não fosse o ponto imóvel

Não haveria dança, e lá só existe a dança.

Apenas sei dizer, lá nós estivemos: mas onde não sei dizer.

E não sei dizer qual foi a duração porque seria no tempo colocá-la.

Reflete-se também aqui outro pensamento de Heráclito, que é a segunda epígrafe dos Quartetos: “Para subir e descer, o caminho é um só e mesmo caminho”.

Desfazendo as oposições entre ser e vir-a-ser, passado e futuro, inércia e movimento, Eliot estabelece a intuição do eterno, reunindo, para o mesmo fim, os conceitos e símbolos que o tornariam manifesto: o verbo cristão e o logos grego, o tao chinês e a alma universal, o Atman bramânico. A realidade percebida por intermédio dos sentidos, mutável e inconsistente, torna-se apenas o revestimento da verdadeira realidade, que é una e intemporal. À primeira corresponde o conhecimento ilusório, como no mundo sensível de Platão. Reveste-se, por isso, de um sem-número de formas passageiras, sujeitas ao ciclo de nascimento e morte. Constitui, assim, a trama fugidia da criação divina, cujos múltiplos fios embaraçando o conhecimento místico da unidade tecem o véu sutil que os hindus denominam Maia ou formam, como foi escrito em um dos Upanishads, a “máscara dourada que oculta a face da Verdade”.

Depois de figurar a eternidade no tempo, Eliot, seguindo a via mística, mostra-nos a alma em busca do equilíbrio e da liberdade interior. Despojando-se da servidão aos desejos, superando a ação e o sofrimento, o amor limitado à satisfação presente e a esperança condicionada pelos sucessos futuros, ela encontra a quietude, o estado inefável que os jivan-mukta da Índia, os taoístas e os místicos do Ocidente alcançaram. A verdade apreendida pelo budismo, de que o sofrimento é efeito da ação, retorna nos versos de Eliot, em que transparece a atitude ascética dirigida para libertar o espírito humano de suas limitações temporais. Foi esse o alvo do misticismo, qualquer que seja a sua procedência religiosa. A finalidade da ascese, restringida no platonismo à posse do inteligível, é a conquista da plenitude espiritual que caracteriza o estado de santidade, como realização do ser para o qual não existem limitações ou aparências, movimento ou transitoriedade. Tudo se concentra em um eterno presente. O desejo deixa de ser movimento — implica posse imediata do que é por si mesmo desejável. Do mesmo modo, a fonte do amor é, para o santo, imóvel, intemporal, princípio e fim do próprio movimento.

No terceiro quarteto — “The Dry Salvages” — atribui-se ao santo a função de apreender a interseção da eternidade com o tempo:

Mas apreender

o ponto de interseção do sem tempo

com o tempo é uma ocupação para o santo.

O processo de ascese mística encontra-se no segundo Quarteto — “East Coker” — refletindo exatamente as fases de purificação da alma, segundo a técnica comum ao Oriente e ao Ocidente. Recompõe a subida do monte Carmelo de são João da Cruz, de quem Eliot toma os seguintes versos:

Para venir a lo que no sabes

Has de ir por donde no sabes

Para venir a lo que no gustas

Has de ir por donde no gustas

Para venir a lo que no posees

Has de ir por donde no posees

Para venir a lo que no eres

Has de ir por donde no eres.

A paráfrase do poeta inglês ao poeta e santo espanhol é a seguinte:

[…] Para chegar lá,

Para chegar onde estás, para sair de onde não estás, Deves ir por um caminho onde não há êxtase.

Para chegar ao que não sabes

Deves ir por um caminho que é o caminho da ignorância Para possuir o que não possuis

Deves ir pelo caminho do despojamento

Para chegar ao que és

Deves ir através do caminho onde não estás

E o que não sabes é a única coisa que sabes

E o que possuis é o que não possuis

E onde estás é onde não estás.

Por esse levantamento preliminar das influências que ressaltam da leitura dos Quartetos, pode-se fazer uma ideia da riqueza de seu conteúdo, que é fundamentalmente místico. A poesia dessa obra é a grande poesia religiosa? Traria ela um sentido universalista que liga por assim dizer o Oriente e o Ocidente e, de modo especial, o cristianismo e o hinduísmo? Ou é a poesia de uma nova religiosidade sincrética? Nenhuma grande poesia religiosa seria feita de citações…

Num último apanhado, é preciso referir a passagem do terceiro poema, em que se alude a Krishna. Eliot integra, nesse ponto, uma nova intuição.  Encontrou-a, certamente, no Bhagavad-Gita, onde Krishna, entre outros ensinamentos, transmite a noção de que o homem deve permanecer sereno mesmo quando age, sem ansiedade pelos resultados de sua obra ou pelos frutos da ação. Nisso reside o princípio da ação contemplativa e da contemplação ativa, que parece resumir a atitude prática em relação ao problema do tempo, correspondendo à formula desenvolvida no poema de Eliot:

Enquanto o tempo está recolhido, considera o futuro

E o passado com igual espírito.

No momento que não é de ação ou de inação;

E não pensa no fruto da ação.

Avante.

As ligações filosóficas e religiosas dos Quartetos não podem ser esgotadas com as presentes incidências. No entanto, é lícito dizer que o poema de Eliot talvez seja a única resposta de nossa época às perguntas que santo Agostinho fez: “Quem poderá prender o coração do homem para que pare e veja como a eternidade imóvel determina o futuro e o passado, não sendo ela nem passado, nem futuro? Poderá, porventura, a minha mão que escreve explicar isto? Poderá a atividade minha língua conseguir, pela palavra, empresa tão grandiosa?”.

A resposta dos Quartetos é dada no plano da História, até onde nos leva “The Dry Salvages” quando diz:

[…] Como já se disse,

A experiência vivida e revivida no significado

Não é a experiência de uma vida apenas

Mas a de muitas gerações — não esquecendo

Algo que, provavelmente, será de todo inefável:

Olhar para além da certeza Da História documentada.

Mas prendemo-nos ao tempo e submetemo-nos à História. Embora esquadrinhemos passado e futuro, não chegamos a apreender — o que é tarefa para os santos — a interseção entre a História e a não-História, entre o tempo e o intemporal. No entanto, tudo o que acontece depende dessa interseção, pensável mas imprevisível, que se esboça em nossa memória. A memória é capaz de libertar-nos da servidão à História, e tornar a História sinônimo de liberdade:

Esta é a função da memória:

Libertação — não menos amor mas expansão

De amor para além do desejo, como também libertação Do passado e do futuro.

É a História que afinal nos redime do jugo do tempo, pensava Eliot à época da Segunda Guerra Mundial quando escrevia os Quartetos sob o  fragor  das  bombas  voadoras  nazistas  sobre  Londres: “Assim, enquanto a luz declina/ Numa tarde de inverno, numa capela reclusa/ A História é agora a Inglaterra”.

Esse ponto-agora da História ocorre porque para Eliot se dá o que está para além de toda História e que é o que a rege. Encontramos, de novo, a incidência platônica e agostiniana do pensamento do poeta. A Encarnação, o além histórico, para o Eliot católico apostólico e anglicano, é a perfeita inserção do temporal com o intemporal.

A hipótese em parte conjecturada, o dom parcialmente

compreendido, é encarnação.

Aqui se atualiza a impossível

União de esferas da existência,

Aqui passado e futuro

Estão reconquistados e reconciliados…

Com o que acabamos de expor, completa-se a concepção do mundo eliotiana: o homem não está aqui para conhecer, mas está para os momentos de unção, em que a linguagem dos  mortos  toma o lugar da linguagem dos vivos — também uma intersecção do intemporal — e para purgar-se por meio das desventuras históricas a caminho da Redenção que lhe foi prometida. A poesia desvela esse caminho, e o faz dando ao lirismo eliotiano a pulsão do pensamento indagador, filosófico, dramatizando a existência individual e  histórica interrogada.

Notas

[1] Seguimos a tradução de Ivan Junqueira em T. S. Eliot, Poesia, Rio de Janeiro, Nova  Fronteira, 1981.

[2] Para esta obra, seguimos a tradução de Angelita Silva publicada no jornal A Província do Pará, suplemento Letras e Artes, Belém, 2/12/1956.

[3] K. Rosenfield, “Waste Land ou Babel: gramática do caos”, em T. S. Eliot & Charles Baudelaire, Poesia em tempo de prosa, tradução Lawrence Flores Pereira, organização Kathrin H. Rosenfield, São Paulo, Iluminuras, 1996.

[4] “Notes on the Waste  Land” em Collected Poems, Nova  York,  Harcourt,  Brace and Company, 1934.

[5] Otto Maria Carpeaux, História da literatura universal, Rio de Janeiro, O Cruzeiro, 1966, vol. VIII, p. 3222.

[6] Consta da epígrafe: “Nam Sibyllam quidem Cumis ego ipse oculis meis vidi in ampulla pendere, et cum illi pueri dicerent: Sibulla ti telleis; respondebat illa: apothanein tello” [Pois com os meus próprios olhos vi em Cuma a Sibila, suspense dentro de uma ampola e quando as crianças lhe diziam: Sibila, o que queres?; ela respondia: Quero morrer] (Petrônio, Satiricon).

[7] É imprescindível ler esse verso no original: “We cannot think of a time that is oceanless”. O adjetivo oceanless não pode ser transposto literalmente, com toda a sua força expressiva, para a nossa língua.

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